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Lição de Sapiência, Igreja de Estoi, 12 de Maio de 2007, Confraria dos Gastrónomos do Algarve –

“Um olhar mediterrânico sobre a gastronomia do Algarve”, Maria-Manuel Valagão

“Um olhar mediterrânico sobre a gastronomia do Algarve”

Maria-Manuel Valagão*

Bom dia a todos.


Muito obrigada à Confraria dos Gastrónomos do Algarve por este convite.
Sinto-me muito honrada por poder participar num grupo de intervenção sobre a
defesa dos nossos sabores, ou seja, do nosso património agrícola e do nosso
património gastronómico. A mais sincera felicitação pelas iniciativas que têm
levado a cabo, para valorizar a gastronomia da nossa região, bem como dos
valores que estão associados à prática gastronómica. Também me sinto
emocionada por estar neste lugar, epicentro da cultura romana no Algarve, e
da de outros antepassados, que nos deixaram os seus saberes, ao longo dos
séculos. Neste sentido, imperioso será evocar essa herança, que marca em
definitivo o mais profundo das nossas representações alimentares, das nossas
práticas agrícolas e das nossas práticas culinárias.

São esses saberes que nos foram legados, que têm sido como que o húmus da
nossa gastronomia, inserindo-a num conjunto mais vasto com idênticas
características, no tão falado “modelo alimentar mediterrânico”. Nesse sentido,
as minhas palavras irão centrar-se em torno de um olhar mediterrânico sobre a
gastronomia do Algarve.

Daqui, a partir de Estoi, olhemos a nossa província do Algarve, ela própria, tal
como o país no geral, integrada por um território simultaneamente atlântico e
mediterrâneo. Dum lado o Barlavento, com as suas variedades mais serôdias,
do outro, o Sotavento, mais próximo do mediterrâneo, e portanto de variedades
mais temporãs. Mas dizia eu, olhemos este território crestado pelos “sóis” e

Investigadora no Instituto Nacional de Recursos Biológicos (INRB), Lisboa (P).


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mm.valagao@iniap.min-agricultura.pt

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“pelos frios”, onde a frugalidade imperou durante séculos e que se caracteriza


por diversas micro regiões, tão iguais, mas tão diferentes no que se refere aos
usos gastronómicos. A estas costas aportaram fenícios, gregos, cartagineses,
celtas, romanos, árabes, etc., fundando cidades, erguendo muralhas e
deixando-nos as espécies vegetais que trouxeram e deixando-nos também os
seus saberes, em termos de técnicas de produção agrícola, de usos das ervas
aromáticas nas preparações culinárias, ou ainda a subtileza das técnicas da
doçaria. Cada prato, por mais simples que seja, é portador de uma mensagem,
onde se entrecruzam factores de ordem histórica, cultural, económica, social,
geográfica, etc. Por outras palavras, esse “prato” é um símbolo inesgotável da
nossa identidade e cultura. Isto porque a comida, os comeres, não são só uma
questão de gastronomia. Representam sobretudo um facto social total, um
modo de nos exprimirmos, de exprimir a vida, a criatividade e a imaginação
face aquilo que se dispõe para cozinhar. Há um jeito próprio de “acomodar” os
alimentos, aquilo que uma vez incorporado, se transformará em nós próprios. E
no Algarve, a diversidade desse jeito é notável. Consequentemente, o
“repertório culinário” é infindável.
Espera-nos muito trabalho, na nossa Confraria!

Voltando aos factores implícitos no acto gastronómico. Todos sabemos que,


com o andar dos tempos, os pratos a que eles deram origem, representam
códigos riquíssimos, que importa não só conhecer, como valorizar e reabilitar.
No seu conjunto, caracterizam a alimentação mediterrânica, que se praticava
no Algarve. A sua singularidade manifesta-se na inteligência com que se
usavam os recursos de origem animal, ou ainda, no uso das ervas aromáticas,
como já dissemos: os orégãos, a hortelã, os coentros, a salsa e demais
“cheiros”, que marcam de modo emblemático a nossa cultura gastronómica.
Trata-se de um modelo maioritariamente vegetariano, feito de aromas e
portanto de grande parcimónia no uso das gorduras. Que harmonia esta!
Nascida da necessidade, a nossa gastronomia algarvia tem a sua origem não
só nas difíceis condições da natureza, mas também em formas de
improvisação culinária, que se foram cristalizando ao longo dos tempos para
dar lugar aos pratos específicos desta região. As subtilezas desta gastronomia,
feita com “engenho e arte”, são elas próprias indissociáveis da cultura de onde
emergiu. E sob o ponto de vista cultural, o Algarve é tanto ou mais complexo,

