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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA EM TEORIA DA LITERATURA

Quando o Fado é Confissão


“E na minha confissão/vão as rimas do meu fado”

João Maria Lencastre de Bragança

MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA


2015
Quando o Fado é Confissão
“E na minha confissão/vão as rimas do meu fado”

João Maria Lencastre de Bragança

Mestrado em Teoria da Literatura


Dissertação orientada pelo Professor Doutor Miguel Tamen
2015

1
Senhora eu tenho fé
De encontrar a minha luz
Nesta imensa escuridão
Venho falar dos meus medos
São vossos os meus segredos
Que eu partilho em confissão

“Venho falar dos meu medos”, versos de António Laranjeira

Cada verso uma oração


Um padre-nosso rezado
E na minha confissão
Vão as rimas do meu fado

“ A minha oração”, versos de Mário Rainho

2
AGRADECIMENTOS

Esta tese não teria sido possível sem todos aqueles que aqui, ou no Céu, permitem
que eu seja.

Não teria sido possível sem o incansável apoio, paciência e espírito crítico de
quem me está mais próximo e cuja vida, por isso, se confunde com a minha.

Não teria sido possível sem aqueles que me colocaram uma metafórica guitarra
portuguesa na mão e com isso me incentivaram, leram, corrigiram, elogiaram.

Não teria sido possível sem aqueles que ao longo da vida me falaram de fado.

Não teria sido possível sem o Prof. Miguel Tamen, a quem devo a orientação que
me resgatou tantas vezes e de forma tão determinante. Mas a quem devo também
o humor que simplifica, o conhecimento que esclarece, a pedagogia assertiva, a
disponibilidade permanente.

3
Resumo

O fado nasceu na década de 1830. De lá para cá foi quase tudo: sátira, canção de
combate contra o regime e a igreja, voz contra as injustiças sociais ou como
crónica de costumes; foi “canto peregrino”, canção de amor e saudade, de ciúme e
de traição, elogio musicado das virtudes da singeleza ou da modéstia. O fado foi
ainda lenitivo para quem partiu à procura de melhor, cartão de visita em viagens
para destinos onde não se falava português. Do fado, por ser considerado inferior,
fugiram alguns poetas; desse mesmo fado se aproximaram outros poetas à boleia
de um olhar arrojado e diferente.

O fado pode ser um género musical. Mas o fado pode ser também uma confissão.
Para isso não basta cantar-se o fado Menor ou o Mouraria, juntar-lhe poesia e um
conjunto de guitarras. Para o fado ser confissão é preciso reunir um conjunto
de condições: quem canta, o que canta, quando canta, onde canta ou como canta.

Em 1927 começaria a censura; em 1962 Amália gravaria o álbum Busto. Nos 35


anos que medeiam uma data e outra o fado viveu um tempo durante o qual a
criatividade das letras se expandiu até ficar do tamanho dos bairros populares,
das vidas dos seus moradores; um tempo durante o qual se cantaram as vidas
corriqueiras com palavras que eram de todos, porque entendidas por todos. Um
período durante o qual o fado, pela sua dimensão de partilha e de expressão de
intimidade, mais se aproximou de ser prece, pranto ou pregão Um período
durante o qual o fado mais se aproximou de ser confissão, tal como a conhecemos
no sentido da Religião.

O objectivo deste trabalho é o de definir – entre 1927 e 1962 – as condições em


que o fado é confissão e as condições em que é apenas um género musical.

4
Abstract

Fado was born in the 1830s. Since then Fado was almost everything: satire, voice
against the regime, the church or social injustice, a mere chronicle; Fado was a
song of love and longing, jealousy and betrayal, musical praise of the virtues of
simplicity and modesty; Fado was solace for those who emigrated in search of a
better life; Fado was a business card on destinations where Portuguese was not
spoken. Fado, being considered inferior, drove off some poets; other poets
approached Fado because of someone’s audacious and distinctive look.

Fado can be a musical genre. But Fado can also be Confession. It is not enough,
though, to sing the Menor or the Mouraria, to add some poetry and a set of guitars.
For Fado to be Confession it is necessary to meet some conditions: who is singing,
what, when, where and how is someone singing.

In 1927 censorship is established; in 1962 Amália records the album Busto. In the
meantime, Fado lived a time during which the creativity of the poetry
encompassed the small neighbourhoods and their inhabitants; a time during
which the poets sang the everyday lives using words that everyone understood. A
period during which Fado, due to its dimensions of sharing and expression of
intimacy, came to being a prayer, weeping or cry. A period during which Fado
came to being Confession, as we know it in the religious sense.

The purpose of this work is to define - between 1927 and 1962 - the conditions
under which Fado is confession and the conditions under which it is just a musical
genre.

5
Índice

1. …………………………………………………………………………….... 7
2. …………………………………………………………………………........ 7
3. …………………………………………………………………………….... 10
4. …………………………………………………………………………...... 14
5. …………………………………………………………………………….... 16
6. …………………………………………………………………………….... 17
7. …………………………………………………………………………….... 18
8. …………………………………………………………………………….... 18
9. …………………………………………………………………………….... 23
10. ……………………………………………………………………………. 24
11. …………………………………………………………………………….. 25
12. ……………………………………………………………………………. 28
13. ……………………………………………………………………………. 29
14. ……………………………………………………………………………. 30
15. ……………………………………………………………………………. 31
16. ……………………………………………………………………………. 31
17. ……………………………………………………………………………. 32
18. ……………………………………………………………………………. 33
19. ……………………………………………………………………………. 34
20. ……………………………………………………………………………. 35
21. ……………………………………………………………………………. 36
22. ……………………………………………………………………………. 38
23. ……………………………………………………………………………. 39
24. ……………………………………………………………………………. 40
25. ……………………………………………………………………………. 40
26. ……………………………………………………………………………. 41
27. ……………………………………………………………………………. 42
28. ……………………………………………………………………………. 45
29. ……………………………………………………………………………. 48
30. ……………………………………………………………………………. 51
31. ……………………………………………………………………………. 53
32. ……………………………………………………………………………. 54
33. ……………………………………………………………………………. 57
Bibliografia .......................................................................................... 59

6
1.

1830, 1927, 1962 - estas três datas, aparentemente desligadas entre si a não ser
pelo facto de estarem ordenadas cronologicamente, são fundamentais para a
compreensão deste trabalho. Muito embora correspondam, com excepção da
primeira, a acontecimentos bem localizados no tempo, não devem ser
consideradas como rígidas. Isto é, nenhuma delas corresponde a um
acontecimento de natureza disruptiva que rasga brutalmente com um passado
para abrir portas a um futuro substancialmente diferente. Os períodos definidos
por cada um dos marcos temporais não são estanques, definidos com precisão
matemática, onde algo acaba para dar origem a um outro algo. Há realidades que
vêm do período anterior e que persistem; há realidades que desaparecem com o
tempo, não instantaneamente; por vezes há um acontecimento único, bem
datável, que provoca uma espécie de desvio no curso do fado, porque é de fado
que falo: uma mudança de direcção que pode ser subtil ou não, mais ou menos
repentina e que, não alterando por completo o figurino do fado, o leva a outras
paragens, lhe dá horizontes distintos, lhe oferece uma roupagem diferente.

2.

Começo pela primeira data: 1830, que corresponde ao início do primeiro período
desta história do fado. É bastante consensual que o fado como música nasce em
Portugal por volta desta década1, embora a palavra seja muito anterior. Fatum
era, para os romanos, a vontade expressa “em relação ao destino dos homens,
das cidades e das nações.” (Pimentel, p. 7). A expressão ‘fado’, no sentido de
canção, surge pela primeira vez em 1874 no dicionário de Lacerda, com a
seguinte descrição: “Fado, cantiga e dança popular, muito característica e pouco
decente.” A 7ª edição do dicionário de Moraes, de 1878, refere: “Fado, poema do
vulgo, de carácter narrativo, em que se narra uma história real ou imaginária de

1 Há inúmeras obras que convergem ou divergem na teoria sobre as origens do fado: A Origem do
Fado, de José Alberto Sardinha; Lisboa, o Fado e os Fadistas, de Eduardo Sucena; Para uma
História do Fado, de Ruy Vieira Nery; Ao Fado Tudo se Canta? de Daniel Gouveia, O Fado, Canção
de Vencidos, de Luiz Moita; História do Fado, de Pinto de Carvalho; A Triste Canção do Sul, de
Alberto Pimenta, ente outras. Uma corrente (a defendida por Vieira Nery) parece ser a que mais
se aproxima da realidade: “(...) as fontes documentais sobreviventes aprontam sem margem para
dúvidas para um conjunto de manifestações do género na capital que começam a ser referidas de
forma ocasional na viragem da década de 1830 para a seguinte (...)” (Nery, p. 67).

