Título do trabalho: “Práticas de embelezamento como performance: pensando a
magrificação dos corpos femininos na atualidade”
Autora: Rosana Medeiros de Oliveira
Práticas de embelezamento como performance: pensando a magrificação dos corpos
femininos na atualidade
“Prazer na incerteza. O que me leva para um outro tipo de atitude frente ao
conhecimento. Não sei se é tempo de criar novos saberes, mas com certeza de interligar os existentes, fluidificar fronteiras, fazer encontros inesperados” (Lopes, D.:1999, 140). *** Confrontando a “arrogância do texto” (Lopes, D.:1999, 17), em sua pretensa unidade e coerência, pretendo apresentar o fragmento como texto móvel, em constante composição e decomposição. Escapar ao esquema “introdução, desenvolvimento e conclusão” e trabalhar com nós de sentido, com o inacabamento, com as contradições, com as multiplicidades. Anti-sistematicidade como método. Forma de introduzir a indeterminação dos sentidos. *** “O pessoal é político”: slogan feminista que começa a ser ouvido nos idos dos anos 60. O espaço privado, pessoal, as práticas individuais e íntimas, que parecem dizer respeito unicamente a decisões pessoais e autônomas são práticas políticas, práticas culturais, práticas de poder. Quando falo em poder, não estou referindo-me ao poder do Estado, ao poder das instituições, mas aos micropoderes, às micropráticas de construção das identidades e dos sujeitos. O poder não é uma instância absoluta de ordenamento que funciona de cima para baixo. Seguindo Foucault, proponho pensar em redes de poder funcionando em várias direções. São diversas as práticas de poder cotidianas que constroem nossas identidades, nossas formas de pensar, sentir e perceber. As micropráticas de feminilidade que constroem os corpos femininos são relações de poder. A extrema diferenciação das práticas de feminilidade e masculinidade não são igualmente arbitrárias e eventuais, sem diferentes valências socialmente estabelecidas. Toda a parafernália da feminilidade, desde os saltos altos, batons, maquiagem - ou seja, todas as técnicas para construir as mulheres visualmente e sexualmente “agradáveis” através de práticas corporais -, até as imagens da mídia são elementos cruciais na manutenção da dominação de gênero. A construção dos corpos femininos em nossa cultura consiste em um processo de sujeição dos corpos a constantes transformações. Como afirma Susan Brownmiller (conforme citada por Bordo, 1995, p.180), a feminilidade é uma “tradição de limitações impostas”, pois se caracteriza por um controle constante sobre a carne. Foucault chama os corpos femininos de corpos dóceis, ou seja, aqueles cujas forças estão acostumadas ao controle externo, à sujeição, à transformação, ao contínuo aperfeiçoamento. O corpo é treinado e subordinado diariamente a uma série de práticas de “feminilidade”. As dietas, maquiagem, vestuário constituem disciplinas normalizadoras centrais na organização do tempo e do espaço de muitas mulheres - o que nos torna muito mais orientadas para auto- modificação do que para o campo social. De acordo com a feminista Andréa Dworkin (conforme citada por Bordo, 2000): Padrões de beleza descrevem em termos precisos o relacionamento que uma pessoa terá com seu próprio corpo. Eles prescrevem sua mobilidade, espontaneidade, postura, porte, os usos que ela pode fazer de seu corpo. Eles definem precisamente as dimensões da liberdade física. E, é claro, a relação entre liberdade física, desenvolvimento psicológico, possibilidades intelectuais e potencial criativo é umbilical. Em nossa cultura nenhuma parte do corpo feminino foi deixada intacta, inalterada. Nenhum aspecto ou extremidade é poupado da arte, da dor, do aprimoramento (...) Da cabeça aos pés, cada traço do rosto de uma mulher, cada parte de seu corpo é sujeita a modificação, alteração. Essa alteração é um processo contínuo e repetitivo. É vital para a economia, é o objeto principal da diferenciação entre homem e mulher, é a realidade física e psicológica mais imediata do ser mulher. Dos onze ou doze anos até a morte, uma mulher gastará grande parte do seu tempo, dinheiro e energia talhando-se, depilando-se, maquiando-se e perfumando-se. É comum e errôneo dizer que os travestis, usando roupas e maquiagens femininas, caricaturizam as mulheres em que se transformariam, mas qualquer conhecimento real do ethos romântico deixa claro que esses homens penetraram no cerne da experiência de ser uma mulher, um construto romantizado. Ou seja, as práticas de feminilidade são cotidianamente reiteradas e circunscrevem a mobilidade e espontaneidade, ou seja, dimensões da liberdade física. A feminilidade consiste em um conjunto de práticas, de disciplinas que normalizam os