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que a sua árdua natureza. Mediterrâneo, significa “mar entre terras”. Através
desse mar, qual estrada que permitiu a circulação, foi-se comunicando e
trocando produtos, técnicas de produção agrícola, de conservação de
alimentos – a secagem, a salga – e técnicas de preparação culinária. Nas suas
margens, foram-se desenvolvendo as civilizações, que foram o berço da cultura
ocidental. As margens desse mar chegaram culturalmente até nós pelo leito
dos nossos rios. Aqui no Algarve veja-se, por exemplo, o caso das margens do
Rio Guadiana, onde tantos sinais desse passado nos reaproximam dessa
nossa identidade longínqua, que se perpetua até aos dias hoje.

Sendo portanto o resultado da mobilidade dos homens, da mobilidade dos


produtos alimentares e dos modelos culturais, este modo alimentar, conhecido
por alimentação mediterrânica, recobre situações tão diversificadas, que seria
muito redutor defini-lo genericamente para todas as zonas mediterrânicas, com
diferente história, embora com idênticas características de flora e de fauna. O
nosso país que, segundo Orlando Ribeiro, é “atlântico por posição e
mediterrânico por vocação e cultura”, constitui uma das raras excepções, onde
ainda se pode identificar este modelo com toda a sua riqueza de legados
históricos, de práticas seculares e de diversidade de produtos. Diversidade,
quiçá ameaçada!

Teoricamente os estudiosos estabeleceram que os limites da alimentação


mediterrânica seriam definidos pelos limites da cultura da oliveira. Ora, se esta
se cultiva por todo o país, a alimentação mediterrânica seria praticada em todo
o território continental português. Contudo, do nosso ponto de vista, e tendo em
conta as características da agricultura e as especificidades geo-climáticas,
embora no Norte do nosso País se apresentem algumas afinidades
relativamente aos produtos alimentares em si, no que se refere aos modos de
preparação, aspectos culturais e aos estilos de vida, será talvez aqui no Sul,
nas zonas interiores, das Serras de Monchique e do Caldeirão, e ainda no
Barrocal que as práticas alimentares são mais mediterrânicas.
Quanto às afinidades destes modelos de consumo alimentar, sabe-se que
estão essencialmente associadas à escassez dos recursos da natureza. A
produção agrícola sempre foi muito limitada, e às reduzidas dimensões dos
campos cultiváveis, associavam-se irregularidades climáticas e a escassez de

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água. As disponibilidades desta, oscilavam entre períodos de seca e de


inundações sendo que deste tipo de produção, resultavam necessariamente
disponibilidades alimentares reduzidas. Eram precisamente estas pequenas
quantidades, que tinham que ser criteriosamente geridas. Assim sendo tratava-
se de uma frugalidade imposta pelas circunstâncias.
Contudo, é num contexto de grande criatividade cultural que, as formas de
alimentação se forjaram aqui no Algarve e no Mediterrâneo em geral,
traduzindo assim a arte e a inteligência, com que se superaram carências
inerentes às características destes territórios.