7
desenlace triste, ou se descrevem os males, a vida de uma certa classe, com no
fado do marujo, da freira, etc.“

O termo ‘fadista’, cuja alusão é quase obrigatória quando falamos de fado, é


encontrado pela primeira vez 1849, em Eduardo ou os Mistérios do Limoeiro, do
Padre João Cândido Carvalho (vulgarmente conhecido por Rabecão): um
mancebo de 19 a 20 anos, jaqueta, “cinta de seda enrolada à fadista”, acendendo
repetidamente o mesmo charuto. Alguns anos mais tarde, o fadista típico viria a
ser descrito como um homem “minado de taras, avariado pelas bebidas fortes e
pelas moléstias secretas, com o estômago dispéptico, o sangue descraseado e os
ossos esponjados pelo mercúrio - é um produto heteromorfo de todos os vícios,
atinge a perfeição ideal do ignóbil.” (Carvalho, p. 31)

É num universo de pobreza, de jogo e contrabando, de prostituição e de boémia,


num circuito marginal cada vez mais significativo das primeiras décadas do
século XIX (Nery, pg. 54) que o fado dá os primeiros passos: são as tabernas, os
bordéis, “lugares de encontro essencialmente masculino em que a presença
feminina se restringe quase em exclusivo ao universo da prostituição” (Nery, pg.
56). “Sentinas do vício”, como lhes chamará Pinto de Carvalho, acrescentando
que “a Mouraria já era um ponto marcado nas cartas da geografia amorosa em
1755 e já gozava de uma reputação horripilante em épocas muito anteriores à da
Severa”2 (Carvalho, p. 58).

No entanto, o fado não se reduz integralmente ao universo das tabernas ou,


vivendo nestas, não tem como companhia apenas a prostituição e o seu mundo.
Aos espaços de prática fadista acorrem gradualmente os “toureiros, bolieiros,
operários, prostitutas, rufiões, fidalgos e burgueses.” (Moita, p. 116). São os
arraiais populares, as esperas de touros e corridas, ou simplesmente as ceias nas
hortas e retiros da periferia da cidade. (Nery, p. 124).

Do ponto de vista da forma, as primeiras letras de fado assentam principalmente


em “meras sequências informais de quadras soltas” (Nery, p. 101). “O fado

2A certidão de óbito da Severa, transcrita por Luiz Moita (pg. 110) refere: “no dia 30 de
Novembro de 1846 anos na rua do Capelão nº 35-A, faleceu apoplética, sem sacramentos, Maria
Severa Honofriana (...)”

8
principiou por se cantar com versos ingenuamente populares, improvisados à la
va comme je te pousse.” (Carvalho, p. 83):

Ulisses era brejeiro


era o pai da brejeirada
era um bom sapateiro
trabalhava numa escada.

Apesar do carácter essencialmente popular da poesia do fado, a simplicidade


parece provocar enfado. “Assim como o ritmo musical foi asiaticamente ornado
com variações pretensiosas, que rendilharam de laçarias difíceis a ingenuidade
inicial do fado, também a letra, a glosa, se enredou em extravagâncias e boleios
exóticos de linguagem, paralelamente.” (Pimentel, p. 188). Em A Triste Canção do
Sul, publicada em 1904, Alberto Pimentel reproduz inúmeras letras de fado em
que predomina o artifício, sobre as quais afirma: “pode achar-se-lhes mais ou
menos graça, mas não se lhes encontra sentimento, e a poesia do povo só vive à
custa das suas próprias emoções.” (Pimentel, p. 188). Esta certeza daquilo que
verdadeiramente alimenta a poesia do povo – a emoção - será importante no
decurso deste trabalho.

Eu zombo d’homens teutónicos


Eu zombo dos argentários
Eu zombo dos pitagóricos
Eu zombo dos usurários.

No período de 1890 a 1926 assiste-se a uma radicalização revolucionária que se


agrava com a crise do Ultimatum inglês de 1890, à qual se segue um forte surto
republicano com ecos favoráveis nos bairros populares de Lisboa (Nery, p. 158).
É por isso natural que a temática do fado acompanhe esta radicalização, com
letras fortemente antimonárquicas ou anticlericais.

9
Destruir a monarquia
Haver no mundo igualdade
São dois pontos sublimes
Por que pugna a sociedade.

Este primeiro período do fado inicia-se, como vimos, em 1830, porque é aqui,
nesta década, que tudo começa. Este tempo é caracterizado sobretudo pela
envolvente e pelos protagonistas do fado, fado este que parece ter mais impacto
como realidade sociológica do que como género musical. O termo ‘fado’ é
utilizado metaforicamente na acepção de sina ou destino: ‘mulher do fado’ e
‘mulher da vida’ são, neste contexto, sinónimos. É a boémia, a prostituição, o
bordel, a taberna – ainda que com um início de incursão pelos salões nobres da
fidalguia. Mas o primeiro período também é caracterizado pelas formas singelas
(quadras soltas, ou glosadas em décimas), pelas letras artificiosas e, por isso,
desprovidas de algum sentimento, e pela variedade dos temas: não só o jogo de
paixões, de desejo, de posse amorosa, da traição e da saudade, mas também as
histórias locais, os óbitos de personalidades célebres, os grandes cataclismos, os
momentos estabelecidos de festa e de lazer, como as corridas de touros. O fado é,
nesta altura, um género essencialmente popular. Poderemos falar em reflexo de
um determinado contexto social boémio, mais do que em emoção?

3.

Enquanto o primeiro período tem o seu começo de uma forma mais difusa, não
num momento específico, mas numa década suposta - 1830 - o segundo período
inicia-se com base num acontecimento singular, datado, ainda que não
produzindo efeitos imediatos.

Estamos em 1927. Antes deste momento o fado já saíra dos bordéis para entrar
nos palácios; o fado já fora gravado em disco e o fadista já não era o faia “com
uma voz soluçada, quebrada na laringe, acompanhada da expressão fisionómica
de uma sentimentalidade de enxovia, pelintra e miserável “ (Moita, p. 124). Antes
de 1927 o fado já se tornara apresentável, e muito antes disso, fruto de uma
realidade socioeconómica das décadas de 1850 e 1860 que gera uma classe

10
média ávida de divertimentos públicos (Nery, pg. 126), o fado chega ao teatro,
cantado pelos actores das revistas em cena.3

Qual é, então, o ponto de inflexão que marca o início deste intervalo temporal? A
resposta é o Decreto 13564, de 6 de Maio de 1927, um marco suficientemente
importante para dar origem ao segundo período desta história do fado.

O diploma acima referido vem regulamentar com detalhe diversos aspectos da


vida artística de então: o licenciamento e fiscalização das casas de espectáculos e
outros divertimentos públicos; as normas de construção e segurança dos
recintos públicos; a salvaguarda dos direitos de autor. Para além destes e de
outros aspectos, propõe-se impor a todos os artistas a posse de “licenças
profissionais” (art.º 4º, nº 3) e “fiscalizar os espectáculos e promover a repressão
de quaisquer factos ofensivos da lei, moral e dos bons costumes” (idem, nº 11).

Surge assim a censura4, actuando de forma mais sistemática e eficaz contra os


textos com conotação política. Isto leva a que os letristas de fado se
autocensurem, não apresentando a exame, sequer, poemas de cariz ideológico
divergente. O tema da pobreza, tão presente nas primeiras letras de fado, é
tolerado, desde que seja a fonte natural de uma virtude ingénua, e não derivada
de injustiça social (Nery, p. 237).