corpos. Atualmente, a feminilidade consiste em uma tentativa de domar e embelezar o corpo por meio de dietas, vestuário e gestos normalizados. A generalizada tirania da moda, por exemplo, tem instruído os corpos femininos em uma pedagogia da inadequação por meio de um elusivo e constantemente renovado ideal. As mulheres têm gasto cada vez mais tempo tratando e disciplinando seus corpos. Apesar do masculino ser cada vez mais tratado como um mercado potencial forte, são as mulheres as mais afetadas com a preocupação com a aparência em nossa cultura visualmente dirigida. Nesse sentido, é preciso desmistificar o discurso social que sustenta que vivemos uma época não repressiva, que nossos corpos são livres. Se levadas ao extremo, as práticas de feminilidade podem desmoralizar, debilitar e até mesmo levar à morte, como no caso da anorexia (Bordo, 1995, pp.166). As imagens do corpo magro constituem imagens generizadas, ou seja, é o corpo feminino que é marcado pela tirania da magreza. A magreza é um ideal contemporâneo relativo especificamente à atratividade feminina. A anorexia, nesse sentido, não deve ser tratada como uma obsessão curiosa ou como uma anomalia. Ao contrário, consiste em uma manifestação congruente com as práticas debilitantes de construção da feminilidade contemporânea. Dessa forma, o sofrimento da anoréxica pode ser entendido como um contínuo do sofrimento gerado pela feminilidade normativa. *** Nesse sentido, as práticas cotidianas de embelezamento são práticas de poder, são questões políticas, ou seja, dizem respeito a uma "política de identidades". As práticas de embelezamento são processos de diferenciação e construção dos sexos que criam uma classe dos homens e uma classe das mulheres. O sistema político heterossexual é uma rede de práticas/discursos que cria a relação social obrigatória entre homens e mulheres e que produz a diferença entre os sexos como um dogma político e filosófico. *** Utilizarei a noção de "performance de gênero" para discutir esses processos de diferenciação e demarcação dos corpos em dois sexos. O gênero é algo que a pessoa se torna, ou seja, uma espécie de devir, de atividade. Ele não deve ser concebido como substantivo, mas como uma prática constante e repetida. O gênero é processo, é performance, uma espécie de ação que materializa formas corporais. Não faz sentido falar em uma ontologia pré-social dos corpos, pois estes constituem-se, delineiam-se nas práticas performativas. A performance de gênero não constitui atos e normas neutros ou desinteressados, mas práticas que favorecem determinadas posicionalidades, particularmente a masculinista e heteronormativa. Os atos de gênero são coerções sociais que operam por repetição das normas criando e estabilizando um efeito de feminilidade e masculinidade. Não existe um sujeito anterior à ação e repetição das normas. O sujeito se constitui nesse processo de engendramento se tornando inteligível nas matrizes de gênero. *** O gênero, no caminho que estamos discutindo, consiste em ações reiteradas que materializam formas corporais. É reproduzido por meio de práticas sutis e muitas vezes inconscientes. Não é uma expressão da feminilidade, mas performance da feminilidade. Ou seja, os atributos de gênero produzem a identidade feminina que pretensamente revelariam. A postulação de uma identidade de gênero constitui uma ficção reguladora. A realidade do gênero é criada por performances contínuas. As nossas identidades generizadas são o efeito das nossas performances. Por meio da imitação (os gestos corporais de gênero, por exemplo) fabricamos as identidades homem e mulher. O gênero é como uma fantasia instituída e inscrita em nossos corpos através de nossas performances. Esta ilusão ou fantasia protege a instituição da heterossexualidade reprodutiva da crítica a sua função reguladora da sexualidade - e não refletora da sexualidade. A noção de performatividade é bastante útil para explorar os processos de imitação e desenvolvimento do gênero. Aprendemos que alguém se torna mulher no aprendizado dos signos nos quais existimos, escrevemos, pensamos e vemos. Uma intrincada trama de hábitos, associações e percepções nos engendra como mulheres. A estilização do corpo é a forma corriqueira pela qual os movimentos e estilos corporais criam a ilusão de um eu permanentemente marcado pelo gênero. *** A beleza é um imperativo da feminilidade. As práticas de embelezamento femininas consistem em uma das performances que constroem a ficção de uma feminilidade substancial. Não ser bela, ou melhor, não se submeter às práticas de embelezamento femininas, é uma maneira de romper ou contestar as “formas básicas” de inteligibilidade dos corpos humanos, no dispositivo