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Luzes da Ribalta

Errant Bride
Elizabeth Ashton

Copyright: 1979

Sylvie tinha um grande sonho: tornar se uma bailarina tão famosa


quanto sua mãe tinha sido. Envolvida pela atmosfera mágica de Monte
Carlo, para onde fora em busca de uma oportunidade, Sylvie conheceu o
grande empresário Antoine de Mericourt, um inegável descobridor de
talentos. Ele se dispôs a investir nela e transformá-la numa grande
estrela... desde que ela renunciasse a todos os prazeres mundanos. Para
garantir que ela jamais se envolveria com outro homem, Sylvie teria de se
casar com ele. Valeria a pena pagar um preço tão alto pelo sucesso,
abrindo mão da felicidade?

DISPONIBILIZAÇÃO DO LIVRO : Valeria O.


DIGITALIZAÇÃO : Joyce
REVISÃO : Néia
CAPITULO I

O luar derramava-se sobre o jardim, transformando a relva num imenso


lago prateado. Das janelas abertas da casa, a música de Tchaikovsky
enchia a noite com sua melodia.
A garota tocou o portão de ferro que conduzia ao jardim e descobriu
que não estava trancado. Entrou, atraída pela música e pela beleza daquele
gramado bem cuidado. O lugar parecia completamente deserto.
Ela começou a dançar e imediatamente penetrou em um mundo
encantado. Como estava usando um short branco e uma camiseta sem
mangas também branca, a roupa não impedia seus movimentos e seus
movimentos graciosos pareciam quase translúcidos pelo efeito da luz difusa.
Parecia uma fada vinda de um conto de fantasias.
Era o que pensava o homem num terraço acima do jardim. Uma vez já
vira uma garota dançar com aquele mesmo ar etéreo, aquele mesmo
completo abandono à magia da música, mas nunca encontrara outra que o
fizesse igual nesses quase vinte anos. Agora se sentia paralisado, como se
estivesse tendo uma alucinação, enquanto a garota continuava a dançar.
Sem se conhecerem, sentiam a música da mesma forma e compartilhavam
de uma mesma idéia sobre como devia ser interpretada.
Uma voz rouca quebrou o encanto. A garota estava invadindo uma
propriedade e o vigia da casa descobriu sua presença. Ela parou por um
segundo, apoiada sobre um dos pés, com os braços estendidos como um
pássaro em pleno vôo e a face erguida em direção à lua. De repente, como
uma visão, desapareceu entre as sombras das árvores. Não parecia correr,
mas flutuar.
O velho vigia atravessou o gramado em direção ao portão e, enquanto
procurava suas chaves, ouviu a voz grave do homem, perguntando:
— Quem é aquela garota?
Levantando os olhos viu o homem alto a seu lado e apressadamente
desculpou-se:
— Uma menina endiabrada, senhor.
— Mais do que isso — interrompeu-o o homem. — Ela parece uma
fada. O senhor não sabe quem é ela e de onde vem?
O vigia coçou a cabeça. Ela era como um moleque de rua, uma sem
destino como o pai — ingleses, imaginava. Estavam alojados na casa de
Pierre Poirot, seu vizinho. Agora mesmo acabara de ver o pai dela a caminho
do cassino, onde provavelmente perderia mais uma vez. Mas o nome? Ah,
era difícil responder. Mas sim, já o ouvira. Francis Allen.
O homem respirou fundo. Seria possível que fosse a mesma pessoa,
depois de todos aqueles anos? Francis Allen por quem nutria um profundo
rancor? Devia ser, pois apenas a filha de Menella poderia ter dançado como
aquela garota dançara, com aquele ar ilusório, quase místico, que havia
tornado sua dança sem par. Ele nem mesmo sabia se Menella tivera uma
filha.
— A roda completou seu giro — comentou, estendendo uma nota de
cinqüenta francos para o velho que o olhava perplexo. Caminhou em direção
ao cassino.
Sylvie Allen estava deitada em sua cama e esperava ansiosamente a
volta do pai.
Os Allen tinham vindo para Monte Carlo porque o Balé Cosmopolite
estava lá e Sylvie esperava conseguir um teste com o diretor, que de saída se
mostrara inacessível. A mãe de Sylvie fora bailarina e tanto ela como seu pai
pensavam que seu nome abriria todas as portas à filha. Mas muitos anos
tinham se passado e a grande bailarina havia sido esquecida. Madame
Lenska, professora de Sylvie por vários anos e uma antiga estrela
internacional, também parecia ter sido esquecida. Pobre senhora, sempre
sonhadora! Imaginava uma grande estréia para Sylvie em Paris, sob o
patrocínio de seus antigos amigos. Costumava dizer que o talento da garota
era enorme e que ela explodiria no mundo do balé como uma bomba. Mas
antes que seus planos grandiosos fossem colocados em prática, faleceu.
Francis tinha ido ao cassino naquela noite com a desculpa de que
poderia encontrar o diretor lá. Sendo mais velho do que o assistente que os
atendera, possivelmente se lembraria do nome de sua esposa. Mas isso,
pensava Sylvie, não passava de uma leve esperança. Ele era um jogador
compulsivo e certamente voltaria sem nada nos bolsos.
Suspirou e foi até a mala gasta que continha suas poucas coisas.
Apanhou uma fotografia da mãe, que costumava chamar de seu talismã. Sua
mãe morrera quando tinha dez anos, vítima de um problema de coração, que
acabara com sua carreira de bailarina. Tinham ido morar no sul da França,
em parte por causa da saúde dela e em parte porque Francis estava com má
fama na Inglaterra. Ele tinha uma pequena renda, proveniente de uma
propriedade de sua mãe, que lhe bastaria se não fosse o vício. Madame
Lenska, uma velha amiga da mãe de Sylvie, morava na mesma cidadezinha e
continuou a dar-lhe aulas — o que, costumava dizer, distraía sua velhice.
Dos anos anteriores à mudança para Provence, a garota guardava
apenas lembranças confusas e tristes. Seu avô paterno era proprietário de
terras na Escócia e desaprovara o casamento do filho e a insistência da nora
para que a neta também fosse bailarina. Francis trabalhava com o pai, mas
houve então um grande desfalque. Angus Allen, que nunca aprovou a vida
irresponsável do filho, acreditou que Francis fosse o culpado, mesmo não
sendo, e o renegou. O único outro parente de Francis era sua irmã Agnes,
uma intransigente moralista para quem todos os prazeres eram pecados.
Entretanto, ela prometeu que, se algum dia Francis não tivesse recursos,
tomaria conta da garota. Sylvie estremecia ante tal perspectiva e declarava
que preferia morrer a ir morar com a tia.
Passos na escada fizeram com que Sylvie colocasse a fotografia de
volta na mala e se virasse ansiosamente em direção à porta, enquanto
Francis entrava. Ele sentou-se na beira da cama com um ar de desânimo e
Sylvie sentiu seu coração acelerado.
— É fácil perceber que você não ganhou nada — disse ela com
franqueza.
— Não, mas poderia ter ganho, se pelo menos tivesse dinheiro para
minha passagem.
A garota suspirou; já ouvira aquilo antes.
— Alguma mina de ouro na América do Sul? — perguntou com
sarcasmo.
— Não exatamente, mas uma boa oportunidade no Brasil. Encontrei-
me com Pedro de Silvestre, aquele camarada que conheci em Grasse. Ele vai
fazer um bom negócio e quer que eu o acompanhe. Estou disposto a vender
o chalé e partir.
— Não, papai, vender nossa casa, não! — exclamou a garota.
— Está caindo aos pedaços, mas o dinheiro obtido com o terreno daria
para cobrir minha passagem. Não podemos continuar assim, Sylvie, as
despesas são cada vez maiores. Fui obrigado a hipotecar a casa hoje.
— Oh, papai, você é incorrigível! O que vai ser de mim enquanto você
estiver trabalhando no Brasil? Posso ir também?
— Seria uma vida muito dura para você. E o balé? Talvez pudesse ir
para casa de sua tia Agnes.
— Prefiro qualquer coisa a isso — declarou resolutamente. — Você
está falando sério?
— Estou, sim. No cassino, encontrei um tal sr. de Mericourt,
exatamente a pessoa com quem queríamos falar.
— Oh, papai, era... o diretor?
— Ele mesmo. Uma figura impressionante, minha querida, e, pelo que
percebi, louco pelo balé. Pretende tornar o Balé Cosmopolite mundialmente
famoso.
— Você conversou com ele?
— Não, não me atrevi. Como todos os aficionados, ele e um pouco
doido. Não falei com ele, mas ele falou comigo. E quer vê-la amanhã cedo.
— Ele vai fazer um teste comigo?
— Acho que sim. Nem precisei mencionar o nome de sua mãe ou de
madame Lenska. Não sei como descobriu que você dançava e quer vê-la.
Na manhã seguinte Sylvie foi com seu pai até o luxuoso hotel, onde o
sr. de Mericourt estava hospedado, com o coração cheio de esperança.
Francis foi direto à recepção, enquanto Sylvie o esperava. Logo em
seguida voltou, dizendo:
— Você terá que esperar aqui. O sr. de Mericourt a receberá mais
tarde. Ele ainda não se levantou.
— Mas você não vai ficar?
— Ele quer vê-la a sós.
— Mas eu preciso de seu apoio.
— Não, querida. Você sabe muito mais do que eu sobre balé. Espero
que ele lhe faça uma proposta aceitável.
— Eu também!
— Coragem, filha, e boa sorte!
Sylvie sentou-se numa poltrona, ignorando os olhos curiosos dos
hóspedes.
Algum tempo depois, um rapaz de uniforme azul aproximou-se,
perguntando:
— Srta. Allen?
— Sim?
— O sr. de Mericourt vai recebê-la agora.
Foi levada para uma suíte no primeiro andar e, quando entrou na
sala, ficou deslumbrada com a decoração.
— Bom dia, srta. Allen. — A voz grave assustou-a.
Antoine de Mericourt levantara-se educadamente de sua poltrona,
deixando de lado o jornal que estivera lendo. Era alto e vestia um roupão de
seda preta que realçava sua pele levemente bronzeada pelo sol e seus
cabelos claros. Seus traços eram suaves, marcantes e caminhava com
arrogância.
— Bom dia, sr. de Mericourt — respondeu ela com delicadeza,
recusando-se a deixar-se intimidar. Os frios olhos acinzentados observavam-
na com intensidade.
— Então você é a aspirante a bailarina? — perguntou.
— Sou apenas uma principiante, mas existe algo errado em querer
chegar até lá?
— Não, errado seria não fazê-lo. Sente-se e vamos conversar.
Antoine era um pouco intimidador e inesperadamente bonito. Sylvie
imaginara alguém careca e gordo. Aquele homem possuía o corpo de um
atleta, embora fosse grande demais para ser um bailarino.
Seu olhar analítico causava-lhe embaraço, pois parecia dissecá-la. Na
verdade, ele estava mesmo observando as longas e esbeltas pernas de Sylvie,
os tornozelos bem torneados e a linha graciosa do pescoço. De altura
mediana, ela possuía o corpo perfeito para uma bailarina.
— Você é filha de Menella Rivers? — perguntou. — Você se parece com
ela...
— Oh, é mesmo? — Um brilho de ansiedade apareceu em seus belos
olhos. Então ele ouvira falar de sua mãe! — O senhor a viu dançar alguma
vez?
— Eu a vi dançar inúmeras vezes. — Os lábios firmes abriram-se num
sorriso quase terno. — Eu tive uma paixão juvenil por ela.
— Eu nunca a vi dançar — contou Sylvie com tristeza. — Ela desistiu
da carreira antes que eu tivesse idade suficiente para isso.
— O mundo perdeu um talento inigualável — comentou.
— Acho que eu nunca pararia de dançar.
— Raramente as mulheres são dedicadas, ou melhor, sinceras —
retrucou ele. — Você tem algum compromisso?
— O senhor se refere a rapazes ou coisas assim? Não tenho tempo
para isso. Dançar é muito mais importante para mim. O único problema tem
sido sobreviver com a renda que possuímos — confessou-lhe.
Fitou-o com ansiedade, mas ele não pareceu perturbar-se com aquela
confissão e perguntou-lhe se ela queria café.
— Não, se lhe causar algum problema — respondeu.
— Os criados são pagos para nos prestar serviços — comentou ele e,
levantando o telefone, deu uma rápida ordem em francês.
— Você teve alguma formação? Quem foi sua professora?
Sylvie respondeu-lhe por fora madame Lenska e viu as sobrancelhas
de Antoine arquearem-se em sinal de descrédito.
— Ela se retirou do balé por causa de sua saúde precária. Nunca ouvi
dizer que tivesse alunas. Lamentei muito saber de sua morte. Você não
podia ter encontrado uma professora melhor.
Aliviada, Sylvie tornou-se expansiva.
— Ela dizia que eu seria tão boa quanto mamãe, mas que não deveria
ser tão tola com relação aos homens. Eu lhe prometi que nunca seria.
Uma batida discreta na porta anunciou que o café estava chegando. A
garota parecia um pouco hesitante e Antoine de Mericourt disse:
— Você me serviria uma xícara?
— Lógico, senhor.
Antoine levantou-se para pegar a xícara, enquanto Sylvie pegava um
sanduíche. Ele acendeu outro cigarro, observando-a divertido. Depois lhe fez
perguntas. Por quanto tempo havia morado na França, onde fora educada,
quem era a família de seu pai e se ela fazia exercícios.
— Pratico todos os dias. Temos uma barra fixa na cozinha, mas não
há ninguém para corrigir-me. É claro que não tenho feito nenhum exercício
enquanto estamos aqui, pois não há espaço.
— Apenas nos jardins dos outros.
Ela riu com ar de travessura.
— Quem lhe contou?
— Ontem à noite eu a vi dançando ao luar.
— Oh! Não pude resistir àquela música e o portão não estava
trancado.
— Você me deu uma audição!
Uma sombra passou pelo rosto expressivo da garota e ela engoliu em
seco, colocando metade de um sanduíche de volta ao prato.
— Eu... imagino que seja muita presunção pensar tal coisa — disse
com tristeza —, mas, por favor, me dê uma chance.
— Meus bailarinos fazem parte de um grupo selecionado — observou
asperamente. — Você deve estar com o corpo rígido, e seria necessário
semanas e semanas de exercícios extenuantes para que você voltasse à
forma antes que estivesse apta a participar de meu corpo de baile. E eu já
tenho muitos principiantes.
— Bem, já que é assim... Se me der licença agora, preciso ir encontrar-
me com papai. Precisamos acertar algumas coisas. — Levantou-se. — Foi
muita gentileza de sua parte ter-me recebido e eu lamento tê-lo feito perder
tanto tempo. — Caminhou cegamente em direção à porta.
— Espere! — A voz de Antoine pareceu cortante e, tão logo ela parou,
completou: — Sente-se. Ainda não terminei. — Antoine silenciou,
observando-a intensamente. De súbito, perguntou: — Você conhece a
música de René Leclerc?
Sylvie negou com a cabeça.
— Acho que não é da sua época. Fomos grandes amigos, quando
éramos jovens, mas ele morreu precocemente num revolta de estudantes. —
Uma sombra de emoção suavizou-lhe as feições ásperas, logo
desaparecendo. — Ele escreveu uma peça de balé, e eu esperei algum dia ter
condições de produzir. Agora que tenho, a bailarina que o inspirou também
está morta.
Agora a garota começava a perceber a intenção dele.
— Está se referindo à minha mãe? — perguntou.
—- Sim, Menella. Ele compôs a música pensando nela. Isto exige um
tipo especial de talento. Ainda estou procurando a bailarina certa para
realizar o trabalho.
Os olhares de ambos se encontraram, ocultando os mesmos
pensamentos.
Antoine de Mericourt já tivera desapontamentos demais para fazer
promessas precipitadas, por isso disse com frieza:
— Embora você não esteja pronta para aparecer em público, estou
disposto a prepará-la, sob a condição de que você se coloque inteiramente
em minhas mãos. Eu exigiria muito de você: dedicação constante e
obediência completa.
— Oh, senhor! — Sylvie estava encantada; naquele momento sentia-se
preparada para idolatrá-lo. — Trabalharei como uma escrava, farei tudo o
que desejar!
— Fará mesmo, Sylvie?
Algo na face de Antoine impediu-a de reafirmar o que dissera. Ele
possuía uma expressão quase ávida nos olhos cinzentos; poderia ter alguma
intenção de namorá-la? Como se adivinhasse os pensamentos da garota, ele
disse:
— É claro que meu interesse por você é puramente profissional. Não
permito qualquer associação sentimental com meus bailarinos e espero que
eles se dediquem inteiramente a sua arte. Há uma regra em minha
companhia que diz que se uma garota se casa, é imediatamente demitida.
— É exatamente o que me convém — disse ela com alegria. — Não sou
como minha mãe. Sempre colocarei minha profissão em primeiro plano.
— Todas dizem a mesma coisa, e você acredita nisso agora, mas
infelizmente você vai crescer...
Uma agitação fora do aposento interrompeu-o. A porta foi aberta e
uma mulher muito bonita entrou, usando um vestido longo, prateado. Sylvie
já vira suas fotografias na frente do teatro. Era Gianetta Albanesi, a primeira
bailarina do Balé Cosmopolite.
Gianetta estava furiosa. Seus grandes olhos negros soltavam faísca e
todas as linhas do seu corpo gracioso tremiam enquanto gritava com Antoine
em italiano. Quando ela parou para respirar, ele lhe disse secamente:
— Fale em inglês, por favor, seu italiano é terrível. E como você foi
entrando dessa maneira? Ninguém lhe disse que eu não podia recebê-la?
Ela replicou na mesma língua, falando muito bem.
— Ninguém se atreveu a tentar impedir-me de subir. Eu disse a
criadagem que você sempre pode me receber e exijo saber o que significa
isso. — Jogou a folha de papel aos pés dele. — É alguma piada? Se for, é de
muito mau gosto. É impossível que seja verdade o que diz aí.
Antoine de Mericourt pegou o papel e Sylvie percebeu que se tratava
de uma carta datilografada.
— É verdade, sim — retrucou ele. — Você violou os termos do nosso
acordo. Esta é a notícia formal de sua demissão. Há uma semana você
resolveu casar-se com um certo sr. James Morrison. Você conhecia minha
regra. Não emprego mulheres casadas em minha companhia.
— Uma regra ridícula e desumana — declarou Gianetta. — Que
diferença faz o casamento para a minha carreira? Por causa de James eu
tenho menos valor para você? Ele não interfere no lado profissional de minha
vida.
— Então ele não é um verdadeiro marido. — Antoine de Mericourt
estava irredutível. :— É claro que afetará sua vida. Sua lealdade estará
dividida. Você não pode ser ao mesmo tempo uma boa esposa e uma
bailarina perfeita. E eu tolero apenas a perfeição.
— Mas, Antoine — começou ela, percebendo que ele não cederia. — Eu
o amo.
— Exatamente — retrucou ele. — Eu permito apenas um amor.
Sylvie levantou-se e fitou a face rude com ar suplicante.
— Senhor, não é melhor eu ir-me embora? — perguntou, sentindo que
ele se esquecera de sua presença.
— Não — disse ele rapidamente. — Pode ser bom que você presencie
este fato.
Pela primeira vez Gianetta percebeu a presença de Sylvie. Examinou a
garota com olhos penetrantes.
— Quem é esta mendiga? — indagou.
— Menos mendiga do que você já foi —— retrucou Antoine de
Mericourt secamente. — Eu a conduzi ao estrelato desde os primeiros passos
e esta é a sua gratidão: um casamento secreto que você esperava que eu
nunca descobrisse, como se eu não soubesse tudo o que acontece com você,
Gianetta, como se eu não tivesse percebido que já há algum tempo a arte
não está mais em primeiro lugar para você.
— Sua companhia não é a única!
— Sei disso, mas pretendo que seja a melhor.
Gianetta começou a falar em italiano, e Sylvie leve a impressão de que
as palavras ditas eram tremendamente insultantes. Antoine de Mericourt
expressava um desagrado crescente.
— Chega! — exclamou. — Você fala como uma mulher vulgar.
Percebendo que ele não cederia, Gianetta virou-se para Sylvie.
— Tome nota do que vou lhe dizer — disse ela histericamente. — Se
você é outra candidata aos favores deste homem, que seja avisada a tempo.
Ele não mentiu, eu era uma mendiga como você e ele fez de mim uma
bailarina, mas cobrou seu preço. Ele tomou minha juventude, meu talento,
meu coração, minha alma, devorando-os como um vampiro, e não me deu
nada em troca, nem mesmo afeição.
— Já chega, Gianetta — disse ele. — Nem Sylvie nem eu estamos
impressionados com sua atuação dramática.
A mulher soluçava descontroladamente e Antoine, aproximando-se
tocou-lhe a face.
— Sem histerias, por favor. Volte para seu marido, mas no que, diz
respeito à minha companhia, você está demitida.
Gianetta parou de soluçar. Por um segundo seus olhos faiscaram e
Sylvie viu sua mão mover-se em direção à faca que havia sobre o carrinho de
chá. Então, com esforço, ela se recompôs e disse:
— Está bem, mas não me esquecerei e algum dia o farei pagar. Eu só
me submeti à sua tirania porque pensei que você pretendesse casar-se
comigo.
— É mesmo? — Os olhos cinzentos de Antoine estavam gélidos. —
Infelizmente você interpretou mal meus objetivos. E agora chega, Gianetta.
— Caminhou até a porta e abriu-a. — Até logo — disse, apontando a saída.
A mulher dirigiu-lhe um olhar onde transparecia a angústia e a
vontade de vingar-se e saiu da sala. Antoine de Mericourt fechou a porta,
comentando casualmente:
— Esses italianos são muito nervosos. Ela é de origem camponesa. Eu
a descobri dançando numa casa de má reputação em Nápoles, com a idade
de treze anos, e encarreguei-me de treiná-la e educá-la em troca de sua
felicidade, mas, antes mesmo de ter chegado ao auge de sua carreira, ela me
abandonou por James Morrison. — Ele se sentou novamente com uma
expressão de desgosto.
—- Ela é encantadora e dança divinamente. Por que não se casou com
ela? Assim poderia tê-la mantido para sempre.
— Você acredita que um homem possui a esposa? — disse, fitando-a
com estranheza.
— Nunca pensei sobre isso. — Ela sorriu com ingenuidade. — Papai
sempre tratou mamãe como se ela fosse um bem muito precioso.
— E ela era, maldito! — exclamou Antoine de Mericourt com tamanha
violência que Sylvie se sobressaltou. Ele acendeu outro de seus cigarros
pretos russos e olhou meditativamente para o teto. — Casar-se com uma
mulher tão jovem que seu desenvolvimento possa ser moldado para agradar
às exigências de um homem pode ser uma experiência interessante — disse
ele, mais para si mesmo do que para a garota. — Caso se conseguisse
encontrar o material certo, que Gianetta não era. A garota deve ter espírito
de combate, não para destruir, mas para submeter-se.
Sua voz morreu e ele continuou a olhar para o teto enquanto Sylvie
estremecia de desconforto. Como aquele homem era frio e calculista! Talvez
Gianetta tivesse sorte em escapar. Depois de algum tempo, pareceu lembrar-
se de sua presença.
— Perdoe-me, minha criança. — Passeou os olhos penetrantes mais
uma vez pelo corpo da garota. — Daqui a cinco ou seis anos, Sylvie, você
terá se tornado não só uma grande bailarina, como também uma mulher
desejável.
— Oh, senhor! — Ela sentia-se imensamente gratificada. — Mas como
pode dizer isso quando eu ainda pareço um moleque?
— Sempre reconheço um talento... em potencial — replicou ele
enigmaticamente.