Tu com dois palmos de terra,


Eu com dois bagos de trigo,
Não é preciso mais nada...
Anda, vem casar comigo.5

Seja porque as limitações da censura tornam o terreno propício, seja porque esta
é a verdadeira natureza nacional, o facto é que o ar do tempo favorece o

3 Em Janeiro de 1851 apresenta-se no Teatro do Ginásio a primeira revista, Lisboa em 1850; em


1856, Fossilismo e Progresso. Em 1869, Manuel Roussado leva ao Teatro da Trindade a comédia
Ditoso Fado; em 1872, o dramaturgo Castro Soromenho apresenta uma espécie de réplica ao
original, Triste Fado. (Nery, p. 126)
4 “A censura terá somente por fim impedir a perversão da opinião pública na sua função de força

social e deverá ser exercida de forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem contra
a verdade, a justiça, a moral, e a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados
os princípios fundamentais da organização da sociedade.” (Artº 3º do Decreto-lei 22469, de 11 de
Abril de 1933).
5 “Carta da aldeia”, versos de António Vilar da Costa.

11
surgimento de uma outra poesia popular do fado. A esta época, que começa ainda
antes da censura, com o surgimento das gravações discográficas (por volta de
1904) e termina com a chamada internacionalização do fado, Daniel Gouveia
chamou a “Idade de Ouro dos Letristas” (Gouveia e Mendes, prefácio): falamos de
Avelino de Sousa (1880 – 1946), de Linhares Barbosa (1893 – 1965), de
Henrique Rego (1893 – 1963), de Frederico de Brito (1894 – 1977), de Carlos
Conde (1901 – 1981), de Francisco Radamanto (1908 – 1972), de entre os 27
que compõem a antologia, responsáveis por mais de metade desta poesia
popular.6 Ao escrever uma outra poesia, estes poetas populares não referiam
nada que lhes fosse essencialmente extrínseco, como um renque de flores
impessoal, a morte de um conde às mãos de um rufião ou a seca prolongada que
provoca fome em quem já a tem. Muito pelo contrário, estes poetas cantavam a
saudade, a traição, a desgraça, o engano, o ciúme, o destino ao qual não podemos
fugir. Não como sentimentos que lhes eram estranhos, mas como algo que
sentiam verdadeiramente.

Minha mãe disse-me assim


Ao ver-me lágrimas tristes
Banhando-me o pobre rosto;
Não posso, não sei dar fim
À tua grande desgraça,
Ao teu amargo desgosto.7

A censura – um organismo, uma sensibilidade, uma forma própria de ouvir e de


ler - mata o carácter político das letras: ao fado já não o deixam ser republicano,
anarquista, proletário ou sindicalista; o fado já não pode ser anticlerical ou lutar
revolucionariamente pelos oprimidos.

Durante o Estado Novo, a preocupação de justiça, “o respeito pelos


desfavorecidos, o despeito pelos favorecidos” (Gouveia e Mendes, p. 141) tem de

6 A este respeito fará sentido referir a obra de Vítor Pavão dos Santos (Amália e os Poetas,
Bertrand, 2014) onde são mencionados outros letristas da altura, não incluídos na colectânea de
Gouveia e Mendes, nomeadamente José Galhardo, Guilherme Pereira da Rosa, e outros).
7 “Conselhos de minha mãe”, versos de Linhares Barbosa.

12
vir disfarçado de subtilezas de linguagem para poder passar ao crivo do lápis
azul.

Pus todo o meu sentimento


Na mágoa que não se aparta
Do que mais nos desconsola;
E assim, a cada momento,
Vi boçais comendo à farta
E génios pedindo esmola!8

A política deixa de ser tema, o que pode significar, ainda que ironicamente, que a
censura centrou a temática do fado naquilo que é transversal a uma franja
significativa do povo português, deixando a poesia de intervenção para o que
viria a ser a música de intervenção. O fado passa a cantar o dia a dia da gente
simples, tantas vezes na exaltação das virtudes da modéstia e do trabalho.

Maria do Rosário. Uma enfermeira


alegre, graciosa, mas modesta,
que a velar seus doentes, sem canseira,
sentia o coração e a alma em festa.9

Ou talvez o fado cante apenas os temas à volta dos quais tudo gira: o amor e a
morte.10 E ao fazê-lo, o fado abre a porta à confissão do fadista, à partilha da
realidade que o envolve e que o constitui. Se unirmos esta dimensão de partilha e
confissão ao espaço intimista da colectividade de bairro, da casa de fados, onde o
português é língua dominante, elevamos o fado a uma dimensão superior. É o
fado a cantar poesia na primeira pessoa do singular.

8 “À janela da vida”, versos de Carlos Conde.


9 “Maria do Rosário”, versos de Artur Soares Pereira.
10 Numa entrevista ao DN, a 3 de Maio de 2015, Maria do Rosário Pedreira, editora, poeta,
escritora, e autora das letras do disco Romance, de Aldina Duarte, afirma: “Sim, os temas da
literatura são sobretudo esses [o amor e a morte]. Mesmo quando as pessoas pensam que não
estão a escrever sobre o amor ou a morte, no fundo, acabam por estar”.

13
4.

Em 1957 Amália Rodrigues grava o seu primeiro longa-duração: Amália no


Olympia. Quase todas as letras são de poetas da chamada “Idade de Ouro”
(Gouveia e Mendes, prefácio): Amadeu do Vale, Avelino de Sousa, Linhares
Barbosa, José Galhardo, Silva Tavares, entre outros. No alinhamento do disco,
Perseguição é a quarta faixa:

Se de mim nada consegues


Não sei porque me persegues
Constantemente na rua
Sabes bem que sou casada
Que sempre fui dedicada
E que não posso ser tua.11

O segundo LP de Amália, conhecido por Busto, será gravado em 1962. É o início


da colaboração com Alain Oulman, que compõe quase todas as músicas, bem
como a inclusão de poetas nunca cantados até então: Luís de Macedo, David
Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello. Da primeira faixa:

Asas fechadas são cansaço ou queda,


Pedra lançada ou voo que repousa.
Em meu sorriso a minha entrega
Que o meu olhar não ousa.12

O disco marca o início, também, de uma mudança substantiva no fado:


acompanhamento ao piano, incursão por músicas novas não tradicionais, poetas
eruditos, discos conceptuais (por contraponto a gravações de temas soltos).
Amália no Olympia é, de alguma forma, o fado como Portugal o conhecia nos
últimos trinta anos. Busto inaugura um novo tempo, patente também na

11 “Perseguição”, música de Carlos da Maia, versos de Avelino de Sousa.


12 “Asas Fechadas”, música de Alain Oulman, versos de Luís de Macedo.

14
diferença das letras de Avelino de Sousa e de Luís de Macedo.13 Surge uma nova
linguagem poética e, com esse surgimento, algo da confissão desaparece.

É este ponto de viragem, em nada despiciendo, que dá início ao terceiro período


desta história do fado. Estamos em 1962. Nada no mundo do fado aparenta ser
muito diferente: o teatro já existia antes desta data, como já existiam as casas de
fado, a rádio e a TV, a taberna e a colectividade bairrista, a profissionalização dos
artistas, o itinerário das comunidades de emigrantes em início de formação. Mas
1962, mais importante do que ser o ano em que Fernando Farinha alcança o
título de “Rei da Rádio” (Nery, p. 292) é o ano de gravação do álbum Busto; é o
ano de Oulman a compor e a tocar os seus fados ao piano, é o ano em que Pedro
Homem de Mello, David Mourão-Ferreira e Luís de Macedo saem das páginas
consagradas da chamada poesia erudita para as faixas do vinil; 1962 é o ano de
uma nova riqueza de vocabulário poético, “inclusive no plano temático, já que,
por exemplo, Abandono, de David Mourão-Ferreira, foi escrito por ocasião da
prisão de um opositor do regime no forte de Peniche...” (Nery, p. 308):

Por teu livre pensamento


Foram-te longe encerrar,
Tão longe que o pensamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar.14

“Então vamos lá às óperas...”, frase dita por José Nunes à entrada de uma das
sessões de gravação (Nery, p. 309) ou “agora a Amália canta letras à Picasso”
(idem) são evidências suficientes da importância de 1962 nesta história do fado.
Nunca tendo abandonado por completo os fados castiços mais tradicionais,
Amália cantará quem pouco ou nada se cantava até então: Camões, José Régio,
Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, entre outros. Apesar das emoções poderem ser

13 Luís de Macedo (1925 – 1987) “foi um dos poetas do grupo da Távola Redonda, do qual faziam
parte David Mourão-Ferreira, António Manuel Couto Viana (...) todos amando Teixeira de
Pascoaes, Paul Valéry, T. S. Eliot ou Ezra Pound.” (Pavão dos Santos, p. 675). Avelino de Sousa
(1880 – 1946) embora tendo morrido como primeiro conservador da Torre do Tombo, começou
como compositor tipográfico (Gouveia e Mendes, p. 15).
14 O fado “Abandono”, faixa nº 6 do álbum Busto, tem música de Alain Oulman.