Já na actualidade, em meados do século passado, foi precisamente no início


dos anos sessenta, tempos igualmente de frugalidade alimentar, que se
identificou o conceito de “alimentação mediterrânica” de que estamos a falar. E
o paradigma inicial deste modelo, não teve só a sua génese em critérios de
alimentos, mas também em práticas laborais e de lazer, sobretudo em práticas
de cultura agrícola, associados à sazonalidade dos alimentos, que
caracterizavam o quotidiano alimentar das populações mediterrânicas naquela
época. A consagração deste modelo alimentar fundamentou-se no facto da
esperança de vida destas populações ser das maiores e a incidência de
doenças cardiovasculares e cancerosas, ou de outras patologias associadas a
desequilíbrios alimentares, serem das menores em todo o mundo.
Actualmente, quarenta anos volvidos, a situação mudou radicalmente. Temos
no nosso país, e noutros da Europa do Sul, indicadores de saúde muito
preocupantes, no que se refere às patologias anteriormente citadas. Por outro
lado, a produção agrícola baseada em variedades locais, está ameaçada, pois
os territórios rurais com base neste tipo de produções, como todos sabemos,
estão cada vez mais votados ao abandono. Será possível defender sabores
locais sem defender produções locais? Estão intimamente ligados uns e outros.

Isto porque, a reconstrução da cultura gastronómica, da história das tradições


alimentares, permite simultaneamente reconstituir a história das relações entre
as pessoas e os recursos naturais, dando lugar à permanente renovação e
readaptação das comidas locais. Estes comeres, impregnados da história do
tempo, celebrando ritmos de trabalho e de lazer, ciclos agrícolas e festivos,

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constituem a síntese de inúmeros factores, como se disse. Assim sendo, a


fruição das gastronomias locais, na proximidade dos próprios espaços onde
foram geradas, não só contribui para uma mais autêntica compreensão de
cada região e dos seus habitantes, como também pode fomentar formas de
turismo mais amigas do ambiente.

Antes de terminar, gostaria de formular um voto final.


À Confraria...
Aos profissionais da produção e da transformação agro-alimentar, o desafio
para mobilizar mecanismos que revitalizem as produções locais e a capacidade
para compreenderem como se adaptar, para dar resposta às expectativas dos
consumidores, com o melhor para a sua saúde e para o seu prazer. Porque é o
prazer que mobiliza! Sim! Mas também nos responsabiliza, e é indissociável de
uma cultura ecológica, de uma cultura de segurança. Através da divulgação
dos bons produtos locais, estaremos igualmente a fomentar uma atitude
reflexiva, no sentido do respeito e da tomada de consciência, do quanto os
alimentos nos religam àquilo que é elementar, à terra e ao mar de onde
provêm, à harmonia da relação entre a cultura, a sociedade e o território.

A todos nós…

O que nos reúne em torno da reflexão sobre a nossa gastronomia? Porque é


que vale a pena compreender e enaltecer o papel das tradições alimentares do
nosso Algarve? O que é que nos surpreende? Ou não surpreende? Talvez seja
a sensação de reencontrar um pouco de nós, na relação das nossas memórias
com o lugar, e com as comidas que lhe são próprias. Estas relações vão
deixando sinais. Uns que sabemos interpretar, outros, que permanecem mais
ocultos e invisíveis. Mas isto não é surpresa, porque sempre assim acontece,
quando se pretende contar, fazer a história, de um prato emblemático. Ficam-
se a conhecer melhor as pessoas e os espaços, ficamos também a perceber
que a história dos produtos tradicionais e das criações gastronómicas, que lhes
estão associadas, é muito complexa e muito subtil. Feita de memórias, nela se
tecem urgências e necessidades, que se vão resolvendo, adaptando e

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adoptando!

Caros conterrâneos…
A cultura tradicional que nos caracteriza, contém toda essa memória e ainda
mais o mistério e a lenta cadência, dos que com pouco, fazem muito. De um
“pratinho de qualquer coisa” e mais uns “cheirinhos”, fazemos um petisco, e em
torno dele erguemos um momento de convivialidade, em que se associa o
prazer de “estar à mesa”, com o prazer de estar em conjunto. Esse é também
um momento de festa, de convívio e de celebração. Há como que um sortilégio,
nas relações que as pessoas tecem entre as celebrações, os elementos que
lhes servem de mediadores − neste caso os comeres − e o lugar. Por agora
são, os “lugares mediterrânicos”, em Estoi.
Muito obrigada pela vossa atenção.

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