CAPITULO II

Antoine de Mericourt olhou para a fachada da residência temporária


dos Allen, uma casa em ruínas ocupada por uma associação de pescadores,
que escapara não se sabia como da demolição, e sugeriu que Sylvie fosse
buscar seu pai para irem a um bar.
De bom grado, pois não desejava mostrar a carência de suas
acomodações para uma pessoa tão sofisticada, ela subiu correndo os
degraus em estado precário e entrou no quarto.
— Papai, eu consegui! Ele quer vê-lo.
Perdido em seus próprios pensamentos, Francis levou alguns
momentos para entender o que sua filha estava falando; então, penteou
rapidamente os cabelos, arrumou a gravata e seguiu-a até o andar de baixo.
Antoine levou-os a um bar ao ar livre, com mesinhas colocadas entre
palmeiras, de onde se avistava uma enseada e o palácio de Mônaco.
Depois de pedir as bebidas, entrou no assunto, observando que,
embora Sylvie tivesse um enorme talento, precisava de muito
aprimoramento, e, como ela estaria recebendo toda a orientação necessária,
não via maneira de pagar-lhe um salário. Além do mais, caso ela fosse
remunerada, precisaria de uma licença de trabalho.
— Receio que eu não esteja em condições de dar uma mesada à minha
filha — disse meio embaraçado.
— Isso não será necessário — assegurou-lhe Antoine. — Sua filha
pode ficar hospedada com madame Lescaut, uma pessoa de minha
companhia, enquanto estamos em Mônaco e, quando voltarmos para Paris,
minha governanta tomará conta dela. Ela terá tudo o que for necessário.
— Paris? — exclamou Sylvie ansiosamente.
— A sede do Balé Cosmopolite é lá.
— Vou precisar de algumas roupas — comentou timidamente.
— É claro que, se minha aventura for bem-sucedida, eu poderei
mandar-lhe algum dinheiro — disse Francis com orgulho.
— Posso saber em que consiste essa sua aventura? — perguntou
Antoine.
Francis começou a informá-lo com vários detalhes e Antoine de
Mericourt escutava com simpatia, o que deixou Sylvie perplexa, pois ele não
podia estar realmente interessado nos planos de seu pai.
— Você não tem outros parentes? — perguntou para Sylvie, mas foi
Francis quem respondeu.
— Sim, na Escócia, mas meu pai me renegou e também renegará
Sylvie, caso ela se torne bailarina. Ele acha que o balé é coisa do diabo. —
Francis riu. — Mas minha irmã sempre prometeu que tomaria conta de
Sylvie se eu não tivesse recursos.
— A Escócia é muito longe — comentou Antoine e Francis o encarou .
— Nem tanto — disse ele significativamente. — Meu pai é proprietário
de uma fazenda, embora comporte apenas um castelo quase em ruínas e
alguns acres de terra pantanosa. Mas ele se preocupa muito com a honra da
família.
— A honra de sua filha estará a salvo em minhas mãos — disse ele
secamente. — Faço questão de preservá-la. — Dirigiu o olhar para Sylvie
com insolência preguiçosa. — Então, menina, você tem verdadeiramente
uma base.
— E isso pode afetar minha dança? — perguntou ela, ansiosa.
— Lógico que não, mas ser neta de um proprietário de terras na
Escócia é muito melhor do que ser uma camponesa italiana — comentou ele
significativamente.
Sem compreender a insinuação, Francis fitou-o interrogativamente e
Antoine continuou:
— Acho melhor você dar um passeio, criança, enquanto converso com
seu pai.
Contra a vontade, Sylvie esvaziou seu copo de vinho e levantou-se.
Temia as atitudes de seu pai, embora ele mesmo tivesse dito que sua
contratação pelo Balé Cosmopolite resolveria todos os problemas.
— Muito bem — concordou. — Mas por favor, papai, entenda que sou
capaz de cuidar de mim mesma.
Com um olhar de desafio para Antoine, que parecia divertir-se,
afastou-se. Seus passos conduziram-na ao teatro, um prédio que a atraía
como um imã.
Alguns homens colocavam novos cartazes por causa da mudança de
programação, e estes não continham o nome de Gianetta Albanesi. Um
pedaço rasgado do antigo cartaz caiu aos pés de Sylvie. Pegou-o e viu que lá
havia o nome da garota italiana. Estremeceu involuntariamente. Antoine de
Mericourt era um homem impiedoso.
Naquela noite Francis lhe disse que ela ia mudar-se para os aposentos
de madame Lescaut na manhã seguinte, enquanto ele ia encontrar-se com
Pedro de Silvestre, em Marselha. As notícias de uma partida tão repentina
fizeram com que Sylvie sentisse uma pontada no coração.
— Oh, papai, pensei que você fosse ficar por aqui enquanto eu ainda
estivesse em Monte Carlo — lamentou-se num tom de reprovação. — Você
não tem que providenciar a venda de nossa casa antes de partir?
Ele corou e baixou os olhos, parecendo envergonhado.
— Também não me agrada deixá-la desta maneira, Sylvie — continuou
—, mas não tenho outra alternativa. Se você tiver qualquer problema, entre
em contato com o consulado inglês e eles lhe arranjarão uma passagem para
a Escócia.
— Para a casa de tia Agnes?
— Sim. Não precisa ficar tão aborrecida, filha; é bom termos uma
proteção e ela nunca viraria as costas para você.
— Não precisa preocupar-se comigo — disse ela, confiante. — Tenho
certeza que tudo dará certo.
Passaram uma noite um pouco desagradável, pois agora que a
separação estava tão próxima os dois se afligiam com a partida. Mas como
eram bastante otimistas, estavam certos de que o sucesso os aguardava em
suas diferentes aventuras. Dos dois, Sylvie era a que estava mais apreensiva
e isso por causa de seu pai: ela não confiava em Pedro de Silvestre nem
tinha fé nos projetos duvidosos de Francis.
Na manhã seguinte, madame Lescaut veio apanhar Sylvie e sua
aparência era tão respeitável que Francis ficou tranqüilo. A velha senhora
disse-lhe que sua filha ficaria muito bem sob seus cuidados e que ela fora
encarregada de ser sua dama de companhia.
— Está vendo, não precisa preocupar-se comigo — disse Sylvie ao pai.
— Não me acontecerá nada.
Abraçou o pai com força ao se despedirem. Ele prometeu-lhe escrever
logo que pudesse e garantiu que ela teria boas notícias.
Com os olhos nublados pelas lágrimas, Sylvie observou-o afastar-se,
perguntando-se onde e quando o encontraria novamente. Pegou então sua
mala e seguiu madame Lescaut.
A nova casa de Sylvie era um prédio alto de apartamentos que ficava
numa ladeira no alto da cidade. O interior não era particularmente
cativante, com poucas coisas e bastante funcional, mas o pequeno quarto
que lhe foi destinado era asseado e não podia ser comparado com sua
habitação anterior. A garota pendurou a fotografia, de Menella na parede,
pensando que realizara aquilo para que viera a Monte Carlo: obtivera uma
entrevista com o empresário da companhia de balé e fora contratada por ele.
Gostaria que madame Lescaut sugerisse levá-la ao teatro naquela
noite, mesmo que fosse para assistirem a um ensaio, mas tal idéia parecia
estar longe da mente da velha senhora. Madame Lescaut mal falava com ela,
e conversava num francês coloquial que Sylvie sentiu muita dificuldade em
acompanhar. Não havia sinal do sr. de Mericourt e a falta de seu pai
deixava-a triste e solitária. Foi para a cama um tanto abatida.
Ao acordar na manhã seguinte, sentia-se melhor. Levantou-se, lavou o
rosto numa velha bacia de porcelana e vestiu rapidamente sua roupas.
Ainda era muito cedo e ela caminhou até o cais, observando Mônaco lá
no horizonte, empoleirada numa rocha. Durante os poucos dias que passara
no Principado, tinha visto muito pouco da vida faustosa da Riviera francesa.
Os lugares que visitara foram a enseada e o velho porto, que lhe pareceram
mais tranqüilos do que as elegantes praias do outro lado. Demorou-se no
cais, observando os barcos de pesca que saíam, hesitando em retornar ao
apartamento para tomar seu café da manhã. Finalmente, achou melhor
voltar o mais depressa possível, senão ficaria andando pelo resto do dia.
Uma súbita agitação quebrou a calma da manhã. Descendo uma rua
estreita vinha um cachorro, com uma lata amarrada na cauda, perseguido
por um grupo de jovens desordeiros.
Sylvie abaixou-se quando o cachorro se aproximou dela. Pegou-o,
virando-se para encarar os perseguidores do pobre animalzinho.
Os rapazes não queriam abandonar sua presa sem luta e fizeram um
círculo em volta da garota, mostrando, em suas faces ameaçadoras e em
seus punhos fechados, suas sinistras intenções. Mas a salvação estava
próxima.
Uma figura surgiu entre os rapazes, distribuindo socos para a direita e
para a esquerda, fazendo com que os garotos fugissem o mais rápido
possível e deixando Sylvie a sós com seu salvador.
Era um rapaz que usava apenas um calção de banho. Havia adquirido
um bronzeado profundo e seus cabelos castanhos ainda estavam úmidos do
banho de mar. Tinha alegres olhos azuis.
— Muito obrigada — disse Sylvie em inglês. — Se bem que eu só
deixaria que eles levassem o cachorrinho se passassem sobre o meu cadáver,
o que, me parece, estava prestes a acontecer.
Ela abaixou-se e desamarrou a lata da cauda do cachorro,
murmurando palavras de carinho. O pobre animal lambeu seus dedos,
reconhecendo nela uma boa amiga.
Sylvie fitou o rapaz que a observava com o olhar divertido.
— Você é inglês, não é?
— Sim, e você também, é claro. Apenas os ingleses se arriscam por
causa de um simples cachorro. Mas você correu muito perigo, senhorita,
aqueles rapazes poderiam tê-la machucado.
— Percebi, e, mais uma vez, muito obrigada. Este pobre animal está
faminto! Se você pudesse emprestar-me algum dinheiro para comprar-lhe
comida, ficaria ainda mais agradecida.
— Lógico que arrumo — disse o rapaz alegremente. — A propósito,
meu nome é Tom Travers, e estou passando férias aqui. Vim ver o carnaval
de Nice. Como você se chama?
— Sylvie — disse-lhe distraída, ainda preocupada com o cachorro. —
Onde podemos encontrar um lugar que venda comida para cães?
Tom mostrou-se desembaraçado. Foi até um barzinho próximo e
voltou com alguns pedaços de torresmo que o faminto animal devorou
rapidamente. Ele estava muito sujo e Tom disse que devia ter pulgas.
— É provável — concordou Sylvie, não muito preocupada.
— O que você vai fazer com ele? — perguntou, fitando-a curiosamente.
A garota possuía belos olhos, e ele admirava sua coragem, mas ela parecia
tão magra e tão perdida como aquele pobre vira-lata.
— Vou ficar com ele — anunciou —, embora nem consiga imaginar o
que minha governanta vai dizer. — Pegou o cachorro. — Mas queria dar-lhe
um banho, antes que ela o visse.
— Acho uma boa idéia — concordou Tom. — Talvez possamos levá-lo
ao mar.
— Isso o livraria das pulgas — disse ela, cheia de esperança. — Mas
acho que ele não vai gostar muito.
Para alcançarem o mar tinham que atravessar a avenida principal,
muito movimentada. Pararam,esperando que o sinal fechasse. Vindo na
direção deles, apareceu um Mercedes que se dirigia a Nice.
Foi assim que Antoine de Mericourt encontrou sua futura bailarina:
suja da cabeça aos pés, segurando um vira-lata e acompanhada por um
rapaz seminu. Estava elegantemente vestido em um terno cinza, e a mulher
a seu lado vestia um conjunto de calças compridas brancas que realçava
seus cabelos loiros e seus olhos azuis.
O Mercedes foi brecado violentamente. Sylvie, conversando com Tom,
não percebeu a presença do automóvel a seu lado e só foi prestar atenção no
que estava acontecendo quando o motorista do carro desceu e dirigiu-se a
eles, com expressão carregada. Do interior do carro, uma voz aguda queixou-
se em francês.
— Antoine, por que paramos? Acho que é proibido estacionar aqui!
Ignorando os protestos de sua acompanhante, Antoine perguntou:
— O que você está fazendo, Sylvie?
— Fui salvar este cachorro e Tom teve que me salvar. Oh, senhor,
posso ficar com ele?
— Espero que esteja se referindo ao cachorro. Lógico que não! E você
não devia ter saído do apartamento sem pedir permissão. Tenho certeza que
madame Lescaut não teria consentido.
Sylvie arregalou os olhos.
— Você acha que eu iria ficar naquele apartamento abafado numa
manhã tão linda como esta? — perguntou ela, indignada. — Ontem eu
passei o dia inteiro trancada.
— Não é certo que mocinhas como você passeiem sozinhas por Monte
Carlo — disse repreensivamente.
— Oh, isto está fora de moda e, além do mais, não sou nenhuma
criança. Sempre andei sozinha por tudo quanto foi lugar e nunca me
aconteceu nada, até esta manhã, o que muito me amedrontou; mas Tom me
salvou. O senhor devia até agradecê-lo.
— Lógico que estamos muito agradecidos ao sr. Tom — disse Antoine
um pouco mais calmo, dirigindo ao rapaz um olhar convencional de
agradecimento. — Agora, por favor, largue esse cachorro e entre no carro.
Vou levá-la de volta ao apartamento.
Sylvie imaginara que Antoine ficaria tão preocupado com o destino do
cãozinho quanto ela. A seu ver, nenhuma pessoa normal podia abandonar
uma criatura indefesa.
— Não vou deixá-lo, pois aqueles garotos podem pegá-lo novamente —
declarou a garota, cheia de indignação.
— Você vai fazer o que eu mandar.
Aquele tom de comando na voz do homem despertou ainda mais a ira
da garota. Apertando mais o cão de encontro ao seu corpo, fitou Antoine.
— Oh, não, não farei, e não vou entrar em seu carro, estou muito suja.
Tenho certeza de que sua amiga não iria gostar nem um pouco.
A face de Antoine contraiu-se e ele deu um passo à frente.
— Você está se rebelando, menina? Você não passa de uma garotinha
mal-educada, isso sim...
— Desculpe-me, senhor — interveio Tom taticamente. — Talvez eu
possa dar um jeito no cachorro; deve haver algum canil, ou coisa desse tipo,
por aqui.
Sylvie voltou-se para ele cheia de gratidão no olhar.
— É muita gentileza de sua parte. Tom, mas estamos na França, e,
você sabe, eles não têm muita piedade com cãezinhos sem dono; eu não
posso abandoná-lo, e não quero. — Dirigiu um olhar de desafio a Antoine. —
Você vai ajudar-me, não vai, Tom? Deve haver algo que possamos fazer por
ele.
Tom parecia muito embaraçado, mas conseguiu dizer com galanteio na
voz:
— Farei tudo o que me for possível.
— Então precisamos planejar algo. — Sylvie sorriu para o rapaz, com
doçura.
Antoine estava notando que o companheiro de Sylvie era muito
apresentável: inglês, de boa aparência, boas maneiras... e jovem. Além do
mais, parecia fascinado por Sylvie.
— Você me disse que não pensava em nada que não fosse o balé e está
preparada para arriscar sua carreira por causa de um mísero vira-lata!?
Sylvie fitou-o incrédula.
— Isso é uma ameaça? — perguntou ela com voz trêmula.
— Faço questão de ser obedecido.
A garota esqueceu-se de toda cautela, aquecida por um ímpeto de
fúria.
— Você não passa de uma pessoa mesquinha e sem coração! — gritou.
Estendeu o animal trêmulo em direção a ele. — Olhe para este pobre
cãozinho! Está faminto e sujo, e você que, tenho certeza, nunca passou fome
em sua vida, que sempre teve tudo o que quis, não vai levantar um dedo
para ajudá-lo, Você o jogaria de novo na sarjeta para morrer de fome e,
quando eu digo que não concordo, você ameaça demitir-me se não obedecê-
lo. Isso é chantagem da pior espécie, e eu o desprezo por isso! — Apertou o
cachorro contra o peito. — Está tudo bem, queridinho, se é assim que o sr.
de Mericourt — pronunciou seu nome com sarcasmo — quer, nós dois
passaremos fome juntos, e ele que fique com suas ameaças!
— Sylvie, você não devia perder as estribeiras desse jeito — comentou
Tom. — Quero dizer, afinal de contas, é apenas um cachorro!
— Oh, Tom, pensei que você fosse diferente — gritou ela, desesperada.
Diversas pessoas haviam parado para olhar curiosamente aquele
grupo: o rapaz bronzeado, a garota mal vestida e furiosa, o cachorro sujo, o
elegante diretor e o caríssimo automóvel estacionado num local não
permitido, onde uma bela mulher tentava disfarçar seu embaraço por ter
que participar daquele grupo tão heterogêneo.
— Cale-se, sua gata selvagem — disse ele friamente. — Não precisa
ficar histérica. Pode ficar com o cachorro, já que ele significa tanto para você,
mas vamos embora, antes que chegue a polícia. — Inclinou-se levemente em
direção a Tom. — Senhor, meus agradecimentos pelo que fez por... minha
protegida. Sylvie, entre no carro. — Abriu a porta traseira. — E não deixe
esse animal sair do seu colo.
Enquanto Sylvie entrava, a passageira emitiu um gritinho de angústia.
— Meu Deus, como pode permitir isto, Antoine? Tenho certeza de que
esse animal está cheio de vermes!
— É provável, mas como eu, Marguerite, você precisa aceitar o
inevitável.
Ele escreveu algumas palavras num cartão e estendeu-o a Tom.
— Apresente isto na bilheteria do teatro e eles lhe arrumarão lugar
para a apresentação que você quiser ver. Espero que isso sirva de
recompensa pelo que você fez.
O gesto desdenhoso e altivo de Antoine ao dar o cartão a Tom pegou o
rapaz de surpresa, e ele aceitou sem refletir. Sylvie inclinou-se em direção à
janela e gritou:
— Adeus, meu querido, nunca esquecerei o que você fez.
Meu querido! Antoine de Mericourt ficou tenso, cheio de súbita
irritação, enquanto manobrava o carro.
— Não sabia que você já conhecia esse tal de Tom — disse, olhando-a
através do retrovisor.
— Eu o conheci esta manhã — admitiu ela. — Ele salvou minha vida.
— Ele o quê?
— Ele viu que os rapazes que estavam judiando do cachorro não
gostaram da minha interferência. Acho que eles teriam me dado uma surra,
caso Tom não tivesse aparecido.
— Meu Deus! — exclamou Antoine.
— Mas tudo terminou bem — disse ela apressada, observando-o um
pouco desconfiada. Tinha ficado alegre quando ele cedera em relação ao
cachorro, mas agora que sua raiva passara, sentia-se um pouco
envergonhada de sua explosão, poucos minutos atrás.
— Eu... falei aquelas coisas todas sem pensar, não acredito nelas —
gaguejou.
— Espero que sim — retrucou. — Sylvie, se você pretende ser uma
bailarina, precisa aprender a se comportar adequadamente.
— Sim, senhor — disse ela com humildade.
Marguerite, que olhava a garota com certo desprezo, falou em francês
e Sylvie não conseguiu acompanhar.
— Foi um incidente muito desagradável, Antoine, e por causa disso
chegarei atrasada ao meu compromisso em Nice. Você deve estar brincando
quando diz que pretende fazer dessa garota mal-educada uma bailarina.
— Já fiz isso com outras — comentou ele. — Gosto de pessoas assim.
Ela só precisa ser domesticada.
Sylvie compreendeu somente o fim de seu comentário e pensou em
Gianetta. Ele não fora bem-sucedido com ela.
Antoine deu partida no carro e perguntou:
— Você sabe falar francês, Sylvie?
— Sim, mas não como essa senhora — informou-o. — Meu vocabulário
está cheio de palavras rudes — acrescentou com ar travesso.
Antoine riu, deixando a garota mais tranqüila, enquanto Marguerite
parecia chocada. Ele virou-se então para Sylvie e disse:
— Essa será sua primeira tarefa. Deverá falar francês como uma
parisiense.
— Minha tarefa? — perguntou ela desconfiada, pois pensou que fosse
ter apenas aulas de balé.
— Sim, existem muitas coisas que você terá que aprender para
completar sua educação, além da dança, Gianetta sabia falar três línguas.
Desejo fazer de você uma mulher de sociedade, perfeita em todos os
aspectos.
Nesse momento, estacionaram em frente ao prédio de apartamentos.
Pedindo desculpas a Marguerite, ele seguiu Sylvie. Deixou-a na sala de estar
e foi à procura da governanta. A garota sentou-se com o cão sobre os joelhos
e refletiu sobre o último comentário de Antoine. Era mesmo desconcertante
descobrir que sua educação não alcançara os padrões desejados por ele, mas
por que era necessário ser perfeita em todos os aspectos? Essa parecia uma
exigência difícil demais para ser cumprida com êxito.
Deixando de lado esse problema, pensou em Tom. O rapaz seria uma
boa companhia, pensou esperançosa. Seria divertido explorar Mônaco com
ele! Subir nos rochedos, passear sem destino certo, mas isso parecia não ser
permitido e, mesmo que fosse, não saberia onde encontrá-lo.
Antoine voltou sorrindo, mas com os olhos ainda um tanto sombrios;
teve que pagar um alto preço para que o cachorro fosse aceito.
— A zeladora concordou, não sem relutância, em deixar que seu
cachorrinho ficasse aqui. Quando eu for embora você dará banho nele lá no
pátio. Uma cesta de vime será comprada para ele dormir. Se você quiser,
poderá levá-lo a passear, sob a supervisão de madame Lescaut, é claro, mas
não saia sem ela. Preste bem atenção, Sylvie, não vou tolerar outras fugas
como a desta manhã. Desobedeça-me e não ficará mais com o cachorro.
— Então o senhor está querendo fazer do pobre cachorro uma garantia
para o meu comportamento? — perguntou ela com voz trêmula. — Isso é
chantagem, eu pensei que estava sendo apenas gentil.
— Nunca fingi ser gentil — disse ele com desdém. — Gentil, que
palavra insípida! Não posso me dar ao luxo de deixar você correndo pelo
Principado. É arriscado demais!
Ele também estava pensando em Tom Travers. Para poder domesticar
aquele cisne selvagem, tinha que, contra sua vontade, aprisioná-lo.
— Então, o que eu farei o dia todo? — indagou.
Antoine fitou-a possessivamente. Sentada numa cadeira alta, com o
cachorro deitado aos seus pés, estava muito graciosa, com uma postura
elegante não estudada, embora estampasse tristeza no rosto.
De repente ele sorriu charmosamente, iluminando a aspereza normal
de sua face.
— Não precisa ficar desesperada — disse Antoine com delicadeza. —
No momento estou ocupado demais para ficar com você, mas mandarei
alguns livros para que possa estudar. Também vou combinar para que você
assista ao balé todas as noites. Você pode aprender muito, só assistindo.
A garota repentinamente ficou excitada.
— Oh, obrigada, senhor, mas eu não posso começar logo a praticar?
— Tudo em seu devido tempo. Quero, antes de mais nada, dar um
tempo para que você fique mais forte. Atualmente, você está parecendo mais
um gatinho esfomeado.
— Mas eu sempre fui assim!
— Mas uma temporada de repouso e calma lhe fará bem, antes que
você comece a trabalhar de verdade. Agora preciso mesmo ir, Marguerite
pensará que me perdi. — Caminhou então até a porta e, virando-se, disse: —
Quero que você jante comigo hoje à noite. Madame Lescaut arrumará algo
para você vestir.
Sylvie encarou-o perplexa. Depois que ele dissera que não tinha tempo
para ficar com ela, aquele convite pareceu-lhe contraditório.
— Jantar... com o senhor? — A perspectiva era um pouco
atemorizadora.
— Sim, temos algumas coisas a discutir. Precisamos assinar o
contrato. Iremos até Nice. Como é uma cidade maior do que Monte Carlo, as
chances de permanecermos no anonimato são bem maiores.
— Será muito bom.
— Será um jantar de negócios — lembrou-lhe. — Até logo.
Sylvie foi até a janela para vê-lo ir embora, ocultando-se
cuidadosamente atrás da cortina.
Antoine era, como tinha dito a Sylvie, muito ocupado, e não apenas
com sua companhia de balé. Ficou imaginando se ele e Marguerite estavam
no mesmo hotel. Eles eram, pensou, uma combinação perfeita: a beleza
sofisticada da mulher complementando a elegância arrogante do homem.
O fato de que eles poderiam ser amantes não a chocou. Antoine estava
obviamente muito envolvido com sua bem-amada e, como ele considerava
suas bailarinas como entes sagrados, tinha que procurar aventuras em
outros lugares.
O cãozinho latiu suavemente, lembrando Sylvie de sua presença, e a
garota afastou-se da janela para pegá-lo.
— Ele não foi muito gentil com você — disse-lhe. — Ele só permitiu
que eu ficasse com você para se assegurar de minha obediência Não gosto do
sr. de Mericourt, mas já que desejo dançar, terei que conviver com ele. Agora
vou dar-lhe um banho e arrumar-lhe um nome.
Naquela tarde, madame Lescaut levou Sylvie a uma loja discreta, onde
as roupas que experimentou — seguindo as instruções de Antoine — eram,
na opinião de Sylvie, muito infantis e afetadas. Não havia na loja nenhuma
calça comprida para vender. A blusa muito larga, a saia creme plissada e o
casaco leve que lhe foram entregues não lhe despertaram o mínimo
interesse, embora fossem da melhor qualidade. O vestido de noite bordo,
com um decote quadrado, agradou-a mais. Era longo e ela nunca usara um
vestido longo em sua vida. Olhava-se no espelho em todos os ângulos
enquanto o experimentava.
— Estou achando este vestido um pouco sem graça — observou. —
Não poderíamos comprar um de uma cor mais viva, ou algo mais decotado?
Madame Lescaut comprimiu os lábios.
— O sr. de Mericourt disse que queria algo discreto — explicou ela. —
Esse está muito bom.
Entretanto, quando Antoine foi buscá-la naquela noite, pareceu não
ter gostado muito da escolha da sua governanta. Mas não fez nenhum
comentário.
— Não tenho xale — lamentou-se a garota. — Apenas um casaco
escuro que não combina com este vestido. Acho que madame Lescaut não
tem muito bom gosto.
— Ela apenas cumpre ordens — observou ele significativamente. Ele
conduziu-a até o banco da frente do Mercedes, como se ela fosse uma
duquesa. Ao lembrar-se da mulher encantadora que estava sentada a seu
lado naquele mesmo dia, Sylvie suspirou. Ela devia fazer um contraste
doloroso com a bela Marguerite.
O dia findava e os reflexos da lua já tingiam as águas. Quando
chegaram a Nice, a baía dos Anges já estava iluminada e os hotéis que a
circundavam, cheios de luz, pareciam palácios em festa.
— Os preparativos para o Carnaval já começaram — comentou
Antoine.
— Sim, Tom veio para assisti-lo.
— Oh, é mesmo? — Foi nesse momento exato que Antoine decidiu que
ela não participaria da grande festa.
Sylvie olhou para o contorno de um pavão feito nas lâmpadas
coloridas dos jardins.
— Que beleza! — ela suspirou.
— Mas é artificial.
— Você não gosta de coisas artificiais? — perguntou Sylvie, pensando
em Marguerite.
Para sua surpresa, ele retrucou:
— Prefiro a simplicidade natural.
Saiu da avenida à beira-mar, lotada de carros e passageiros
exoticamente vestidos, e dirigiu-se para o interior da cidade. Em uma das
ruas, algumas lojas ainda estavam abertas. Ele estacionou em frente a uma
delas, saiu e voltou com um pacote que colocou no colo da garota.
— Seu xale — explicou-lhe.
Desembrulhando-o, Sylvie descobriu um xale espanhol com flores
bordadas sobre um fundo preto, com longas franjas.
— Oh, senhor! — exclamou ela encantada, colocando-o sobre os
ombros. — Se eu tivesse um espelho!
— Eu serei seu espelho. — Diminuiu a marcha do carro e, com uns
poucos toques de sua mão esquerda, arrumou o xale da maneira que achou
mais conveniente. Então, deliberadamente, despenteou o cabelos da garota.
— Oh, senhor! — exclamou ela, desta vez protestando. — Passei horas
para conseguir arrumá-lo!
— Você estava parecendo uma presidiária com aquele penteado.
O lugar onde ele a levou era um restaurante pequeno e discreto, numa
rua lateral. A presença de espírito de Sylvie espantou e divertiu seu
companheiro, porque era um comportamento diferente do que ela tivera
naquela mesma manhã. A garota era dotada de uma dignidade natural que
sabia usar com perfeição, quando desejava.
— Sangue bom — murmurou Antoine.
— Que é isso? — perguntou ela.
— O que é de nascença transparece nos mínimos gestos.
— É mesmo? -— Ela não tinha idéia sobre o que ele estava falando.
Olhou ao redor com curiosidade. Sentia-se desapontada, pois não havia uma
vista para o mar, nem orquestra.
O garçom entregou-lhe um cardápio enorme e incompreensível, mas
ela mal o olhou. Com um gesto de enfado, muito charmoso, disse para
Antoine:
— Por favor, peça por mim.
Ele pediu sopa, peixe, galinha frita e, para sobremesa, sorvete.
Beberam vinho branco doce, que ele achou que combinaria com o paladar da
garota. Durante a refeição, a conversa girou em torno do balé, e ele ficou
encantado ao descobrir que Sylvie conhecia os nomes dos bailarinos atuais e
muito de suas vidas. Quando ele falava, ela o ouvia com grande respeito.
Depois que o café foi servido, ele acendeu um cigarro e anunciou:
— Agora precisamos discutir negócios.
— Meu contrato?
— Exatamente. Pensei muito sobre isso. É claro que você sabe que
levá-la à perfeição será uma tarefa longa e dispendiosa e, quando tiver sido
realizada, não desejo que todo o meu trabalho e o seu sejam jogados fora,
como fez Gianetta Albanesi. — Ele parou, fitando-a significativamente.
Ela sustentou seu olhar de maneira imperturbável.
— Já lhe disse que não jogarei fora essa chance que está me
proporcionando.
— Isso você diz agora, mas e quanto ao cachorro?
— Cachorro? — repetiu ela, sem entender.
Antoine surpreendeu-se perguntando a si mesmo qual era a cor exata
dos olhos da garota. Não eram verdes, nem amarelados, nem cinzentos;
eram uma mistura das três cores. Sylvie baixou us pálpebras, embaraçada
com sua expressão.
— O que tem o pobre cachorro?
— Você parecia prestes a arriscar toda a sua carreira por um simples
vira-lata, num momento de paixão — lembrou-a.
— Oh, bem... é que eu achava que o senhor acabaria cedendo — disse
com candura na voz.
— E se eu tivesse sido inflexível?
— Acho que eu não teria realmente coragem de abandonar minha
carreira — respondeu um pouco duvidosa. — Esperava que Tom fizesse
alguma coisa, mas por sorte isso não foi necessário.
— Ah, sim, o obsequioso sr. Tom — replicou ele com voz áspera. —
Você parece pensar bastante nele. — Pousou os olhos nos lábios da garota.
Aquela quase-mulher sentada à sua frente era bem capaz de sacrificar
qualquer coisa por um sentimento mais forte.
Sem perceber suas potencialidades naquele sentido, Sylvie comentou
com ingenuidade:
— Ele foi tão bom, você não achou?
— É um rapaz medíocre! — Antoine parecia cansado.
— Sua aparência é tão agradável... — continuou ela, e os olhos de seu
acompanhante estreitaram-se com irritação, mas Sylvie não pretendia
provocá-lo. Gostara de Tom e não via razão para não expressar o que sentia.
— E foi tão gentil — completou. — Mas o senhor também é gentil. — Sorriu
para ele. — Muito mais do que pensa!
— De uma vez por todas, Sylvie, por favor, entenda que não sou uma
pessoa gentil! O que eu faço é por uma razão, com minhas próprias
vantagens em mente. Não me importo que você tenha um cachorro, se isso a
deixa contente, mas não admitirei rebeldia, fique certa.
— Não, senhor — concordou ela. — Mas acho que eu não terei
qualquer necessidade de me rebelar contra o senhor. Afinal de contas,
nossos objetivos são os mesmos, não são? O meu é dançar e o seu é fazer de
mim uma bailarina. O que posso fazer para convencê-lo? — indagou ela. —
Assinar um contrato dizendo que nunca vou abandoná-lo?
— Sim — disse ele abruptamente. Qualquer dúvida que ele tivesse a
respeito do rumo que devia dar à conversa entre ambos fora desfeita quando
ela se referiu a Tom, minutos antes.
— Mas eu não terei utilidade para o senhor, quando estiver velha e
não puder mais dançar.
— Quando chegar essa época, serei um trêmulo ancião — replicou ele.
— Acho que não temos necessidade de pensar sobre nossa velhice agora.
Estou mais preocupado com a próxima década, durante a qual você se
tornará mulher. Seria tudo muito mais simples se você continuasse a
criança que é agora, mas infelizmente isso é impossível.
— O senhor ainda sente medo que eu queira me casar como mamãe e
Gianetta Albanesi fizeram? — perguntou a garota com calma. — Acho que
nunca faria isso e, se eu assinar um contrato dizendo que não o farei, não
poderei casar-me nem que queira.
— É exatamente isso que tenho em mente. O contrato que eu quero
que você assine tornará praticamente impossível que você me abandone sem
meu consentimento.
Ela sorriu com nervosismo.
—- Parece que está me propondo casamento!
— Foi isso o que eu disse.
— Mas... mas eu não posso... — começou a dizer, torcendo o
guardanapo entre os dedos. — É uma proposta absurda!
— Não completamente. Não foi você quem disse que eu devia ter me
casado com Gianetta se queria mantê-la comigo? Não me disse também que
considera o casamento indissolúvel? Você é inglesa; casando-se comigo você
se tornaria francesa, com direito a morar e trabalhar na França.
— Mas... mas o senhor não me ama!
— Não, Sylvie — disse rindo —, isso não é necessário. O amor, ou seja
lá o que for, não caberá em nosso contrato. Você precisa de um guardião e
um protetor e isso é tudo o que eu serei, prometo-lhe, pois será um
casamento apenas nominal.
— Eu não posso aceitar — disse cia em voz baixa. — Não, não posso.
— Fitou-o embaraçada, lembrando-se dos comentários bastante estranhos
que ele fizera quando despedira Gianetta. — Vou ser uma experiência... um
tipo de cobaia?
Per um momento o homem pareceu desconcertado, e então riu mais
uma vez.
— Que idéia! Não, isso é apenas uma... uma conveniência, e não
contaremos a ninguém. Não quero que minha companhia fique sabendo que
eu quebrei minhas próprias regras em relação a você. Ninguém acreditaria
que não é um casamento de verdade. Portanto, o manteremos em segredo.
— Por causa daquelas coisas que meu pai falou sobre ser proprietário
de terras, o senhor não está pensando que sou alguma herdeira ou coisa
assim, não é? — perguntou ela desconfiada, pois sabia que muitos franceses
esperavam receber um dote de suas esposas. — Não vou receber nada dele
caso me torne bailarina.
— É claro que não. Seu talento é o seu dote. Ê isso o que quero
preservar e cultivar. Sua mãe sacrificou a carreira por causa de um homem.
Quero me garantir que você não fará o mesmo.
— Mas eu não faria isso... prometi que não faria; não precisamos
tomar uma atitude tão... drástica. — Seus grandes olhos mostravam medo.
Embora estivesse preparada para aceitar Antoine como seu professor e
patrão, a idéia de um vínculo mais forte a aterrorizava.
— Beba mais um pouco de vinho — disse ele, procurando tranqüilizá-
la e enchendo os dois copos. — Você está ficando agitada por causa de nada.
Tudo o que estou pedindo é que você assine o registro no cartório em vez de
assinar o contrato normal. Depois, pode se esquecer completamente de tudo
isso.
— E o senhor se esquecerá?
— Sim — prometeu ele, não com muita sinceridade. — Daqui a alguns
anos, você terá se tornado não só uma excelente bailarina, como também
uma mulher extremamente atraente. Com. o mundo a seus pés, você pode
achar dificuldades em manter as promessas que me fez. Mas se você estiver
unida a mim — ele não conseguia ocultar totalmente a avidez de seus olhos,
e Sylvie estremeceu —, será mais fácil resistir à tentação.
Embora tivesse apenas um vago indício de quais eram os verdadeiros
motivos que estavam por trás das palavras de Antoine, Sylvie era intuitiva
demais para não perceber que ele almejava um poder sobre ela muito maior
do que era normal entre patrão e empregado. Retraiu-se ao pensar nisso.
Dando um gole no vinho, perguntou:
— Quais são as minhas alternativas?
— Seu pai disse-me que você poderia ser enviada para a casa de sua
tia.
— Enviada! — exclamou ela. — Não sou um pacote. Eu não iria. Daria
um jeito de conseguir entrar para uma companhia de balé.
— As agendas dos empresários estão repletas de nomes de aspirantes
a bailarina — disse ele friamente. — A maior parte delas morreria de fome
caso tivesse que viver de seu trabalho. Além disso, você é menor de idade, e
estamos na França. De qualquer modo a mandariam de volta.
Sylvie compreendeu que aquela era a verdade e sua coragem se
desvaneceu diante das dificuldades que lhe foram apresentadas.
— Meu pai soube dessa proposta? — perguntou, pois não conseguia
acreditar que Francis tivesse consentido em tal coisa.
O olhar de Antoine agitou-se.
— Ele a deixou sob meus cuidados — disse-lhe evasivamente. — E
concordou em que me tornasse seu guardião legal.
A garota aproveitou-se deste comentário.
— Então, por que você não se satisfaz em ser apenas meu guardião?
— Porque quando você completasse dezoito anos se tornaria
independente outra vez.
— Meu pai confiou em você — disse ela em tom de reprovação.
— E não estou correspondendo à confiança dele? E numa grande
medida? — Antoine também falava com reprovação na voz. — Estou lhe
oferecendo minha casa, minha proteção, até mesmo meu nome, embora você
não possa usá-lo profissionalmente, assim como minha cama, que eu acho
que é o que você teme.
— Sim, temo — admitiu ela, sentindo-se corar. Então, receosa de que
tivesse sido rude, completou rapidamente: — Quero dizer, o senhor... eu... o
senhor podia ser meu pai!
— Nem tanto — replicou ele, pois aquilo afetava sua vaidade. — Mas
você pode considerar-me como seu pai — afirmou com arrogância.
Percebendo uma saída, Sylvie perguntou rapidamente:
— Você não poderia me adotar?
— Isso também não teria validade depois que você completasse dezoito
anos.
— É verdade. — Ela moveu os dedos sobre a borda de seu copo de
vinho, até que ele colocou a mão sobre a dela, para acalmá-la.
— Vamos, Sylvie, você é filha de um jogador. Não quer apostar em
mim? Estou preparado.para apostar em você. Estamos jogando alto e, se
ganharmos, a recompensa será infinita.
Sylvie sentia sua mão tremer em contato com a dele.
— Você tem mãos de artista — observou Antoine.
Sylvie olhou para sua mão, que se encontrava sob a dele. Antoine
também possuía dedos longos; suas mãos eram bem-feitas e fortes; eram
mãos que apertavam, não que seguravam.
— Fico muito agradecida por sua proposta, o senhor na verdade é uma
pessoa muito boa, pois deseja fazer muito por mim. — Os lábios de Antoine
comprimiram-se sardonicamente, embora um arrependia mento muito leve
brilhasse em seus olhos. — Acho porém que não devo aceitar tamanho
sacrifício. — Ele arqueou uma sobrancelha em sinal de surpresa. — Quero
dizer, isso vai impedir que o senhor faça muitas coisas, não? Se eu me ligar
definitivamente ao senhor, isso o impedirá de se casar com outra pessoa...
como Marguerite.
— Minha cara, não tenho o menor desejo de me casar com alguém
como a srta. d'Ablay. Além disso... — sorriu — não vejo necessidade.
Um leve ressentimento tomou conta dela. Ele poderia continuar a ter
suas experiências amorosas, enquanto para ela tudo seria proibido.
Instantaneamente, Sylvie rejeitou esses pensamentos, pois viveria somente
para a dança.
— Muito bem, senhor — disse ela calmamente. — Aceito sua proposta.
Antoine baixou os olhos, tentando ocultar o brilho de triunfo que
surgira neles.
— Isso é uma promessa! Você costuma cumprir o que promete?
Ela levantou a cabeça com orgulho.
— Sim. Você pode considerar papai e eu como duas pessoas sem
recursos, mas fique sabendo que nunca faltamos com nossa palavra.
Antoine observou-a, imaginando o rico potencial que tinha aquela
garota.
— Muito bem! — disse ele com satisfação. Levantando a mão fria da
garota, tocou-lhe a ponta dos dedos com os lábios. — Para selar a união —
disse ele.
Um tremor percorreu a corpo de Sylvie com aquele contato. Sem
qualquer motivo ou explicação, subitamente sentiu que odiava Marguerite
d'Ablay...