15
as mesmas – o amor, a saudade, o destino - há um afastamento muito grande com
uma tradição letrista que surgiu com a censura.

Entre sombras misteriosas


Em rompendo ao longe estrelas
Trocaremos nossas rosas
Para depois esquecê-las.15

Por outro lado, é na década de 1960 e seguintes que, de forma quase


ininterrupta, a fadista intensificará a sua actuação um pouco por todo o mundo,
não só para as comunidades emigrantes, mas para públicos onde o português
pouco será falado. É o fado a internacionalizar-se, muito mais do que a visitar o
mercado da saudade, e com isso, talvez, a levar a palavra ‘saudade’ a cantos onde
ela não era conhecida nem vivida.

5.

Temos portanto três datas: 1830, 1927, 1962. Como já foi referido, estes marcos
cronológicos criam períodos de tempo não estanques, não definidos a régua e
esquadro, com zonas de intersecção não nulas; períodos de tempo durante os
quais algumas características do fado e de tudo o que o rodeia se mantêm, outras
desaparecem, outras surgem. É por isso que cada época é relevante: numa houve
a criação e o crescimento na marginalidade lisboeta; noutra o impacto da
censura que faz florescer uma certa poesia intimista; noutra, por fim, os
caminhos da erudição e da internacionalização.

Para efeitos desta tese interessa o segundo período desta história do fado: um
período que começa com o advento da censura e termina com a gravação do
álbum Busto; um tempo durante o qual a criatividade das letras se expandiu até
ficar do tamanho dos bairros populares, das vidas dos seus moradores; um
tempo durante o qual se cantaram as vidas corriqueiras com palavras que eram
de todos, porque entendidas por todos: ciúme, saudade, traição, destino, fado.
Um período durante o qual o fado, pela sua dimensão de partilha e de expressão

15 “Havemos de ir a Viana”, música de Alain Oulman, versos de Pedro Homem de Mello.

16
de intimidade, mais se aproximou de ser “prece, pranto ou pregão”16, mas, acima
de tudo, se aproximou da confissão, tal como a conhecemos no sentido da
Religião. É essa proximidade entre fado e confissão que tentarei identificar,
assim como procurarei demonstrar o que os afasta e em que condições o fado
deixa de ser confissão para ser género musical.

6.

Para esta história do fado, e apesar das inúmeras obras já aqui referidas que
apresentam uma cronologia do Fado baseada em argumentos válidos, provas
documentais ou análises cuidadas, decidi seguir o filme Fado, história de uma
cantadeira, realizado por Perdigão Queiroga, muito embora me socorra das
obras referidas, sempre que necessário, para um verdadeiro enquadramento
histórico do fado. Mas o filme, guião narrativo deste trabalho, é, ele mesmo, a
história do fado.

Deste filme destacarei principalmente cinco cenas, não obstante referir outras
menos relevantes:

i. aos 12’, quando Ana Maria se benze, antes de começar a cantar;


ii. aos 24’, quando Ana Maria e Júlio dão início ao ensaio de uma série de
fados;
iii. aos 34’, quando Ana Maria ouve do empresário Sousa Morais: “tenho a
certeza de que vai agradar muito no teatro.”
iv. aos 67’, quando Ana Maria reconhece que já não sabe cantar o fado e,
menos de 5 minutos depois, Júlio lhe diz que ela já não sabe cantar;
v. o final, quando, esclarecido um desajuste de comunicação decorrente da
morte de Luisinha, Ana Maria irrompe pelo Unidos de Alfama e canta o
Fado de cada um a que Júlio dera início atabalhoadamente instantes antes.

16 “A fadista”, versos de Manuela de Freitas.

17
7.

Este filme de 1948 inclui no seu elenco nomes tão importantes como Virgílio
Teixeira, António Silva, Vasco Santana ou Eugénio Salvador, e conta “a
vertiginosa trajectória de uma fadista de Alfama dividida entre o sucesso e as
suas origens populares”.17 Mas seria “acima de tudo uma assumida homenagem a
Amália Rodrigues”18, então com 28 anos, no papel de uma cantadeira de fado.
Ana Maria, assim se chama o personagem, é protagonista de uma carreira
fulgurante. Estreia-se com grande êxito num retiro em Lisboa, êxito esse que
acaba por levá-la ao teatro. Apesar de tudo, Ana Maria não se deixa contagiar
pelo sucesso e continua ligada ao seu homem de sempre, o Júlio guitarrista. No
entanto, a atracção por uma vida luxuosa e de celebridade leva-a a afastar-se de
Júlio, que pensa em partir para África.

Num primeiro olhar, a sinopse do filme parece não deixar margem para dúvidas:
falamos, de facto, da vida de uma cantadeira – do seu início de carreira, dos seus
triunfos, dos seus desalentos, dos amores e desamores, porque os estados de
alma afectam as carreiras emergentes. Ora, um olhar mais arrojado poderá ver
neste filme, não a história de uma mulher que canta o fado, mas uma metáfora
para a própria história do fado. Talvez mais prudentemente, para uma certa
história do fado. Nesta linha de raciocínio, Amália, a actriz principal, não é Ana
Maria (que seria, ela própria, Amália) mas o próprio fado. E o título do filme
poderia alterar-se para: Ana Maria, ou a verdadeira história do fado. Talvez por
isso em vários momentos seja duvidoso quem faz o quê. É Ana Maria que diz ou é
o fado que diz? Na última cena do filme quem regressa, de facto, ao Unidos de
Alfama?

8.

1948, Alfama. Segundo a cronologia referida como introdução, estamos


sensivelmente a meio do segundo período desta história do fado e, portanto, no
auge da Idade de Ouro dos letristas. Depreende-se que a acção do filme, ainda

17 http://www.rtp.pt/programa/tv/p12565 (acedido em 22.08.2015).


18 Id.

18
que este facto não seja explícito, termine sensivelmente um ano depois, talvez
um pouco mais.

Após a morte de sua mãe, uma cantadeira afamada chamada Maria do Rosário,
Ana Maria é criada pelas mulheres do bairro. Segue-lhes os passos nesse desvelo
pelo próximo ajudando a criar Luisinha, com 8 anos, de quem diz ser tão sua filha
como ela é filha do bairro. Um bairro piedoso, que “dá às suas ruas nomes de
santos e de mártires” (Chantal, p. 256); um bairro todo descrito, na sua geografia
física e afectiva, pela quintilha de Frederico de Brito.

A nossa rua é estreitinha


Tua casa é rente à minha
Mas a distância é tão pouca
Que p’ra beijar-te à noitinha
Basta só estender a boca.

Obviamente, Alfama não surge por acaso. É nos bairros populares19 - em Alfama,
mas também na Mouraria, na Bica ou na Madragoa - que o fado, esta canção de
“miséria e de resignação”20 ganha corpo. “Alfama não cheira a fado / mas não
tem outra canção”21. Não só Alfama não tem outra canção, como a canção não
sobreviveria em sítios abertos e minados de sons incaracterísticos; não resistiria
às avenidas rasgadas, aos prédios altos, amplos e impessoais, aos jardins
desafogados e silenciosos. Numa certa dimensão, o fado, ao contrário de outras
formas musicais, dá-se mal com os grandes espaços, sente um excesso de ar que
o sufoca, lhe retira espontaneidade, criatividade, matéria de inspiração. Parece
precisar de proximidade, dos becos, das escadinhas, das pequenas praças, das
travessas, do casario encavalitado pela encosta abaixo, do traçado labiríntico das
ruas, pois o fado é constituído por todos os sons que o bairro emite e que
Suzanne Chantal (p.260) tão bem caracterizou:

19 “E, antes de mais, [o fado] aparece como profundamente ligado à velha Lisboa, aos bairros
populares ‘alfacinhas’” (Firmino da Costa, p. 119)
20 “É uma canção de escravos, uma canção de miséria e de resignação, é preciso para a cantar uma

voz de choro e, segundo Júlio Diniz, a certeza de morrer ao 20 anos” (Chantal, p. 455).
21 “Alfama” (versos de José Carlos Ary dos Santos).