sexo-gênero. Romper com a obrigatoriedade das práticas de embelezamento femininas traz uma diversidade de retaliações e abjeções aos que desrespeitam as regras que naturalizarão os corpos. O valor da mulher depende de seu submetimento às normas de beleza, ou seja, a um olhar que lhe avaliará. Portanto, tornar-se bela, engajar-se nas práticas de embelezamento é dever e possibilidade de reconhecimento e consideração social. A prevalência dos transtornos alimentares anorexia e bulimia encontra-se entre as populações femininas e jovens (entre 12 e 25 anos), estas correspondendo a 90% dos casos (Azevedo, 2003). A incidência prevalente destas desordens alimentares entre as mulheres é uma amostra da violência e do submetimento no que diz respeito à construção da feminilidade nas práticas de embelezamento. O constante “aperfeiçoamento corporal” e a prática de regimes, nos quais tantas de nós temos nos engajado, são exemplos de que não estamos tratando de “ideais de beleza” neutros e vazios, mas de um combate político que tem esgotado as energias dos corpos que se fazem femininos. Uma pesquisa da psicóloga da Unifesp Denise Belloto de Moraes (apud Gomes, 2001), realizada com 138 meninos e 178 meninas entre 10 e 19 anos de um colégio particular de São Paulo, mostra diferenças a respeito da percepção e sensação de adequação corporal entre homens e mulheres. A pesquisa revela que cerca de 40% das garotas entrevistadas achavam-se gordas e faziam dieta, no entanto, apenas 12% do total de garotas avaliadas estavam com peso acima do considerado ideal pelas atuais tabelas de peso, indicando que pelo menos 28% faziam regime sem necessidade. Por outro lado, o quadro masculino é bastante diferente. Denise Belloto observou que 24% dos meninos apresentavam sobrepeso ou obesidade, e apenas 17% se submetiam a regimes. A relação entre a imagem que os garotos avaliados tinham do próprio corpo e os números registrados pela balança era inversa. Essa pesquisa nos mostra como a normalização e docilização dos corpos femininos – as práticas de embelezamento como performances da feminilidade – não necessitam de armas ou qualquer tipo de violência física para o exercício do poder. O olhar vigilante, de inspeção, pelo qual cada indivíduo torna-se seu próprio supervisor exercendo a vigilância sobre si próprio tem sido importante mecanismo de dominação dos corpos que se fazem femininos na atualidade. No entanto, é preciso ressaltar que não é apenas o próprio olhar que atua no controle dos corpos, mas uma série de dispositivos e práticas sociais conferem diferentes valores, posições e possibilidades para os corpos que seguem ou não as regras do gênero. De acordo com a feminista Susan Bordo (1995, p.35), a anorexia e a bulimia devem ser consideradas como fenômenos de massa e não como casos isolados. A busca do ideal estético contemporâneo feminino – entendendo que esta busca é uma performance da feminilidade, ou seja, implica a construção continuada de uma identidade dita fundamental e primeira – tem se tornado o tormento central da vida de muitas de nós. A combinação de uma diversidade de agenciamentos sócio-técnicos, maquínicos e capitalísticos, marcados pelo dispositivo da diferença dos sexos, tem produzido uma geração de mulheres que se sentem profundamente imperfeitas, envergonhadas de suas necessidades e sem direito de existir, a não ser que transformem suas vidas, seus corpos. As afirmações do por que razão ser pró-ana no site Anorexic Nation In Brazil refletem este imaginário: “Porque eu quero ser linda Porque eu vou Ter muita confiança. Porque vou ficar bem em qualquer roupa Porque eu não quero ser gorda Porque gordo é horroroso Porque eu não me sinto confortável na minha própria pele Porque eu vou ser Porque só nisso que eu penso Porque eu sou mais forte que comida Porque eu vou me odiar se eu não o fizer Porque eu choro toda noite com nojo de mim mesma Porque eu tenho medo de subir na balança” A anorexia, nestes sites, aparece como solução para uma sensação de constante desconforto e inadequação corporal. Essas sensações, no entanto, não são exclusivas de “anoréxicas”, ou seja, de meninas e mulheres com transtornos alimentares. O desconforto e a inadequação corporal são intrínsecas às performances da feminilidade – práticas reiteradas que produzem corpos marcados pelo controle constante. Grande parte das mulheres atualmente está descontente, infeliz e incomodada com seus próprios corpos. Cada vez mais cedo somos incentivadas a nos engajarmos em dietas rigorosas e exercícios físicos. As meninas são constantemente assombradas pela possibilidade de ganhar peso e de deixarem de ser atrativas. Contar obsessivamente calorias e fazer exercícios são atividades