CAPITULO III

Sylvie não viu Antoine por vários dias. Madame Lescaut deixou
escapar que ele estava passando os dias de Carnaval com Marguerite
d'Ablay. Seu jantar com ele parecia agora um sonho. De fato ela começou a
se perguntar se realmente não sonhara aquilo tudo, pois não havia nada em
sua rotina diária que sugerisse que Antoine tivesse qualquer piano em
relação a seu futuro, que fosse profissional ou sentimental, excetuando a
grande remessa de livros que chegara, versando sobre uma extensa
variedade de assuntos.
Sylvie achava monótona a leitura daqueles volumes. E teria se
rebelado contra seu encarceramento se não fosse por duas coisas. Uma
delas era que temia que qualquer provocação de sua parte poderia colocar
em risco seu cachorro, que era a única criatura que lhe fazia
verdadeiramente alguma companhia, e a outra era o comparecimento às
apresentações do corpo de baile todas as noites, o que lhe era permitido
desde que se comportasse bem.
Sylvie vivia em função das noites quando, usando seu vestido bordo,
era escoltada por madame Lescaut até o camarote que lhes era reservado.
Do seu camarote pouco visível, onde as luzes nunca eram acesas,
Sylvie também podia observar a platéia durante os intervalos. Uma noite viu
Antoine acompanhando a encantadora Marguerite d'Ablay. Ele parecia um
príncipe e era muito mais elegante do que muitos príncipes verdadeiros,
enquanto Marguerite estava deslumbrante, num fabuloso longo preto,
bordado com lantejoulas prateadas.
Para Sylvie eles não eram mais reais do que os personagens
apresentados nos bailados. Não conversara mais com Antoine desde que ele
a levara para jantar; suas instruções vinham sempre através de madame
Lescaut. Antoine não olhou uma só vez em sua direção, embora devesse
saber que ela se encontrava ali, mas parecia inteiramente absorvido por sua
companheira.
As cortinas foram levantadas e Sylvie esqueceu-se deles, voltando sua
atenção para o palco, onde estava sendo apresentado "A Bela Adormecida".
Quando as lâmpadas iluminaram a platéia para o intervalo, Sylvie despertou
de seu mundo de devaneios ao escutar uma voz em seu ouvido:
— Está gostando da apresentação, minha querida?
Ela não havia percebido a entrada de Antoine, pois ele não fizera
ruído. Madame Lescaut, depois de pedir licença, saiu do camarote. Ele ficou
de costas para o auditório iluminado e sua sombra se projetava sobre a
garota. Sylvie estremeceu involuntariamente; aquilo parecia simbólico
demais!
— É adorável, senhor — sussurrou ela. — Se algum dia eu puder
dançar como aquela bailarina... — A voz morreu em sua garganta.
— Leonora é razoável — disse ele criticamente. — Mas ela não tem
magia. É como um pônei tentando ser um cavalo de corrida.
— Como pode dizer isso? — perguntou a garota, chocada. — Eu a
achei maravilhosa!
Antoine moveu-se para que as lâmpadas do auditório iluminassem a
face pálida da garota e, colocando a mão sob o queixo de Sylvie, fez com que
ela o encarasse. As luzes tornavam os cabelos dele dourados, mas seus olhos
estavam sombreados. Sylvie descobriu que não queria encontrá-los e baixou
as pálpebras.
— Pois bem, garota, eu acho que você tem magia — disse ele com
delicadeza. — Você está estudando os livros que lhe mandei?
— Eles são muito enfadonhos, senhor.
— Perseverança, menina, e eles lhe parecerão menos enfadonhos. Você
deve se tornar uma mulher culta, além de uma excelente bailarina. Minha
mãe era extraordinariamente erudita.
O sinal tocou e ele baixou a mão.
— Boa noite, Sylvie — disse com formalidade e saiu. Madame Lescaut
retomou seu lugar quando as luzes estavam se apagando.
Sylvie esfregou o queixo onde Antoine a tocara, sentindo um arrepio
cheio de pressentimentos. Toda a ênfase que Antoine dava à cultura devia
ter algo a ver com a posição que teria como sua esposa. Mas ele tinha dito
que o casamento era apenas uma formalidade necessária. E a erudição,
também não era?
Na noite seguinte, viu Tom Travers na platéia, usando um fino paletó
que ele devia ter alugado, acompanhado por outro rapaz. Sylvie sentiu-se
ridiculamente feliz por ele não ter convidado uma garota ao usar os
ingressos que Antoine lhe dera.
No intervalo, virou-se para madame Lescaut.
— Madame, olhe meu amigo... Eu quero falar... falar com ele.
Compreendeu?
Ela compreendeu e manifestou desagrado. Sylvie tentou explicar que
Antoine o conhecia e que ele mesmo lhe dera as entradas.
— Por que não posso ir cumprimentá-lo? — insistiu a garota.
— O sr. Antoine ficará furioso...
— Oh, bobagem! — exclamou Sylvie e saiu do camarote correndo. Em
segundos, alcançou Tom.
— Tom! Estou tão contente por vê-lo outra vez!
Ele encarou-a sem reconhecê-la, e ela teve que lembrar-lhe a aventura
que haviam vivido juntos.
— Desculpe-me — disse ele, levantando-se. — Você está tão diferente
que não a conheci. Alec, esta é a garota de quem lhe falei... — Alec
cumprimentou-a. — Como vai o cachorro?
— Você também não o reconheceria; ele agora parece mesmo um
cachorro. É marrom e branco e dei-lhe o nome de António, Toni para ficar
mais fácil. — Dera aquele nome ao animal como uma injúria a Antoine.
— Mas isso é maravilhoso! — Tom estava obviamente encantado em
vê-la. — Pensei muito em você. Tudo me pareceu tão estranho... — Ele
corou. — Quero dizer...
— Eu sei exatamente o que você quer dizer. — A garota deu uma
risadinha. — E tudo é mesmo muito estranho. Olhe, tenho que ir agora...
Os espectadores estavam retornando a seus lugares.
— Mas quando posso vê-la outra vez? Ela pensou um pouco.
— Todas as tardes eu levo Toni a passear. Amanhã, em Boulengrins,
por volta das três horas. Até lá.
Na tarde seguinte, impassível em sua saia e jaqueta brancas, com Toni
preso numa coleira, Sylvie caminhava através do Boulengrins, o jardim
solene com árvores tropicais e cactos que ficava em frente ao cassino.
Tom não a reconheceu outra vez, mas ela o viu.
— Olá, Tom!
— Mas, senhorita... — protestou madame Lescaut.
Toni agitou-se, querendo investigar o recém-chegado.
— Minha dama de companhia, madame Lescaut — disse Sylvie de
maneira maldosa, apontando sua companheira. — Ela parece pensar que
você tem segundas intenções em relação a mim.
Tom riu e quando viu Toni perguntou:
— Deus do céu, é o mesmo cachorro?
O cachorro reconheceu Tom e saltava ao redor do rapaz, latindo com
excitação, até que pegou a ponta da perna das calças dele e ficou puxando
sem parar.
— Pare com isso, Toni! — gritou a garota, tentando fazê-lo soltar o
tecido. — Olhe só, rasgou um pouquinho.
— Não tem importância — disse Tom apressadamente. — Foi uma
coisinha de nada.
— Ele só estava querendo brincar. Vamos sentar. — Foram até um
banco. — Diga-me o que tem acontecido no mundo desde que salvamos
Toni, pois estou enclausurada desde então.
Como ela estava falando inglês, a maior parte da conversa foi
incompreensível para a velha senhora. Ela seguiu Sylvie, já que não tinha
outra opção, e sentou-se na ponta do banco, com um ar de censura.
— Vai ficar mais tempo por aqui?
— Não, já estou de partida. Foi ótimo conhecer este lugar e o Carnaval
em Nice foi maravilhoso. Você o viu?
Ela suspirou.
— Tais frivolidades não são para mim. Tenho que trabalhar.
Tom descreveu-lhe a festa com muitos detalhes e depois passou a falar
de sua própria vida. Era um agente de seguros, morava com seus pais em
Londres e era solteiro.
— É provável que nunca mais nos encontremos — disse ele com
tristeza. — A menos que você vá para a Inglaterra.
— Acredito que minha próxima residência seja Paris.
— Não é muito longe — observou ele, esperançoso.
Madame Lescaut, num francês bastante fácil, começou a dizer a Sylvie
que já estava na hora de voltarem ao apartamento.
— O que você acha de mandar-me um cartão postal avisando-me que
chegou são e salvo? — sugeriu Sylvie. — Sabe, eu nunca recebo
correspondência. — Ainda não tivera notícia alguma de seu pai.
— Farei mais do que isso, vou lhe mandar uma carta.
A garota ficou encantada e prometeu que lhe mandaria seu endereço
em Paris se soubesse o dele.
Tom escreveu seu endereço nas costas de um cartão e lhe entregou.
— Se algum dia você precisar de ajuda, pequena Sylvie, não hesite em
entrar em contato comigo.
— Obrigada — disse ela, agradecida. — É bom saber que arrumei um
amigo.
— Será que algum dia a verei dançar?
— Talvez, mas parece que levará anos até que eu faça uma
apresentação em público. Eu nem mesmo comecei a treinar e ainda tenho
muito o que aprender, mas eu lhe escreverei contando como estou.
— Ficarei esperando notícias suas.
Separaram-se com tristeza. Sylvie, abatida por ter que voltar ao
apartamento com a emburrada madame Lescaut, e Tom, romanticamente
excitado com a perspectiva de iniciar uma correspondência com uma
aspirante a bailarina.
Alguns dias depois a garota recebeu notícias de seu pai. Uma carta
exuberante, repleta de esperanças. Ele já chegara ao Brasil, mas ainda não
podia dar-lhe um endereço, pois ele e Pedro ainda não tinham se fixado, mas
a avisaria assim que estivessem devidamente instalados. Naquele imenso
país havia muitas oportunidades, mas ele não mencionava nada de concreto,
e a garota suspirou enquanto colocava a carta de volta no envelope. Por
tantas vezes no passado os planos de Francis não tinham dado em nada, e
ele estava tão longe!
Sentiu-se deprimida. Suas próprias esperanças estavam se
enfraquecendo e, desde que Tom fora embora, não tinha com quem
conversar. Quando madame Lescaut entrou na sala onde tomava seu café da
manhã, Sylvie percebeu quanto detestava a velha senhora e presumiu que
ela viera avisar-lhe que estava na hora de começar suas leituras diárias.
Olhou para o dia ensolarado e estava prestes a declarar que iria sair,
não importava o que ela dissesse, e que o sr. de Mericourt podia ir para o
inferno, quando a velha lhe disse que ia acompanhá-la até o salão de ensaios
do teatro.
Imediatamente Sylvie se animou, esqueceu-se da ansiedade em
relação ao pai, de sua depressão, e levantou-se com vivacidade para seguir
sua dama de companhia.
Deram-lhe malha e sapatilhas e, quando Sylvie se vestiu e entrou na
sala, viu que estava completamente vazia. Encantada, correu até a barra e
começou a exercitar-se. Era maravilhoso praticar novamente, mas seu corpo
se ressentia da falta de treino. Deixando a barra, fez uma série de piruetas
ao redor da sala, parando, quase sem fôlego, ao ver dois homens que a
observavam.
Um era Antoine, alto e forte, vestindo calças grossas e um pulôver
preto; o outro, um homem baixo e de cabelos vermelhos, vestindo uma
malha de ginástica preta. Era o professor.
— Muito bem, Sylvie — disse Antoine, observando o respirar acelerado
da garota com desagrado. — Já é tempo de você começar a trabalhar.
— Não vejo nada melhor a fazer — disse ela alegremente.
— Então vamos começar.
Ela trabalhou uma hora, durante a qual o professor lhe pediu que
fizesse alguns passos. Antoine era, como havia pensado, extremamente
crítico; cada movimento tinha que ser perfeito. A garota ficou surpresa ao
descobrir que, embora ele não fosse bailarino, era exímio conhecedor das
técnicas e podia, quando necessário, demonstrar os passos.
Depois de uma hora, tendo combinado para que ela tivesse aulas de
dança todas as manhãs, ele saiu. Não lhe dirigiu nenhuma palavra de elogio
ou de encorajamento.
Desconsolada, Sylvie disse ao professor:
— Acho que não fui muito bem. Eu não poderia praticar sozinha?
— Não, senhorita — disse ele com delicadeza, num inglês com forte
sotaque. — Você não deve forçar demais, nem se desesperar. Apesar de não
estar em forma, você teve bons ensinamentos e, a menos que eu esteja muito
enganado, você será uma estrela.
Sylvie saiu do teatro sentindo-se flutuar.
O Balé Cosmopolite logo iria embora de Monte Carlo, rumo a Paris,
onde ficava sua sede. Havia uma temporada marcada num dos principais
teatros daquela capital e, como a maior parte dos membros da companhia
era parisiense, estavam esperando ansiosamente pela volta ao lar.
Sylvie encarava sua partida com sentimentos confusos. Não recebera
mais notícias de seu pai e, quando tivessem saído do Principado, ele não
saberia mais seu endereço. O sr. de Mericourt lhe disse que em Paris ela
começaria a trabalhar com seriedade, e Sylvie estava ansiosa para que isso
se tornasse realidade o mais breve possível. Monte Carlo tinha se tornado
familiar e ela estremeceu um pouco quando pensou que ia realmente deixar
aquele lugar tão simpático, para uma outra etapa de sua vida, que não sabia
prever se seria feliz, ou não.
Entretanto, Toni a compensaria e, logo que estivesse instalada em sua
nova residência, escreveria para Tom Travers. Pensava nele frequentemente
e esperava que mantivesse sua palavra e respondesse seu cartão.
Dois dias antes de partirem, quando voltavam da penúltima
apresentação do balé, madame Lescaut disse-lhe que Antoine viria buscá-la
às nove horas da manhã seguinte.
— Para quê? — perguntou Sylvie, um pouco apreensiva.
A velha encolheu os ombros.
— Ele não costuma fazer confidências para mim. Disse-me apenas que
a queria pronta na hora exata e sem o cachorro. Por favor, vista-se
corretamente — continuou. — E use seu chapéu.
— Meu chapéu? Os óculos escuros não bastam?
— Não, não se fica completamente vestida se não se usar chapéu e,
pelo que entendi, essa é uma ocasião importante.
Na manhã seguinte, vestiu um conjunto de saia e blusa de linho
branco e colocou o chapéu, que ela achava que não melhorava sua aparência
em nada. Parecia uma menininha pretensiosa, arrumada para um baile de
adolescentes.
— Isto não é para mim — suspirou, pensando com saudades na
liberdade que seus jeans lhe proporcionavam; mas eram um tipo de roupa
que, tinham-lhe dito, Antoine abominava.
Foi para a sala às nove horas e descobriu que o sr. de Mericourt já
havia chegado. Parou na soleira da porta, assaltada por uma leve sensação
de inquietude. O sr. de Mericourt agora parecia o empresário rigoroso. Ela se
perguntava se cometera algum erro.
— Bom dia, senhorita — cumprimentou-a, fitando-a criticamente.
— Bom dia, senhor — respondeu ela. — Não estou atrasada, o relógio
acabou de bater nove horas — disse enquanto entrava na sala.
Ele sorriu e instantaneamente pareceu mais humano.
— Uma pontualidade invejável nas mulheres. Então, vamos?
— Para onde vamos?
— Para Menton. Precisamos cuidar de uma pequena formalidade antes
de partirmos para Paris. Já foi tudo combinado e nós iremos até o cartório.
— O cartório? — perguntou ela, arqueando as sobrancelhas. — Em
Menton? Tem algo a ver com o meu passaporte?
— Indiretamente. Você esqueceu das condições de nosso acordo?
Sylvie caminhava em direção à porta, mas parou, virando-se
lentamente para encará-lo.
Ela não se esquecera do acordo, mas afastara-o de sua mente como
algo que só fosse acontecer num futuro distante. Involuntariamente,
exclamou:
— Oh, não, ainda não!
— Sim, Sylvie, deve ser feito antes de irmos embora de Monte Carlo.
Ela meneou a cabeça e começou a alisar a borda da blusa com dedos
nervosos.
— Eu não esperava que fosse tão logo — gaguejou.
— Tem que ser logo. Você não tem contrato e nenhuma posição legal,
até que o casamento se realize. É para sua proteção, Sylvie; unindo-se a
mim você estará garantida.
Sylvie sentia as batidas de seu coração aceleradas e ficara bastante
pálida. Agora que chegara o momento, o que ela mais desejava era recusar a
proposta que ele lhe havia feito.
— Não há outra maneira? — perguntou ela, cheia de desespero. — O
senhor quer realmente... casar-se comigo?
— Nós já conversamos sobre isso, quando a levei para jantar —
lembrou-a. — Precisamos discutir novamente? — Então, com voz mais
suave, perguntou: — Por que você está se esquivando agora? Não sei por que
está tão temerosa, é só assinar os papéis que serão o nosso contrato, e fim.
Depois de hoje, como eu lhe disse, pode esquecer-se de que casou comigo.
— Então eu queria que já fosse amanhã — disse ela com tristeza.
— Quanto a isso, eu também — concordou ele.
— Oh, está bem. Já que insiste! Você deve imaginar que minha
assinatura em um pedaço de papel evitará que eu faça o que minha mãe e
Gianetta Albanesi fizeram, então vou satisfazê-lo, embora esta seja uma
preocupação totalmente desnecessária. Sei muito bem o que quero, e optei
por dançar.
Saiu da sala e Antoine seguiu-a, reprimindo um desejo de rir,
tamanha era a ira estampada nos olhos da garota. Ela possuía um
temperamento forte e não seria fácil domá-la. O processo prometia ser
divertido.
O Mercedes Benz estava estacionado em frente à casa e ele apressou-
se em abrir a porta do veículo para ela, com um sorriso irônico e superior.
Se algum dia ele viesse a querer algo mais de Sylvie, estava certo de
que conseguiria. Nenhuma mulher que ele já desejara o havia rejeitado, só
que Sylvie não era uma mulher ainda. A garota olhou para o rosto muito
bonito de seu acompanhante e notou o sorriso que Antoine ainda mantinha.
Será que estava pensando que ela acabaria se apaixonando por ele? Sem
dúvida, seria algo muito absurdo, impossível. Se algum dia se apaixonasse, o
que achava muito improvável, seria com certeza por algum bailarino com
quem estivesse ensaiando um bailado, ou então por algum jovem simpático
como Tom Travers. Antoine era muito arrogante e seguro para seu gosto e
não conseguia despertar em seu íntimo nenhuma sensação maior, a não ser
antagonismo e... medo.
Por ser muito conhecido em Nice e em Mônaco, Antoine tinha
arranjado para que os papéis fossem assinados em Menton.
Virando a avenida principal da cidade, que já ficava na Itália, Antoine
parou o carro num local sombreado por palmeiras, um quarteirão antes do
cartório. Em silêncio abriu a porta para Sylvie; trancou o carro e,
vagarosamente, dirigiram-se para o local onde assinariam o contrato.
Sylvie se sentia como num sonho. As únicas coisas familiares para tia
eram o azul dourado do Mediterrâneo e a luminosidade do céu. O cartório
era um edifício vermelho e ocre de um só andar. Sylvie usava suas roupas de
todo dia, exceto pelo chapéu, e não levava um buquê de flores, nem Antoine
usava uma flor na lapela.
A sala onde se realizavam os. casamentos tinha sido decorada por um
artista famoso. Em uma das paredes havia um afresco representando uma
cena de casamento, onde as figuras estavam vestidas com roupas orientais.
O jovem casal retratado estava partindo para a lua-de-mel, nas costas de um
cavalo, enquanto seus amigos e parentes lhes ofereciam presentes.
Sylvie olhou para a pintura com curiosidade, pensando que não lhe
tinham oferecido nem lua-de-mel, nem qualquer presente. Olhou para sua
saia justa, que parecia pertencer mais a uma estudante do que a uma noiva.
Francis podia estar ali, pensou de repente, para levá-la embora. Ela não
tinha amigos naquela sala, apenas o homenzinho seco que ia presidir a
cerimônia atrás de sua imensa escrivaninha, as duas testemunhas
anônimas, e aquele arrogante estranho a seu lado que, ao invés de fitá-la
com olhos apaixonados de noivo, ansiava por ver tudo aquilo finalizado o
mais breve possível.
Percebendo a importância do que estava prestes a fazer, murmurou
com lábios trêmulos:
— Senhor, não posso!
Antoine abraçou-a, pressionando-a firmemente. Com aquele contato,
uma sensação indescritível percorreu seu corpo e Sylvie sentiu-se desfalecer.
Havia algo de profundamente rude naquele abraço, nada de terno. Com os
lábios a poucos centímetros do ouvido de Sylvie, ele sussurrou:
— Você deve. Ê tarde demais para voltar atrás.
Virando-se para o escrivão, ele disse com um sorriso:
— Minha noiva está emocionada. Ê por causa do momento. É uma
ocasião muito solene, o senhor entende...
Apesar do pânico, Sylvie teve que reprimir com esforço um desejo
histérico de gargalhar. Solenidade da ocasião... como ele podia ser tão
cínico?
Havia um vaso cheio de lírios, colocado sobre a escrivaninha, para dar
um ar festivo às cerimônias. Mas por que haviam escolhido lírios?,
perguntou-se estupidamente. Rosas teriam sido melhor, pois lírios eram
mais adequados para um funeral. O perfume das flores pesava
estranhamente no ar e ela continuou a olhá-las, enquanto o velhinho dava
início à cerimônia.
As flores e o abraço possessivo de Antoine eram as duas únicas coisas
de que ela tinha consciência enquanto repetia, como um papagaio, as
palavras que lhe diziam, que, ditas em francês, pareciam não ter significado.
Sylvie assinou seu nome onde lhe mandaram. O escrivão
cumprimentou-os e, proferindo algumas palavras de congratulações, olhou-
os com expectativa. Antoine beijou-a e o toque de seus lábios deixou-a
trêmula. Ela estava despreparada para aquele beijo, mas o escrivão já o
esperava. Aquele ato, que deveria ser de amor, só acontecera por causa do
velhinho e das duas outras pessoas. O escrivão estava intrigado: o casal
parecia meio estranho: o homem já maduro e elegante e a garota tão jovem e
obviamente angustiada.
Antoine fez com que ela o abraçasse também, colocando o braço dela
em volta de sua cintura e, ainda entorpecida, ela deixou que ele a levasse
para fora da sala. Sylvie estava extremamente pálida. Antoine fitou-a
ansioso, temendo que ela fosse desmaiar.
— Já está tudo acabado — disse ele encorajadoramente, enquanto
saíam para a luz do sol. — Agora você já pode esquecer o casamento e acho
melhor que beba alguma coisa.
Sylvie apoiou-se em seu braço.
— Sinto-me um pouco trêmula — admitiu. — Não estava realmente
preparada... —- Ela não estivera preparada para o beijo de Antoine e para o
efeito que lhe causara. — Quero dizer... os lírios estavam exalando um cheiro
tão forte...
— Lírios? Não vi nenhum lírio.
— Você deve tê-los visto, estavam sobre a escrivaninha. Aquelas flores
me fizeram pensar em morte.
— Você está sendo mórbida. Precisa mesmo beber algo.
Ele a soltou quando chegaram à rua, mas voltou a tocá-la, pegando
em seu braço, quando entraram num café.
O vinho tinto trouxe a cor de volta às faces de Sylvie e os estranhos
momentos passados no cartório começaram a ser esquecidos. Antoine bebia
seu drinque com uma expressão de alívio. Ele sentou no lado oposto da
mesinha e olhava distraidamente para um cartaz de seu próprio balé.
Quando terminou de beber o vinho, Sylvie colocou o copo de volta à
mesa com tanta força que chamou a atenção de Antoine.
— Está se sentindo melhor agora?
— Sim, senhor, sou eu mesma novamente.
— Estou vendo que sim — comentou ele, observando o brilho travesso
em seus olhos. — O que a está divertindo?
Ela inclinou a cabeça para indicar um casal ao lado deles. Antoine
fitou-o e sorriu sardonicamente:
— É o amor! — disse ele. Estreitou os olhos e tornou-se atento
enquanto fitava a garota. — Está com inveja?
— Não. Se você me olhasse daquela maneira eu daria risada. — Mas
ela desejava que ele o fizesse, isso seria mais agradável para sua vaidade do
que a indiferença que Antoine demonstrava.
— Fique certa de que nunca irei embaraçá-la — disse ele. — E agora,
querida, antes de irmos embora, é melhor que eu dê um jeito nisso.
Pegou a mão da garota e gentilmente removeu a aliança. Sylvie teve
uma estranha sensação de perda.
— Posso mantê-la comigo? — ela perguntou.
— Por quê?
— Oh, não sei... bem, é apenas uma recordação — disse. Ela nunca
possuíra um anel antes e achava que era muita maldade da parte de Antoine
querer tirá-lo dela.
— Eu acho que não há nada de sentimental quanto ao que aconteceu
no cartório — disse ele secamente.
— Não há mesmo — concordou. — Apenas assinamos o nosso... nosso
contrato, mas eu quero preservar a aliança. Afinal de contas, ela é minha,
você a colocou em meu dedo.
Antoine fitou-a, com a dúvida estampada no olhar.
— Se eu lhe der, você me prometerá nunca usá-la sem a minha
permissão?
— Ê claro, não tenho intenção de usá-la... jamais — disse ela
firmemente, pois se sentia um pouco magoada pela resistência que Antoine
demonstrava em dar-lhe a aliança. — Quero apenas ficar com ela, isso é
tudo.
Com relutância, Antoine depositou a aliança sobre a mão estendida da
garota, que rapidamente a guardou na bolsa.
— Já está na hora de irmos embora. Você tem que praticar e eu tenho
um compromisso.
Ela se levantou obedientemente, com os olhos viajando para a colina
sobre a qual ficava a parte velha da cidade, coberta de ciprestes, e pensou no
jovem casal da pintura, que partia para a lua-de-mel. Antoine podia ao
menos ter-lhe dedicado uma hora que fosse, ter-lhe oferecido um almoço.
Aquele era o dia de seu casamento e nunca teria outro em sua vida.
— Suponho que num casamento de conveniência não exista
celebração, não é? — disse ela. — Mas os encontros de negócios
normalmente não culminam com um almoço?
— Você espera que eu a leve para almoçar?
— Eu não espero nada, mas acho que você trata muito mal seu
cliente. Você nem mesmo me deu um buquê de flores.
Ela estava preparada para enfrentar a raiva de Antoine mas, para sua
surpresa, ele riu.
— Pobrezinha! Que falta de delicadeza de minha parte. Para dizer a
verdade eu não pensei nisso. Esqueci-me de que você é uma mulher e que
gostaria dessas coisas. Mas vou consertar isto. Espere aqui enquanto vou
telefonar para cancelar meu compromisso. Depois vou levá-la até as colinas
e almoçaremos em algum lugar. Isto lhe agrada?
— Isto servirá para atenuar sua brutalidade.
Ele pareceu sobressaltado.
— Minha o quê?
— A sua coerção, eu diria.
Ele riu mais uma vez.
— Eu não esperava que você vacilasse na última hora. Não se
preocupe, cancelarei meu compromisso e iremos nos divertir.
Sylvie sentou-se novamente com um sorriso de tristeza nos lábios. No
dia de seu casamento esquecera-se de que ela era uma mulher. O que era
então para Antoine? Uma criança? Uma pessoa sem importância? Resolveu
que não queria ser uma mulher, caso isto implicasse receber aqueles beijos
perturbadores, mas era improvável que isso acontecesse. Ele podia guardá-
los para Marguerite. De repente, percebeu que não gostava de imaginar
Antoine beijando Marguerite. Caso começasse a sentir ciúmes, sua vida se
complicaria demais.

CAPITULO IV

Para sair de Menton, Antoine tomou a mais alta das três estradas que
cortavam os penhascos em direção a Nice.
Passaram por antigas cidadezinhas que pareciam fazer parte das
rochas. Algum tempo depois, Antoine parou o carro e sugeriu que eles
descessem para caminhar um pouco.
Sylvie estava contente pela oportunidade de esticar as pernas e saltou
do carro com alegria. Antoine levou-a a subir uma ladeira de cujo topo,
garantiu, teriam uma bela vista. Era uma subida difícil, mas Sylvie movia-se
como uma corça e ficou surpresa com a agilidade de Antoine.
Com a camisa aberta no peito, as mangas arregaçadas e os cabelos
desarranjados pela brisa do mar, sua figura era muito diferente do
cavalheiro formal com quem se habituara. Ele ficou parecido com Tom
Travers, pensou Sylvie espantada, agora que não tinha mais medo dele. Será
que encontrara em seu marido o companheiro que tanto almejara? Mas isto
era bom demais para ser verdade; quando a tarde chegasse ao fim, voltaria
novamente a ser o empresário.
Chegaram a uma área nivelada, no topo do penhasco, coberta com
uma grama curta e com prematuras flores de primavera. O ar era mais
cortante e mais frio do que embaixo.
— O mistral sopra nesta área — comentou Antoine. — Lá embaixo, a
costa fica protegida dele pelos penhascos.
— Já enfrentei o mistral na Provence, é um vento muito cortante, faz
qualquer um sentir medo — observou, tentando dar continuação à conversa.
Sylvie tirou sua jaqueta de linho e olhou com tristeza para suas meias
cheias de furos.
— Oh, céus, estragaram-se! — exclamou.
Tirou as meias e deliciou-se com o contato da grama em seus pés nus.
Viu que Antoine estava sentado sobre uma pedra, fumando um dos cigarros
pretos russos, olhando distraidamente para o mar. Na altura em que se
encontravam, eles pareciam estar suspensos entre a terra e o céu.
Sylvie colocou os sapatos e a jaqueta no chão, estendendo os braços
para o sol e o ar perfumado. Automaticamente seus pés começaram a formar
passos de balé. Logo estava dançando, esquecida de seu companheiro, que
tinha se virado para observá-la. Sylvie dançava por puro prazer e alegria.
Havia se esquecido de que não estava sozinha até que Antoine começou a
aplaudi-la. Sylvie sentou-se na grama, ao lado dele.
— Minha saia é comprida demais — disse ela.
A voz de Antoine trouxe-a de volta à realidade. Sylvie lembrou-se de
que ele era seu patrão e professor e sentou-se com a expressão desanimada.
— Oh, senhor, tinha me esquecido...
— Esquecido o quê? Que eu sou seu patrão? Mas hoje nós estamos
fora da escola e seu show foi uma expressão espontânea de juventude e
alegria, além de um prazer para os olhos.
— Como quando a primeira vez que me viu?
— Sob o luar? Ah, o clima daquela noite era totalmente diferente. Você
estava às portas da morte, era um ser de outro mundo, a rainha dos cisnes.
— Ele amassou o cigarro na pedra a seu lado. Alguma lembrança trouxera
uma expressão sombria a sua face. — Existem outras peças de balés
inspiradas em histórias dos cisnes, além de "O Lago dos Cisnes" —
comentou ele.
Percebendo a sombra que passava pelos olhos de seu acompanhante,
a garota murmurou:
— Desculpe-me.
— Por que, querida?
— Porque, de alguma forma, fiz com que lembrasse de algo muito
doloroso e acabei estragando o seu dia.
Ele fitou-a maravilhado.
— Você é estranhamente perspicaz, menina. Vejo que terei que me
cuidar.
Querendo penetrar no íntimo daquele homem, para descobrir que
espécie de criatura vivia atrás daquela aparência impassível, Sylvie
sussurrou:
— Terá que se cuidar?
— Sylvie, existe uma grande diferença de idade entre nós. Quando
você for mais velha, eu talvez venha a contar-lhe meus problemas, minhas
experiência, embora nunca, até hoje, tenha precisado de um confidente.
Atualmente não desejo ofender sua inocência com revelações um tanto
pesadas para sua idade.
— Você está falando de uma maneira muito enigmática. Já não sou
mais criança.
— Para mim você ainda é.
Sylvie desviou os olhos para a ladeira banhada pelo sol. Por um
momento ele havia sido um companheiro, mas agora enfatizava a distância
que existia entre eles, colocando-a de volta ao seu lugar. Mas qual era seu
lugar? Naquela manhã ele se casara com ela, embora tivesse insistido que
não queria torná-la sua esposa de fato. Na verdade, ela era uma pessoa
sozinha. Reconheceu que estava sendo incoerente, mas seus sentimentos em
relação a ele eram muito complexos. Queria a amizade e a aprovação
incondicional daquele homem, mas não seu amor.
Observando as expressões diferentes que se formavam e desapareciam
muito rapidamente na face da garota, Antoine comentou:
— Agora você está ficando triste. Talvez precise se alimentar. Mas
ainda é um pouco cedo para almoçarmos.
— Oh, não vamos ainda! — exclamou ela. — Este lugar é tão
encantador!
— Desculpe-me, o ar fresco está me dando sono. Tenho dormido tarde
há várias noites.
— Então por que não tira uma soneca? — perguntou ela ansiosa,
percebendo que, se ele dormisse, poderia mantê-lo por mais algum tempo a
seu lado. — Quando chegar a hora do almoço, eu o acordo.
— Você é muito gentil, mas o que ficará fazendo, enquanto durmo?
Dormirá também? Você não parece estar com sono.
— Serei seu travesseiro. Costumava fazer isto com papai quando
caminhávamos muito e ele se sentia cansado. Eu... gosto de ser útil. —
Pegou sua jaqueta e colocou-a sobre os joelhos, separando-os levemente. —
Venha.
Ele fitou-a estranhamente e Sylvie pensou que ele recusaria. Desejava
segurar aquela cabeça altiva em seu colo.
Então, para o total encantamento de Sylvie, Antoine desceu da pedra
onde estivera sentado e deitou-se na grama, repousando a cabeça sobre os
joelhos dela. Fitando-a com um brilho nos olhos, ele disse zombeteiramente:
— Você está levando seu papel de esposa a sério, não é?
— Não é isso — replicou ela. — Estou apenas pagando adiantado o
almoço que você vai me oferecer logo mais.
Ele riu ao ouvir as palavras da garota.
— É isto o que chamo de felicidade — murmurou, fechando os olhos.
Alguns momentos depois, adormeceu.
O tempo passou. Sylvie começou a sentir-se contraída e com um
pouco de frio, por ficar na mesma posição por um bom tempo. Quando já
estava prestes a acordá-lo, Antoine moveu-se e abriu os olhos.
Por um segundo ele fitou-a com uma expressão de encantamento, que
fez com que o coração de Sylvie batesse aceleradamente.
— Menella!.— exclamou. — Finalmente encontrei-a! — Ao piscar os
olhos, a consciência voltou-lhe e Antoine sentou-se abruptamente. — Tive
um sonho!
Sylvie levantou-se, flexionando as pernas e pegando sua jaqueta. Ele
observou os exercícios que a garota fazia, depois olhou para o relógio.
— Você não devia ter-me deixado dormir tanto tempo. — Começou a
massagear os joelhos dela com dedos experientes.
— Não foi nada — disse ela, sentindo-se corar. — Você amava minha
mãe?
Antoine parou de massageá-la, dando-lhe um leve tapa na perna,
enquanto parecia pensar.
— Acho que sim, e muito. René também a amava, talvez até mais do
que eu. Você sabe, os adolescentes são muito suscetíveis. — Antoine
procurava por seus cigarros.
— Então, se você tivesse casado com ela, eu poderia ser sua filha.
Aquelas palavras pareceram não agradá-lo muito.
— Devo dizer que, naquela época, eu não estava preparado para casar-
me — disse ele com frieza. — E Menella era muito mais velha do que eu. —
Acendeu seu cigarro. — Tive que esperar pela filha dela.
— Não acredito que seus sentimentos por ela fossem platônicos —
disse Sylvie astutamente.
Antoine soprou a fumaça de seu cigarro em direção à garota.
— Sylvie, suas suposições são absurdas e um pouco impertinentes.
Por que colocou essas idéias malucas na cabeça?
— Acho que foi porque quando você estava dormindo, parecia muito
mais jovem, e também porque, quando você acordou, disse o nome dela.
— Disse mesmo? Mas que indiscrição a minha! Mas eu já não sou
mais um garoto, e minhas loucuras de juventude já ficaram para trás.
Tentando restabelecer a intimidade que parecia estar se acabando
entre eles, Sylvie perguntou:
— Mas seu amigo, você disse que ele tinha falecido, não é?
— Sim, mas antes de morrer tornou-se completamente descrente da
vida e das mulheres.
— Ele era músico? — insistiu, lembrando que Antoine havia lhe
perguntado se ela já tinha ouvido falar em René Leclerc, o músico.
— Sim, e legou à humanidade um trabalho belíssimo. Uma obra
exótica, fantástica, Sylvie. A que eu mais gosto, entretanto, é um balé. Faz
muito tempo que tenho vontade de produzi-lo... é muito difícil encontrar a
bailarina que desejo. Queria alguém como Menella, pois foi ela quem o
inspirou.
Sylvie, como se sentisse medo do que estava prestes a ouvir,
perguntou:
— Mas agora você acha que já a encontrou?
— Ainda não sei, Sylvie. Descobri alguém que, potencialmente, pode
ser a bailarina que eu procuro, mas talvez esteja meio confuso, cego pela
grande semelhança física. Você ainda tem que me mostrar que possui seu
próprio talento. Disse-lhe que trabalharíamos por uma grande recompensa.
Agora você sabe o que é isso, o sucesso do balé de René, que eu quero
conseguir, mais do que qualquer coisa no mundo. E isso dependerá muito de
você.
Impulsivamente, ela se levantou. Precisava sair dali antes que se
deixasse dominar por aquele cenário exótico e pela proximidade daquele
homem intrigante.
— Estou faminta — disse Sylvie.
— Acho que também estou com fome.
Voltaram para o carro. Antoine vestiu seu paletó, colocou a gravata e
Sylvie escovou a roupa de seu marido com uma escova que ele tirou do
porta-luvas. Em troca, Antoine penteou seus cabelos.
— Onde vamos? — perguntou, quando Antoine ligou o carro.
— Para um hotel em Beaulieu-sur-Mer, onde a comida é digna dos
deuses, embora eu saiba que você come tão pouco que não vai ser possível
apreciá-la bem.
— Oh, apreciarei sim — garantiu. —- Você é um perfeccionista em
tudo.
— Vinho, mulheres e bailarinas — retrucou ele.
— Sobre vinhos não sei nada, exceto que gosto de tomar um copo de
vez em quando; bailarinas eu vi muito poucas, mas é claro que nós,
bailarinas, não contamos como mulher. Marguerite é realmente um
monumento e faz jus a seu gosto.
Antoine pareceu um pouco embaraçado ao ouvir o nome da garota
francesa.
— Você está se mostrando muito indiscreta. Seria mais gentil se você
se referisse à Marguerite como srta. d'Ablay.
— Compreendo.
— E acho melhor você chamar-me de maestro, como faz o pessoal da
companhia.
— Sim, maestro.
A camaradagem que existia na colina desaparecera completamente.
Ele entrou numa estrada muito estreita que descia pelo penhasco.
— Você nunca foi casado antes, não é, maestro?
— Isso é problema meu.
— Poderia ser meu, se você estivesse cometendo bigamia.
— Um comentário como este merece uma surra!
—- Mas eu já estou bem grandinha para levar uma surra.
— Provoque-me bastante e você descobrirá que não é tão grandinha
assim.
— Oh, maestro, que final para o dia de nosso casamento, e só porque
tenho curiosidade sobre o homem com quem casei.
— Só vou lhe dizer o que quero que você saiba.
— Sim, você já insinuou isso antes, ocultando alguns segredos
sombrios, inadequados a meus ouvidos inocentes.
— O demônio parece ter tomado conta de você desde que entramos no
carro. O que você acha de parar de provocar-me e conversar sobre algo
interessante?
— Por exemplo?
— Você não encontrou algum assunto, em suas leituras, que lhe
interessou?
— Não, maestro, não vamos discutir aqueles assuntos agora —
protestou ela. — Terei que conviver com o senhor como meu instrutor no
futuro e prometo que estudarei com mais afinco, mas hoje é o dia de meu
casamento.
— Receio que as diversões normais de um dia de casamento estejam
fora dos termos do nosso acordo, embora — dirigiu-lhe um olhar malicioso
— eu tenha dormido com você.
Contra a vontade, Sylvie corou e, sem graça, olhou para a paisagem.
— A Costa Azul é muito bonita -— disse e Antoine riu.
— Fale-me sobre Provence — sugeriu ele —, sobre aquele chalé onde
você morava, o que eu... — ele se interrompeu.
Sylvie não percebeu a sentença inacabada e, aliviada por encontrar
um assunto mais seguro, começou a descrever sua casa. Depois Antoine se
desculpou por não poder levá-la de carro para Paris na manhã seguinte.
Isto, segundo ele, faria com que as pessoas desconfiassem. Ela devia ir de
trem junto com a companhia de balé.
— Mas você não acha muito enfadonho viajar de carro sozinho? —
perguntou um pouco esperançosa.
— Não estarei sozinho. A srta. d'Ablay também voltará para Paris.
Esta não era uma boa notícia. Sylvie pensou que Marguerite morava
na Riviera.
— Espero que sua governanta não seja tão carrancuda quanto
madame Lescaut — disse ela, desanimada.
— Ela é um tipo diferente, já foi bailarina. Pobre Marie, é difícil
acreditar, pois engordou muito. O apartamento é muito isolado. É o meu
esconderijo da publicidade. Será um lugar excelente para você estudar. —
Sylvie pareceu ficar triste ao ouvir aquele comentário. — Mas você passará a
maior parte do tempo no teatro.
Aquilo soou melhor ao ouvidos da garota.
— Você mora no apartamento? — perguntou.
— Sim e não. Possuo uma suíte no apartamento, que é meu abrigo
quando preciso de paz e calma. Além do teatro, tenho que ir a várias
reuniões e freqüentemente não volto para casa.
Sylvie deu um suspiro de alívio quando, terminada a íngreme descida,
Antoine seguiu a estrada larga que surgiu de repente na frente do carro.
Ao contrário do restaurante isolado em Nice, Beauileu estava repleto e
uma música lenta misturava-se com o burburinho das conversas.
Diversas pessoas o cumprimentaram no restaurante e Sylvie foi alvo
de muitos olhares curiosos; ela não era o tipo de mulher que costumava
acompanhá-lo.
Um garçom levou-lhes um carrinho com entradas variadas. Antoine,
como antes, pediu por ela. No final ela perguntou se podia pedir pêssegos em
calda com sorvete.
Quando a sobremesa chegou, Antoine olhou com desagrado para o
creme que recobria as frutas e o sorvete, e comentou:
— Você terá que esquecer esta espécie de doces, quando estiver
treinando.
— Então preciso aproveitar... — disse ela alegremente. — De qualquer
forma, acho que eu não engordo com facilidade.
— Você não teve muita oportunidade de engordar, não é?
Suscetível a qualquer espécie de compaixão, a garota empurrou a
sobremesa para o lado.
— Não vou terminar de comer, se você não aprova.
— Coma, criança — ordenou Antoine —, embora seja um mistério para
mim saber onde você vai colocar tudo isso.
— Esse é um segredo entre minhas entranhas e eu.
Ele havia pedido vinho rose e, quando percebeu que ela terminava a
sobremesa, levantou um brinde.
— Ao sucesso do balé de René! — Beberam ó vinho solenemente e
Antoine completou: — Fatalmente será também seu e meu.
— Espero que sim. Como chama?
— O balé? "Os Cisnes Selvagens".
— Oh! — Sylvie compreendeu o que ele quis dizer quando lhe contou
que não era só "O Lago dos Cisnes" que tinha os cisnes como motivo. — Esse
é um bom título? — perguntou ela em dúvida.
— Parece nome de livro de zoologia.
— Podemos alterá-lo. "Asas Brancas", talvez. Há um solo final. O cisne
macho morre e o cisne fêmea fica desconsolado. Como você sabe, os cisnes
se unem para toda a vida.
— Que coisa mais triste!
Sylvie sentia-se alegre e um pouco sonolenta depois da refeição e não
tinha vontade de discutir sobre mortes de cisnes. Ela só se preocuparia com
isso quando chegasse a Paris. Agora queria a atenção total de Antoine sobre
sua pessoa.
— Como você chamaria nosso relacionamento, maestro? Nós não
somos exatamente patrão e empregado.
— Longe disso. Somos sócios, Sylvie.
O vinho estava afetando a garota e ela gargalhou.
— Mas não somos sócios na cama — disse audaciosamente e achou
que tinha sido muito espirituosa.
— Exato, mas mesmo assim você me pertence.
— É de se esperar que você não tenha comprado gato por lebre —
disse ela com impertinência, vendo-o através de uma névoa dourada. —
Vamos supor que eu venha a ser um malogro, e daí?
— Você está acostumada a usar expressões muito estranhas — disse
ele enquanto apagava o cigarro. — Gato por lebre! — Acendeu outro cigarro e
observou-a através da fumaça. — Em uma eventualidade infeliz como essa,
eu a renegaria — disse ele com um sorriso.
— Não estou acostumado aos fracassos.
— Oh, maestro! — Sylvie acreditava que ele estivesse brincando. —
Você me jogaria na rua?
— Sem o mínimo escrúpulo.
Sylvie estava se sentindo feliz e confiante demais para ter qualquer
temor e não achava que ele estivesse falando sério. Também não sabia que
um casamento não consumado podia ser anulado.
Estava pensando que Antoine havia sido muito bom para ela,
proporcionando-lhe aquele passeio inesperado, deixando-a ficar com Toni e
devolvendo-lhe a aliança quando ela pedira.
— Obrigada por tudo — disse com sinceridade.
Antoine sorriu em resposta, mas seu sorriso era irônico e, com pouco
caso, soprou um anel de fumaça em direção da garota.
Só o tempo poderia mostrar a Sylvie que não tinha nada que agradecer
a ele por aquele dia.