19
(...) Todas as vozes, o bater da roupa que se lava, as ferraduras dum burro,
o choro duma criança, o grito cantante das vendedeiras de peixe ou de
laranjas, as discussões de taberna, a T.S.F., o acordeão, um carro que
manobra nas ruas principais, o vento no catavento dum campanário, a
recitação na sala da escola, o som abafado dos pés descalços nos degraus
e pedra, a campainha dum eléctrico distante.

É por esta arquitectura urbana que Ana Maria (ou o fado?) caminha nas suas
rotinas de trabalho, de lazer, de namoro: “É certo que a morfologia física tem a
sua eficácia própria nas relações sociais. Ela é aqui um dos factores favoráveis ao
estabelecimento de laços de vizinhança e regimes de interacção como os que se
têm desenvolvido em Alfama” (Costa, p. 303). Falamos de Alfama, objecto de
estudo da obra citada, mas a frase aplica-se ao Castelo, ao Bairro Alto, à Graça – à
generalidade dos bairros populares com estas características. É aqui, na
Mouraria, que a Bia florista namora o Chico cauteleiro22. É aqui, no mercado da
Ribeira, que a mãe da Rita lhe proíbe o namoro com o Chico, que é pescador 23 . É
aqui, na Travessa da Palha, que o homem dela, gingão, aparece com a outra pelo
braço24 . É também aqui, num qualquer tribunal, que uma velhinha jura que o
filho não lhe bate nem a rouba25. Mas é também aqui, como diria ainda Suzanne
Chantal (p. 283), que

(...) mesmo as casas fechadas puseram os tapetes nas janelas. Toda a


gente se persigna, e a mão do prelado abençoa, no espaço, os bons, os
maus, essa multidão de fiéis de Nossa Senhora da Saúde em que se
misturam as raparigas, os vadios, os mendigos e o povo da Guia, do
Socorro, da Mouraria, que há pouco ainda se reuniam ao crepúsculo para
orar em frente duma estátua santa, colocada num nicho, entre uma
taberna e um lupanar.

22 “A Bia da Mouraria” (versos de António José).


23 “O namorico da Rita” (versos de Artur Ribeiro).
24 “Foi na Travessa da Palha” (versos de Gabriel de Oliveira).
25 “Drama de uma velhinha” (versos de Carlos Conde).

20
Talvez porque uma procissão também possa ser vista, para além da sua
dimensão genuinamente religiosa, como uma metáfora para esta vida bairrista
feita de tabernas e de igrejas, de más vidas e de devoções – o percurso, as
paragens, as etapas certas, a solenidade, os olhos postos na Senhora que todos
ouve, a todos guarda. No fundo, a crendice, a fé e a vida real a calcorrear as ruas
lado a lado, porque nos bairros populares umas não vivem sem as outras,
alimentando-se mutuamente.

Colchas ricas nas janelas


pétalas soltas no chão
almas crentes, povo rude
anda a fé pelas vielas
é dia da procissão
da Senhora da Saúde.26

Quem percorre os bairros populares percorre um labirinto. “Alfama afigura-se


como um conjunto denso, onde predominam os becos e as pequenas ruas”
(Salgado, Lourenço p. 44). Socorro: “Urbanização irregular, de ruelas e becos (...).
As influências do urbanismo muçulmano projectam-se nas ruas sem saída e na
multiplicidade de becos (Salgado, Lourenço p. 198). Esta ideia de meada, dada
pelo traçado das ruas, imprime um carácter único e evidente nos seus
habitantes: histórias labirínticas, entrelaçadas, sem saída na sua miséria,
irregulares entre o ciúme e a alegria, a paixão e a desgraça – o fado, no fundo.

Todo o bairro popular é um pátio das cantigas27 onde as vidas se entrecruzam de


varanda para varanda, de casa para casa, de equívoco para equívoco: alguém que
é acusado de um roubo que não cometeu, uma maria, um manel, uma outra de
permeio.... Por outro lado, a estreiteza das vielas e a pequenez das casas tornam a
rua num espaço semipúblico, não só de circulação entre pontos de partida e de
chegada, mas de utilização corrente e interacção intensa com os vizinhos (Costa,
p. 303). Na rua fala-se das vidas próprias e alheias; as vizinhas ciciam de casa

26“Há festa na Mouraria” (versos de Gabriel de Oliveira).


27Título de um conhecido filme português de 1942, realizado por Francisco Ribeiro, com Vasco
Santana, Ribeirinho, António Silva, entre outros.

21
para casa enquanto estendem a roupa ou cozinham a sopa do jantar; no café, os
homens discutem os destinos da colectividade do bairro, olham para as raparigas
com sonhos de namoro ou fraquezas de traição. “As portas são pegadas: todas as
visitas são notadas. Como as compras se fazem na soleira das portas, sabe-se o
que comeram na véspera os vizinhos da direita, o que gasta a família em frente”
(Chantal, p. 246). A exiguidade dos espaços é geradora de intensidade emocional
que se reflecte nas manifestações, tantas vezes exaltadas, de solidariedade ou de
conflitualidade. A privacidade está reduzida a um mínimo, não só por força desta
pequenez das casas, mas também porque é assim que os bairros populares
gostam de viver: num cochicho constante de mulheres debruçadas no vão de
uma janela, dando fé do que acontece, pois não há, numa certa época portuguesa,
hábito mais nacional do que ver quem passa – e tirar ilações do que se passa.

Como curiosidade, ou como reforço do argumento, talvez valha a pena referir


que Alfama, considerado “(...) um dos mais emblemáticos espaços citadinos, um
dos que mais se vêem associados às formas de cultura popular urbana tidas por
profundamente lisboetas se revela, afinal, como lugar de passagem e de fixação
de importantes fluxos de migrantes rurais” (Costa, p. 75). De facto, uma fracção
significativa da população de Alfama tem raízes rurais relativamente recentes –
essa ruralidade onde o fado não nasceu nem se desenvolveu, acantonado à
capital do Império. Talvez isto signifique, então, que muitas das características
que nos habituámos a associar ao fado dependem de um conjunto de condições
necessárias. Destas condições, uma é um bairro popular, ou algo que lhe seja
equivalente. No fundo, as colectividades locais – o Retiro do Alexandrino, d’ A
Canção de Lisboa, por exemplo, onde Vasco Leitão reconcilia a ideia de fadista
com a de estudante - são a ‘alfama’ das grandes salas de espectáculos.
Independentemente do sotaque mais ou menos nortenho que se escuta no
labirinto das ruas, independentemente das tradições de origem que enfeitam
varandas ou condicionam vidas domésticas, é aqui que o fado vai buscar
alimento para se perpetuar. Por ‘fado’ não se entende um género musical em
sentido lato, mas o resultado de certas práticas musicais características do
período que me interessa e das quais, ou para as quais, se põe particularmente o
problema da confissão.

22
9.

