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ULISSES

Métrica
3 Quintilhas. Em cada uma delas os primeiros quatro versos são
heptassilábicos e o último é tetrassilábico.

Esquema rímico
Rima cruzada em esquema ababa.

Número de versos
15

Observações
Carácter silogístico dedutivo do poema (1.ª estrofe é a premissa maior,
a 2.ª a premissa menor e a 3.ª a conclusão); discurso na 3.ª pessoa; uso de
exemplos; uso do tempo verbal presente na 1.ª e 3.ª estrofes; uso do tempo
verbal pretérito na 2.ª estrofe; uso de oxímoros, paradoxos e antíteses (por
ex. 1.º verso da 1.ª estrofe); uso de metonímia (Lisboa é Portugal); uso de
símiles (por ex. entre o Sol e Deus) e metáforas (por ex. “lenda se escorre”).

Primeira estrofe

O mito é o nada que é tudo.


O mito cria a realidade, ou seja, o mito apesar de ser nada é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
O Sol – símbolo de tudo o que ilumina e tira o véu da escuridão.
É um mito brilhante e mudo –
É um nada, só feito de luz, sem significado.
O corpo morto de Deus,
Inanimado mas potência de mais alguma coisa, Origem.
Vivo e desnudo.
À espera de ser realizado.

Fernando Pessoa considerava que ser um “mitogenista”, um criador de


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mitos, era a ocupação mais alta que um homem poderia desejar25. Para ele, o
mito reserva em si mesmo a potência de “ser tudo e não ser nada”, ou seja,
enquanto é nada – uma lenda – o mito pode ser tudo – base para revolução
espiritual e depois material, pois o espírito comanda a matéria.
Eis porque “o mito é o nada que é tudo”. Também porque em tudo se
pode achar símbolos, matéria para inseminar a realidade com nova vida. “O
mesmo sol que abre os céus / É um mito brilhante e mudo” – o sol em si
mesmo não é vida, mas símbolo de algo maior pode sê-lo. Mas enquanto só
sol, é o mesmo que “o corpo morto de Deus, / Vivo e desnudo”, ou seja, é
apenas morte, sem significado maior. Pois que importância teria “o corpo
morto de Deus” (Jesus) se não fosse a sua vida e morte um grande, enorme
símbolo para outra coisa qualquer?
Não é por acaso que Pessoa considera o primeiro “Castelo” Ulisses, um
mito. Pode parecer uma fraca base para construir algo maior, mas Pessoa
acredita que é precisamente a força do mito de Ulisses que é a base primeira
da renovação de tudo o resto. Porque o mito se mantém sempre igual, é
imutável e contínuo em energia e significado, mesmo na sua inerente
contradição: é Deus morto, ainda vivo. Sempre à espera de ser reaproveitado
quando a realidade enfraquece.

Segunda estrofe

Este, que aqui aportou,


Ulisses que aportou (chegou) ao local onde nasceria Lisboa.
Foi por não ser existindo.
Chegou, mesmo sem existir (materialmente), porque o mito existe não
existindo.
Sem existir nos bastou.
Mesmo bastou enquanto mito para criar algo mais do que ele próprio.
Por não ter vindo foi vindo
Veio, mesmo sem existir.
E nos criou.
E a partir dele nós existimos também.

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Vejamos como é clara nesta estrofe a essência do mito: a contradição.
“Este, que aqui aportou” (Ulisses) “foi por não ser existindo”, ou seja,
chegou e fundou Lisboa por ser um mito. Ele “não (…) existindo”, existiu e
“não (…) vindo foi vindo”, ou seja, existiu sem existir e veio sem vir – era a
realidade ainda por acontecer.
Isto porque o mito é em si mesmo potência e acto, existência e não-ser.
Contém em si mesmo os elementos necessários para criar, mesmo sem existir
(“sem existir nos bastou”), sendo assim fundamento irreal da realidade,
paradoxo e matéria-prima dos criadores de civilizações.
Há claro, uma ironia subjacente a este texto, que é própria de Pessoa.
Se por um lado ele justifica a existência e a importância dos mitos, ele critica
aqueles que não dão importância aos mitos e que os categorizam como meras
lendas sem sentido. Afinal como pode uma lenda antiga, cheia de pó, sem
sequer existir, vir criar aqui uma cidade? – “Por não ter vindo foi vindo / E
nos criou”.

Terceira estrofe

Assim a lenda se escorre


O mito move-se.
A entrar na realidade,
Entra na realidade, mesmo não fazendo parte dela.
E a fecundá-la decorre.
E fecunda-a, gerando nela movimento e emoção que de outro modo não
existiria.
Em baixo, a vida, metade
Mais em baixo, num nível inferior, a vida, metade.
De nada, morre.
Na realidade, metade de nada, morre, sem o mito é em si mesma nada, é
infecunda.

O mito é assim a base de toda a nobreza, porque iniciador. Antes de


Viriato, antes de Afonso Henriques, antes de todos os homens reais, há o
homem-mito, a raiz da qual flui a energia do futuro, e da qual nasce o
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alimento para uma vida que sem ela seria pobre e sem fruto. O mito (nada) é
a fonte da vida (tudo).
A “lenda (…) escorre (…) / A entrar na realidade / E a fecundá-la”.
“Em baixo, a vida, metade / De nada, morre”, ou seja, a vida sem o mito,
sem a lenda é “metade de nada”, nem é realmente vida. Sem a lenda que a
fecunde, a vida é estéril, sem significado, sem verdade.

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