CAPITULO V

O Balé Cosmopolite partiu bem cedo na manhã seguinte, ocupando


um vagão inteiro do expresso para Paris. Sylvie olhava com ansiedade a
multidão alegre de rapazes e garotas que seriam seus colegas mas, com
exceção do professor, que lhe acenou com um sorriso, todos a ignoraram.
Reconheceu o primeiro bailarino, Ludovic Karenov, um eslavo de olhos
oblíquos que usava uma camisa extravagante, e perguntou-se se algum dia
ele seria seu parceiro. Leonora Duprez, com os braços cheios de flores,
despedia-se de um admirador. Outra bailarina, Netta Sterling, era inglesa e
Sylvie teve vontade de conversar com ela, mas além da garota parecer um
pouco arrogante, madame Lescaut não lhe deu qualquer oportunidade de
confraternizar com a companhia.
Quando Toni, preso numa cesta, foi instalado no vagão do condutor,
Sylvie se encaminhou para um dos assentos destinados ao pessoal do corpo
de baile, orientada no sentido de não sair do lugar. Madame Lescaut e ela já
haviam conversado sobre o cachorro; a velha senhora insistia em dizer que
não recebera instruções de Antoine para levar o animal e Sylvie dizia que
não iria embora sem ele. Madame teve que ceder, embora demonstrasse
muita má vontade.
Era tarde da noite quando Sylvie chegou ao apartamento do sr. de
Mericourt.
Condicionada como estava à carrancuda madame Lescaut, Sylvie ficou
surpresa com a governanta de Antoine. Era uma mulher corpulenta e seu
rosto simpático ainda possuía os vestígios de uma beleza jovial. Seus cabelos
avermelhados eram obviamente tingidos e suas sobrancelhas feitas a lápis
eram negras.
— Ah, mas você está tão magra e pálida, garota. — Falava com Sylvie
numa mistura de inglês e francês. — Você deve estar muito cansada. Entre,
entre, Sylvie, e pode chamar-me de Marie. — Olhou para madame Lescaut.
— É sua criada?
— Não sou criada da senhorita — disse madame Lescaut com frieza —,
e estou mais do que feliz em deixá-la sob seus cuidados. Até mais, srta.
Allen, sem dúvida nos encontraremos novamente no teatro.
Desceu as escadas correndo em direção ao táxi que a esperava,
enquanto Toni latia alegremente por vê-la ir-se embora. Marie olhou para o
animal e pareceu desanimar-se.
— Um cachorro! — exclamou. — O sr. de Mericourt não mencionou o
cachorro. Não sei onde poderei acomodá-lo.
— Ele possui uma cesta de vime e dorme em meu quarto — disse
Sylvie.
— Um cachorro no quarto? O que diz o sr.de Mericourt quanto a isso?
— perguntou Marie.
— Nada, ele não se importa com quem eu durmo — disse Sylvie e,
quando Marie lhe dirigiu um olhar estranho, percebeu que sua frase havia
sido infeliz. — Não precisa se preocupar com Toni — completou
apressadamente.
Marie levou-a até o imenso salão e Sylvie olhou ao redor com
curiosidade. Um lado era usado como sala de jantar e a mesa estava
arrumada para a refeição. O outro lado tinha uma luxuosa aparência de
conforto: sofás, poltronas largas e macias, e um televisor. As cortinas
estavam abertas e as janelas altas que se abriam para a sacada mostravam o
Sena correndo lentamente. Num impulso, Sylvie correu até a sacada para
ver o rio com os reflexos das luzes dos prédios do lado oposto dançando
sobre a água.
— Que beleza, Toni! — exclamou.
— Boa noite, senhorita.
Sylvie sobressaltou-se. Virando-se, olhou para a sala. Uma garotinha
de mais ou menos sete ou oito anos entrara no aposento. Tinha cabelos
castanhos lisos, curtos, e olhos cinzentos.
— Esta é Yvonne — Marie apresentou-a, entrando na sala com uma
sopeira nas mãos. — É afilhada do sr. Mericourt — completou vagamente.
A criança fitou Sylvie solenemente.
— Você também é afilhada do sr. Antoine? — perguntou. Ela falava
inglês com muito pouco sotaque.
— Mais ou menos — retrucou Sylvie e percebeu o olhar curioso de
Marie. Sua posição era tão ambígua quanto a da criança e Sylvie perguntou-
se como havia sido explicada sua presença naquela casa. Ou Antoine não
teria dito nada?
— Yvonne já lhe mostrou seu quarto? — indagou Marie. — Você quer
se arrumar? Mas se apresse, pois o jantar está pronto.
Toni entrou na sala vindo da sacada e Yvonne deu um gritinho de
alegria.
— Um cachorro!
Ajoelhou-se no chão com os braços estendidos para Toni que, depois
de breves momentos de inspeção, aproximou-se e lambeu o nariz da menina,
percebendo que ela queria ser sua amiga.
A face de Marie abriu-se num sorriso bondoso ao perceber o prazer da
criança. Ela era claramente apegada a Yvonne, mas era improvável que a
menina fosse sua filha, concluiu Sylvie, pois achou que Marie devia estar
beirando os sessenta anos de idade.
— Não se demore, querida — advertiu Marie. — A comida vai esfriar.
— O sr. de Mericourt não vem jantar? — perguntou, percebendo com
alívio que a mesa estava arrumada para três pessoas.
— Não. Ele raramente janta aqui. Eu ficarei contente de cozinhar para
mais uma pessoa. Yvonne nem presta atenção no que come, portanto espero
que você aprecie meus pratos, Sylvie.
Sylvie garantiu-lhe que sim. Marie, como muitas francesas, primava
no ato de cozinhar e preparava cada prato com tremendo cuidado.
— Eu tenho um pouco de medo de tio Antoine — confidenciou Yvonne
para Sylvie-. — Gosto mais quando ele não está aqui.
— Você é uma menina malcriada — disse Marie com um tom de
repreensão na voz. — Você não pode esperar que ele seja condescendente
com você. Se ele não tivesse saído de seu país, seria um príncipe de sangue
azul.
— Por que, de que nacionalidade ele é? — perguntou Sylvie com
interesse. Ela sempre achara que Antoine não parecia francês.
— O avô era russo — informou Marie. — Instalou-se na França depois
da Revolução. Sua esposa era uma de Mericourt e a família adotou o nome
dela e naturalizou-se. Nunca passaram necessidade, como a maior parte dos
emigrantes, porque os de Mericourt possuíam propriedades onde
descobriram petróleo. O sr. Antoine nunca conheceu a pobreza.
— Isso é óbvio — disse Sylvie com petulância. — Mas qual é o nome
verdadeiro dele?
— Eu nunca soube, talvez já tenha sido esquecido, mas o sr. Antoine é
um verdadeiro cavalheiro — informou Marie com orgulho.
— Então ele foi um grão-duque — disse Sylvie pensativamente. —
Acho que ele costuma esquecer que não é mais.
— O avô dele foi um grão-duque — corrigiu Marie. — Acho que você
não o conhece bem, pois ele é o melhor dos patrões...
Enquanto desfazia as malas, seus pensamentos ainda continuavam
com as duas pessoas que acabara de conhecer. Marie era muito mais
amigável do que ela ousara esperar, mas o aparecimento da criança havia
sido um choque para o qual não fora preparada.
Ela só via uma razão para a presença da menina naquele
apartamento, e a reserva de Antoine fazia com que sua suposição ganhasse
mais força ainda. Ele não contou que cuidava de uma criança que o
chamava de tio, enquanto tentava persuadi-la a aceitar sua proteção. Deixou
que ela fizesse a descoberta quando fosse tarde demais para voltar atrás.
Sendo assim, quem era a mãe da menina? Será que ela ainda amaria
Antoine? Pelo menos, ele tivera a decência de assumir a responsabilidade,
mas era só isso. Estava claro que ele não amava aquela pobre menina e
Sylvie decidiu fazer o máximo que podia para ganhar sua amizade.
Na manhã seguinte, depois de um rápido café da manhã, o professor
chegou e levou Sylvie à sala de exercício. Lá ele se tornou um pouco mais
explícito quanto às intenções de seu patrão. Sylvie se apresentaria no teatro
na manhã seguinte para começar seu treinamento. Ele desculpou-se por não
ter ido visitá-la no dia anterior, pois estivera muito ocupado com o ensaio
final do balé que abriria a apresentação daquela noite.
Depois dos exercícios preliminares ele mudou o disco e pediu a Sylvie
que ouvisse a música.
Logo nos primeiros acordes, Sylvie percebeu que era a música de René
Leclerc. Era uma melodia estranha, evocando uma imagem e largos espaços,
água movendo-se lentamente e o esvoaçar de grandes asas. A música
transformou-se, e o professor começou a mostrar-lhe alguns movimentos.
Sylvie percebeu que aquela era a parte da bailarina e ficou emocionada.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Sylvie teve mais informações sobre
René, quando Marie se ofereceu para mostrar-lhe os aposentos de Antoine.
O estúdio continha uma escrivaninha ovalada e era mobiliado com
austeridade, como o quarto de dormir, ao lado. Ambos tinham suas janelas
voltadas para o rio. O cama de Antoine possuía dossel com pilares
esculpidos, mas o que mais a intrigou foi um lindo quadro a óleo retratando
uma mulher muito bonita, tão parecida com Antoine que não precisaram
dizer-lhe que era sua mãe.
— Ela não era russa — disse Marie. — Não tinha dote quando se
casou, mas era nobre.
No estúdio havia um porta-retrato com a fotografia de um rapaz de
cabelos escuros emoldurando uma face sensível e bonita.
— René Leclerc — informou Marie. — Amigo de infância do sr.
Antoine. Uma alma atormentada. Ele nunca conseguiu adaptar-se direito à
vida.
Havia diversas aquarelas representando cisnes, os pássaros em vôo ou
nadando em um lago. Havia também uma pintura patética, onde um cisne
fêmea estava ao lado de seu companheiro morto.
— Os cisnes eram o tema do balé do sr. René — disse Marie
desnecessariamente. — Este balé fez com que o maestro arrancasse muitos
cabelos. Parece que foi inspirado em alguma bailarina, já falecida, e ele
nunca foi capaz de encontrar outra como ela. Acho tudo isso uma bobagem,
se você quer saber minha opinião. Aqueles dois garotos idealizaram-na de
uma tal maneira que o sr. Antoine nunca encontrará o que está procurando,
porque simplesmente ela não existe.
— Quando você acha que o maestro vai chegar? — perguntou ela,
apreensiva.
Marie encolheu os ombros.
— Eu sempre deixo a cama dele arrumada, mas nunca sei quando
virá.
Naquela noite ela foi cedo para a cama, mas não conseguiu adormecer.
Os acordes de "Os Cisnes" ressoavam em sua mente cansada, com uma
insistência enlouquecedora. Estava começando a persegui-la, como havia
perseguido Antoine durante tantos anos.
Depois da meia-noite, ouviu um carro estacionando no pátio e
levantou-se da cama para olhar pela janela.
Antoine de Mericourt tinha vindo para casa de táxi e estava pagando a
corrida. Usava traje de gala, o luar prateava seus cabelos e, ao ver aquela
figura elegante e orgulhosa, o coração de Sylvie começou a bater
desenfreadamente.
O táxi foi embora e Antoine virou-se na direção da casa, erguendo a
cabeça para observar a fachada como se soubesse que ela o observava,
embora Sylvie imaginasse que estava muito longe dos pensamentos dele.
Antoine caminhava com passos alegres, e parecia triunfante; evidentemente,
conseguira um enorme sucesso. Desapareceu de vista e Sylvie olhou para
sua cama desarrumada que brilhava sob a luz fraca da lua, pensando que
gostaria de ouvi-lo falar sobre o balé. Surpresa, descobriu que queria muito
conversar com Antoine para saber as novidades.
Por que não fazer isso? Embora parecesse inacreditável, ele lhe dera
seu nome e a garota sentia-se no direito de compartilhar do sucesso do
marido.
Impetuosamente, vestiu seu penhoar e desceu a escadaria que
terminava no salão. Por sorte, Toni dormia e não a ouviu. Sylvie parou no
vão da porta, tentada a voltar para seu quarto, mas Antoine tinha visto sua
imagem refletida em um dos espelhos e tinha-se virado para cumprimentá-
la.
— Sylvie! Aconteceu alguma coisa?
— Não, maestro. Estava acordada quando o senhor chegou, por isso
resolvi saber como foi a estréia. Espero que tenha sido um sucesso.
— Foi um verdadeiro furor. — Antoine sorriu com satisfação. Olhou
para a figura magra da garota envolta no robe fora de moda. — Mas você
devia estar dormindo.
— Estava muito inquieta para conseguir dormir, não me acostumei
ainda a este lugar. Por favor, conte-me algo sobre o balé.
Antoine hesitou e Sylvie chegou a imaginar que ele fosse mandá-la de
volta para a cama, mas a lembrança do verdadeiro triunfo daquela noite
suavizou a expressão de seus olhos.
— Sente-se que eu vou preparar-lhe algo para beber.
Sylvie acomodou-se num enorme sofá, enquanto ele preparava seu
drinque, colocando muito mais soda do que uísque.
Encolhida como um gato, Sylvie poderia até ronronar de satisfação
quando ele lhe entregou o copo de bebida. O olhar de Antoine caiu sobre os
pés nus da garota.
— Você não tem chinelo?
— Esqueci de calçar.
— Pois não devia. Você deve tomar muito cuidado com seus pés. Eles
são muito preciosos.
Para total espanto da garota, ele se ajoelhou, tomando seus pés entre
as mãos. Examinou criticamente seus dedos, os tornozelos, seu calcanhar
esquerdo, seu calcanhar direito. Arrepios estranhamente deliciosos corriam
pela sua espinha quando ela olhou para a cabeça inclinada de Antoine.
Segundos depois, colocou gentilmente seus pés sobre o tapete e olhou para
Sylvie com um sorriso.
— Sem dúvida, são pés de bailarina.
Levantou-se para pegar seu copo, enquanto Sylvie rapidamente
sentava sobre os pés no sofá. Antoine voltou e sentou-se a seu lado.
Como ela não esperava tal atitude, deslocou-se infantilmente para bem
perto do braço do sofá, ficando muito desconfortavelmente instalada. A
proximidade de Antoine deixava-a perturbada.
Ele descreveu-lhe o bailado, a. apresentação e a reação da platéia.
Antoine deixou-se levar pelo seu próprio entusiasmo e, por um momento,
Sylvie percebeu que ele não se encontrava mais ali, tão envolvido estava com
o triunfo da apresentação.
— Sabe — disse ele para concluir —, acho que o mundo do balé está
começando a aceitar que eu sou o verdadeiro sucessor dos antigos grandes
empresários. E você? Obviamente chegou sã e salva. Sem dúvida Marie
tratou-a bem, não é?
— Oh, sim, mas... — Ela hesitou. Devia mencionar Yvonne?
— O que foi? Alguma coisa a preocupa?
— Maestro, não me contou que eu encontraria Yvonne aqui, quando
chegasse.
— Yvonne? Oh, é claro, a pirralha. Havia-me esquecido dela. — Os
olhos da garota contraíram-se ao perceber quanto ele parecia indiferente à
pobre criança. — Você não gosta de garotinhas?
— Imensamente. Mas acho muito indelicado referir-se a ela como
sendo uma pirralha.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Você tem pena dela?
— Acho que ela é digna de piedade, por ser uma pobre criaturinha
sem ninguém no mundo. — Olhou para ele de maneira acusadora.
— A menos que seja sua.
— Geralmente as pessoas pensam assim.
— Mas ela é mesmo sua? — Sylvie persistiu, acreditando ter o direito
de saber toda a verdade.
— Isso não é da sua conta.
— Acho que é da minha conta, sim. Gostaria de tentar redimir sua...
sua negligência.
— Sua bondade chegou quase a me comover. Sendo um homem de
teatro, todos os atos não muito elevados são atribuídos a mim mas, neste
caso, garanto-lhe que eu não sou culpado. Assumi toda a responsabilidade.
Uma confirmação indireta, pensou ela, mas sem dúvida ele não.se
preocupava em ser explícito demais. Sylvie disse com sinceridade.
— Isso não é suficiente. Ela precisa de amor.
Ele pareceu zombeteiro.
— Amor, Sylvie, é uma palavra muito mal usada — disse. — Eu a
alimento, visto e garanto sua educação. O que mais posso fazer? Acho que
não tenho muito o que dizer a uma criança daquela idade.
— Ela precisa de afeição. Você precisava tê-la visto com Toni.
— Toni?
— Meu cachorro.
— Meu Deus, Sylvie, você trouxe aquele vira-lata para cá? Deixe-me
arrumar-lhe um de raça, um dálmata, talvez.
— Não, obrigada, maestro. Não trocaria Toni por nenhum outro. Eu
também não posso ficar totalmente sem carinho, maestro.
Antoine encarou-a com frieza.
— Pensei que tivéssemos concordado em que sua profissão iria
satisfazê-la. Não me importo que você se preocupe com Yvonne e com o cão,
desde que isso não a distraia do trabalho, que é a coisa mais importante.
— Você é muito cruel, maestro — disse ela, sentindo seus lábios
tremerem. Comprimindo-os, conseguiu perguntar: — Você já se preocupou
com algum ser humano a não ser René Leclerc?
Ele pareceu pensar.
— Não, desde que minha mãe faleceu — disse. — E isso já faz dez
anos. Ela foi a única pessoa que significou algo para mim depois que me
tornei adulto. O que você achou da música de "Os Cisnes"?
Então ele recebera informações sobre sua aula daquele dia;, não
estivera completamente fora da mente de Antoine.
— Não sei dizer... é muito melancólica e misteriosa... maestro, você
acha que eu sou capaz de interpretá-la?
— Você pode tentar, ou melhor, nós podemos tentar. Aquela música
está fora deste mundo, clama por uma imaginação extraordinária, uma
excursão para uma esfera diferente, que transcende as limitações terrestres.
Temos que tentar levar um público cético às maiores alturas.
O relógio bateu duas horas e Antoine voltou à realidade.
— Já é muito tarde, ou melhor, muito cedo — observou ele. — Você
precisa ir dormir.
Sylvie levantou-se do sofá, fitando-o em silêncio. Ela parecia pequena,
magra e um pouco desamparada quando disse:
— Boa noite, maestro.
— Boa noite, Sylvie.
O café da manhã era servido bem cedo. Yvonne tinha que estar na
escola às oito horas. Antoine juntou-se a elas para o café.
Yvonne observava-o com respeito e mal abria a boca enquanto Marie o
servia. Sylvie achou que eles formavam um quarteto muito variado. Percebeu
que, a não ser pela cor dos olhos, Yvonne não tinha qualquer outra
semelhança com Antoine e se perguntou se havia se enganado ao acreditar
que ele era o pai da garota. Na verdade, ele não havia confirmado nem
negado isso.
Depois de beber a segunda xícara de café, Antoine começou a
enumerar quais seriam as atividades diárias de Sylvie. Depois do café iria
para o teatro, acompanhada de Marie, onde trabalharia o dia todo, até a
tardinha. O almoço lhe seria servido lá mesmo. Depois disso, teria aulas
sobre vários assuntos e, após o jantar, a não ser nas noites em que iria ver
as apresentações do corpo de baile, provavelmente uma vez por semana,
estudaria em casa até a hora de dormir.
— É um programa muito amplo — comentou Sylvie. — Dou-lhe os
parabéns por ter conseguido organizar tão bem minha vida de escrava.
Estou preparada para trabalhar muito, mas preciso de ar fresco, nem que
seja durante meia hora por dia. Eu vou definhar e perder minhas energias
sem isso.
Antoine concordou, depois de ouvir seus argumentos. As noites
estavam tornando-se mais claras e ela e Yvonne podiam caminhar durante
uma hora antes do jantar.
— E Marie vai acompanhá-las — concluiu ele.
— Senhor! — Marie revirou os olhos cheia de horror. — Eu não gosto
de caminhar. Faço qualquer coisa pelo senhor, mas isso não.
E assim, a vida de Sylvie entrou numa rotina regular, como lhe havia
sido prescrito. No teatro ela trabalhava assiduamente no balé de René,
aprendendo a coreografia, algumas vezes acompanhada pelo corpo de baile,
outra apenas por Ludovic, que seria seu parceiro. Antoine às vezes ia assistir
àquelas sessões e a garota apavorava-se, pois parecia nunca ser capaz de
agradá-lo. Quando lhe perguntava se pretendia produzir o balé, Antoine
dava-lhe respostas evasivas. Não tinha ainda se decidido, pois ela ainda não
estava preparada.
Todas as noites ia passear durante uma hora num parque ao longo do
cais com Yvonne e seu cachorrinho. Durante aquelas caminhadas, ficou
sabendo tudo sobre a vida da garotinha. A menina não se lembrava de seus
pais, Marie a tinha criado, mas ela tinha absoluta certeza de que madame
Corbet não era sua parenta.
— Ela era camareira no teatro, antes de vir trabalhar com tio Antoine
— Yvonne contou a Sylvie. — Quando era moça foi bailarina, embora agora
ela mais pareça um elefante.
Havia uma experiência muito importante na vida daquela criança.
Durante o último verão ela havia passado as férias na Áustria, e a mulher
que tomou conta de Yvonne tinha se transformado talvez na pessoa mais
importante da vida da garotinha.
— Eu a chamava de tia Hildegarde — disse Yvonne. — Ela era tão
bonita e tão gentil! Parecia que eu estava no paraíso. Eu a amava muito,
Sylvie. Nunca amei ninguém como ela, exceto Toni.
Sylvie começou a meditar sobre aquela Hildegarde austríaca. Poderia
ser a mãe de Yvonne? E o que significaria para Antoine? A criança não
suspeitava de que ele pudesse ser seu pai, mesmo porque ele não
demonstrava a mínima afeição paternal por ela.
Sylvie sorriu tristemente. A garotinha amava apenas seu cão, não a
ela. Quem sabe, com o tempo, ela até poderia vir a amar Yvonne, que era
igual a Antoine pelo menos em uma coisa: parecia impossível derrubar a
barreira da garota.
Os dias passavam e Sylvie não recebia nenhuma notícia de seu pai.
Começou então a preocupar-se com o que poderia ter acontecido a ele.
Ainda não tinha escrito para Tom Travers. Sua vida estava tão
ocupada que quase não pensava nele, mas pretendia escrever-lhe, quando
tivesse tempo de sobra. Enquanto isso. sua ansiedade quanto a Francis
aumentou, até que uma noite, quando Antoine estava no apartamento e
Yvonne já se recolhera, Sylvie decidiu pedir-lhe ajuda.
Ele estava verificando os progressos que Sylvie tivera no estudo de
línguas. Ela estava aprendendo alemão e italiano, que Antoine falava
fluentemente.
Largando o livro em alemão que estava lendo em voz alta para testar a
pronúncia, Sylvie disse abruptamente:
— Maestro, não recebi nenhuma notícia de meu pai.
— E você espera receber? — perguntou ele com frieza.
— É lógico que sim. Receio que tenha acontecido algo com ele. É
possível fazer alguma investigação?
— O Brasil é um país muito grande — comentou ele. — Acho que seria
difícil descobrir onde ele está, mas acho que você não precisa preocupar-se.
Ele é uma pessoa bastante excêntrica, não é? Sabe que você está bem
estabelecida e, sem dúvida, deve estar ocupado demais para escrever cartas.
— Ele não me abandonaria dessa forma — protestou Sylvie. — Deve
estar em dificuldade, pois a venda do chalé não lhe proporcionou muito mais
dinheiro além da passagem. O chalé não valia grande coisa...
— Você está certa, não valia mesmo — interrompeu Antoine.
Uma súbita suspeita surgiu na mente da garota.
— Maestro, você não emprestou dinheiro a ele, não é?
— Foi mais como um presente, pois não esperava receber o pagamento
— disse ele secamente. — Fique certa de que era uma quantia
suficientemente grande, que dava possibilidade dele viver com conforto
durante vários meses, caso não tenha perdido tudo no jogo.
— Ele pediu o empréstimo? — perguntou em voz baixa, sentindo-se
envergonhada por seu pai.
— Não, fui eu que ofereci.
— Mas por que, maestro? Você não sabia a... espécie de homem que é
meu pai?
— Sabia e eu o queria fora do caminho.
Antoine estava acendendo um cigarro e não a olhou. Sylvie sentiu que
ele estava levemente embaraçado.
— Por... minha causa? — sussurrou a garota.
Antoine expeliu uma nuvem de fumaça e fitou-a com olhos frios.
— Sim, por sua causa. Ele tirou sua mãe do balé, e eu quis certificar-
me de que não iria interferir nos planos que tenho para você. Já que seu pai
queria tanto ir para o outro lado do mundo, fiquei muito contente em poder
ajudá-lo. Foi fácil liquidar com os escrúpulos que ele possuía com relação a
você: ofereci-lhe uma grande quantia.
Aquela informação abalou Sylvie, pois revelava o espírito frio e
calculista daquele homem. Ele induzira Francis, aproveitando-se de sua
fraqueza. Havia sido tão fácil subornar seu pai que ele achava que agora
estava tudo acertado.
— Você proibiu-o de me escrever? — perguntou ela.
— Lógico que não, mas eu sugeri que seria melhor que ele não a
importunasse com muitas cartas queixando-se da falta de sorte.
— Mas que atitude desumana! — Sylvie levantou-se e seus olhos
soltavam faíscas de ódio. — Você está tentando separar-me de papai, que é a
única pessoa que eu amo.
Antoine dirigiu-lhe um olhar enigmático.
— Você não precisa de um pai quando tem um marido para protegê-la.
— Um marido... — ela deu uma risada amargurada — que olha como
se eu fosse uma máquina.
Ele aproximou-se de Sylvie e pegou-lhe o pulso, apertando-o como se
seus dedos fossem de aço.
— Se não me engano, você concordou que não queria nada de mim, no
que dizia respeito ao lado pessoal. Na verdade, você insistiu nesse ponto.
A garota tremia tanto que teria caído se ele não a estivesse segurando.
Viu nos olhos de Antoine uma expressão que nunca tinha visto antes. Não
eram mais frios; eles pareciam queimá-la. Sylvie colocou a mão que estava
livre na garganta.
— Sim — sussurrou ela. — Sim, você está certo.
— Bem, então de que maneira poderia encará-la a não ser como um
objeto inanimado? — Largou o pulso da garota e afastou-se. Com as costas
voltadas para ela, continuou: — Talvez você tenha notícias de seu pai...
quando o dinheiro dele tiver acabado.
Esse comentário magoou-a profundamente.
— Você está querendo dizer que ele vai pedir dinheiro? — Gritou ela,
furiosa. — Ele é orgulhoso demais para tomar uma atitude dessa.
Antoine virou-se e encarou-a com um certo brilho nos olhos.
— Mas não orgulhoso demais para vender você para mim — disse ele
com brutalidade. -— Pois foi isso o que aconteceu.
A cor desapareceu das faces de Sylvie ao ouvir essas palavras.
— Vou lhe pagar cada centavo quando estiver ganhando dinheiro —
gritou ela, desesperada.
— "Quando" você estiver ganhando. É uma dívida muito grande,
Sylvie, seu pai e eu colocamos um alto preço em você.
Eram palavras zombeteiras e insultuosas, mas verdadeiras demais.
Lembrou-se da resposta evasiva de Francis quando ela mencionara o chalé.
Ele já devia estar com o dinheiro de Antoine no bolso quando aquilo
aconteceu. Ê claro que tinha esperanças de pagar, ele sempre tinha essa
esperança.
Francis ainda não escrevera simplesmente porque não tivera
condições de arrumar o dinheiro que devia.
Antoine sentou-se à mesa e estendeu-lhe o livro de alemão.
— Você está fazendo uma tempestade num copo d'água — comentou.
— Não pretendo sair pelo mundo para achar seu pai. Sem dúvida, ele vai
aparecer quando estiver precisando. Quanto a você, se estiver sentindo-se
em dívida para comigo, pode muito bem pagar-me dedicando-se de corpo e
alma ao trabalho.
Sylvie engoliu em seco. Naquele momento odiava Antoine de Mericourt
com todas as suas forças. Ele era orgulhoso, cruel e sem piedade, e ela
estava se sentindo, mais do que nunca, completamente indefesa nas mãos
daquele homem terrível.
— Muito bem, maestro — disse em voz baixa. — Farei o melhor que
puder.
— Você no fundo é uma boa garota. E agora vamos continuar com a
leitura do texto em alemão. Seu sotaque é simplesmente deplorável, mas
espero que ele fique perfeito.
Aquela obsessão pela perfeição em tudo! Oh, como ela odiava aquilo.
No dia seguinte ela iria ao balé e Antoine passou no apartamento para
buscá-la. As roupas compradas em Monte Carlo não eram sofisticadas o
bastante para Paris, e já estavam ficando batidas, mas Sylvie decidiu que
nada no mundo a faria dizer a Antoine que estava precisando de alguma
coisa. Colocou o vestido bordo que usara em Monte Carlo e, quando se
apresentou, ele a observou com desagrado.
— Não gosto desse vestido — queixou-se. — Você não tinha outro?
— As alternativas são meu conjunto de linho e minha camisola.
Ele deu um tapa na testa.
— Que esquecido eu sou! Lógico que você deve vestir-se
adequadamente. Por que não me disse?
— Porque eu ainda guardo algumas migalhas do meu orgulho. Já lhe
devo muito, maestro.
— Que afirmação mais absurda! O que você vai me dar não tem preço.
Amanhã vamos fazer compras.
Antoine comprou-lhe praticamente um enxoval: vestidos esporte,
vestidos para a noite, sapatos e chinelos que Sylvie nunca sonhara possuir.
Entretanto, foi uma provação para ela, pois ele insistia em vê-la vestida em
cada traje antes de comprá-lo. Ela se sentia dolorosamente consciente de
seus olhos críticos quando se apresentava frente a ele em cada modelo;
consciente também dos olhares maldosos dos vendedores e ajustadores,
para quem ela fora apresentada como srta. Allen. Sabia, pelo brilho dos
olhos de Antoine, que ele estava desfrutando de sua posição equívoca; estava
lhe dando o troco pelo orgulho que a impedira de pedir o que precisava. Ela
era uma boneca que Antoine se divertia em vestir bem, e ele não se
importava nem um pouco com a humilhação que Sylvie sentia.
No táxi, voltando para casa, Sylvie disse:
— Você se divertiu bastante, não é? Fez com que os outros pensassem
que eu tinha um caso com você, e que me sustentava. Você se esqueceu que
eu não sou Marguerite d'Ablay.
— Você ficará surpresa em saber que eu não compro roupas para a
srta. d'Ablay — disse ele, pronunciando as palavras lentamente. — Nem que
nosso relacionamento é tão íntimo como você parece imaginar.
Aquela informação surpreendeu-a tanto, a ponto de esquecer-se do
vexame passado há pouco.
— Mas você vai com ela a todos os lugares, não é?
— Tudo fica mais fácil quando você está acompanhado de alguém do
sexo oposto. Por exemplo, eu me divirto muito em ir a recepções
acompanhado.
— Para quê? Para que seus conhecidos pensem que você é
comprometido? Você não acha isso um pouco desonesto?
Ele encolheu os ombros.
— Se eles tiram alguma conclusão, é problema deles.
— Ela sabe que você não pode se casar com ela? — insistiu Sylvie.
— Lógico que não. — Seus olhos cinzentos zombavam dela. — Mas
também nunca fiz nenhuma promessa a ela.
Quando ele dispensou o táxi, na porta do prédio, Sylvie disse com voz
trêmula:
— Maestro, acho que você cometeu um erro. Precisa de uma esposa
para apresentar à sociedade.
— Talvez um dia eu tenha uma.
Sylvie não se atreveu a perguntar-lhe o que ele estava querendo dizer
com aquelas palavras.
Naquela noite, Ludovic, como havia sido combinado, foi ao estúdio da
casa de Antoine para ensaiar "Os Cisnes", acompanhado pelo professor.
Antoine, como sempre, no que dizia respeito ao balé de René era
extremamente crítico e não apenas em relação ao esforço de Sylvie, pois
quando Ludovic a estava levantando, ele proferiu uma imprecação e
caminhou para a frente, parecendo ameaçador no suéter preto e calças
justas.
— Meu Deus, homem, assim não! — Ele tomou o lugar do bailarino.
Sylvie fez os movimentos preliminares com calma e graça, mas quando
ele a levantou, seu corpo inteiro instintivamente enrijeceu-se com o toque.
Ele desceu a garota, mantendo as mãos em sua cintura, em seguida
beliscou-a com força.
— Imbecilzinha... relaxe!
— Você está me machucando — sussurrou ela.
— Então dance direito.
Uma espécie de paralisia deixou-a desgraciosa, com movimentos
duros. Mais uma vez ela foi beliscada sem piedade.
— Besta! — Ela apenas sussurrou, mas Antoine ouviu.
Seus olhos brilhavam demoniacamente quando ele disse:
— Você precisa ficar mais solta.
Pegando o pulso da garota, suspendeu-a e girou-a numa sucessão de
piruetas que a deixou tonta. Em seguida ele curvou os joelhos, passou-a por
entre suas pernas, e colocou-a sobre sua nuca, passando a girar com ela,
naquela posição, em uma mostra surpreendente de dança acrobática, da
qual Sylvie não gostou nem um pouco. Antoine era muito mais forte e alto
que Ludovic e podia manipular seu corpo como bem entendesse. Ela estava
apreensiva, pensando no que ele faria depois. Finalmente a colocou no chão
e disse com ar zombeteiro:
— Faça a reverência para a platéia, Sylvie.
Os dois outros homens aplaudiram ironicamente, enquanto, ocultando
sua sensação de ridículo, ela sorriu e fez uma reverência graciosa.
— Bravo, maestro! — exclamou o professor. — Mas eu pensei que a
senhorita fosse fazer sua estréia no mundo do balé clássico, não num circo!
— A senhorita não fará a estréia se não estiver perfeita — retrucou
Antoine. — Mas ela deve estar menos dura, agora. Talvez possamos ver
aquele solo dela e de Ludovic como deve ser dançado.
Com o coração cheio de fúria, Sylvie obedeceu, sentindo que a raiva
lhe dava forças. Desta vez, quando Ludovic a levantou para a cena final,
Antoine não fez qualquer comentário; apenas desligou a vitrola.
— Chega por hoje — disse ele friamente e os dois homens se
despediram. Sylvie fez uma reverência para o professor, conforme lhe tinham
ensinado, enquanto Ludovic piscava para ela.
Logo que eles saíram do estúdio, Sylvie virou-se para Antoine como
uma pantera.
— Você gostou muito de exibir toda a sua virilidade, não é? — gritou.
— Mostrando-nos que ainda há vida nessa carcaça velha? Você imaginou
que Ludovic ficasse impressionado com sua apresentação? Aposto como ele
estava rindo de você!
— Se ele estava, foi bem-educado demais para não demonstrar isso —
observou calmamente. — No balé, a primeira coisa essencial é a disciplina.
Nem mesmo as primeiras bailarinas chamam o diretor de besta.
Sylvie respirou fundo.
— É isso o que você chama de disciplinar-me? Fazendo-me passar por
uma figura ridícula?
Ele sorriu com indulgência.
— Quando você está furiosa, seus olhos brilham como os de uma
pantera. Mas você não deve mostrar suas garras para mim. Quando resolvo
demonstrar um movimento, espero cooperação, não resistência. Quando
aprendi a dançar... oh, sim, eu aprendi quando era pequeno e nosso
professor costumava bater em nossas pernas com uma vara quando
cometíamos algum erro. As minhas quase sempre estavam pretas do joelho
até o tornozelo quando as aulas terminavam. Mas porque eu lhe dei um
pequeno beliscão para fazê-la reagir, você parecia pronta para matar-me.
— Estava mesmo — disse ela, esfregando os lugares onde ele tinha
beliscado, perguntando-se se ele fazia idéia do quanto seus dedos eram
fortes. — Eu queria... — ela se interrompeu, não se atrevendo a exprimir o
pensamento que lhe ocorreu naquele instante.
— Então, Sylvie, você queria... o quê?
Sylvie percorreu os olhos por todo o corpo de Antoine, até a face
arrogante que parecia um pouco irritada. Ele havia subornado seu pai para
que ele a abandonasse, rejeitara suas tentativas de amizade, ofendera seu
orgulho em frente aos costureiros e finalmente a transformara num objeto de
riso para seus colegas. Com muito rancor, disse-lhe:
— Que seu avô, ou seja lá quem for, tivesse sido morto na Revolução.
O sorriso desapareceu dos lábios de Antoine e sua face
repentinamente pareceu talhada em mármore, pois aquela antiga tragédia
não era objeto de brincadeiras para ele.
— Então onde você estaria? — lembrou-a. — Em alguma sarjeta de
Mônaco?
A lembrança de tudo o que devia àquele homem transformou a raiva
da garota num imenso arrependimento.
— Desculpe-me — disse ela rapidamente, — É claro que eu não penso
em nenhuma dessas coisas horríveis que lhe disse. O senhor tem sido muito
bom para mim, e eu, eternamente mal-agradecida.
Fitou-o com olhos suplicantes, esperando ver algum sinal de
abrandamento em sua face de pedra. Em vez disso, ele pareceu,tornar-se
ainda mais irritado.
— Não comece a bajular-me — advertiu-a com frieza. — Prefiro suas
agressões, gatinha. Agora é melhor você ir tomar seu banho por que eu
também vou, pois tenho que sair logo mais.
Sair acompanhado de Marguerite, supôs Sylvie.
Ele estava em pé, com a mão no interruptor de luz, esperando que ela
saísse do aposento. A voz e o comportamento de Antoine tinham-se
transformado novamente, e agora ele era o diretor severo e exigente.
Sylvie inclinou a cabeça quando passou por ele e correu pelo corredor
em direção a seu quarto, sentindo um súbito nó na garganta.