Foi aqui que o fado nasceu por volta de 1830 – e a expressão ‘aqui’, repete-se,
engloba todos os bairros populares. Nasceu como canção marginal cantada nos
locais da marginalidade. A partir dos anos 20 do século passado, o circuito mais
enraizado da prática fadista é a “rede tradicional dos espaços de sociabilidade
popular dos bairros pobres da capital” (Nery, p. 216). São as tabernas e casas de
pasto, mas cada vez mais as sedes das inúmeras colectividades populares
lisboetas de que o Unidos de Alfama, o Retiro do Alexandrino28, ou o grémio onde
Caetano (António Silva) coroa a filha Alice (Beatriz Costa) Miss Castelinhos29, são
alguns exemplos: espaços (sala ou esplanada) com mesas e / ou cadeiras
dispostas em plateia, onde os espectadores (moradores ou não) se acomodam
para ouvir os seus artistas. Qualquer que seja a sua profissão de base (Vasco
Leitão sabe-se que é estudante cábula, e Alice é costureira) há um estatuto
dominante: o amadorismo. 30 Ana Maria, a quem não se atribui qualquer
actividade óbvia, remunerada ou não, faz a sua estreia num retiro típico, o
Unidos de Alfama, lugar geométrico de todas as colectividades de bairro. Porque
foi também aqui, neste ou noutro retiro que, pese embora algumas diferenças, o
fado se estreou.

De referir ainda que nessa mesma tarde Ana Maria confessará ao seu homem,
artesão e tocador de guitarra: “Ai Júlio, tenho tanto medo de cantar logo à
noite...” E acrescentará, desta vez a sorrir, dando o mote musical a todo o filme:

Fado é sorte
e do berço até à morte
ninguém foge, por mais forte
ao destino que Deus dá.31

28 “A Canção de Lisboa”, um filme de 1933, realizado por Cottinelli Telmo, com Vasco Santana,
Beatriz Costa e António Silva, entre outros.
29 Id.
30 “De acordo com este interlocutor [o proprietário de uma casa de fados de Alfama], ‘(…) o fado

verdadeiro não pode ser nunca uma forma de ganhar dinheiro’, ou seja, quando é cantado por
compromisso profissional, não acontece verdadeiramente.” (artigo de F. M. Mendonça, Luciana: O
fado e “as regras da arte”: “autenticidade”, “pureza” e mercado (Sociologia, Revista da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, Vol. XXIII, 2012, pág. 71-86)),
(http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/10296.pdf, acedido a 14.09.2015).
31 “Fado de cada um” (Música de Frederico de Freitas e versos de Silva Tavares).

23
10.

Continuamos em 1948, continuamos em Alfama – no Unidos de Alfama, mais


precisamente – onde o fado, encarnado na figura de uma cantadeira do bairro,
faz a sua primeira aparição pública. A esta referência histórica, bem localizada no
espaço e no tempo, junta-se um pormenor que não deve ser descurado, até
porque é objecto de um grande plano no filme de Perdigão Queiroga: Ana Maria
benze-se (antes havia posto um xaile pelas costas), não como uma espécie de
superstição que convoca a sorte, mas porque sente que o fado é uma oração que
suscita o sinal da cruz. Nessa linha de pensamento – e mesmo que dêmos um
salto cronológico no filme - talvez faça sentido referir que o primeiro fado que
Ana Maria ensaiará com Júlio é o Ave-maria Fadista32, numa eventual alusão à
religiosidade de que se reveste o fado. De facto, se como diria Tertuliano “a alma
humana é naturalmente cristã” (Fernandes, p. 17) o povo português sê-lo-á por
maioria de razão, mesmo que essa religiosidade se tenha revestido, ao longo do
tempo, de formas próprias. Para Teixeira de Pascoaes, a ideia de família e de
pátria ligadas à ideia de Deus são uma hierarquia espiritual e divina que deve
preservar-se. “[...] Sempre existiu, em Portugal, muito vivo, aquele espírito de
independência religiosa que é a essência do nosso Cristianismo familial e
patriótico e um dos mais belos atributos da Raça.” (Pascoaes, p. 104).

Na época em que o filme de Perdigão Queiroga foi realizado, para a maior parte
dos portugueses a prática religiosa não perdera qualquer sentido, apesar das
cerimónias litúrgicas que poderiam não compreender na totalidade. O
materialismo prático não invadira a cultura do tempo e as igrejas estavam
cheias, fosse de gente inquieta que procurava responder às exigências do seu
cristianismo, fosse de gente que obedecia “mais aos ritmos biológicos e sociais da
sua existência do que a imperativos da sua consciência religiosa.” (Fernandes, p.
10). Tudo tem uma capa de religiosidade óbvia – até a solução para as
inquietações das almas simples. “A religião opera a reconciliação do homem
consigo mesmo, com Deus, com os outros homens e com a própria natureza.”
(Fernandes, p. 32). O gesto de Ana Maria não é, por isso, estranho.

32 Música de Francisco Viana e versos de Gabriel de Oliveira.

24
A forte e antiga influência católica33 no povo português faz-se sentir nos hábitos
da sociedade portuguesa e, por isso, também nas letras de carácter religioso que
constituem o espólio artístico do fado deste tempo – as procissões, a fé, a
devoção a Nossa Senhora da Saúde (Fátima, como altar do mundo, é fonte e
destino de todo o olhar mariano) - porque, como diz Pascoaes, entre a poesia e a
religião há estreitos laços de parentesco. Mas é esta religiosidade, tantas e tantas
vezes independente das convicções de quem escreve ou de quem canta, que
permite que a expressão ‘confissão’ - expressão esta que atravessará todo este
trabalho, como se fosse a frase ‘fado é sorte’, que Ana Maria profere diversas
vezes com diferentes expressões faciais - não seja um espinho cravado no género
musical, uma protuberância que o desfeia, uma excentricidade crente que destoa
de uma circularidade secular.

O fadista junta as mãos, como se rezasse; põe os olhos – ainda que porventura
fechados – no alto, onde se acredita que está Deus e o céu34. E conversa com Ele.
Confessa, confessa-se.

Nunca aprendi a rezar


A erguer as mãos aos céus
Mas eu sinto que ao cantar
Estou a conversar com Deus.35

11.

Ana Maria, na sequência do sucesso que constitui a sua primeira actuação como
cantadeira, está determinada a prosseguir uma carreira fora da pequenez do
bairro de Alfama. Quer respirar outros ares, pisar outros palcos, ouvir os
aplausos e sentir o público; tira o cartão de artista (e a informação não é
despicienda, pois era um requisito do Decreto 13564, de 27 de Maio de 1927,
que inaugura, ainda que por outros motivos, o segundo período desta história do

33 Alberto Pimentel afirma inclusivamente que a melancolia portuguesa deriva, entre outros
motivos, de “excesso de religião” (p. 29)
34 “sem recorrer mesmo à efabulação mítica, o céu revela directamente a sua transcendência, a

sua força e a sua sacralidade. A simples contemplação da abóboda celeste provoca na consciência
primitiva uma experiência religiosa.” (Mircea Eliade, citado por Fernandes, p. 30).
35 “A Minha Oração” (versos de Mário Rainho).

25
fado) e entrega-se nas mãos do destino, suspensa dos contratos que chegarem.
Júlio acede: “há-de ser o que Deus quiser.” Durante alguns minutos de filme, o
casal de namorados ensaia vários fados:

Ave-maria fadista36:

Santa Maria das Dores


Mãe de Deus se for pecado
Tocar e cantar o fado
Rogai por nós pecadores.

Alamares37:

Na Mouraria
Desde a Amendoeira à Guia
Vamos encher de alegria
Esse bairro sonhador
Que esta guitarra
Tenha a voz duma cigarra
Que o seu trinado desgarra
Numa cantiga de amor.

Só à noitinha38:

Só à noitinha
Quando me chega a saudade
Choro sozinha
P’ra chorar mais à vontade.

Duas luzes39:

Eu gostaria, mãezinha,
de cantar pra ti somente,
mas tu és tão pobrezinha
que canto pra toda a gente.

36 Música de Francisco Viana, versos de Gabriel de Oliveira.


37 Música de Jaime Santos, versos de Linhares Barbosa.
38 Música de Amadeu do Vale / Raul Ferrão, versos de Frederico Valério.
39 Música de José Marques do Amaral, versos de João da Mata.

26
Desespero40:

Amei-te com desespero


Mais do que eu ninguém te quis
E agora que te não quero
Vejo as figuras que fiz.

Zanguei-me com o meu amor41:

Zanguei-me com o meu amor


Não o vi em todo o dia
À noite cantei melhor
O fado da Mouraria.

