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DO NASCIMENTO DA VÉNUS AFRODITE AO NASCIMENTO DE AFRODITE-ME

Sérgio de Mattos

O quadro do artista Rodrigo Mogiz nos chamou a atenção pela ousadia, originalidade e estética. Importou, ainda,
uma convergência: seu trabalho inspirava-se no quadro de Boticelli “O nascimento de Vênus”, imagem evocada por
Lacan em O Seminário, Livro 8: A transferência. Podemos dizer que se tratou de um encontro feliz.
“O nascimento de Vênus” pintura de Sandro Botticelli, óleo sobre tela, data de antes de 1499. Representa a
deusa Vênus emergindo do mar, mulher adulta, da mitologia romana. Botticelli se inspira em Afrodite Anadyomème.
Afrodite surgindo do mar. O quadro é característico da Renascença Italiana e retoma, segundo o gosto da época, um
tema da Antiguidade, revisto através de uma nova sensibilidade. Vênus, normalmente deusa do amor carnal e selvagem,
é transformada numa divindade frágil e púdica, destacada das contingências terrestres, tornando-se Vênus Celeste.
O nome Afrodite, em grego Αφροδίτη, deriva da palavra aphrós, que quer dizer, literalmente, “espuma”.
Daí surgiu a lenda de seu nascimento das espumas do mar. Está, ainda, a deusa ligada a todos os fenômenos de
ebulição. Na mitologia, ela é o espírito da criação, esposa de Éfeso, deus do fogo. Segundo a lenda, nasceu dos órgãos
genitais de Urano, seu pai, cortados e jogados ao mar a pedido da sua mãe. Espuma/sêmen. É importante notar que o
erotismo aí não brota de um encontro com o homem, mas do encontro com o mundo: espuma, ondas, vento que
despertam seus sentidos e a acariciam. Afrodite é a sensual abertura ao mundo. Não é a sexualidade de um homem e de
uma mulher: é a sensualidade de um outro gozo, gozo feminino, excessivo, deslocalizado. Afrodite é filha da castração
de seu pai; mas não-toda, é aberta a um gozo com o mundo que não se condensa ao regime da castração.

A Vênus Afrodite de Lacan. Lacan em O Seminário, Livro 8: A transferência[i] - 1960-61 – ilustra na Vênus
Afrodite, a imagem do falo recobrindo o objeto “erigido no auge da fascinação do desejo”: corpo erigido, no mar acima
das vagas do amor amargo, diz ele - Vênus ou tanto faz, Lolita, diz Lacan. Girl = Phallus. O que nos ensina essa
imagem?, pergunta Lacan. Nos ensina que ali onde vemos o falo, forma investida de todos os atrativos que a delimitam
por fora, ali onde o supomos sob o véu, é onde ele não está. Se o falo, neste seminário, é tão importante para localizar a
função do desejo e do amor, é porque ele “se encama justamente naquilo que falta à imagem”.

Afrodite-me. Rodrigo Mogiz é mais lacaniano que o Lacan de 1960/61. Perguntei a Rodrigo: Qual o nome de
seu quadro? “AFRODITE-ME!”, respondeu. Afrodite-me: construção poética que transforma um nome numa ação.
Afrodite-me é uma conjuração ao gozo.
Rodrigo é pós-Seminário 20, mais, ainda[ii] - 1972-73 - , pois ele intui, com sua arte, desenvolvimentos do
último ensino de Lacan. Sua obra é afreudisíaca (neologismo de Haroldo de Campos): traz o que excede a forma, o
excesso, o não-todo fálico.
Perguntei: Porque o bordado? “O bordado foi uma questão com a arte, uma linguagem; como um desenho
busquei a irregularidade do bordado para aludir à espontaneidade, à contingência do traço. Questionei a ideia de beleza
perfeita, mostrando novas belezas do mundo contemporâneo, decompostas, singulares, estranhas”.
Em Afrodite-me, nasce um jovem fálico, envolto em véu de espumas, bolhas, que transborda, elementos
marinhos que escapam, deslocalizados: tentáculos, algas, âncora, e um cavalo marinho: animal macho que dá à luz. Há,
também, uma preocupação em propor com Vênus/Afrodite-me, questões afetivas e relacionais presentes nas atuais
discussões sobre gênero. Enquanto homem, ele borda – no lugar de uma tradição em que isto era típico das mulheres. O
bordado, os nós, amarram e bordam os sofrimento dos desencontros dos seres falantes sexuados,..

Para finalizar. Freud fundou a grande dificuldade dos/entre os sexos na diferença anatômica. Tal problema
apresentava-se, consequentemente, como a dificuldade crucial da experiência analítica, atualizando-se na transferência.
No psíquico, a biologia jogava um papel de rocha de origem subjacente. Eric Laurent, no Prefácio do livro de Pierre
Naveau, Ce qui de la reencontre s’écrit[1], expõe como Lacan deslocou o problema. O que separa o homem de uma
mulher não é a diferença anatômica, mas uma separação dos modos de gozo, reenviando a uma dissimetria radical. Não
há relação sexual.
O órgão fálico não serve à cópula, é um obstáculo. E, na mulher, o orgasmo é experimentado como um gozo
que não se localiza em um órgão, que a toma como um acontecimento de corpo e a transborda, sem que ela o possa
dizer.
Essa dissimetria dos gozos é tão mais importante que se impõe à anatômica, à ponto de alguns sujeitos desejarem
retificar a anatomia.
A consequência é a impossibilidade de haver uma fórmula unívoca para o encontro sexual. O que advém daí é
que existem gozos no plural. Que podem se particularizar em várias formas de sexualidades e encontros. A cada sujeito
cabe escrever sua fórmula e tentá-la com um parceiro.
O trabalho de Rodrigo ilustra a complexidade dessa situação. Razão da nossa escolha por essa figura, para
ilustrar o cartaz das XXI Jornadas da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise.

[i] Lacan Jacques, O SEMINÁRIO, Livro 8: a trasferência. ZAHAR, Segundo edição:2010. Rj


[ii] Lacan Jacques, O SEMINÁRIO. Livro 20: mais, ainda, ZAHAR, 1985. RJ.
[1] Naveau Pierre. CE QUI DE LA RENCONTRE ‘S ECRIT. ÉTUDES LACANIENNES. Préface d’Éric
Laurent. Edition Michèle. 2014. Paris.

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