CAPITULO VI

Um dia depois daquela demonstração do despotismo do grão-duque,


como ela o denominou, Sylvie escreveu para Tom Travers dando-lhe seu
endereço e teve que implorar a Marie que lhe desse um selo para enviar a
carta.
Duvidava muito que Tom se lembrasse da promessa de escrever-lhe,
pois tinham tido apenas um pequeno contato e ela mesma tinha demorado a
cumprir a promessa de mandar-lhe seu endereço, mas como não havia
recebido notícias de seu pai, sentia uma necessidade enorme de um amigo,
pois não fizera nenhum entre o pessoal do balé. As garotas fitavam-na cheias
de desconfiança, perguntando-se quem era aquela intrusa para quem o
maestro dispensava um tratamento especial, suspeitando que ela estivesse
sendo treinada para assumir algum dos números que elas apresentavam.
Antoine percebia as atitudes delas, mas não fez nada para acalmar a
ansiedade que sentiam nem encorajou intimidades entre elas e sua
protegida. Ludovic imaginava que ela estava sendo treinada para o estrelato,
provavelmente com "Os Cisnes" de René. Ele também percebia a condição da
garota dentro da companhia, mas mantinha-se neutro, dando tempo ao
tempo.
Tom respondeu-lhe a carta, dizendo-lhe que esperava
impacientemente por notícias suas, e dali em diante eles começaram a
corresponder-se regularmente. Sylvie conseguiu esconder isso de Antoine,
pois achava que ele não aprovaria.
Disse a Marie que as cartas que chegavam eram de um primo, seu
único parente além de seu pai, que desaparecera. Marie pareceu acreditar
naquela história e prometeu não mencionar as cartas ao maestro, pois
concordava que de vez em quando ele não agia com moderação. A
governanta tinha certeza de que aquele primo era um admirador secreto, e
achava que era muito natural que uma jovem como Sylvie possuísse um. Ela
mostrava-lhe sua simpatia, dando-lhe o dinheiro para a compra dos selos.
Tom escreveu, dizendo que teria uma semana de férias em setembro e
ia para Paris, onde esperava encontrar-se com Sylvie. Marie notou a franca
excitação da garota enquanto lia a carta e um sorriso astuto iluminou-lhe o
rosto.
— O namorado está ficando mais ardente? — insinuou ela.
— Meu primo — Sylvie corrigiu-a -— vem para Paris.
— Ótimo, c você vai querer encontrá-lo?
Sylvie fitou-a em dúvida, perguntando-se se podia confiar na
governanta.
— Não tenha medo — continuou Marie. — Isto pode ser arranjado sem
que o sr. Antoine saiba. — Marie encolheu os ombros. — Ele tem suas
namoradas e não nos dá satisfações. Por que você não faz o mesmo?
Durante o verão, a companhia perdia visivelmente as energias e seus
membros ansiavam por passar uma quinzena em Salzburg, onde haviam
sido contratados para fazer duas semanas de apresentações. Sylvie achava
que ia com eles e temia que a viagem pudesse coincidir com a visita de Tom,
pois ele ainda não marcara uma data definitiva. Mas uma manhã, Antoine
lhe disse:
— Você continuará trabalhando durante minha ausência com um
professor que lhe arranjei, todas as manhãs. Ele virá aqui no estúdio. Ele é...
— Antoine sorriu — um professor excelente, apesar de idoso e casado.
— Então eu não vou com vocês para a Áustria? — Sylvie perguntou,
sem saber ao certo se sentia alívio ou desapontamento. Gostaria da
mudança de ares, mas a ausência de Antoine tornaria mais fácil encontrar-
se com Tom.
— Não, Sylvie, você estará... mais segura aqui — disse ele friamente.
— Eu vou visitar velhos amigos e teria que deixá-la sozinha. O Tirol é um
país romântico e não desejo que você se envolva em complicações
emocionais.
— Ora, o que você quer dizer com isso? — Sylvie ergueu a cabeça e
olhou-o provocantemente. Antoine descansava numa poltrona com um
jornal aberto sobre os joelhos. -— Você acha que eu estou enamorada de
Ludovic? Ele é um rapaz muito atraente.
— Mas ele já é comprometido. Certifiquei-me disso antes de deixá-lo
dançar com você.
Sylvie sabia disso. Ludovic havia lhe contado sobre a pequena com
quem ele possivelmente se casaria algum dia, mas não pensou que Antoine
soubesse da existência da garota.
— Então você não se importa que Ludovic seja comprometido? Pensei
que você não permitisse que os membros de sua companhia se casassem.
— Só os membros do sexo feminino — explicou ele. — A maioria dos
homens mantém a vida profissional e a vida amorosa em compartimentos
separados. As mulheres são incapazes de fazer isso.
— Sim, já ouvi esta teoria, mas acho-a absurda. Já soube de casos em
que o trabalho de um homem foi afetado por causa de um amor não
correspondido — Sylvie insinuou pensativamente.
Antoine dirigiu-lhe um olhar exasperado.
— Vamos partir para o lado pessoal?
— Por que não? Já que você é o exemplo perfeito que prova sua
teoria...
— Talvez, mas eu não pretendo prová-la colocando você em tentação.
— Entendo. — Definitivamente não podia contar a Antoine sobre a
visita de Tom.
— E em qual categoria se encaixa sua visita a Salzburg? — insistiu
ela, ferida por sua atitude superior. — Você vai como empresário ou entre
esses amigos há uma velha chama que você deseja reacender?
Antoine dobrou o jornal, murmurando uma imprecação.
— Isso não é de sua conta — disse com raiva.
— Por que eu pertenço ao lado profissional de sua vida e não tenho
nenhuma ligação com sua vida mais íntima?
Ele não respondeu, mas observou-a criticamente.
— Quando você completará dezoito anos?
— Já completei. Meu aniversário passou despercebido para você e
para meu pai — disse Sylvie com um pouco mais de amargura.
— Você devia ter me lembrado.
— Para quê? Faria alguma diferença?
—- Agora, pelas leis inglesas, você é de maior — comentou. — Mas
ainda parece uma menininha de escola.
— E assim, não estou qualificada para ser reconhecida como a sra. de
Mericourt — disse ela com audácia.
Sylvie esperava que ele ficasse furioso com seu atrevimento, mas em
vez disso ele começou a explicar-lhe pacientemente que era melhor que uma
bailarina, no início da carreira, não se apresentasse como casada, e que ela
iria dançar usando o nome de solteira, não importava quantos maridos
tivesse.
-— Eu tenho apenas meio marido — murmurou Sylvie com rebeldia.
Um brilho estranho passou pelos olhos cinzentos que a observavam.
— Isso significa que você está começando a achar nosso acordo
aborrecido? — Antoine perguntou com delicadeza.
Sylvie sentiu seu coração quase parar de bater e baixou os olhos.
— Não, mas... —- De repente, as palavras saíram-lhe dos lábios sem
que tivesse tempo de pensar. — É humilhante que você prefira outras
mulheres e me trate como um robô. Afinal de contas, também sou uma
mulher.
— É mesmo, minha querida?
Antoine dobrou o jornal, levantou-se e aproximou-se da garota.
Quando chegou a seu lado, Sylvie sentiu-se dolorosamente atraída por seu
magnetismo, sua masculinidade e sua personalidade dominadora. Colocou
as mãos no peito para acalmar as batidas de seu coração. Sem perceber,
criara uma situação que não se sentia capaz de controlar.
— Você mudou de idéia? Quer dividir minha cama além de minha casa
e do meu palco? — perguntou-lhe suavemente. — É isso que quer dizer?
Sylvie tentou encará-lo, mas não conseguiu, e sua voz morreu na
garganta. Antoine colocou a mão sob seu queixo e levantou-lhe a face, mas a
garota continuou com as pálpebras abaixadas, dominada por uma onda de
intensa timidez.
— Sylvie, eu não lhe disse que mudaria nosso relacionamento apenas
se você o desejasse?
A garota ficou pálida e seu coração se acelerou; percebia vagamente
suas novas e conflitantes emoções, que só compreendia em parte. Teve um
impulso selvagem de jogar-se nos braços dele, mas ao mesmo tempo queria
desesperadamente fugir. Então lembrou-se de como ele lhe contara que
praticamente,a tinha comprado de seu pai e como afirmara que não amava
nenhuma mulher.
— E eu disse que isso nunca aconteceria — disse ela com orgulho e
firmeza. — Ainda tenho a mesma opinião.
Antoine abaixou a mão, ficou imóvel por alguns segundos, depois
encolheu os ombros.
— Então, não brinque com fogo — advertiu-a. — Você pode se
queimar. — Sorriu. — Tem dezoito anos e ainda é uma criança. — Deu-lhe
um tapinha condescendente na cabeça e saiu da sala.
Sylvie ficou a sós, tentando colocar ordem na confusão de emoções
que sentia, onde predominava a humilhação. O que Antoine teria feito se, ao
invés de rejeitá-lo, ela tivesse se atirado em seus braços? Ele teria ficado
bastante assustado.
Sylvie assistiu à última apresentação, antes da companhia ir para
Salzburg, usando um de seus vestidos novos.
O teatro estava cheio. No camarote do lado oposto ao seu, viu
Marguerite d'Ablay, usando um vestido preto de tecido brilhante, com os
braços e os ombros nus. Embora o camarote de Marguerite ficasse repleto de
admiradores durante os intervalos, Antoine não foi até lá.
Ele passou a noite atrás dos bastidores e, em uma das várias vezes
que os bailarinos voltaram ao palco para receber os aplausos, ele apareceu,
trazido por Leonora, que lhe deu uma flor do buquê que recebera.
Antoine não voltou para casa naquela noite, mas apareceu na manhã
seguinte para pegar sua bagagem. Sylvie tinha levado Toni para dar uma
volta no pátio quando o Mercedes apareceu, pois ele costumava usar seu
próprio carro nas viagens longas.
Antoine alcançou-a no topo das escadas, em frente à porta principal
do apartamento, que Sylvie deixara aberta. Não estava no melhor de seus
humores.
— Um convite aos ladrões — murmurou ele.
— Eu ia ficar lá fora somente cinco minutos.
— Eu também. Marie fez minhas malas?
Marie gritou do corredor:
— Um momento!
Sylvie notou que ele parecia pálido e distante. Antoine recusava-se a
encará-la e, suspeitando que tivesse passado a noite com uma de suas
mulheres, perguntou-se se seria possível que ele estivesse envergonhado.
— Divertiu-se a noite passada? — perguntou ela docemente.
— Garotinha! — resmungou ele. — Será que nunca conseguirei
transformá-la em uma dama?
— O senhor me contratou para transformar-me em uma bailarina. As
damas são uma espécie em extinção.
Marie apareceu com as malas, pedindo desculpas por seu atraso, que
ele aceitou com um gesto de mão.
— E o seu endereço? — indagou Sylvie. — Para mandar suas cartas?
— As que chegarem aqui podem esperar. A correspondência urgente
será mandada diretamente para o teatro. Eu ficarei com amigos nas
montanhas, a maior parte do tempo. Até logo, Sylvie, comporte-se bem e
trabalhe direito.
Ele saiu e Marie seguiu-o, carregando uma das malas. Sylvie escutou
a porta do carro bater e o ruído dos pneus nas pedras quando o veículo
estava saindo do pátio. Marie voltou, cansada pelo esforço que fizera.
— Então o sr. Antoine vai ficar em Schloss — disse ela com uma
expressão maliciosa nos olhos. — Acho que a companhia não verá o diretor
com muita freqüência enquanto estiverem em Salzburg. Ele ficará numa
mansão na Áustria com Hildegarde, a tia de Yvonne. — Sylvie sentiu uma
pontada no coração e reconheceu-a como sendo ciúmes.
Então lembrou-se de que Tom Travers vinha visitá-la e reanimou-se.
Talvez o destino fosse permitir que ela também tivesse um amor.
A visita de Tom coincidiu com a ausência de Antoine e Sylvie tinha as
tardes livres para encontrá-lo. O primeiro encontro dos dois foi nos jardins
das Tulherias e, como Yvonne tinha uma parte do dia livre, Sylvie levou-a
junto.
-— Meu primo — disse ela, apresentando-o para Yvonne.
Quando a criança se distraiu vendo alguns meninos andando de
barco, ele perguntou:
— Tenho que ser seu parente?
— Sim, estou cercada de dragões. Explico-lhe outra hora.
Depois disso se encontrou com ele todas as tardes e nem sempre
estava acompanhada de Yvonne. Aos poucos, contou-lhe toda sua
inacreditável história e sentiu-se aliviada com o desabafo. Passara, muito
tempo sem um confidente e sentia que podia confiar em Tom; ele não
conhecia nenhum dos amigos de Antoine e, além disso, ia voltar em breve
para a Inglaterra.
— Mas isso é ridículo! — exclamou ele. — Seu pai vai embora para a
América do Sul e deixa você com esse de Mericourt, um empresário de balé
com obsessão por sua mãe. Ele se casou com você para controlar seus
passos. Mas este seu marido não é... um louco?
— Bastante, em relação ao balé de René, o amigo que morreu. Ele vê
em mim o tipo perfeito para interpretar a música de René com a qual espera
realizar a glória eterna do amigo, e a dele próprio, é claro. Deus me ajude se
eu não conseguir fazer isso.
— Mas ele não se preocupa com você enquanto pessoa?
— Simplesmente não existo para ele — admitiu com amargura.
Percebeu que Tom estava angustiado com sua história e apressou-se a
conduzir a conversa para assuntos mais leves.
No quinto encontro, ele voltou a falar sobre o casamento dela.
Estavam nos jardins de Luxemburgo, sentados num banco.
— Você está sendo privada de amor e da realização a que tem direito
— disse Tom com sinceridade na voz.
— Encontro minha realização na dança. Ou, pelo menos, espero
conseguir encontrar.
— Sylvie, não é o suficiente. Isso é injusto.
— É muita gentileza sua preocupar-se comigo. Mas não é necessário,
eu me arranjo.
Tom colocou o braço nas costas do banco dela e fitou-a
sentimentalmente dentro dos olhos.
— Sylvie, você é uma garota encantadora. Sei que não é correto
cortejar uma mulher casada — ele ainda seguia princípios bastante
antiquados —, mas você não é realmente esposa dele. Na verdade, você nem
parece casada.
— Bem, e não sou, não é?
Os olhos de Tom embaçaram-se de emoção.
— Claro que não. Eu... acho que me apaixonei por você, Sylvie.
Querida, não fique com raiva, eu não pude evitar. Estou louco por você.
— Não estou com raiva. — Sylvie pousou levemente as mãos sobre o
tórax do rapaz e sentiu as batidas aceleradas de seu coração. — Mas eu
sinto muito, não quero magoar você, embora eu também esteja muito feliz,
porque ninguém me ama agora que mamãe e madame Lenska não existem
mais. Pensei que papai me amasse — seus lábios tremeram —, mas parece
que ele me esqueceu. Toni gosta de mim, mas ele é apenas um cachorro.
— Pobrezinha!
Dominado pelos sentimentos, Tom abraçou-a e beijou-a. Foi um beijo
de amor, mas não despertou nenhum sentimento em Sylvie. Ela ficou
passiva nos braços do rapaz.
Toni escolheu esse exato momento para fazer sentir sua presença. O
cachorro subiu no colo de Sylvie e separou o abraço.
Tom voltou para a Inglaterra com muitas promessas de afeição eterna
e Sylvie não ficou muito triste por vê-lo ir embora. Ele lhe dera algo para
meditar. Antoine devia saber muito bem que o casamento podia ser
dissolvido, embora não tivesse feito a ela nenhuma alusão de que havia uma
saída.
Antoine voltou para Paris bronzeado e bem disposto depois da
temporada nas montanhas, e a companhia foi dispensada para umas férias
antes de começar a ensaiar um novo balé.
Iam reabrir a próxima temporada com "O Quebra-nozes", para o qual
uma bailarina russa havia sido contratada. Antoine estava exultante com o
contrato, pois ela era muito famosa.
O ponto culminante da semana foi a chegada de uma carta de Tom,
que Sylvie respondeu quando pensavam que ela estava dormindo. Como se
sentia aborrecida e solitária, expressou-se mais afetuosamente do que
queria.
Logo a companhia começou a ensaiar outra vez e Sylvie passou a ir
todas as manhãs para o teatro, mas ainda não houvera menção dela
apresentar-se como parte integrante do corpo de baile. Cada dia ficava mais
deprimida pela demora, embora não dissesse isso para Tom. Se era verdade
que Antoine se desapontara com o seu desempenho e que nunca ajudaria a
sua carreira de bailarina, Tom seria seu único refúgio. Mas hesitava em
alimentar as esperanças do rapaz, esperanças que não compartilhava, pois,
embora estivesse tentando convencer-se de que estava se apaixonando, não
achava muito atraente a perspectiva de casar-se com Tom.
Marie continuou sua fiel aliada, arrumando-lhe selos e, quando
pegava a correspondência, ocultava a carta com selos ingleses se o patrão
estava por perto.
Uma noite, quando Antoine havia ido jantar fora e Yvonne estava
acamada com um leve resfriado, Marie entregou-lhe uma carta.
— Não pude entregá-la antes, porque o patrão estava aqui quando
você voltou do teatro, mas agora pode deliciar-se com ela — disse-lhe,
piscando um olho. — Não precisa temer interrupções.
Sylvie encolheu-se no sofá e abriu a carta. Tom escrevia bem e
conseguia fazer sua vida, não muito agitada, parecer interessante, pelo
menos no papel.
Sylvie não ouviu Antoine entrar. Ele parou ao lado da porta, uma
elegante figura em traje de gala, com uma camélia branca na lapela,
parecendo-se muito com o grão-duque de Sylvie, enquanto apreciava a pose
graciosa da garota no sofá, com a cabeça inclinada sobre as folhas escritas.
De repente ele percebeu que ela estava lendo e viu o envelope que
caíra no chão. Sem fazer ruído, entrou na sala e, pegando-o, leu o subscrito,
notando o selo estrangeiro.
— Você recebeu uma carta, Sylvie?
Ela assustou-se violentamente e apertou o papel de encontro ao
coração, enquanto um rubor de culpa se espelhava por todo seu rosto.
— Maestro! Marie disse-me que o senhor ficaria fora hoje até tarde.
— A pessoa com quem eu tinha combinado jantar desmarcou o
compromisso na última hora e resolvi voltar para casa. É claro que você não
me esperava e estava muito absorvida na leitura para sentir eu me
aproximar.
Sua voz tinha uma suavidade de seda, mas seus olhos cinzentos a
sondavam. Ele bateu no envelope com os dedos.
— Quem escreve para você da Inglaterra?
— Tia Agnes — disse Sylvie prontamente, tentando recuperar sua
presença de espírito.
— Sylvie, não minta para mim. Você não se corresponde com sua tia e,
pela sua expressão, essa aí só pode ser uma carta de amor.
— Oh, não, imagine, não é não. — Sylvie tentava pensar rápido. — É
apenas uma cartinha de um correspondente... é, de um correspondente.
— Uma cartinha — ele observou, olhando o número razoável de folhas
que ela segurava nas mãos. — E desde quando você arrumou um
correspondente?
Sylvie resolveu ser franca; afinal de contas ele nunca a proibira de
escrever cartas.
— Bem, foi um namorado que eu arrumei — admitiu.
— Um namorado, que expressão mais ridícula! E você ainda diz que
não é uma carta de amor? Acho difícil acreditar nisso. Fale-me desse
namorado — continuou, no mesmo tom de voz suave e seguro. — Onde
você... o arrumou?
— Em Monte Carlo. É o rapaz que me ajudou a salvar Toni.
— Lembro-me dele, mas como ele ficou sabendo que você estava aqui?
— Eu contei a ele.
— Você esteve se correspondendo com ele escondida de mim?
— Bem... não exatamente.
— O que você quer dizer com "não exatamente"?
— O senhor não tem o direito de controlar minha correspondência. —
Ela estava recuperando rapidamente a coragem que o inesperado
aparecimento de Antoine havia abalado. — Portanto, não acho que estava
fazendo nada escondido.
— Mas por que você não me contou?
— E por que deveria? Não pensei que pudesse se interessar.
— Você sabia muito bem que eu ficaria interessado — acusou-a.
— Não me preocupei com cartas porque não pensei que você tivesse
alguém com quem se corresponder.
— Isso lhe serviria muito bem, não é? O senhor tentou impedir que
papai me escrevesse, e parece que conseguiu. O senhor não quer que eu
tenha uma vida própria... — Antoine estendeu a mão para impedi-la de falar,
mas a garota continuou, despreocupadamente:
— Eu preciso de alguns verdadeiros amigos, além do balé. Tom é uma
boa pessoa. Ele veio ver-me... — Antoine exclamou alguma coisa. — Sim, ele
veio, veio da Inglaterra até aqui, enquanto o senhor se divertia em Salzburg.
Encontrei-me com ele todos os dias. Ele foi muito compreensivo com relação
a todas as coisas.
— Compreensivo? Você está querendo me dizer que contou tudo a ele?
— indagou Antoine, incrédulo.
— Contei tudo — declarou Sylvie, desafiadoramente.
— Sua idiota! — Estava furioso com sua indiscrição. — Como se
atreveu a fazer uma coisa dessas?
— E por que não deveria? Quero confiar em alguém, alguém que seja
simpático. Estou trabalhando arduamente para você, como lhe prometi, mas
sou jovem e estou quase sempre sozinha. Tom não vai interferir em minha
carreira e ele me ama... Eu preciso que alguém me ame, maestro.
— Amor! — Um imenso desprezo estampou-se na face e na voz de
Antoine. — Vocês mulheres e seu romantismo eterno!
— É pecado querer um romance de amor?
— Romance de amor! São enfeites para mascarar os fatos da vida. —
Fitou-a inquisidoramente. — Você imagina que corresponde ao amor daquele
sujeitinho!
Erguendo a cabeça, ela disse em tom de desafio:
— Não é imaginação, eu sei que amo Tom, mas o amor é algo que está
além de sua compreensão.
Ignorando aquele ataque, Antoine indagou:
— Você não me fez certas promessas naquele cartório em Menton?
— Oh, aquela coisa sem importância, como você mesmo disse! —
Sylvie riu com um pouco de amargura. Então, todo o ciúme contido e as
humilhações que ele a fizera passar vieram à tona. — Aquilo não significa
nada para você, por que deveria significar algo para mim? Você não quer a
responsabilidade de ter uma esposa de verdade, ela poderia desviá-lo do seu
precioso balé. Você gosta de brincar de amor com suas bonequinhas
enquanto se esconde atrás de um casamento falso, sabendo que isso lhe
poupa ter que assumir e realizar as expectativas que desperta nelas. Eu
acho você desprezível!
Antoine não estava ouvindo as palavras da garota; ele a observava
como se nunca a tivesse visto. Ele não sabia que ela possuía tanta força.
Percebendo que Sylvie havia parado de falar, e que parecia esperar algum
comentário, Antoine disse:
— Para quê tudo isso? Você sabe que não posso casar-me com outra
mulher, pois já sou casado com você.
— Mas se você estivesse livre, não gostaria de fazer isso?.
— É bem possível — retrucou ele com indiferença na voz. — Mas parto
do princípio de que não estou livre.
Aquela afirmação chocou-a, pois ela estava certa de que ele não queria
casar-se com nenhuma de suas namoradas. Com o orgulho ferido, propôs
rapidamente:
— Então vamos dissolvê-lo! Não seria difícil, não é?
— Dissolver o quê?
— Esta farsa que é nosso casamento. Tom disse que um casamento
não consumado pode ser anulado facilmente.
Pela primeira vez Antoine deu mostras de raiva.
— É isso que o inglesinho idiota tem-lhe dito? Ele quer que nós
anulemos nosso casamento para que você se case com ele? É isso?
— Isso faz sentido para mim.
— Sentido! Você deve estar louca! Então você é igual a todas as outras,
a sua mãe, a Gianetta... está preparada para jogar fora todas as chances de
uma carreira bem-sucedida por causa desta tolice chamada amor.
Sempre o mesmo velho argumento, ele reagia como era de se esperar.
Sylvie baixou a cabeça, tentando ocultar a expressão travessa de seus olhos,
enquanto dizia provocantemente:
— Existem outras coisas na vida além do balé.
Ele suspirou.
— Sylvie, estou desapontado com você.
Ela conseguiu forçar uma risada e disse com impertinência.
— Cometi um grande erro ao aceitar suas condições, mas ainda era
muito jovem e imbecil. Não havia percebido o que significava estar
apaixonada, que o amor podia ser tão importante... — ela interrompeu-se,
incapaz de continuar. O amor não era tão importante, não o amor de Tom, e
ela estava dando a Antoine a oportunidade de mandá-la embora para
sempre.
— Pelo contrário, você está sendo imbecil agora — retrucou Antoine
friamente. — Foi para salvá-la de uma idiotice como essa, seguindo sua
própria sugestão, que me casei com você.
— Não sabia o que estava fazendo naquela época — disse Sylvie.—
Mas agora descobri que possuo um coração, e não vou deixar que o senhor o
magoe.
— Não vou mais discutir nenhum desses absurdos, Sylvie — disse ele
com firmeza. — Você deve entender de uma vez por todas que é minha
propriedade e que vai continuar sendo minha.
Aquilo estava indo longe demais! Nem mesmo pelo privilégio de
permanecer na companhia de balé de Antoine ela aceitaria uma tirania como
aquela.
— Não sou — gritou, indignada. — O senhor não é meu dono!
— Não? — O sorriso que acompanhou esta pergunta sustentava uma
ameaça.
Involuntariamente ela apertou as mãos.
— Oh, não venha bancar o grão-duque — disse ela com escárnio. — O
tempo dos servos já passou e os maridos também não são mais donos das
esposas. O casamento moderno é... uma sociedade.
Aquela palavra encheu de tensão o ambiente. No dia do casamento,
Antoine havia se referido à garota como sua sócia, mas Sylvie nunca
conseguira compreender direito.
— Eu não preciso de uma sócia, Sylvie — disse-lhe com desdém. —
Mas eu esperava criar uma bailarina. Quanto a seu coração, receio que será
magoado. Você terá que tirar este tal de Tom dos seus pensamentos. Você
não vai mais se comunicar com ele.
Antoine afastou-se e sentou-se numa poltrona, acendendo um cigarro
calmamente, como se o assunto estivesse encerrado. Aquele veredicto frio e
implacável congelou o sangue da garota.
— Sua vontade não é a mais importante, Antoine — disse ela, pela
primeira vez chamando-o pelo nome, mas nenhum dos dois percebeu este
fato. — Faça o que quiser, maltrate-me se assim desejar, mas você não pode
controlar meu coração. Ele pertence a Tom.
Aquilo era um desafio. Ela não estava inteiramente convicta de que
Tom, apesar de suas afirmações, receberia bem sua chegada repentina; e
nem ela estava querendo abandonar sua carreira, pois estava certa de que,
se continuasse levando a sério seu trabalho, conseguiria obter sucesso.
O que ela mais queria era levar Antoine a confessar que ainda
precisava dela, que até mesmo a aceitaria em sua vida, se fosse preciso este
sacrifício para mantê-la no corpo de baile, mas ao exprimir seu desejo,
compreendeu que aquilo era impossível. Antoine nunca faria concessões.
O rosto de Antoine continuava tão frio quanto antes e Sylvie teve uma
leve sensação de inquietude ao notar que seus olhos brilhavam
estranhamente.
— Então seu amado vai mandar buscá-la, não é? Vocês já
combinaram tudo? — perguntou.
Sylvie jogou a cabeça para trás, com orgulho, ao encará-lo.
— Sim.
— E quando estiverem na Inglaterra tratarão de anular nosso
casamento?
— Esta é a nossa idéia.
No mesmo tom de voz calmo e frio, Antoine lhe disse:
— Talvez esse tal de Tom mude de idéia quando descobrir que você é
minha esposa de verdade.
Por um momento Sylvie não compreendeu o significado daquelas
palavras, mas, conforme Antoine apagou o cigarro e levantou-se lentamente,
não pôde deixar de entendê-las.
— Você... você deve estar brincando — gaguejou ela.
— Pareço estar? Você realmente imagina que, depois de gastar tanto
tempo e dinheiro com você, simplesmente a entregaria para aquele rapaz
ridículo?
A cor desapareceu da face de Sylvie e seus olhos tornaram-se som-
brios ao perceber que a calma de Antoine havia sido apenas uma máscara
para encobrir uma fúria terrível e crescente, que agora tinha surgido em
toda a sua plenitude.
Forçando-se a falar com calma, Sylvie perguntou:
— Você também não quer ficar livre?
— Não. Casei-me com você por um determinado propósito que ainda
não foi realizado — retrucou ele. — Até que seja, não haverá liberdade para
nenhum de nós dois.
Então ele ainda acreditava que ela podia interpretar "Os Cisnes". Um
ímpeto de alegria surgiu na garota, para extinguir-se instantaneamente pelo
medo. Antoine era obcecado pelo balé de seu amigo e por isso ele estava
preparado para sacrificar a própria felicidade, e a de quem quer que fosse.
Antoine aproximou-se e, pegando com firmeza os dois pulsos, forçou-a
a dobrar os cotovelos, trazendo as mãos dela até seu peito. Sylvie
permaneceu passiva durante aquele estranho abraço, com os olhos
fechados. Antoine sorriu com sarcasmo.
— Onde está toda a sua força, todo o seu mau gênio, pantera? Não
precisa ficar tão apavorada. O que vai acontecer com você é o resultado
normal de todos os casamentos. — Segurou os dois pulsos de Sylvie na
mesma mão e apertou-a ainda mais com outro braço.
— Não haverá mais perigo de dissolver um casamento não consumado,
depois desta noite — disse ele implacavelmente. — Não pretendia que isso
acontecesse até que você fosse mais adulta, mas parece que esperei muito
tempo. — Largou os pulsos de Sylvie, para abraçá-la mais completamente. —
Você acha que eu permitirei que... esse Tom se aposse de minha
propriedade?
Sylvie debateu-se, dominada pelo pânico, mas ele subjugou-a com
uma força cruel.
— Não! — gaguejou ela. — Não... você prometeu... e você entendeu
errado. Não quis dizer... Tom não é...
Ela queria explicar a Antoine que o enganara, mas não conseguia falar
com coerência, pois as batidas selvagens de seu coração, o caos de suas
emoções, o tumulto que a proximidade daquele homem lhe causava
impediam-na.
— Não é como eu? — Ele levantou-a e riu suavemente. — É um
amante de segunda categoria, eu diria, mas eu tenho sangue tártaro
correndo em minhas veias. Suas asas precisam ser aparadas, meu cisne
selvagem. Agradeça por não estarmos vivendo há cem anos atrás, senão eu a
teria disciplinado com o chicote.
Sylvie deu um grito de completo terror.
— Não — gaguejou. — Não, Antoine, isso não! Você quer fazer com que
eu odeie você?
— Suas reações emocionais são secundárias — retrucou ele. — Não
vou deixar que dois idiotas zombem de mim.
— Antoine, por favor — murmurou ela —, você prometeu...
— Você já quebrou as suas promessas — disse Antoine —, agora eu
estou exigindo meus direitos. Não haverá mais possibilidade de anulação de
nosso casamento depois desta noite.