Esta correnteza de fados é mais do que uma sequência aleatória de temas da


época com versos de letristas populares. Muito pelo contrário, abrange um
espectro alargado do que era a temática fadista da altura: a religiosidade (em
particular a devoção a Nossa Senhora da Saúde), o bairrismo, os temas taurinos,
a pobreza, os amores desditosos. As letras de João da Mata, Frederico Valério,
Linhares Barbosa ou Gabriel de Oliveira – e as centenas de outros versos que não
são cantados no filme – falam do que se passa no interior das casas pequenas,
sob a luz mortiça das ruas labirínticas, ao som do ruído ambiente de becos e
ruelas. É, como já foi referido, a expressão da intimidade, uma espécie de
autobiografia partilhada sob a forma de música cantada, a revelação de uma
emoção que habita o coração de cada um dos habitantes destes bairros. Estes
versos falam de pessoas reais que compõem o teatro da vida: é cada um de nós
que se zanga como o seu amor, é cada um de nós que ama com desespero, é cada
um de nós que chora sozinho. Quando Ana Maria canta, fá-lo a uma só voz com
cada um dos moradores de Alfama (ou da Bica, ou da Madragoa, ou da Mouraria),
com cada um dos visitantes da taberna do Joaquim Marujo42, com cada uma das
pessoas que se comovem ou se entretêm no Unidos de Alfama ou no Retiro do
Alexandrino. Quando Ana Maria canta, está a confessar-se também. Não uma
confissão para a absolvição, mas para a declaração, para a partilha, para o

40 Música de Jaime Santos, versos de Linhares Barbosa.


41 Música popular, versos de Linhares Barbosa.
42 Personagem do filme Fado, História de uma Cantadeira, interpretado por Vasco Santana, domo

de uma taberna chamada Adega dos Arcos.

27
ordenamento de um coração que vive ao ritmo de um sobressalto que aflige ou
de um amor que pacifica.

12.

Não foi sempre assim, como também já vimos. Regressamos ao primeiro período
desta história do fado, que vai de 1830 a 1927 e encontramos uma diversidade
imensa de temas que Alberto Pimentel reproduz, dos quais respigo alguns
exemplos:

Fado enigmático:

Minha T-O-L-A
Só tu és a minha nini!
Manda carta p’lo correio
P’ra o teu querido K-H-I.

Fado tautófono:

Respeito o poder do galo


Respeito a voz do leão
Respeito as tetas da vaca
Respeito a pele do cação.

Fado mitológico:

Apolo o jogo talhava


Numa casa de batota
Cupido alugou um trem
E bateu pr’a Porcalhota.

Mesmo que a amostra não seja representativa, se entendermos esta série de


letras como emblemáticas de uma certa poesia do fado antes de 1926, e a série
de letras que Ana Maria ensaia com Júlio como emblemáticas de uma certa
poesia do fado após 1926 (e até 1962), não será difícil reconhecermos um ponto
de inflexão significativo.

28
13.

Quem eram então estes poetas (ou letristas para ser talvez mais correcto) que,
nascendo alguns antes do advento do Estado Novo, são protagonistas desta
transição para um fado não político?

A obra Poetas Populares do Fado Tradicional, de Daniel Gouveia e Francisco


Mendes, abarca um horizonte temporal que vai de Carlos Harrington (1870 –
1916) a Manuel Andrade (1944 – 1966). São, como já referi, mais de 25 nomes
que, entre si, e ao longo de algumas décadas, somam muitas centenas de letras
para fado, embora a colectânea seja forçosamente mais reduzida. A ordem
cronológica permite “observar a evolução temática e poética do fado, desde as
histórias ultradramáticas à volta da pobreza, da prostituição, dos ciúmes e das
navalhas, até a uma gradual elevação que aproximou o fado da poesia, ou esta
daquele” (Gouveia e Mendes, p. 6). No entanto, numa análise não minuciosa e,
portanto, fatalmente falível, nas quase 600 letras atribuídas a estes poetas (de
uma produção bastante superior), a mancha dominante está lá: o amor-ciúme, o
amor-traição, o destino ao qual não se foge, a desgraça, a saudade. Como se a
quadra de Bocage

Que eu fosse enfim desgraçado


Escreveu do fado a mão...
Lei do fado não se muda;
Triste do meu coração.

descrevesse, ela própria, uma inevitabilidade que nos persegue ou que a alma
nacional agarra, com pavor de perda da identidade. Ou como se esta outra
quadra

Não é desgraça ser pobre


Não é desgraça ser louca
Desgraça, é trazer o fado
No coração e na boca.43

43 “Não é desgraça ser pobre” (versos de Norberto Araújo).

29
explicasse de forma sucinta, em quatro linhas singelas, todo um destino nacional
cantado apenas na capital. Um destino que só conhecemos na infelicidade.

14.

A este respeito diria Luiz Moita, na 8ª palestra da Emissora Nacional, a 4 de


Agosto de 1936: “Foi possível, desde António Arroio, analisar os temas
especulativos do fado. E viu-se que, no tema do martirológio fadista, três
palavras isoladamente de significação diferente, consubstanciavam reunidas a
quinta essência das teses melodramáticas da canção lisboeta: saudade, amor e
desgraça.” (Moita, p. 211).

Falemos dos poetas populares: Avelino de Sousa (1880 – 1946) começou, como
já referi, como compositor tipográfico. Linhares Barbosa (1893 – 1965) tinha a
instrução primária e, até ter fundado o jornal Guitarra de Portugal, era torneiro
mecânico. Henrique Rego (1893 – 1963) um dos poetas preferidos de Alfredo
Marceneiro, era funcionário subalterno do Ministério da Guerra. Frederico de
Brito (1894 – 1977) também conhecido por Britinho ou Poeta Chofer, foi
estucador e motorista de táxi. Carlos Conde (1901 – 1981) era chefe de
escritório. Francisco Radamanto (1908 – 1972) nome pelo qual ficou conhecido
Francisco Duarte Ferreira, passou pelas cadeias de Monsanto e do Limoeiro, após
o que dedicou a sua vida ao jornalismo. Seis letristas, de entre os 25 que
compõem a antologia, são responsáveis por mais de metade desta poesia
popular. São pessoas sem grande formação académica mas que, mesmo assim,
tocaram a alma de milhares de portugueses que se reviam na proximidade dos
temas e das palavras, que não eram, afinal, mais do que a realidade que
conheciam ou a linguagem que lhes era familiar.44

Alberto Pimentel tenta sistematizar, no início do século passado, os temas


poéticos mais frequentes ao longo de toda a segunda metade do século XIX 45: o

44 A este respeito fará sentido referir a obra de Vítor Pavão dos Santos (Amália e os Poetas,
Bertrand, 2014) onde são mencionados outros letristas da altura, não incluídos na colectânea de
Gouveia e Mendes, nomeadamente José Galhardo, Guilherme Pereira da Rosa, e outros).
45 Em A Triste Canção do Sul, A Pimenta ilustra bastante alguns destes temas (págs. 101 a 130),

de que refiro um exemplo: “Em pleno século das luzes.../Chega a par’cer impossível!/N’uma
cidade brilhante/Cometeu-se um crime horrível”.

30
amor, é claro, mas também os trabalhos e sofrimentos das classes sociais em
contacto com o fadista, os aspectos da vida popular e a notícias das ruas, os
grandes crimes e os grandes desastres que impressionam a opinião pública, a
morte de personagens célebres ou “expressão de malícias e gaiatices” (Pimentel,
p. 103), numa linguagem obscena ou que recorre a equívocos e trocadilhos, entre
outros.

15.

Ana Maria também canta a vida das pessoas, não aquela que poderia surgir numa
crónica de costumes ou em retratos mais ou menos impessoais do quotidiano,
mas a que revela um estado de alma - ciúmes, fraquezas, misérias e esperanças.
O fado é, no segundo período desta sua história, muito mais do que uma sátira,
um ataque, ou uma espécie de apontamento noticioso sob a forma de quadra
glosada em décimas. O fado – que neste filme de Perdigão Queiroga tem um
nome, Ana Maria – é beneficiário de uma ironia do destino: a censura não o deixa
ser tudo, pelo que passa a ser mais. Mais ilustrativo das emoções, revelando mais
sobre a alma das pessoas, aproximando-se mais de um intimismo que floresce
neste tempo fadista, chegando-se mais ao paradigma da confissão em Religião.