cotidianas para as mulheres. A afirmação “Garotos vão querer te conhecer, e não rir de você e ir embora” (Anorexic Nation In Brazil) é uma afirmação explícita desta situação de controle e vigilância sobre os corpos que devem se construir femininos. O olhar masculino é de controle, ridicularizando os corpos que não se fazem “femininos”. Além disso, o crescente número de cirurgias plásticas e o grande número de mulheres que percebem-se gordas e fazem dietas, mesmo correspondendo aos padrões “normais” de peso/altura, são uma amostra de que as desordens alimentares, longe de serem bizarras ou atípicas, constituem elemento bastante corriqueiro na experiência feminina contemporânea. Um dos critérios de diagnóstico de anorexia – que diferencia a anoréxica do “normal” – é o relativo à distorção da imagem corporal. Esse “problema de percepção” marcaria a descontinuidade entre a anoréxica e o indivíduo normal, situando a anorexia no campo médico das psicopatologias. No entanto, como foi dito acima, na pesquisa da psicóloga Denise Belloto, a sensação de adequação corporal é uma questão problemática entre as mulheres na medida que cerca de 40% das entrevistadas achavam-se gordas e faziam dieta, mas apenas 12% do total estava com sobrepeso, ou seja, pelo menos 28% das garotas faziam regime sem necessidade. Susan Bordo aponta alguns dados que seguem na mesma direção. De acordo com esta autora, em um pesquisa feita em 1984 pela revista Glamour com 33 mil mulheres nos Estados Unidos, 75% das entrevistadas se consideravam gordas, a despeito do fato de que apenas ¼ delas estava acima do peso apontado pelas tabelas de peso e 30% estavam abaixo do peso indicado nessas tabelas (1995, p 56). Dessa forma, não podemos falar que somente as anoréxicas têm uma “percepção distorcida” a respeito de seu próprio corpo. A construção da feminilidade contemporânea é marcada por um padrão corporal extremamente magro. Portanto, se supormos que a anoréxica tem um problema na percepção de seu corpo será preciso supor que grande parte das mulheres – ao menos as brasileiras e as americanas, alvos das pesquisas citadas – estão sofrendo de uma percepção distorcida, de problemas na percepção. É pouco provável que estejamos, todas, sofrendo de problemas perceptivos. A anoréxica também não tem uma percepção falha, ou incorreta de seu corpo. Ela apenas aprendeu muito bem as normas dominantes de como perceber. As afirmações de que o pensamento da anoréxica é “distorcido”, “falso”, “falho”, produto de uma lógica inválida ou de uma razão desvirtuada devem ser questionadas, pois este tipo de afirmação retrata as anoréxicas como processando incorretamente os dados da realidade exterior que teria configurações muito diferentes das suas percepções e cognições. As atitudes das anoréxicas comumente ditas “distorcidas” são, no entanto, razoavelmente acuradas, refletindo as representações sociais a respeito da beleza feminina na atualidade. As mulheres, atualmente, não se sentem bem com seus corpos. O corpo anoréxico está engajado em um processo de significação, assim como todos os corpos. Dessa perspectiva, a anorexia não é meramente uma “patologia”. Antes, a perseguição inflexível de uma magreza extrema constitui uma tentativa de incorporar determinados valores. Visa criar um corpo que se expresse de forma significativa e intensa. Na anoréxica, as regras que governam a construção contemporânea da feminilidade estão dolorosa e literalmente inscritas em seu corpo. O corpo emaciado da anoréxica é uma caricatura do atual ideal de beleza feminina – performance fundamental do gênero. Este ideal constitui uma norma na construção da feminilidade contemporânea. Na anorexia o corpo da mulher expõe as construções convencionais da feminidade por meio de suas inscrições extremadas. Como afirma Susan Bordo, “é como se esses corpos nos falassem da patologia e da violência escondidas ali na esquina, espreitando no horizonte da „feminidade‟ normal” (1997, p.27).
Referências Bibliográficas
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departamento de psiquiatria e psicologia médica UNIFESP/EPM. Em Psychiatry on line Brazil. Disponível em: http://www.priory.com/psych/angelica.htm. Acesso em: outubro 2003.
BORDO, Susan (1993/1995). Unbearable Weight: feminism, western culture, and the body. Brekeley and Los Angeles, California. University of California Press.
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de Foucault. Em A. Jaggar e S. Bordo (B. L. Freitas, Trad.). Gênero, Corpo, Conhecimento (pp. 19-41) Rio de Janeiro: Record: Editora Rosa dos Tempos.
LOPES, Denilson. Nós os mortos:melancolia e neo-barroco. Rio de Janeiro: Sette Letras,
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