CAPITULO VII

Sylvie acordou e viu o sol infiltrando-se no aposento através das


cortinas. Automaticamente assoviou para Toni, que sempre esperava ser
chamado para subir em sua cama. Toni não estava lá. Lembrou-se então que
ele já não estava lá antes, muito antes, quando voltara cambaleando para
seu quarto, já quase amanhecendo. O sono havia atenuado os
acontecimentos daquela noite, fazendo-os parecer um sonho. De modo
surpreendente, já que ele estava furioso, Antoine foi tão gentil com ela
quanto qualquer marido seria com uma esposa inexperiente. Havia ternura
em sua voz e na maneira como a tocou, e ele era um perito nas coisas do
amor... Suspirou e moveu-se inquieta. Teria sido tudo tão diferente se tivesse
sido uma verdadeira noite de núpcias e se os dois se amassem, mas ela não
tinha nenhuma ilusão quanto aos verdadeiros sentimentos de Antoine.
Quando lhe pareceu que ele estava adormecido, e as batidas de seu próprio
coração haviam voltado à normalidade, ela se levantou da cama. Os
primeiros raios de luz começavam a atravessar as venezianas, mas o ruído
da chave na fechadura o acordou.
— Sylvie — tinha sido apenas um sussurro — não me deixe. — Não
era uma ordem, mas quase uma súplica.
Quando já estava saindo, Sylvie disse-lhe:
— Nunca vou perdoar você, nunca! Você é um bruto insensível e eu o
odeio!
— Querida, venha cá.
Sylvie saiu correndo, batendo a porta atrás de si, ainda que aquelas
palavras a tivessem tocado e sentisse um pouco de vontade de ficar.
Agora, lembrando-se do que acontecera, resolveu esquecer para
sempre aquela noite. Antoine quebrara as promessas que lhe fizera, portanto
as suas também se tornavam sem efeito.
Ele é impossível, pensou Sylvie indignada, e eu preciso ir-me embora
daqui antes que ele me desmoralize completamente. Ficaria em seu quarto
até que tivesse certeza que Antoine já tinha saído.
Marie bateu à porta e abriu-a, deixando Toni entrar.
— Trouxe seu café da manhã — disse Marie, colocando um bandeja
numa mesinha ao lado da cama. — Achei que talvez você quisesse repousar
— completou e olhou para a garota com curiosidade.
Sylvie teve vontade de gritar. "Está tudo bem, eu sou a sra. de
Mericourt", mas sabia que se Antoine não confirmasse o que estava dizendo,
Marie nunca acreditaria em suas palavras.
— O sr. Antoine saiu muito cedo — informou-lhe. — Disse que não
voltará durante o dia todo. A que horas você tem que estar no teatro?
— Não tenho que ir hoje — disse-lhe Sylvie. Vou passear com Toni.
Tendo certeza de que Antoine não estava em casa, Sylvie levantou-se e
tomou um banho. Procurou no armário alguma roupa que não chamasse
atenção. Encontrou no lado direito do móvel um pacote que guardara lá logo
depois de sua chegada e que nem olhara mais. Desembrulhando-o,
descobriu com alegria que se tratava de seus jeans e suéter, que ela
acreditava tivessem sido jogados fora, mas madame Lescaut os salvara.
Estavam lavados e costurados. Vestida com aquelas roupas familiares,
sentiu-se novamente a mesma Sylvie Allen que sempre fora, livre e que
nunca se submetera aos caprichos de um homem, nem mesmo aos de seu
pai.
Marie assustou-se quando a garota apareceu na cozinha, vestida
naqueles trajes pobres.
— Já que não preciso ir ao teatro, pensei em dar um longo passeio —
disse Sylvie secamente.
— Mas, Sylvie... — protestou ela.
— É um pecado ficar trancada aqui num dia tão bonito — Sylvie
interrompeu-a. — Não vou estar de volta para o almoço. Será que você não
podia ser boazinha e emprestar-me algum dinheiro para eu comprar um
lanche?
— O sr. Antoine não lhe deu nenhum dinheiro?
— Nem um centavo, e nem eu quero que ele me dê qualquer dinheiro
até que eu esteja recebendo um salário pelo meu trabalho.
Marie, bondosa como era, pegou sua carteira e tirou algumas notas.
Assoviando para Toni, a garota desceu as escadas correndo em direção
ao pátio.
Alguns minutos depois que ela havia saído, o telefone tocou e Marie,
após ter anotado o recado, foi para o pátio. Sylvie tinha desaparecido.
A garota caminhava ao longo da margem esquerda do Sena. Sentia-se
bem e completamente livre como nunca mais havia se sentido desde que
entrara pela primeira vez na casa de Antoine. Ele e toda sua arrogância
tinham ficado para trás, e ela esperava ardentemente nunca mais vê-lo.
Entretanto, não podia ficar caminhando o dia inteiro; precisava traçar
algum plano de ação. Tom havia lhe afirmado que ela poderia recorrer a ele,
caso precisasse.
Outra alternativa seria voltar para Provence. Ela era conhecida na
cidade e alguns de seus antigos vizinhos podiam conseguir-lhe um emprego
com o qual poderia se sustentar até que arrumasse outro contato numa
companhia de balé.
Comprou pãezinhos de presunto e maçãs com o dinheiro que Marie
lhe dera e comeu-os sob as árvores. Começou então a andar novamente
quando, para sua surpresa, viu saindo de uma butique uma figura
conhecida: Gianetta Morrison. O reconhecimento foi mútuo.
— Ah, a última protegida do maestro — disse a mulher. — É fácil
perceber que você não prosperou. O que aconteceu? Você foi posta na rua?
Parece que ele abandonou você.
— Não foi assim — disse Sylvie, indignada. — Ele não me botou para
fora, fui eu quem saí. — Olhou para a italiana, perguntando-se se devia
atrever-se a pedir sua ajuda. — Quero ir-me embora de Paris... — começou.
Gianetta interrompeu-a com desdém, passeando os olhos pelas roupas
pobres de Sylvie.
— Você não mereceu nem uma passagem de volta? Mas eu não
costumo dar esmolas.
Um furgão cruzou a rua com um alto-falante fixado no teto. Sylvie não
prestou atenção ao que estava sendo anunciado, pois estava distraída com
seus próprios problemas e nem ouviu o bater de saltos na calçada atrás
dela, até que Gianetta gritou:
— Ei, você... Espere um momento!
Sylvie parou e a italiana aproximou-se dela.
— Seu nome é Sylvie Allen, não é?
Surpresa, Sylvie admitiu que sim. Para aumentar ainda mais seu
assombro, Gianetta passou o braço em seus ombros, ocultando-a com a
capa, enquanto começava a falar rapidamente.
— Desculpe-me por ter sido tão mal-educada, mas foi só pensar
naquele homem para eu me aborrecer! Mas você também é vítima dele,
portanto é claro que vou ajudá-la. Vamos pegar um táxi e você voltará
comigo para meu apartamento. Você não gostaria de comer alguma coisa e
descansar um pouco? Depois discutiremos seus planos. — Os grandes olhos
negros brilhavam com triunfo. — Você não deve voltar para ele nunca,
nunca.
— Não quero isso — disse Sylvie, dominada por aquela efusão.
Gianetta caminhava em direção ao meio-fio, quando sua atenção foi atraída
para Toni, que corria atrás dela.
— Ah, sim, o cachorro — disse. — Mas ele tem que ir com você?
— Não posso abandoná-lo — comentou Sylvie. Ela estava espantada
com a mudança de atitude de Gianetta.
— Você mora em Paris? — perguntou a garota. — Pensei que seu
marido fosse inglês.
— Ele é, mas trabalha em Paris. Tem um cargo na Embaixada — disse
Gianetta com ar de superioridade.
O carro estacionou em frente a um moderno bloco de apartamentos,
Gianetta desceu e pagou a corrida apressadamente. O apartamento ficava no
terceiro andar. Sylvie e Gianetta acomodaram-se na sala de estar. Uma
criada italiana apareceu quando foi chamada.
— Traga comida, Saneia — pediu Gianetta dramaticamente. — Esta
criança parece estar morrendo de fome. — Olhou com ar duvidoso para Toni.
— Traga algo para o cachorro.
— Acho que ele gostaria de beber um pouco de água — disse Sylvie
timidamente. — Será que eu não poderia acompanhá-lo até a cozinha?
— Não, não. Saneia, traga uma travessa com água para o cachorro.
Saneia disse algo para sua patroa em italiano, o que fez com
queGianetta risse alegremente.
— Si, Saneia, si — murmurou. — Mas traga logo a comida.
Aquela troca de palavras causou uma sensação desagradável em
Sylvie, e ela não conseguia imaginar por que sua presença dera tanta
satisfação a Saneia. Entretanto, esqueceu-se disso quando a refeição
chegou.
Enquanto comia, Gianetta recostou-se graciosamente numa poltrona e
começou a perguntar-lhe quais eram seus planos.
Sylvie admitiu que ainda não decidira se voltava para Provence ou se
tentava ir para a Inglaterra. Gianetta insistiu que a última opção seria o
procedimento mais inteligente, pois era seu país de nascença. Disse-lhe que
seu marido poderia cuidar de seu passaporte, pois a posição que ocupava na
Embaixada permitia que ele resolvesse uma emergência como aquela.
Depois começou a fazer perguntas sobre Antoine, mas Sylvie dava
respostas evasivas, sem querer contar que morava no apartamento de
Antoine, pois não sabia o que a italiana poderia pensar. Disse a Gianetta que
já não agüentava mais ser oprimida e não poder escolher mais seus próprios
amigos.
Isto fez com que a italiana tecesse uma longa crítica à arrogância de
Antoine.
— O treinamento dele é terrível. Praticar, praticar, praticar, até que a
gente se sinta mal só em ver a barra. E não é só isso, é preciso aprender
muitas outras coisas para se chegar ao ponto exigido por ele. É exigente
demais!
Depois deu a entender que tivera um caso com ele quando tinha
atingido o padrão de perfeição que ele exigia, dando muitas indiretas a
Sylvie, por sua falta de sofisticação e aparência infantil. Havia algo por trás
de suas palavras, e Sylvie teve a impressão de que ela estava com um ciúme
terrível de sua própria ligação com o empresário.
Ela também parecia inclinada a pensar que Sylvie estava enamorada
de Antoine e que havia fugido por estar magoada por sua indiferença. Para
dissipar aquela impressão, Sylvie mencionou Tom Travers e Gianetta
mostrou alívio e entusiasmo.
— Você tem um namorado? Mas é claro que você deve procurá-lo. Foi
por essa razão que você fugiu? Oh, mas com que arrebatamento ele vai
recebê-la!
— Mesmo eu não tendo dinheiro e nem roupas? — perguntou Sylvie
em dúvida.
— Essas coisas não importam quando se está apaixonada — garantiu-
lhe Gianetta. — Posso, entretanto, arrumar-lhe um pequeno empréstimo.
Quando a garota acabou de comer, Gianetta disse-lhe que tinha de se
encontrar com o marido para jantar e que explicaria a situação de Sylvie
para ele.
— Enquanto isso, você vai ficar aqui — disse-lhe. — Saneia está
arrumando o quarto de hóspedes para você. —- Percebendo a expressão
assustada de Sylvie, continuou: — Você estará segura aqui e será apenas
por esta noite. Amanhã tomaremos providências para você ir embora, mas
hoje já é muito tarde para fazermos qualquer coisa.
Convidou a garota para ir ao seu luxuoso quarto, enquanto mudava de
roupa. Logo depois Saneia entrou e disse que o táxi estava esperando na
porta.
— Bem, já vou. Não saia, Sylvie. Saneia lhe providenciará tudo o que
precisar. Como nós voltaremos tarde, é melhor que você não espere
acordada. Até mais.
Mas o olhar que ela deu à garota enquanto saía não foi absolutamente
amigável, na verdade foi, malévolo.
Sylvie foi até a janela e olhou para fora. Talvez agora sua ausência já
tivesse sido descoberta. Ela deveria estar se sentindo feliz, pois conseguira
escapar com facilidade, graças ao encontro com Gianetta. Logo estaria fora
do país, mas começava a sentir uma saudade crescente do apartamento em
frente ao rio, que fora sua casa durante seis meses.
De repente, uma certeza veio-lhe à mente. Não desejava ir para a
Inglaterra. Queria voltar para o conforto e a tepidez da casa de Antoine, para
o afeto de Marie e retomar sua vida com Antoine, fossem quais fossem as
normas que ele impusesse.
Como se percebesse que Sylvie precisava de conforto, Toni aproximou-
se e lambeu-lhe a mão, fazendo-a voltar de seu devaneio com um
sobressalto.
Estava se sentindo muito cansada e resolveu deixar seus problemas
para serem discutidos na manhã seguinte, quando encontraria o marido de
Gianetta. Decidiu então se deitar e, quando abriu a porta, viu que Saneia
estava utilizando o telefone do vestíbulo. A criada dirigiu-lhe um olhar
culpado e Sylvie fechou a porta outra vez, rapidamente. Caso Saneia
estivesse aproveitando a ausência da patroa para dar um telefonema
particular, não tinha nada a ver com isto.
Antes de ir para a cama, Toni devia passear um pouco. Gianetta
havia-lhe dito que não saísse, pois parecia imaginar que Antoine estava
procurando por ela. Achou que isso era muito improvável e a rua parecia
deserta. Colocou a coleira em Toni e dirigiu-se para a porta principal do
apartamento.
Embora tivesse feito pouco ruído, a criada devia tê-la ouvido pois,
antes que ela pudesse baixar a maçaneta, ela veio correndo impedi-la.
— Senhorita, não, você não deve sair. — Sylvie apontou para o
cachorro e tentou explicar que ele precisava sair. Saneia ficou excitada. —
Isso é uma desculpa — disse ela. — Você está querendo fugir, mas eu não
vou deixar.
— Ficarei fora somente cinco minutos e vou voltar — garantiu Sylvie.
Saneia pegou o braço dela e levou-a de volta para a sala sem nenhuma
dificuldade. Quando lá chegaram, Sylvie tentou explicar mais uma vez o que
desejava fazer e Toni começou a parecer agressivo.
Saneia cruzou os braços e ficou com as costas voltadas para a porta,
impedindo a passagem. O inglês que falava tornou-se um pouco difícil de
entender, mas Sylvie compreendeu a palavra "polícia".
— Mas eu não fiz nada errado! — exclamou ela cheia de espanto. — O
que a polícia tem a ver comigo?
Neste momento a expressão de Saneia tornou-se malévola. Sylvie devia
ser a criminosa procurada; ouvira apelos no rádio descrevendo a garota e o
perigoso cachorro.
— Que horror! — disse Sylvie firmemente. — Você deve estar me
confundindo com outra pessoa.
Mas não, aquilo não era possível; tudo combinava e o cachorro era
perigoso. Apontou para Toni que rosnou, justificando seu comentário.
Sylvie começou a rir; era absurdo acreditar que Antoine tivesse usado
todos os recursos para tentar encontrá-la. Parou de rir, lembrando-se do
furgão com alto-falante e da mudança de atitude de Gianetta depois que este
passara. Mas a italiana não tinha alertado a polícia; em vez disso, oferecia-
lhe todas as possibilidades de sair do país. Será que, por descobrir que
Antoine queria Sylvie de volta o mais breve possível, decidira mandá-la
embora do país para que ele não a encontrasse? Naquele quarto de hotel em
Monte Carlo, ela havia dito a ele: "Um dia você me pagará!"
Isto fazia sentido mas dava à sua insignificante pessoa uma grande
importância. Não conseguia acreditar nem que Antoine estivesse tão ansioso
por encontrá-la — embora este pensamento tenha lhe trazido um pouco de
prazer — nem que o rancor de Gianetta fosse tão forte a ponto de assumir as
despesas e os problemas com os quais estava se envolvendo.
Mas isto não explicava a atitude de Saneia. Se Sylvie iria ser mandada
para fora do país, por que a empregada havia chamado a polícia? Tinha
certeza de que fora esta a razão do seu telefonema.
Sylvie riu abertamente; não era bondade que motivava Gianetta.
Saneia, entretanto, agira de acordo com suas crenças.
— Eu não fiz nada — suplicou à indiferente Saneia. — Você não
ganhará nada me trancando aqui dentro. Por favor, deixe-me sair.
A campainha soou. Saneia dirigiu-lhe um olhar triunfante e apressou-
se em atender à porta enquanto Sylvie se preparava intimamente para
enfrentar a polícia.
Houve um murmúrio de vozes e então Antoine de Mericourt entrou na
sala a passos largos.
Ao ver Antoine, o coração de Sylvie disparou de felicidade. Ele a
encontrara e a levaria de volta para casa. Fitou-o apreensivamente, mas não
havia nada de ameaçador em sua expressão. Suas primeiras palavras foram
tranqüilizadoras:
— Sylvie! Graças a Deus você está sã e salva!
— Você estava preocupado comigo? — perguntou, surpresa.
— Preocupado? — Ele se sentou numa poltrona como se o alívio o
tivesse subjugado. — Eu estava começando a achar que teríamos que
colocar dragas no Sena. Por que você fez isto?
— Você deve saber.
Antoine corou e uma estranha expressão estampou-se em seus olhos.
Baixou a cabeça e olhou para onde Toni estava deitado, abanando a cauda
em sinal de alegria. Antoine afagou as orelhas do animal, então levantou a
cabeça e olhou para Sylvie.
— Você me odeia tanto assim? — perguntou ele, quase que com
humildade.
Sylvie teve vontade de gritar que não o odiava nem um pouco e que ele
não precisava reprovar-se.
— Este era o último lugar onde esperava encontrá-la — comentou ele.
— Como foi que você veio parar aqui e onde está Gianetta?
— Foi jantar fora. Encontrei-a por acaso na rua e ela se ofereceu para
ajudar-me.
Antoine fitou-a, incrédulo.
— Gianetta fez isto?
— Sim. Ela ia mandar-me de volta para a Inglaterra.
— Ah! Para casa do Sr. Tom, não é?
— Não havia ninguém mais — disse Sylvie fracamente.
Antoine levantou-se.
— Este encontro foi muito oportuno para vocês duas — disse ele
firmemente. — Há algum tempo ela vem pedindo que eu a contrate de novo,
mas é claro que tenho recusado. Ela ficaria muito contente com a
oportunidade de eliminar uma concorrente. Mas receio que os planos de
vocês não se realizarão porque vocês duas subestimaram a ganância de uma
determinada pessoa. — Olhou para Saneia, que não compreendia nada. —
Venha cá — ordenou ele — você terá sua recompensa.
Saneia aproximou-se, sorrindo agradavelmente. Antoine tirou do bolso
um imenso bolo de notas e colocou-o nas mãos da mulher.
— Faça bom uso dele — murmurou.
Ele colocou a mão sobre o ombro de Sylvie e forçou-a a caminhar em
direção à porta.
— Vamos para casa de uma vez por todas.
Sylvie foi dominada pela vergonha e humilhação. Antoine mais uma
vez a tinha comprado.
Quando estavam dentro do elevador, ela perguntou com voz trêmula:
— Você contará a Gianetta o que aconteceu?
— É lógico que não. Não tenho vontade alguma de comunicar-me com
aquela mulher.
— Mas não é justo que Saneia pague por isto.
— Muito pelo contrário. Embora desprezando os métodos que utilizou,
sou agradecido a ela por ter-me avisado de seu paradeiro. Gianetta terá que
aceitar, seja qual for a história que ela inventar para explicar seu
desaparecimento.
O Mercedes estava estacionado ao lado do meio-fio e, pegando Toni
pela coleira, Antoine colocou-o no banco traseiro.
— Mas você, minha querida, vai sentar-se a meu lado — disse para
Sylvie com um sorriso nos lábios. — Marie devia ter pensado melhor antes
de deixá-la sair parecendo uma mendiga.
— Você não deve culpá-la. — Sylvie defendeu a governanta. — Eu não
pedi a permissão dela para sair e ela pensou que eu ia voltar. Quando você
notou minha falta?
— Quando você não apareceu no teatro, telefonei para o apartamento.
Marie disse que você havia saído, usando roupas muito ordinárias, e que
tinha levado o cachorro com você.
— Eu estava na Delegacia de Polícia quando aquela mulher telefonou
— disse ele, não querendo admitir que passara a maior parte do dia
procurando-a.
Sylvie sentiu-se reanimar, pois nunca imaginou que Antoine pudesse
preocupar-se tanto com ela. Seria possível que Antoine nutrisse algum
sentimento por ela, afinal, e que tomara aquelas atitudes na noite anterior
levado pelo ciúme? Esta suposição era excitante e seu coração começou a
bater mais depressa, mas as palavras que Antoine disse em seguida
gelaram-na.
— Você não podia ter desaparecido num momento mais inoportuno. A
apresentação desta noite teve que ser adiada, pois Netta quebrou o
tornozelo. Como você estudou o papel, iria substituí-la. Tivemos que
substituir o balé e a bailarina que contratei receberá uma soma fabulosa por
algo que não será apresentado. A quantia que eu paguei a ela é uma
ninharia comparado com o que sua fuga custou à companhia.
Antoine falava com uma brutalidade contida e Sylvie retraiu-se mais
no banco do carro.
— Mas não havia outra pessoa que pudesse ter dançado no lugar de
Netta?
— Não da maneira como eu queria.
O trânsito começou a mover-se.
— Acho isso um exagero — disse ela, quando pôde se fazer ouvir. —
Sou apenas uma principiante e você disse que eu ainda não estava
preparada para aparecer em público.
Antoine então retrucou, em voz tão baixa que ela mal pôde escutar:
— Você está perfeitamente preparada, eu só queria aperfeiçoá-la.
Sylvie sentiu seu coração parar de bater. Será que tinha entendido
direito?
— Você está querendo dizer... — Sylvie começou a falar, ansiosa. —
Oh. esqueça — disse com impaciência.
A garota suspirou, achando que entendera mal suas palavras.
— Você vai comparecer ao teatro amanhã bem cedo — continuou ele
—, e quem sabe nós a prepararemos para você se apresentar depois de
amanhã. É mais do que você merece.
— Sim — concordou a garota com humildade. — Lamento ter causado
tantos problemas.
— É bom mesmo que lamente.
Antoine estacionou o carro no pequeno pátio e, inclinando-se sobre
Sylvie, abriu a porta do lado dela.
— Marie está esperando você — disse ele. — É melhor que vá deitar-se
imediatamente. Amanhã terá um dia extenuante.
Sylvie pegou Toni e perguntou timidamente:
— Você não vai entrar?
— Não — retrucou ele. — Tenho outros programas.
Quando eslava saindo do carro, Sylvie parou, com o cachorro nos
braços. Não podia deixar que ele fosse embora daquela maneira, não até que
ela tivesse conseguido expressar sua gratidão. Pensava que ele passaria o
resto da noite no apartamento e que poderia encontrar uma oportunidade de
dizer-lhe o que estava sentindo. Durante aquele dia inacreditável, ela
descobriu que Antoine era a coisa mais importante de sua vida. Não queria
que ele fosse embora, queria... não sabia muito bem o que, mas tinha
certeza de que não era aquela partida abrupta.
Antoine continuou a falar com frieza:
— Você não tem nada a temer, Sylvie. Não vou mais dormir neste
apartamento, assim você não terá mais desculpas para tentar fugir outra
vez.
— Oh, Antoine! — Ela virou-se para fitá-lo. — Nunca mais farei isso e
você não precisa ir embora... quero dizer, você não deve privar-se...
Sylvie escondeu o rosto nos pêlos do cachorro, tomada de uma timidez
terrível, mas esperava que ele compreendesse o que estava tentando dizer.
Antoine pousou os olhos na figura a seu lado, com os pés no chão,
sentada na ponta do banco e com a cabeça inclinada sobre o cachorro. Ele
não disse nada e, sentindo-o abrandar-se, Sylvie levantou a cabeça e fitou-o.
A luzinha interna do automóvel deixava os cabelos dele dourados, mas o
rosto permanecia nas sombras e ela não pôde ver sua expressão.
Antoine deu um longo suspiro e virou a cabeça.
— Bem, querida — disse ele com delicadeza —, você não deve pensar
que precisa violentar seus sentimentos de gratidão porque eu lhe dei um
papel. Nunca espero uma recompensa como essa de minhas bailarinas. Você
pode me pagar melhor concentrando-se em seu trabalho. E eu não vou
privar-me de nada, existem muitos outros lugares onde sou bem recebido.
Sylvie sentiu ciúmes. Outros lugares significavam outras mulheres
que o agradavam mais do que ela. Na noite anterior ele havia ficado furioso
por causa de sua insistência tola em dizer que amava Tom, mas agora, até
mesmo a fúria se desvanecera. Ele a encontrou depois de perder tempo,
esforço e dinheiro, mas não a desejava, não queria nada além de seu talento
como bailarina.
Sylvie desceu do carro, observando-o furtivamente, relutando em
deixá-lo ir embora.
— É melhor você entrar, Sylvie — disse ele com delicadeza. — Você
deve estar muito cansada. Você estará no teatro amanhã?
— Sim, maestro.
Virou-se em direção ao apartamento com tristeza, dizendo
formalmente:
— Boa noite, maestro.
— Boa noite, Sylvie, durma bem.
Antoine fechou a porta do carro, mas não ligou o motor
imediatamente. Ficou observando-a entrar no corredor iluminado, com o
cachorro ainda nos braços. Quando ela entrou, houve um breve tumulto,
pois Yvonne apareceu e abraçou entusiasticamente a garota e o cãozinho.
Ela viu da janela que Sylvie chegava e, logo que percebeu que Antoine não ia
entrar, desceu correndo para recebê-la.
Antoine ouviu a voz excitada da garota e os latidos de felicidade de
Toni, e seus lábios abriram-se num sorriso. Sylvie olhou para trás e viu o
Mercedes deslizando para fora do pátio, levando Antoine para o mundo
sofisticado a que ele tinha direito, um mundo em que não havia lugar para
ela.
Com um longo suspiro, subiu as escadas e encontrou a bondosa
Marie, que lhe explicou como tentara encontrá-la quando Antoine telefonou
naquela manhã.
Sylvie retirou-se para seu quarto e, a sós, ficou refletindo que dali a
dois dias ela iria estrear no Balé Cosmopolite. Isso era um marco em sua
carreira, um enorme degrau em direção à realização de suas ambições.
Deveria estar exultante, mas isso não tinha mais uma importância tão
grande.
Sua natureza ardente agitara seu coração da maneira mais
apaixonada possível, mas o homem que o despertara não queria seu amor. O
amor era algo que ele não conhecia e não desejava; era um livro fechado
para ele.
Sylvie adormeceu com Toni nos braços e os pêlos do cachorro ficaram
umedecidos por suas lágrimas.

CAPITULO VIII

Sylvie sentou-se em frente ao espelho do seu camarim no Teatro da


Ópera de Paris. O vidro contornado por lâmpadas coloridas refletia sua face
sonhadora, ainda mais magra do que antes. Não era mais o rosto de uma
criança. Os belos olhos eram misteriosos e os lábios sorriam
enigmaticamente.
Havia passado vários meses desde sua estréia, meses de trabalho
ininterrupto, estudando novos papéis, durante os quais ela tivera pouco
tempo para lamentar-se.
Aquela noite seria a estréia de "Os Cisnes" de René e, por isso, Antoine
alugara o Teatro da Ópera de Paris. Aquele seria o auge da temporada de
balé na capital francesa e, depois das apresentações, iam excursionar. Sylvie
era agora uma das três primeiras bailarinas da companhia e, embora ainda
tivesse pouca experiência, possuía um talento tão grande que ofuscava
quase completamente suas colegas mais velhas. Além do mais, trouxera para
suas interpretações aquele ar sublime de fada que tanto encantara Antoine.
Ao lado do espelho estava a fotografia de Menella, que ganhara uma
moldura de prata. Sylvie mantinha a fotografia da mãe naquele lugar, por
imaginar que assim ofertava a ela pelo menos uma parte de seus triunfos.
Sylvie refletia sobre as curiosas voltas do destino que tinham
culminado na criação do balé que apresentaria naquela mesma noite. Sentia
uma trêmula expectativa: será que, se fosse capaz de realizar as esperanças
de Antoine, ele voltaria para ela?
Já havia sido proclamada uma estrela ascendente dentro do mundo do
balé, e o isolamento que Antoine a forçava a manter transformara-a numa
espécie de mistério. Nem mesmo o repórter mais persistente conseguira fazer
uma entrevista com ela. Sylvie também não aparecia em festas, nem em
reuniões públicas. Antoine havia-lhe dito:
— É muito mais elegante manter-se afastada. Nosso diretor de
publicidade está criando uma lenda em torno de seu nome. Não quero que
nenhum fofoqueiro impertinente escreva sobre o que você come, bebe, como
vive, quais seus pontos de vista quanto ao amor e o casamento.
Sylvie gostava que fosse assim. Não tinha a mínima vontade de ir a
festas sofisticadas ou a recepções.
Preferia voltar para casa, sentar-se ao lado da janela, ficar observando
as luzes que dançavam sobre as águas do rio que corria lento, pensando em
seu sonho impossível: uma noite Antoine voltaria e lhe diria que a amava.
Ele havia cumprido sua palavra. Nunca mais passara outra noite no
apartamento. Desde o dia em que tinham voltado do apartamento de
Gianetta, Antoine ficara ainda mais indiferente. Sylvie raramente o via fora
do teatro. O Natal já havia passado. Antes disso, tentara resolver com ele um
ponto muito embaraçoso. Ele ainda não lhe pagava um salário e ela não
tinha dinheiro. Sylvie precisava de uma quantia para comprar presentes
para Marie e Yvonne. Tinha resolvido proporcionar à criança um verdadeiro
Natal inglês, com biscoitos, árvore, peru e pudim de ameixas.
— Quando você vai começar a me pagar? — perguntou-lhe um dia. —
Eu já não mereço?
— Não vejo necessidade alguma. Você tem tudo o que precisa e eu vou
lhe dar um casaco de pele de marta no Natal.
Sylvie havia se retraído enquanto agradecia, pois os presentes que ele
lhe oferecia sempre feriam seu orgulho.
— Você é muito generoso, mas quero ser independente.
— É exatamente por isso que eu não lhe pago um salário.
— Você tem medo que eu fuja outra vez?
— É provável que o estimado sr. Tom ainda esteja esperando. Não
pretendo dar a você a oportunidade de ter como juntar-se àquele rapazote e
fugir para a Inglaterra. Você poderia, é claro, penhorar alguns dos presentes
que lhe dei para levantar o dinheiro da passagem, mas acredito que você
consideraria desonesta essa atitude.
Ela ficara perplexa. Já tinha quase se esquecido de Tom. Escrevera
mais uma vez a ele explicando que não deviam se corresponder e ele aceitara
sua decisão.
— Ele disse que me esperaria para sempre — disse com delicadeza,
pois aquilo era verdade, embora achasse que agora Tom já devia ter mudado
de idéia.
— Você ainda o deseja?
— Quando eu entrego meu coração a alguém, é para sempre. — Sylvie
teve a satisfação de ver Antoine parecer terrivelmente aborrecido.
— Então devemos ser gratos a ele por uma coisa — disse. —-Seu
coração partido refletiu-se em sua dança. Você atingiu uma intensidade
emocional que anteriormente não possuía.
Sylvie sentiu uma onda de intensa amargura. Ele só pensava naquele
amaldiçoado balé, e congratulava-se consigo mesmo por achar que,
privando-a de seu amado, tinha sido capaz de obter dela as reações que
desejava. Era uma ironia pensar que o que a inspirava era o amor por ele,
não por Tom. Compreendia agora como Gianetta, ao perceber a
impossibilidade de sua paixão pelo maestro, tinha se entregado a outro
homem para amenizar sua mágoa. Mas ela não poderia escapar, estava
irremediavelmente presa àquele homem insensível e fascinante — e por uma
opção sua.
No fim, Antoine fizera uma concessão quanto à questão de seu salário,
abrindo-lhe uma conta em uma loja de departamentos onde ela poderia
comprar todas as coisas e presentes que desejasse.
O Natal, entretanto, foi uma decepção. Yvonne apreciou seus esforços,
mas não demonstrou entusiasmo algum. Apenas uma vez expressou um
prazer genuíno. Foi quando chegou um pacote vindo da Áustria, contendo
uma boneca em trajes típicos do Tirol, mas, embora a garota procurasse
ansiosamente um cartão, não o encontrou.
— Tenho certeza que deve ser de tia Hildegarde — disse a garota,
melancólica. — Gostaria muito mais se ela tivesse mandado uma carta para
mim.
Sylvie também teve uma surpresa. Francis mandou-lhe um cartão.
Contava que estava engajado em um negócio muito promissor e que se
tivesse sucesso na empresa, viria vê-la na primavera. Estava tudo na mão de
Deus.
Seguiram-se então os ensaios longos e febris de "Os Cisnes Selvagens".
Antoine estava presente em cada um deles, criticando, aconselhando e
arrumando uma solução para todos os problemas. A companhia, exausta,
impertinente, até mesmo rebelde, tinha sido levada por ele em direção à
meta desejada e agora, naquela noite, iria se realizar o grande teste de todo o
grande empenho do maestro.
Havia telegramas pregados ao redor do espelho, a maior parte deles de
comerciantes interessados e de membros da companhia que desejavam
conseguir a amizade da estrela ascendente. Ludovic havia mandado flores,
mas ela não tinha nenhum amigo entre o pessoal da companhia.
Madame Lescaut entrou. Ela havia sido designada a camareira de
Sylvie. Não havia mais antipatia entre elas, pois naquele emprego a senhora
sentia-se mais à vontade e era muito eficiente, o que Sylvie sempre
reconheceu e valorizou. Ela carregava uma réplica de prata de um cisne, e a
concavidade entre as asas levantadas estava repleta de rosas brancas. Sem
dizer uma palavra, colocou-o em frente à garota, que olhou com curiosidade
o estranho presente. Era um objeto muito bonito e caro. Percebendo que
havia um cartão, pegou-o e leu as letras negras:
"Para meu Cisne Selvagem, que capturei e domei. Desejo-lhe boa sorte,
Antoine".
— É um objeto encantador — disse para madame Lescaut. depois de
pegar o cartão. Colocou-o dentro do bolso de seu robe.
Sylvie amarrou um lenço de seda nos cabelos e começou a maqui-lar-
se.
— Tudo o que eu quero agora, Lesky, é um bico! — disse ao terminar.
— Não, senhorita! — Sua ajudante levou-a a sério. — Isto seria
ridículo. Estragaria um conjunto tão belo!
— Você nunca esperou isto, não é, Lesky? — continuou Sylvie
enquanto madame a observava vestir seu traje de dança. — Você pensava
que eu fosse uma espécie de hippie quando tomou conta de mim em Monte
Carlo e que o maestro estava ficando completamente louco, por estar
querendo fazer de mim uma bailarina.
— Nem todos têm capacidade para enxergar longe como o maestro —
replicou madame Lescaut diplomaticamente. — Agora você é uma estrela e
eu tenho o privilégio de servi-la.
Uma campainha anunciou que faltavam quinze minutos para o início
da apresentação. Bateram à porta e madame Lescaut levantou-se
rapidamente, preparada para enxotar qualquer intruso, mas era o maestro.
Sylvie fitou-o espantada; Antoine quase nunca entrava em seu camarim. Ele
estava vestido em trajes de gala e tinha uma aparência magnífica. Naquela
noite receberia pessoas muito importantes.
O balé havia sido muito divulgado e nos anúncios não deixaram de
colocar — para explicar ao público — uma pequena nota, contando a morte
trágica do compositor da obra. Até o fato de que o papel principal seria
interpretado pela filha da mulher que o inspirara havia sido explorado. O
público havia se encarregado de inventar sua própria versão para o caso:
Menella havia sido a bem-amada de René, mas eles haviam brigado e o
rapaz, desesperado, deixara-se envolver numa rebelião de estudantes e
assim havia perecido. Alguns até faziam questão de insistir que Sylvie era o
fruto daquele triste caso de amor. Indiretamente, ele morrera de amor. Tudo
isso era romântico, e as filas que se formavam em frente ao teatro estavam
preparadas para serem indulgentes com a filha de Menella. Os críticos de
balé e os concorrentes de outras companhias, porém, estavam cépticos. A
música era muito difícil, e a bailarina, por demais inexperiente.
Antoine olhou criticamente para a figura graciosa da garota e uma
súbita luz brilhou em seus olhos.
— Mas você está linda! — exclamou um pouco espantado.
Sylvie agradeceu com uma reverência um tanto zombeteira.
— Espero que minha humilde aparência agrade meu nobre patrão.
— Se seu desempenho estiver tão bom Quanto sua aparência,
conseguirá colocar fogo no Sena.
A garota ficou séria.
— Este é o auge de todas as suas esperanças, não é, Antoine?
— Sim, Sylvie, o momento que eu imaginei desde que a vi dançando
sob o luar, em Mônaco. Nós percorremos um caminho longo e difícil, você e
eu, mas esta noite será o fim triunfante de nossa luta.
Uma mão de gelo pareceu fechar-se sobre o coração de Sylvie. Estaria
ele querendo dizer que depois daquela noite não precisaria mais dela? Que
até mesmo o interesse que ele demonstrara por sua dança se evaporaria,
depois de sua apresentação?
A campainha avisou que faltavam apenas cinco minutos.
— Bem, preciso ir. — Antoine pareceu acordar. — O Presidente está
aqui esta noite. Até mais, minha garota. Não precisa ficar nervosa, você
causará sensação.
Ele fez uma reverência para ela, como se Sylvie fosse um membro da
realeza, e saiu. Sylvie observou-o ir-se embora com um triste presságio em
seu coração.
— Bem, já está na hora — disse madame Lescaut, colocando uma
capa leve sobre seus ombros.
Sylvie saiu para encontrar seu público.
"Os Cisnes Selvagens" era simplesmente uma sinfonia dos cisnes. O
bailado começava com uma corrida de figuras vestidas de branco pela palco,
acompanhada pela música que sugeria o bater de imensas asas. Não havia
um enredo muito grande; os vilões eram os caçadores que perseguiam os
cisnes em seus lugares de descanso. O cisne fêmea é atingido por um tiro e
aprisionado; a angústia que sente quando percebe que não pode fugir e
juntar-se a seu companheiro foi uma das cenas mais perfeitas de Sylvie.
Finalmente, a esposa do caçador liberta o cisne, com ciúmes do interesse
que seu marido nutria pelo pássaro. O caçador arrastou-a de volta para o
viveiro onde a havia prendido e logo depois mata seu companheiro. O longo
solo que se seguiu era cheio de tristeza e pesar. Nele Sylvie superou a si
mesma. Finalmente o cisne fêmea morre ao lado de seu companheiro, vítima
de um imenso pesar.
A interpretação de Sylvie foi profunda, pois levou seu trabalho muito
além do tema, usando toda sua mágoa existencial, toda sua angústia de
viver, transformando a peça de René numa obra que refletia todo o problema
existencial da espécie humana.
Quando as cortinas baixaram e os últimos acordes da música de René
lentamente morreram, houve um momento de completo silêncio, que é o
mais alto tributo que uma platéia pode pagar a um artista.
De repente os aplausos romperam, estrondosos.
Várias vezes Sylvie foi chamada para a frente das cortinas para
receber os aplausos e as aclamações. Ludovic estava exultante ao
acompanhá-la.
— Você venceu, minha cara — sussurrou-lhe o bailarino. Assim que
voltaram para as coxias, o público exigiu a presença da garota, sozinha, mas
tomada de uma súbita timidez ela se retraiu.
— Não posso...
Então Antoine aproximou-se dela, com os olhos umedecidos.
Conforme a levou para a frente do palco, os aplausos aumentaram e o nome
dela foi aclamado. Ele fez então uma reverência para a platéia, outra para
Sylvie, que se inclinou para ele mecanicamente. Então, para aumentar ainda
mais a confusão da garota, Antoine de Mericourt, o orgulhoso, o indiferente,
tomou-a nos braços e beijou-a na boca em frente de toda Paris.
Antoine trouxe o Presidente e sua esposa, que desejavam ser
apresentados a ela. A eles se seguiram outros homens e mulheres
importantes. Sylvie murmurava agradecimentos pelos cumprimentos e
congratulações, sentindo que seus rostos se transformavam em borrões
dentro de sua mente, e que nunca conseguiria lembrar-se de seus nomes.
Um homem distinto parou à sua frente acompanhado de Gianetta. que
sorria maliciosamente. Enquanto Antoine conversava com James Morrison,
ela sussurrou para Sylvie:
— Então você voltou para ele, sua tolinha; Eu devia ter ficado em casa
naquela noite, para tomar conta de você.
Antoine virou-se para ela com olhos zombeteiros.
— Gianetta, nunca tive oportunidade de agradecer-lhe por ter abrigado
minha gatinha perdida. Fiquei aliviado em encontrá-la sã e salva.
Gianetta dirigiu-lhe um olhar furioso.
— Arrependo-me de não tê-la afogado — declarou ela. — Esta é a
melhor maneira de lidar com... gatinhas perdidas!
Entre os últimos visitantes estava Marguerite d'Ablay.
— Quem acreditaria que isto seria possível? — comentou, olhando
com arrogância para Sylvie. — Você deve ser um mágico, Antoine.
— Orgulho-me de ser capaz de reconhecer talentos em potencial —
retrucou ele.
Sylvie percebeu que Marguerite engordara desde a última vez que a
tinha visto. Depois de desviar os olhos da garota, colocou a mão sobre o
braço de Antoine e perguntou, afetada:
— Você irá ao café de Paris celebrar seu triunfo? Você não pode deixar
toda essa gente agora?
Antoine hesitou, olhando para Sylvie.
— Você deseja ir conosco? — perguntou ele com indiferença. A garota
negou com a cabeça.
— Estou muito cansada.
— Sim, deve estar — afirmou Marguerite decisivamente. — Você
precisa descansar para que possa dar prazer a seu público. Apenas
borboletas como eu, que não precisam trabalhar, podem se dar ao luxo de
perder o sono da beleza ficando acordadas até o amanhecer e é claro,
dormindo até o meio-dia. — Ela sorriu maliciosamente para o rosto
impassível de Antoine. — Ah, sim, é claro, também os homens como seu
empresário, que não precisa de descanso. Então temos licença de sair —
disse Marguerite alegremente. — Por que você está demorando tanto,
Antoine?
Perguntou isso porque ele não fizera nenhum movimento para
acompanhá-la. Em vez disso, olhava em dúvida para Sylvie.
— Você tem certeza de que é isso o que deseja? — perguntou para a
garota.
Não era. Sylvie queria que ele fosse com ela para a tranqüilidade do
apartamento ao lado do rio.
— Sim — disse ela.
— Muito bem. Tenho um carro esperando por você lá fora, com Marie.
Disse a ela que esperasse para entrar, quando a multidão tivesse ido
embora.
Sylvie sabia que a governanta e Yvonne estavam na platéia. A menina
tinha conseguido a permissão de ficar acordada naquele dia, mas Sylvie
havia se esquecido dela até aquele momento.
Quando Antoine a chamou, Marie correu para a frente e beijou a mão
de Sylvie com os olhos cheios de lágrimas.
— Magnífico, querida, você me fez chorar, está vendo?
Marguerite fitou-a com desagrado e olhou inquisidoramente para
Antoine.
— Madame Corbet, minha boa amiga e minha ajudante também —
apresentou-a. — Marie, esta é a srta. d'Ablay, uma entusiasta do balé. — Ele
sorriu maldosamente. — Sylvie não vai demorar muito, Marie, você pode
esperar por ela aqui. Madame Lescaut, não permita que mais ninguém entre
no camarim. A srta. Allen está exausta.
— Mas, senhor... — protestou Marie, olhando para Marguerite com
desconfiança.
Sylvie inclinou-se em direção a ela, sussurrando:
— Marie, por favor, quero que você me leve para casa.
— Antoine, vamos ficar aqui a noite inteira? — perguntou Marguerite
com impaciência.
— De maneira nenhuma. — Ele beijou a face de Sylvie levemente. —
Durma bem, meu cisne. Marie e Yvonne, boa noite.
Eles saíram juntos e Marguerite segurava o braço de Antoine.
— Mulher antipática! — exclamou Marie explosivamente.
— Quieta! — Sylvie advertiu-a, olhando para a criança.
— Eu a achei encantadora — comentou Yvonne. — Ela me lembrou tia
Hildegarde.
Sylvie, tensa, sentou-se em frente ao espelho e começou a remover a
maquilagem.
— Não vou demorar-me. Sentem-se. Lesky, dê para Yvonne aqueles
chocolates que alguém trouxe para mim. Ela não corre o perigo de engordar.
Londres, Berlim, Viena, Estocolmo, Bruxelas — passaram quase numa
alucinação; uma sucessão de suítes luxuosas em hotéis caros, uma
seqüência de teatros ricamente iluminados. Foi esta a excursão em que
Sylvie embarcou. Ela não tinha tempo de conhecer melhor os países que
visitava, nem mesmo de ver os lugares mais pitorescos. Foi forçada a deixar
Toni em Paris, mas sabia que Yvonne se empenharia em consolar o
animalzinho durante sua ausência.
Em Londres, Tom foi ver sua apresentação, e lhe mandou flores e um
cartão com as palavras: "Obrigado pela experiência inesquecível que você me
proporcionou. De seu sempre devotado, Tom".
Mas ele não tentou vê-la, nem ela procurou entrar em contato com o
rapaz. Aconteceu de Antoine entrar em seu camarote para dar-lhe um
recado. Viu as flores e o cartão antes que ela tivesse tempo de escondê-lo.
Sylvie notou o sorriso de Antoine enquanto ele lia.
— Ainda esperando? — comentou, mas antes que Sylvie pudesse
dizer-lhe que Tom esperava em vão, ele saiu do camarim.
Leonora havia deixado a companhia e Sylvie agora era a primeira
bailarina. As noites em que se apresentava eram noites de gala. Durante
aquele tempo, o amor que sentia por seu marido se tornara mais profundo e
amadurecido.
Antoine ficava nos mesmos hotéis que Sylvie, mas sua suíte era
sempre distante da dela e ele continuava indo a festas e recepções, dando a
desculpa de que Sylvie era delicada demais para conciliar atividades sociais
com sua vida profissional.
Finalmente, no começo do outono, a companhia de balé voltou para
Monte Carlo e, desta vez, Sylvie ficou no hotel de Paris. Fez questão de levar
Toni consigo, dizendo para Antoine que o cãozinho gostaria de visitar a
primeira casa que tivera. Ele concordou, limitando-se a comentar:
— Você tem atitudes absurdas com este animal. Ele não vai se lembrar
de nada.
Uma noite, madame Lescaut, que ainda continuava a servi-la como
camareira, e por quem nutria agora um estranho afeto, disse-lhe:
— O sr. Antoine não permite que você receba visitas depois das
apresentações, mas há uma pessoa aí fora que não quer ir embora. Ele diz
que é seu pai.
— Papai!
Embora Sylvie estivesse usando apenas um robe curto e ainda não
tivesse terminado a maquilagem, saiu correndo e, abrindo a porta, descobriu
Francis na soleira.
—- Papai! — gritou outra vez e jogou-se em seus braços.
Francis beijou-a e entrou no camarim.
— Vou avisar o sr. Antoine — murmurou madame Lescaut com um
tom de desaprovação na voz e saiu. Nenhum dos dois notou a saída da velha
senhora.
— Mas que maravilha! — exclamou Sylvie, observando com alívio que
seu pai estava bem vestido, em um terno de gala, e parecia bem alimentado.
— Então aquela aventura que você mencionou deu certo, não é?
— Claro que sim — disse ele sorrindo. — Não há necessidade de
perguntar o que você tem feito. Os jornais contam isso, diariamente. Você
teve muita sorte em ser contratada pelo sr. de Mericourt. — Sua expressão
ficou ansiosa. — Ele a trata bem?
— Muito bem — disse-lhe Sylvie com um leve suspiro, concentrando-
se em limpar o rosto.
Ela sabia que seu pai a observava profundamente; ele era muito
sensível e percebeu que sua filha não era feliz.
— Você está mais bonita, mas ainda conserva o mesmo ar de sempre.
— Os leopardos não podem trocar as manchas — disse ela. — Mas
fale-me de você. Vejo que você prosperou.
— Arrumei um emprego de administrador de uma fazenda e acabei me
casando com a proprietária, ou talvez seja mais correto dizer que ela se
casou comigo. — Piscou os olhos. — Ela achou que o charme dos Allen é
irresistível. Não que eu tenha feito qualquer objeção, pois ela é muito rica.
Mas é uma vergonha falar dela dessa maneira. Luísa é uma boa pessoa, mas
insiste em tentar emendar-me.
— Ela terá muito trabalho! — Sylvie riu.
Francis pareceu triste.
— Ela maneja o dinheiro, mas permite que eu arrisque um jogo de vez
em quando. Na verdade, iremos jogar no cassino aqui ao lado esta noite e
pensei que talvez você quisesse ir conosco.
— Receio que não possa ir. Antoine insiste em que eu durma cedo.
— Antoine?
— Quero dizer, o sr. de Mericourt. Ele tornou-se uma espécie de...
meu guardião. — Então, percebendo uma expressão de dúvida nos olhos do
pai, completou rapidamente: — Nosso relacionamento é inteiramente
respeitável. — Um tom de amargura transpareceu em sua voz.
— Acho bastante difícil acreditar nisso — disse-lhe Francis. — Você se
tornou uma mulher muito atraente.
— Você acha mesmo? — Sylvie ficou encantada. — Mas Antoine
apenas presta atenção em minha dança. Ele tem outras diversões...
A garota interrompeu-se ao ver a expressão preocupada de seu pai.
— Está tudo bem — concluiu Sylvie laconicamente, enquanto a porta
se abria e entrava Antoine. Francis levantou-se para cumprimentá-lo com
brilho nos olhos. Aquele cavalheiro distinto ia ter uma surpresa.
Sylvie virou-se no banquinho em que estava sentada para ficar de
frente para os dois. As maneiras de Antoine eram suaves, mas ela percebeu
pela linha de seus lábios que ele estava irritado e preparou-se para enfrentar
a situação.
— Quem quer que o senhor seja, senhor — Antoine começou —, devo
pedir-lhe que se retire. Não permito que a srta. Allen receba visitas depois de
um espetáculo; é cansativo demais para ela. — Madame Lescaut não lhe
revelara a identidade do visitante.
Dois pares de olhos castanhos observaram Antoine com o mesmo
brilho travesso.
— Não se lembra de mim? — perguntou Francis e o francês ergueu as
sobrancelhas.
— Não me lembro...
— Existe um pequeno débito — continuou Francis — que eu vim
saldar. — Tirou um cheque do bolso, examinou-o e estendeu-o para Antoine.
— Acho que era essa a quantia exata.
Antoine pegou-o, olhou a assinatura e seus olhos observaram as duas
faces atentas. Depois, rasgou o cheque em pedaços.
— Você não devia ter feito isso — Francis protestou. — Caso Sylvie
sinta que lhe deve alguma obrigação, o cheque significaria sua libertação.
— Ela não pode libertar-se de mim — disse Antoine com frieza. —
Sylvie é minha esposa.
Francis ficou espantado e olhou com ar de reprovação para a filha.
— Então você se casou! — exclamou ele e, virando-se, olhou para
Antoine enquanto Sylvie sorria, percebendo que ele estava tentando
assimilar o fato espantoso de que aquela figura impressionante agora era
seu genro. A garota também percebeu o olhar perplexo de seu pai.
— Mantivemos nosso casamento em segredo por várias razões —
continuou Antoine —, e eu lhe pediria que não comentasse com ninguém.
Eu lhe contei porque não desejo que imagine que eu me comportei de
maneira vil com sua filha.
— Tal idéia nunca me passou pela cabeça — declarou Francis com
sinceridade.
— Está vendo, trancei meus pauzinhos muito bem — disse Sylvie
alegremente, mas, percebendo o olhar severo do marido, virou-se
rapidamente para o espelho.
— O casamento não é uma boa publicidade para uma bailarina —
explicou Antoine.
— Não é? — perguntou Francis inocentemente. — Pensei que os
artistas vivessem sempre casando e descasando e que os matrimônios
provocassem manchetes.
— Tenho muito respeito pelo casamento para fazer publicidade
sensacionalista dele — retrucou Antoine.
Sylvie deu uma risada zombeteira.
— Acho que você não tem o menor respeito! — observou Sylvie.
Antoine fitou-a com severidade e voltou os olhos para Francis.
— Sua empresa deu certo?
— Sim, e eu também me casei.
As sobrancelhas de Antoine arquearam-se e Francis sorriu
cinicamente.
— Sylvie, você precisa conhecer sua madrasta — continuou Francis. —
Ela está me esperando no saguão do teatro. O senhor não permitirá que
minha filha saia para celebrar?
— É claro que sim — consentiu Antoine com delicadeza —, mas sou
obrigado a pedir-lhe que não conte a ela qual é nosso verdadeiro
relacionamento. As mulheres não controlam a língua e tenho razões para
querer que nosso casamento continue em segredo.
— Até daqui a pouco, Sylvie — disse Francis.
— Está bem, não vou demorar.
Francis saiu e Antoine sentou-se na cadeira que ele desocupara,
pegando um cigarro.
— Você não vai se vestir? Sem dúvida você possui algum vestido longo
adequado por aqui. — Fez um gesto em direção aos cabides pendurados nas
paredes.
— Madame Lescaut... — começou ela em dúvida; a presença de
Antoine a deixava embaraçada.
— É discreta demais para entrar aqui quando estou com você.
Sylvie desamarrou o lenço que prendia seus cabelos e, depois de soltá-
los, virou-se para encarar Antoine.
— Qual o verdadeiro motivo para você contar a papai sobre nós?
— Exatamente o que eu disse. Ele é seu pai, embora seja negligente, e
eu não queria que ele pensasse que seduzi você. Você tinha que estragar
tudo com aquele seu comentário malicioso?
— Eu não vou fingir para meu pai... — começou ela com firmeza,
percebendo o erro que cometera.
— Embora ele seja seu pai — Antoine interrompeu-a —, não é seu
confessor. Sugiro que você não lhe faça mais confidências. Elas podem
destruir a imagem que você está tentando apresentar para ele. Seu pai não é
tolo e você mesma não foi inteiramente fiel.
Tom outra vez... será que ele nunca esqueceria aquele episódio?
— Por favor, se apresse.
— Com você aqui?
— Por que não? — Os olhos de Antoine brilharam com malícia.
— Estou esperando para ajudá-la. Como você sabe, sou um perito no
vestir... e no despir... mulheres.
Os olhos de Sylvie brilharam de indignação.
— Oh, seu... — começou ela.
— Poupe suas garras, pantera. — Com um movimento quase
selvagem, ele arrancou o robe que ela usava, deixando-a apenas com a
calcinha e o sutiã. Sylvie cruzou os braços sobre o peito, corando
violentamente.
— Não precisa bancar a inocente comigo — disse ele com cinismo. —
Sou seu marido. — E colocou-lhe o vestido pela cabeça. Ela virou-se de
costas para o espelho e Antoine fechou-lhe o zíper com habilidade.
— É mesmo necessário manter isso em segredo?
— A revelação de nosso casamento seria a nona maravilha do mundo
— disse ele —, e uma vez que todos os suspiros de surpresa tivessem
terminado, começariam outra vez, em segredo, quando descobrissem que,
quando ficamos no mesmo hotel, ocupamos suítes separadas. Haveria
rumores, insinuações de divórcio. Você ia querer isto, minha cara?
— Mas precisamos ocupar suítes separadas?
— Se você está sugerindo que eu deva viver perto de você como irmão,
a resposta é não — disse ele com frieza. — E quanto a qualquer outra coisa,
você me disse que seu coração pertencia a outro homem e que você me
odiava. Para mostrar sua aversão, você sumiu e eu tive que revirar Paris
inteira para encontrada. Suas emoções, minha cara, parecem um pouco
instáveis. Considerando todas essas coisas, acho que você concordará que é
melhor nosso relacionamento continuar como está.
Então era o orgulho ferido que instigava Antoine. Sylvie fugira dele,
fizera-o acreditar que amava outro homem, e ele nunca perdoaria ou
esqueceria este fato. Só uma capitulação completa, uma confissão de amor o
tranqüilizaria e então, com a vaidade saciada, ele a rejeitaria completamente.
Era uma vingança sutil que pretendia pôr em prática. Antoine sempre
falara do amor com extremo desprezo, e ser rejeitada por ele seria um golpe
que ela não agüentaria. Enquanto estes pensamentos lhe passavam pela
mente, Sylvie penteou os cabelos e se empoou, mecanicamente. Virou-se
para Antoine, sentindo um impulso brutal de jogar-se nos braços dele e
assumir as conseqüências. Ele estava parado logo atrás, segurando um xale,
para colocá-lo em seus ombros.
— Está pronta, afinal? — perguntou ele com delicadeza. — Nossos
convidados já devem estar impacientes.
Luísa era uma híspano-americana forte, de cabelos e olhos pretos, que
transmitia uma espécie de benevolência maternal. Ficou claro para Sylvie
que seu pai se dava muito bem com ela. Luísa estava encantada com sua
enteada.
— Você é linda, mas está tão magra.
— As bailarinas não podem se dar ao luxo de engordar.
Estavam sentados num balcão antes de irem para a mesa, pois
Antoine os convidara a beber alguma coisa para que terminassem as
apresentações.
Depois, Francis contou a Sylvie que não lhe escrevera sobre seu
casamento porque houvera um problema de última hora com a família de
Luísa.
— Sempre quisemos vir para a França — observou Luísa — procurar
você, mas não foi necessário apoio nenhum, pois você brilha como um farol.
Sylvie ficou encantada em saber que eles estavam tão ansiosos para
vê-la.
Os Allen iam ficar apenas alguns dias em Monte Carlo antes de
continuar sua viagem pela Europa. Sylvie passou todo o tempo de que
dispunha em companhia deles e teve muita dificuldade em evitar as
perguntas de Luísa. Sua madrasta era extremamente curiosa quanto ao seu
relacionamento com Antoine, mas, por respeito aos desejos de Antoine,
Francis não lhe disse nada.
— Você não é feliz, é, querida? Não pode contar-me qual é o problema?
Sylvie colocou-se na defensiva.
— É claro que sou feliz. Consegui obter tudo o que queria. Eu seria
uma mal-agradecida se não fosse feliz.
Em outra ocasião, seu pai perguntou:
— E meu genro?
— Oh, está tudo bem, nós... nos compreendemos um ao outro. —
Sylvie tomou a mão alongada de seu pai entre as suas. — Não se preocupe
comigo, papai, e desfrute ao máximo sua viagem com Luísa. Ela é
terrivelmente encantadora e você está fazendo tudo para merecê-la. Nunca a
humilhe deixando-se dominar por seu vício.
Ele sorriu com tristeza.
— Ela cuidará para que isso não aconteça. Não gosto da idéia de ir-me
embora e deixá-la aqui, filhinha.
— Oh, logo nos encontraremos novamente, talvez em Paris. Foi uma
felicidade ter conseguido impressionar Antoine.
— Não tenho tanta certeza de que foi uma coisa tão boa.
— Oh, é claro que foi! Veja só no que eu me tornei.
Os Allen seguiram para a Espanha e, um dia antes de partirem,
Francis teve uma longa conversa com o genro.

CAPÍTULO IX

Sylvie notou uma leve mudança no comportamento de Antoine em


relação a ela, depois da visita de seu pai. Os contatos que mantinham
ocorriam principalmente no teatro, pois ele raramente entrava em seu quarto
de hotel, a não ser para avisá-la de alguma alteração de planos. Uma vez em
que se demorou mais na barra, quando o resto da companhia já havia se
retirado, Antoine se aproximou e perguntou:
— Você é feliz, não é? A dança a satisfaz?
— É claro que sim, era isso o que eu queria.
Depois disso ele se retirou, mas Sylvie teve a impressão de que ele não
estava satisfeito. O que o fizera se preocupar com sua felicidade? Era algo
que nunca havia considerado antes. Todos os tipos de suposições passaram
por sua cabeça, mas estava longe de encontrar a resposta correta, até que a
baronesa von Eckburg chegou ao hotel de Paris.
Na verdade, a senhora chegou no dia em que os Allen partiram. Ela
perdera seu marido há pouco tempo e, depois de cuidar dele durante a
última doença, viera à Riviera para recuperar-se. Como havia enviuvado
muito recentemente, seu isolamento era tão grande quanto o de Sylvie; todas
as suas refeições eram servidas na suíte, mas ocasionalmente era vista
atravessando o vestíbulo do hotel.
Na manhã seguinte à chegada da baronesa, Sylvie, discretamente
disfarçada pelos óculos de sol, enquanto levava Toni a passear, viu-a
caminhando pelos jardins com Antoine a seu lado. A viúva havia se
despojado do véu de tristeza que a encobria e estava conversando, até
mesmo rindo animadamente, enquanto Antoine a ouvia com o mesmo ar
galante que assumia perante todas as suas amigas.
A baronesa foi assistir ao balé. ocultando-se atrás das cortinas do
camarote quando as luzes se acenderam. Depois do espetáculo, Antoine
levou-a ao camarim de Sylvie.
— Madame adora o balé — explicou ele — e ficou encantada com sua
apresentação. Implorou que eu a apresentasse a você.
— Sinto-me lisonjeada — murmurou Sylvie, educadamente, mas
sentindo uma antipatia imediata pela mulher.
— Você dança com tanta paixão, srta. Allen, quase como se
conhecesse todos os segredos do amor. Com todo o êxtase e o desespero do
amor.
— Talvez eu conheça — disse Sylvie significativamente e Antoine riu.
— Não acredite nisso, Hildegarde — zombou ele. — A vida de Sylvie,
desde que trabalha para mim, tem sido bastante isolada. Tenho me
empenhado em protegê-la das tentações que sua profissão oferece.
A senhora era muito graciosa e sugeriu que Sylvie fosse tomar chá em
sua suíte alguma tarde, pois estava vivendo bastante isolada.
Partindo do princípio de que era ideal conhecer os inimigos de perto,
Sylvie foi tomar chá com ela. Era uma tarde ensolarada e Hildegarde fechou
as venezianas para amenizar a luminosidade. A sala de estar da sua suíte
estava na penumbra.
— Você teve tempo de passear? — perguntou a baronesa. — Conheceu
alguns lugares? Acho Monte Carlo encantador e o maestro leva-me a todos
os lugares.
Oh, leva, pensou Sylvie com amargura. Antoine não havia aparecido
com muita freqüência no teatro ultimamente, embora a garota tivesse sido
forçada a trabalhar muito.
— Fui a Menton — disse ela, lembrando-se com angústia de por que
havia ido até Menton.
Hildegarde tirou-a de seus devaneios com uma pergunta sobre sua
vida em Paris:
— Você mora no apartamento de Antoine não é? Com a... afilhada de
Antoine. Como vai a garotinha?
Havia uma ansiedade dissimulada na pergunta e Sylvie olhou-a
surpresa. Como ela sabia da existência de Yvonne? Antoine não tinha o
hábito de falar da menina. Um súbito pensamento ocorreu-lhe e Sylvie
perguntou-se como podia ter sido tão tola... as férias na Áustria, a boneca
tirolesa... a baronesa era, estava claro, a mãe de Yvonne.
Se Hildegarde era a mãe, já sabia muito bem quem era o pai, mas
controlou-se e conseguiu falar com calma, contando que Yvonne estava bem
de saúde e que achava as escolas francesas muito rígidas, pois a menina
tinha que estudar muito.
— E quais são as preferências dela? Quais as diversões que tem? —
insistiu a baronesa.
— Seu maior divertimento é levar o cachorro a passear — disse ela
secamente. — Ela adora animais.
— Talvez ela logo tenha seus próprios cães e pôneis — disse a
baronesa. — Preciso consultar Antoine quanto ao futuro de Yvonne. —
Então, temendo que sua afirmação pudesse ser mal interpretada, completou
apressadamente: — Eu... tenho um interesse pela criança; ela esteve comigo
uma vez.
— Yvonne me contou. Parece que este foi o ponto culminante de sua
vida.
— É mesmo? — Hildegarde pareceu encantada. — Foi enquanto meu
falecido marido estava no hospital. Ele... ele não gostava de crianças. Eu
receava que ela ficasse aborrecida em ficar sozinha comigo.
— Você é a única pessoa de quem ela parece gostar — contou-lhe
Sylvie, e então, incapaz de fingir por mais tempo, completou: — Ela é sua
filha, não é?
Um leve rubor cobriu o rosto da baronesa e ela disse com rancor:
— Você tira conclusões precipitadas, senhorita.
— Mas é óbvio demais — replicou Sylvie.
A baronesa riu.
— Eu não devia ter iniciado este assunto se não queria trair-me —
admitiu ela —, mas você está certa, Sylvie... posso tratá-la assim?
— Ficarei honrada, senhora — disse Sylvie com frieza.
Hildegarde olhou com ar suplicante para a face impassível de Sylvie,
sentindo um antagonismo, sem suspeitar da causa.
— Meu marido foi inválido durante vários anos — explicou ela.— Era
meu marido apenas no nome, entende? Foi um casamento de conveniência
arranjado para mim, quando era jovem demais para saber o que estava
fazendo. Não havia amor de nenhuma das duas partes o nós não tivemos
filhos. Ela começou a apertar a saia de crepe preto com dedos nervosos. —
Eu era muito jovem, Sylvie, e apaixonei-me... Você me culpa?
— Não, senhora — disse Sylvie delicadamente —, apenas por
abandonar a criança. Mas agora que seu marido faleceu, não pode levar
Yvonne para morar com você?
— É isso o que eu mais quero; vou casar-me com o pai de Yvonne
depois de todos estes anos. Não é maravilhoso, Sylvie, que um homem seja
tão fiel para ter esperado durante todos estes anos? Existem algumas
formalidades a serem resolvidas mas, depois disso, ficaremos os três juntos.
A sala pareceu girar ao redor de Sylvie e ela enxergou Hildegarde
através de uma névoa densa. Teve vontade de gritar que Antoine não tinha
sido fiel — mais do que isso, que ele se casara secretamente com ela. As
formalidades mencionadas por Hildegarde deviam ser justamente para
desfazer aquele casamento. Teria sido tão fácil se Antoine não tivesse... De
repente Sylvie caiu numa sonora gargalhada. Aquilo servira muito bem para
ele, realmente servira.
— Sylvie! — Hildegarde fitou-a assombrada. — O que aconteceu? O
que foi que eu disse?
— Nada, senhora. — Sylvie controlou-se com esforço. — Apenas
lembrei-me de um episódio engraçado com Yvonne e Toni. — Contou uma
passagem sobre a garotinha e o cachorro enquanto Hildegarde fitava-a com
uma expressão levemente perplexa.
— E agora — concluiu Sylvie —, pediria que me desse licença. Tenho
que repousar antes da apresentação desta noite e estou um pouco cansada.
Chegando a seu quarto, Sylvie jogou-se sobre a cama e chorou.
Passado algum tempo sentou-se e enxugou os olhos. Hildegarde tinha
vindo para Monte Carlo porque Antoine estava ali, esperando para se casar
com ela. Mas Sylvie tinha um trunfo na mão. Ele só poderia fazê-lo se ela
consentisse.
Depois do espetáculo, Sylvie teve permissão para ir à recepção que se
seguiria em um dos restaurantes do cassino. Havia diversas pessoas
importantes, inclusive um príncipe que pediu para ser apresentado à garota
e insistiu para que ela jantasse em seu grupo. A cena parecia irreal para
Sylvie; ela ria e conversava, mas seus olhos estavam sempre fixos na direção
de Antoine, procurando a figura alta que se sobressaía no salão. Antoine
estava fazendo um sucesso tão grande quanto o dela, cercado de belas
mulheres. Depois que o príncipe partiu, Antoine aproximou-se trazendo
consigo um americano imponente, a quem apresentou como sendo o
empresário de uma famosa companhia de balé de Nova York.
—- Este senhor deseja contratá-la para uma temporada, Sylvie —
disse-lhe.
— A mim? — perguntou Sylvie surpreendida. — Não à companhia?
— Não, apenas a você.
Sylvie fitou-o com descrédito, e então compreendeu. Aquele era um
passo à frente para desfazer a ligação que mantinham. Antoine não se
interessava mais por ela, nem como bailarina. Ele acabava de produzir a
bailarina com que sonhara e agora estava olhando para um novo material a
ser moldado e delineado, e sobre o qual exerceria sua vontade despótica.
— Quando termina o contrato da srta. Allen com você? — perguntou o
americano.
— Estou querendo liberá-la do contrato imediatamente — disse
Antoine, de maneira inexpressiva.
— Pensarei a respeito e aviso-o — disse ela ao acaso.
— Talvez você possa almoçar comigo para discutir os termos?
— Talvez sim. — Sylvie sorriu provocantemente. — Um dia desses...
— Sylvie, você não pode deixá-lo esperando indefinidamente —
lembrou Antoine.
Ignorando-a, Antoine disse ao americano que conversaria com ela e
friamente marcou um almoço para dali a dois dias.
— O senhor pode trazer o contrato e nós o assinaremos e selaremos —
disse Antoine delicadamente.
Sylvie dirigiu-lhe um olhar de desafio, mas não fez nenhuma objeção.
Antoine não poderia forçá-la a assinar o contrato e diria isso a ele quando
estivessem a sós. Voltou para o hotel revoltada, mas não se encontrou mais
com Antoine, pois ele ficara com seu amigo americano no cassino.
No dia seguinte, Sylvie não ia dançar e, pela primeira vez, faltou á sua
aula diária. Antoine foi a sua suíte um pouco antes do almoço.
— Você não esteve no teatro, Sylvie — reprovou-a.
— Não, estava cansada.
— Quero conversar seriamente com você.
— Se é sobre o contrato com o americano, poupe seu fôlego. Eu não
vou.
— Não era só sobre isso que eu queria falar.
— Bem, então comece.
Ele sentou-se no lado oposto ao dela.
— Sylvie, você ainda se corresponde com aquele rapaz, qual era o
nome mesmo? Tom?
Aquela pergunta fez com que ela se virasse. Os imensos olhos
castanhos fitaram-no perplexos.
— Você me proibiu.
— Isso não a impediria de continuar, impediria? — disse ele com voz
alterada. — Acho que tenho sido rude demais com você.
Ela riu.
— Você foi brutal.
Fez-se silêncio entre eles. Antoine olhou para os pés.
— Bem, Sylvie, o que eu quero dizer é isto: se o seu coração ainda
clama por aquele rapaz, não é tarde demais; não vou tentar impedi-la, se
você deseja ir ter com ele..
Sylvie disse com doçura:
— E quanto aos Estados Unidos? Levo Tom comigo?
— Acho que não haveria nenhuma objeção.
— Só que Tom tem um emprego.
— Imagino que ele ache o casamento com uma bailarina famosa um
ótimo emprego.
— Não lhe ocorreu que Tom, sendo um rapaz respeitável, pode não
querer envolver-se num caso de divórcio?
— Se ele a ama realmente, não vai se importar. Ele foi suficientemente
rápido — uma nota de amargura transpareceu em sua voz — para sugerir
uma anulação.
— Se você não tivesse sido tão tolo, ainda poderia haver uma anulação
— disse Sylvie com crueldade.
Antoine levantou-se.
— Sylvie, você vai longe demais.
A garota encolheu os ombros.
— Você foi longe demais. — Inclinou-se para afagar as costas de Toni.
— Será que você podia largar este cachorro e prestar atenção no que
estou dizendo, por favor? Eu não fui muito amável com você — disse ele
delicadamente. — Não tinha o direito de tratá-la como a tratei. Percebi o
quanto agi errado para com você. Maltratei seu coração, violei seus
sentimentos... isto foi imperdoável.
Alguém conversava com ele, provavelmente Hildegarde. Será que
contara tudo à baronesa?
— Eu fiz de você uma bailarina, Sylvie, mas você não é feliz. Seu pai
percebeu isso. — Sylvie encarou-o. Então seu marido e seu pai tinham
conversado sobre ela! — Eu a tenho observado e percebi que ele está certo.
Uma carreira não é suficiente para uma mulher como você. Você é, afinal de
contas, igual a sua mãe. Ela colocou o amor em primeiro lugar e seu pai me
contou que ela nunca se arrependeu. Eles foram extremamente felizes até
que Menella morreu. Eu farei tudo o que puder, embora um pouco tarde,
para que você alcance a felicidade, Sylvie.
— Oh, não seja tão hipócrita! — gritou ela, furiosa. —- Você nunca se
importou absolutamente com minha felicidade, nem se importa agora. Você
apenas quer livrar-se de mim porque eu já lhe servi no que você precisava.
Nunca quis me casar com você, foi você quem insistiu nisso, mas eu não vou
ser rejeitada exatamente agora, na hora que você quer. E não precisa vir
aqui me bajular.
— Sylvie! — exclamou ele, assustado. — Por Deus do céu, do que você
está falando?
— Você sabe muito bem! Agora, saia daqui imediatamente. Eu... odeio
você!
Correu nervosamente para seu quarto e virou com violência a chave
na fechadura. Antoine bateu, gritou muitas vezes seu nome, mas Sylvie não
respondeu. Se o amigo americano de Antoine imaginava que ia contratar
uma bailarina meiga, dócil, teria uma belíssima surpresa. E seu caro
marido, que marcara o almoço, ia se arrepender amargamente.
Naquela tarde Sylvie foi para Nice. Embora ela agora recebesse uma
pequena quantia para as despesas comuns, ainda não possuía um salário,
mas descobrira que sua posição lhe dava direito a um credito ilimitado.
Conseguiu que as notas do que comprara em Nice fossem mandadas para
seu marido.
Antoine sempre insistira em escolher suas roupas, mas desta vez ola
fizera sua própria escolha e o resultado foi surpreendente. Optou por um
caftã vermelho enfeitado com bordados dourados. Complementou-o com
luvas, sandálias pretas e um pequeno turbante. Para acentuar o toque
oriental, delineou fortemente os olhos. No restaurante, todos viraram-se para
ela. Caminhou com indiferença pelo salão muito elegante, apinhado de
gente, seguindo o garçom, que a levava para uma mesa de canto onde
Antoine e o americano esperavam. Uma refeição num restaurante era um
grande evento para Sylvie. A garota olhava ao redor, observando a decoração
alegre e a clientela selecionada, que a olhava com um interesse indisfarçado.
A conversa durante o almoço foi principalmente um monólogo do americano
sobre as maravilhas de seu país, enquanto Sylvie o instigava a continuar.
— Já que eu vou para lá, quero saber tudo o que for possível sobre o
seu grande país — dizia ela, brincando com os cílios. Finalmente, quando já
haviam tomado o café e o conhaque, o americano começou a falar de
negócios. Ofereceu um cigarro a Sylvie que, embora não fumasse, aceitou,
tirando uma longa piteira da bolsa, que havia trazido pensando naquela
eventualidade. Tragou o cigarro de maneira inexperiente. Mas aquilo foi
demais para seu marido. Enquanto o americano olhava os papéis que
trouxera, Antoine se inclinou para a frente e sussurrou em seu ouvido:
— Que significa esta palhaçada toda?
— Você verá — retrucou, jogando fumaça nos olhos espantados e
raivosos de Antoine.
Os termos do contrato eram muito generosos e, quando a quantia do
salário foi mencionada, Sylvie arregalou os olhos.
— Puxa, eu valho tudo isso?
— Espero que se compare a seu salário atual.
— É claro que sim. Não recebo nenhum salário. — Inclinou a cabeça
em direção a Antoine. — Sabe, eu sou esposa dele, por isso não acha que
seja necessário pagar um salário. — Tirou as luvas e no dedo apropriado
estava a aliança de casamento. Deixando o cigarro de lado, Sylvie levou
rapidamente as mãos aos lábios, para disfarçar uma risada. Era impossível
dizer qual dos dois homens parecia mais confuso.
O diretor americano começou a gaguejar:
— Senhora, não tinha idéia... foi uma surpresa... — Olhou furioso
para Antoine.
— Eu achei que seria — disse Sylvie com calma. — Sabe, meu marido
odeia publicidade. Ele não suporta ver nosso romance exposto à curiosidade
da multidão vulgar... manchetes nos jornais, todos esses absurdos, mas
achei que o senhor devia saber antes de ir adiante.
Antoine levantou-se.
— Se nos der licença, senhor, levarei minha esposa de volta para o
hotel; não acredito que ela possa estar se sentindo muito bem. — Então,
percebendo que repetira as afirmações de Sylvie, completou com rapidez: —
Quero dizer, a srta. Allen. — Mas era tarde demais.
— Sra. de Mericourt, para o senhor — disse Sylvie para o americano.
A mão de Antoine fechou-se sobre o braço da garota, num aperto de
aço.
— Vamos, querida — disse entre os dentes.
Antoine percebeu a expressão perplexa do americano.
Momentaneamente perdera o equilíbrio, depois das revelações de Sylvie, mas
agora se recobrara e procurava remediar a situação. Sentou-se outra vez,
sorriu afavelmente para o diretor e tentou explicar-lhe o que acontecia.
Sylvie estava certa, ele detestava intromissões públicas em sua vida
particular, mas, mais do que isto, queria que ela tivesse sucesso por seu
próprio talento. Temia que, se soubessem que ela era sua esposa, dissessem
que o triunfo que alcançara era devido a sua influência.
— Na verdade, ainda acho que é um pouco cedo para revelar nossa
ligação — concluiu ele. — Prefiro que Sylvie Allen atinja a fama mundial por
seus próprios méritos.
O convidado olhava com ar de reprovação para Antoine.
— Antes de sua senhora chegar, o senhor parecia ter certeza de que
ela assinaria o contrato — comentou ele. Virou-se para Sylvie. — Será que
seu marido não é mais previdente do que a senhora? Ele ambiciona um
grande futuro para sua carreira.
— Ele sempre teve grandes ambições a meu respeito — concordou
Sylvie —, mas as separações são as pragas da nossa profissão. Com o
Atlântico entre nós, estaremos sempre nos perguntando o que o outro estará
fazendo. — Olhou com severidade para Antoine. — Ansiedade e solidão
podem afetar todo o meu desempenho no palco. Não, senhor, acho que
nosso casamento durará muito mais se continuarmos a viver juntos.
— Desculpe-me, sr. de Mericourt, mas não posso mais perder tempo.
Acho que sua esposa já se decidiu.
— Tenho certeza que sim — disse Sylvie imitando-o. Então, dirigiu-lhe
o mais doce de seus sorrisos. — Mas o senhor não perdeu tempo, na
verdade. Monte Carlo é um lugar encantador para descansar alguns dias, e
tenho certeza de que o senhor trabalha muito, o que não deve ser muito bom
para a sua pressão. Um bom repouso lhe fará muito bem. — Fitou-o com
uma preocupação quase terna, como se o bem-estar do americano fosse a
coisa mais importante para ela.
Antoine disse então em voz baixa:
— Atrevida!
O diretor retirou-se e Sylvie olhou para seu marido. A cena se passara
como ela imaginara, embora Antoine tivesse se comportado de uma maneira
surpreendente para ela. Agora teria que encarar a fúria dele.
— Você destruiu deliberadamente meus esforços de terminar com uma
situação impossível — disse ele. — Voltaremos ao hotel e você se explicará
direitinho.
— Imagino que depois de hoje toda Monte Carlo saberá que somos
marido e mulher.
— É exatamente isso que nós não somos.
Mas ela teria um alívio temporário. Na entrada do restaurante, um
agitado administrador de palco encontrou-os, dizendo que estivera
procurando Antoine para tratar de um problema que surgira. Sua presença
era indispensável, pois os eletricistas estavam prestes a entrar em greve.
— Irei imediatamente — prometeu Antoine. Olhou para Sylvie e disse-
lhe em inglês: — Cuidarei de você mais tarde. Enquanto isso, tire essas
roupas horríveis. Onde você as conseguiu?
— Senhor — o administrador de palco insistiu.
— Está bom, já vou. Até mais, Sylvie.
Sylvie caminhou em direção ao hotel. Sentia-se deprimida, pois
estivera prestes a começar uma discussão importante com Antoine, que
agora fora indefinidamente adiada.
Um carro em excesso de velocidade veio em sua direção, e apenas o
braço forte de um transeunte foi capaz de impedir que Sylvie fosse
atropelada. Tremendo de susto, olhou para seu salvador, que ainda a
segurava. Era um homem alto, de boa aparência, vestido
convencionalmente. Supôs que ele fosse alemão ou austríaco, por causa de
suas palavras.
— Tenho que agradecer-lhe por me ter salvo a vida — disse ainda
muito assustada.
— Imagine, isso acontece. — O homem falava agora em francês —
Estou hospedado naquele hotel ali e é melhor que você vá comigo até lá para
se recuperar e talvez tomar alguma coisa. — Ele pegou seu braço e levou-a
para o salão do hotel. Sylvie ainda estava tão assustada pelo incidente, que
não fez objeções, permitindo que ele pedisse um conhaque para ela.
— O senhor chegou faz pouco tempo?
— Isso mesmo. A pessoa com quem vim me encontrar esta ocupada no
momento. Meu nome é Rhoem. a seu dispor.
— Sou Sylvie.
— Anotei a chapa do carro; se você quiser processar o motorista, estou
ao seu inteiro dispor. — Estendeu-lhe um cartão, onde a garota leu o nome
de um escritório de advogados.
— Já que não aconteceu nada de grave, não quero mover nenhuma
ação. O senhor é advogado? Lidar com as leis deve ser uma profissão muito
interessante.
— Aprende-se muito sobre a natureza humana — disse ele com frieza
—, principalmente na minha especialidade.
— E qual é? — perguntou Sylvie.
— Lido principalmente com complicações matrimoniais. — Um brilho
de satisfação surgiu em seus olhos. — Consegui desatar muitos nós que
todos insistiam em dizer que eram cegos. Normalmente consigo resolver os
casos mais difíceis.
Um pequeno arrepio percorreu a espinha de Sylvie. Ela perguntou,
desesperada:
— Mas o senhor está aqui de férias, não é?
— Não exatamente. Tenho uma licença de alguns dias, mas espero que
tenha tempo suficiente para obter sucesso em minha incumbência. — Ele
sorriu, um sorriso meio dissimulado, e Sylvie estremeceu.
Ele parecia tão confiante que a garota suspeitou qual seria aquela
incumbência. Como uma afirmação de seus temores, aproximou-se um
criado trazendo um recado. A baronesa von Eckburg estava pronta para
recebê-lo naquele momento. O sr. Rhoem levantou-se e fez uma reverência
para Sylvie, dizendo:
— Você me dá licença? Não posso deixar a nobre dama a me esperar.
— Claro — disse Sylvie com um sorriso mecânico. Ele foi embora e ela
continuou sentada sozinha, olhando para o vazio.
Pouco depois saiu do salão para procurar a solidão e o refúgio de seu
quarto, pensando que talvez tivesse sido uma pena que o sr. Rhoem tivesse
impedido que ela fosse atropelada. Sua morte teria resolvido os problemas de
todos, inclusive os seus.

CAPITULO X

Sylvie viu mais uma vez seu marido naquele dia no teatro, embora só
por um momento. O problema com os eletricistas era mais sério do que ela
havia pensado
Sentindo que não poderia descansar até que tivesse falado com ele,
deixou um recado na portaria para que a avisassem assim que o sr. de
Mericourt chegasse. Já passava da meia-noite quando recebeu a informação
de que o diretor já se encontrava em sua suíte. Sylvie usava um robe de seda
sobre a camisola e os cabelos soltos sobre os ombros. Abriu a porta com
cuidado, viu que não havia ninguém no corredor e subiu o lance de escadas
que levava ao andar acima.
— Entre — gritou ele em resposta à tímida batida, com voz muito
cansada. Sylvie encontrou-o como muitas vezes encontrara antes, usando
um robe preto, fumando um cigarro e com um copo de uísque em uma
mesinha. Ele não levantou a cabeça quando ela entrou. Estava com as
sobrancelhas franzidas em sinal de concentração, mas Sylvie imaginou que
os problemas do marido não tinham nada a ver com ela: que o incidente com
os eletricistas afastara de sua mente todas as preocupações de ordem
pessoal.
— Antoine — disse em voz baixa.
Ele se assustou com sua voz e fitou-a surpreso, levantando-se.
— Sylvie! Mas é muito tarde, ou melhor, muito cedo. Você devia estar
dormindo.
— Não estava com sono. Fiquei esperando você. Os eletricistas foram
muito cansativos?
— Entramos em um acordo, mas foi uma reunião muito longa, com
todo mundo gritando. — Ele passou a mão levemente pela testa. — Tenho
contas a ajustar com você, minha cara — ele lhe dirigiu um olhar bem-
humorado —, mas já é muito tarde para discussões, deixe para lá. Quer
beber alguma coisa?
— Obrigada, quero o mesmo que da outra vez.
— Que outra vez?
— Nossa primeira noite no seu apartamento. Era um uísque com soda,
muito fraco.
— Então você se lembra — disse Antoine enquanto lhe servia bebida.
— Eu me lembro muito bem que você parecia uma garotinha, vestida com
uma camisola de flanela. Mas você não parece muito mais sofisticada agora,
apesar de suas viagens.
— E eu deveria? — perguntou, pegando o copo e sentando-se a uma
pequena distância de seu marido. — Acredito que a sofisticação nasce de
experiências de vida muito profundas, e não de simples mudanças de um
hotel para outro.
Ele sentou-se outra vez, reassumindo seu olhar preocupado.
— Antoine — disse ela de repente —, fale-me de Yvonne. Antoine
pareceu voltar de uma longa distância, fitando-a inquisidoramente
— Yvonne? O que você está querendo saber sobre ela? Você acredita,
como todos, que ela é minha filha?
— Os fatos me fizeram pensar isso... E a sra. von Eckburg é a mãe
dela?
— Sim — foi a curta resposta.
Sylvie suspirou.
— Conte-me o que aconteceu.
— É uma longa história, você quer mesmo ouvi-la?
— Por favor. Acho que tenho o direito de saber.
— Talvez sim — concordou com delicadeza —, embora eu tenha
prometido a Hildegarde que nunca sairia nada de minha boca. Mas agora
Karl está morto e os segredos não são mais tão importantes. Além do mais,
tenho absoluta certeza de que você não contaria nada a ninguém.
— É claro — prometeu Sylvie.
— Os von Eckburg eram amigos de meu pai — começou ele
vagarosamente —, embora tenham lutado em lados diferentes na guerra,
mas Karl sempre odiou os nazistas, como muitos bons austríacos o fizeram.
— Sua voz suavizou-se. — Eu fiquei com eles depois da morte de minha
mãe. Mamãe e eu éramos muito apegados e eu fiquei muito deprimido
quando ela faleceu. Hildegarde foi um anjo. — A garota sentiu uma pontada
no coração. Então seu marido amava realmente a baronesa. — Nunca me
esquecerei do quanto ela foi gentil para comigo naquela época tão amarga da
minha vida — continuou Antoine. — Estava meio louco de tristeza, queria
matar-me, mas ela trouxe-me de volta para vida e para a normalidade. Não
julgue Hildegarde muito severamente, Sylvie, ela ainda era muito jovem e
Karl não era bom marido. Ela queria um filho, mas ele era incapaz de ser
pai, e a culpava por isso, é claro. Hildegarde teve uma vida muito difícil.
— Tenho certeza que sim — concordou Sylvie —, mas não havia...
consolos para sua existência?
— Você a culpa? Ela só queria, desesperadamente, ser amada por
alguém. — E me implorou que eu tomasse conta do bebê. A única alternativa
era um orfanato, e eu não queria deixar a criança num lugar desses.
Entreguei Yvonne aos cuidados de Marie. Era uma solução, mas acredito
que indiretamente eu culpava a criança pelas complicações em que ela, sem
querer, me envolveu. O que não me fez por momento algum ser muito gentil
com ela, não é?
— Sim — disse Sylvie —, é verdade.
Antoine sorriu com tristeza.
— E ela, ainda por cima, nunca pareceu ter jeito para vir a ser uma
bailarina.
— Pobre Yvonne! — exclamou Sylvie involuntariamente.
— Agora, tudo ficará bem para ela. Yvonne vai viver com seus pais.
— Como os pais? — perguntou Sylvie apreensiva. — Você parece ter
muita certeza disso.
— Estou esperando por isso. — Ele pareceu preocupado novamente. —
Mas ainda existe um problema.
Ele está se referindo a mim, pensou Sylvie, contraindo as mãos. Será
que conseguiria entregá-lo para Hildegarde?
Antoine não a fitava e parecia outra vez perdido em sonhos. Afinal de
contas, ele havia dado a ela o sucesso que lhe prometera e tinha sido isto o
que combinaram. Ela não tinha o direito de impedir que ele se juntasse a
Hildegarde e a Yvonne. Isso a fez lembrar-se do homem que encontrara
naquela tarde.
— Você sabe que o sr. Rhoem chegou? — perguntou ela e Antoine
encarou-a.
— Rhoem? Albercht Rhoem? Você está dizendo que ele está aqui? Que
ele chegou?
— Ele disse que esse era o seu nome. Parecia estar sendo esperado.
Antoine levantou-se e começou a caminhar pela sala, mostrando alívio
e alegria. Sylvie observava-o cheia de pesar. Ele devia confiar muito nos
poderes que o advogado possuía de manipular a lei.
— Eu sabia que Hildegarde estava esperando-o — anunciou ele, —
mas tinha uma sensação estranha de que a confiança dela não era muito
correspondida. Os Rhoem são uma família de advogados e qualquer
murmúrio de escândalo os teria arruinado. Embora um empresário de balé
sempre seja considerado uma pessoa sem muitos sentimentos, eu que tive
que tomar conta do bebê. — Sorriu cinicamente. — Sem dúvida, Hildegarde
conseguiu trazê-lo de volta.
A esperança brilhou nos olhos de Sylvie.
— Antoine, o que você está querendo dizer com isso? Quem é aquele
homem que encontrei?
Ele parou e fitou-a.
— Ora, minha cara, ele é o grande amor de Hildegarde. O pai de
Yvonne. Finalmente agora poderão se casar sem problemas.
— Oh! — Ela relaxou e começou a rir sem poder parar. — Pensei que
você era o futuro noivo e que fosse por isso que queria mandar-me de volta
para Tom.
— Eu nunca quis mandá-la de volta para Tom nenhum — disse ele,
elevando a voz. — Pare de rir, idiota! Não acho esta situação engraçada.
Antoine pegou-a pelos ombros, levantou-a e virou-se em direção à luz,
enquanto seus olhos procuravam o rosto dela.
— Então aquela noite... toda sua conversa sobre um coração magoado
foi pura mentira? Como a encenação que você fez esta tarde? Sylvie... — ele
sacudiu-a — como se atreve a brincar comigo desta maneira?
— Oh, me atrevo, sim. Não tenho nem um pouco de medo de você,
Antoine, apesar de toda a sua tirania...
Ele soltou-a e afastou-se com uma expressão sombria no rosto.
— Você acha que é isso que eu sou? Um tirano?
— Foi você quem disse, não eu.
Antoine ficou em silêncio. Sylvie olhou-o furtivamente com um
sentimento de remorso.
— Então, se você não ama esse tal de Tom, qual é seu problema?
Existe outra pessoa? Se você quiser a liberdade, eu lhe darei, e você terá um
dote digno de uma princesa...
— Então você me deixaria ir embora? — perguntou, quase sem
respirar. — Para fazer-me feliz?
E expressão de Antoine contraiu-se, mas ele apenas disse:
— Sim, Sylvie, se for esse o seu desejo. Tenho agido com muito
egoísmo com você, e.estou disposto a fazer qualquer coisa para remediar
minhas atitudes. Diga-me apenas o que você deseja.
— Você está falando sério?
— Sim, farei qualquer coisa que estiver a meu alcance.
— Eu quero muito mais. — Ela fitou-o com ar travesso. — Para
começar, quero que você me leve para Beaulieu e me ofereça outro grandioso
almoço naquele hotel. Depois quero que você me leve para passear, como fez
no dia de nosso casamento, mas desta vez quero que o dia seja seguido por
uma... noite de núpcias.
Antoine estava tão calmo que ela temeu que tivesse cometido algum
erro. Ele respirou fundo.
— Isso é possível.
Então ele a abraçou, mas desta vez Sylvie não se retraiu. Jogou-se nos
braços do marido, devolvendo-lhe todos os beijos. Seu corpo magro parecia
fundir-se com o dele. Quando se sentiu completamente esgotada, deitou-se
nos braços de Antoine e sussurrou com voz calma:
— Era você que eu desejava, mas você era tão inacessível, não poderia
me entender.
— Sylvie, desde aquela noite eu me apaixonei por você perdidamente
— disse ele com sinceridade —, mas tinha medo que você fugisse outra vez
se eu... — interrompeu-se e afundou o rosto nos cabelos da garota. Sua voz
chegou abafada nos ouvidos dela: — Pensei que eu lhe causasse asco...
Algumas vezes você chega a arranhar, pantera.
Ela estremeceu em seus braços.
— Já deve ser muito tarde.
Antoine olhou em direção à porta do quarto.
— É, mas não precisamos nos separar. Você realmente quer esperar
até amanhã à noite?
— Oh, não! — Sylvie escondeu o rosto na nuca de Antoine. Acabara de
ouvir um gemido do cão.
— Acho que teremos que descer até meu quarto, querido. — Ele ficou
surpreso.
— Por quê? Minha cama não é boa o suficiente para você?
Mais uma vez o ganido do cão ressoou no quarto.
— É Toni, querido; ele ficará ganindo a noite inteirinha, se eu não
voltar.
— Aquele maldito vira-lata! Você terá que se desembaraçar dele —
declarou Antoine.
— E tente não maltratá-lo, Antoine, ele foi um grande consolo para
mim, quando você não estava a meu lado.
— Pelo que eu lhe sou muito grato, mas você não vai precisar mais de
consolo no futuro, pois estarei sempre a seu lado. — Apertou-a com mais
intensidade. — Minha esposa adorada!

* * Fim * *

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