16.

A confissão e o fado têm vários pontos de intersecção: por via da instituição da


confissão anual e da sua influência nas mentalidades do Ocidente até aos dias de
hoje, tema que abordarei mais à frente; por via de uma forte religiosidade do
povo português e do regime vigente, com efeitos naturais na comunidade
artística de meados do séc. XX (cantores, poetas, etc.); por via de uma certa noção
de proximidade que é dada pelo recinto46; por via da revelação de uma
intimidade que é feita através de um discurso proferido na primeira pessoa do
singular; por via da ideia de que confessamos um crime, confessamos um pecado

46É possivelmente por isso, por este intimismo que é prece, pranto – e por vezes confissão - que
na generalidade dos espectáculos musicais se “iluminam os artistas e se escurece o público,
enquanto que no Fado se ilumina o público e se escurecem os artistas” (Gouveia, p. 54). Quem
reza, quem chora, ou quem (se) confessa, requer recato visual.

31
e, neste movimento de aproximação a Deus, confessamos um louvor e uma fé;
mas também por via da ideia de que confessamos um amor, uma esperança – ou
mesmo uma vida desgraçada. Afinal, confessar também é confidenciar, revelar –
ou partilhar, expressão que fixo pela sua importância.

17.

Regressemos ao filme Fado, História de uma Cantadeira – a 3ª referência.

“Tenho a certeza de que vai agradar muito no teatro”, diz-lhe o empresário Sousa
Morais. O semblante de Júlio, que encarna, quase tanto como acompanhante, uma
espécie de sumo-sacerdote encarregue de preservar a pureza do fado num
templo guardado, carrega-se. Afasta-se, sentindo-se arredado de um projecto que
o desconforta e no qual não tem lugar – o fado e o teatro juntos, com um
negociante pelo meio. Ana Maria segue por um caminho que os seus olhos não
descortinam, como se ao destino lhe faltasse o controlo do futuro.

Após o acidente de Luisinha, Ana Maria, martirizada, quer desistir do fado. Dirá
ao Chico Fadista, o empresário local, que a responsabilidade pelo acidente é dela.
“Fui eu, a minha vaidade, o fado e a sina que Deus me deu.” Em nome do fim de
um sentimento de culpa que a entristece e invocando uma hipotética
necessidade de se arranjar dinheiro para o tratamento da criança, é finalmente
convencida por Júlio a assinar um contrato com o referido empresário. No dia em
que canta no teatro pela primeira vez para ser apresentada aos autores da peça,
diz o que quer cantar: “talvez aquele fado mais alegre...” Influência da saída da
vida triste de bairro para o ambiente mais jovial do teatro?

Talvez por muito amar a liberdade


Invejo a vida livre dos pardais
Mas prende-me em teus braços sem piedade
E eu juro da prisão não sair mais.47

47“Dá-me um beijo” (também conhecido por “És tudo para mim”) música de Frederico de Freitas,
versos de Silva Tavares.

32
No mesmo dia em que Luisinha regressa a casa, Ana Maria estreia-se com um
enorme sucesso no teatro, cantando:

Ó fado
Torturado
Tão magoado
Quem te fez?
Ó fado
Não sei quem és.48

Se Ana Maria incarna o fado, esta letra é autobiográfica, porque a cantadeira


canta sobre si própria – melhor, interroga-se sobre si própria. Quem é, de facto
Ana Maria, ou em quem se vai tornar Ana Maria? Termina com a estrofe:

Volver
De novo ao fado e sofrer
Porque sofrer é viver
E eu vivo e sofro a cantar.

18.

Concomitantemente com um estreitar das temáticas do fado, movimento esse


que o volta para dentro e o aproxima das expressões mais íntimas das pessoas49,
os espaços onde o fado se ouve ou, replicando o raciocínio para o filme de
Perdigão Queiroga, onde Ana Maria canta, são gradualmente maiores. Do Unidos
de Alfama, onde teoricamente todos se conhecem, para onde todos se deslocam
com o intuito de ver e ouvir uma filha do bairro, o fado cresce para os teatros
onde se paga, não o consumo de café ou de vinho que são inerentes a uma
determinada convivialidade, mas um lugar numa frisa, numa coxia, numa fila
privilegiada para o espectáculo que vai decorrer. Na passagem do primeiro

48“Ó Fado não sei quem és”, música de Frederico de Freitas, versos de José Galhardo.
49“(...) a teoria de Mantegazza, que, discreteando a respeito da mímica como expressão dos
afectos e movimentos físicos, diz que a alegria é centrífuga, enquanto que a dor é centrípeta”.
(Carvalho, p. 8).

33
período para o segundo período, o fado deixa de ter uma linguagem de crónica
para adquirir uma linguagem de confissão e, portanto, na primeira pessoa do
singular. São expressões de intimismo, reflectoras dos desejos, desalentos,
paixões, traições – e vontades de partilha - que fazem parte da natureza humana.
Mas nessa mesma passagem o espaço abre-se, torna-se maior e, potencialmente,
mais impessoal. E torna-se um negócio – um aspecto que não é irrelevante.

19.

“Homenagem à vedeta Ana Maria, que há um ano se estreou neste teatro.” A


notícia é de um jornal, talvez da secção dedicada à arte e aos espectáculos, onde
se realça aquilo que em Portugal e no estrangeiro se faz de mais notável no ramo
do entretenimento. Mas no fundo, no âmbito de uma certa ironia, esta mesma
frase poderia figurar na página da necrologia, juntamente com anúncios de
missas de sufrágio aos quais se apunha uma frase habitual: um ano de eterna
saudade.

Ao longo de um ano Ana Maria conquista o público do teatro. Inaugura uma vida
nos meios de uma sociedade chamada alta, deixa para trás Luisinha, entrevada
numa cama, e Alfama, o bairro de vielas estreitinhas que a viu nascer e crescer,
onde ela aprendeu palavras como destino, fado, desgraça, sorte, Deus, morte,
Júlio. Nesse mesmo dia, no final de mais uma actuação, estabelecem-se dois
diálogos importantes – de que reproduzo partes que só aparentemente são
soltas - tendo Ana Maria como menor múltiplo comum e que responde, talvez
não como a pessoa que é, mas como a pessoa que quer ou tem de ser em função
dos interlocutores - pessoas diferentes, que representam realidades diferentes,
com olhares diferentes sobre os mundos próprio e alheio.

No primeiro diálogo, a fala de Sousa Morais é toda elogiosa, de olhos postos no


futuro, no sucesso, na elegância, nas salas lotadas, nos bairros modernos, na
imagem. Ela, Ana Maria, dona de um olhar duplo, reticente, Janus a olhar para o
passado e para o futuro, com uma nostalgia permanente no rosto, dividida entre
um mundo que não sabe se quer pequeno, se grande. E duas visitas de ocasião,
que pronunciam frases indicadoras de uma realidade que parece óbvia:

34
Sousa Morais: esta noite cantou melhor que nunca.

Ana Maria: Eu já não sei cantar o fado; perdi a alma.

Sousa Morais: o público ainda não deu por isso.

Ana Maria: e no fundo talvez não tenha um amigo sincero.

Sousa Morais: Seria conveniente mudar de casa: outro bairro, outro


ambiente.

Visita 1: É uma data solene para o teatro português.

Visita 2: Ela bem sabe que é a menina bonita de toda a gente.

No segundo diálogo, Júlio, o namorado de sempre, sem energia para suportar a


fama de viver à custa da artista, vive roído de ciúmes, de inquietação. Ela está
abespinhada, pelo que a resposta sai-lhe abrupta, irritada.

Júlio: Ana Maria, tu já não sabes cantar.

Ana Maria: Mas o público aplaude.

Júlio: Aplaudem a mulher, não a artista. Nem a maneira como tu cantas.

Júlio: Quando cantavas por prazer cantavas como nunca ninguém cantou.
Agora os teus fados não falam ao coração de ninguém. (...) Porque te
afastaste das coisas boas e simples.

Ana Maria: (...) ainda vou afastar-me mais.

Júlio: Tu pertences aqui a Alfama.

20.

Passou-se um ano desde que o fado (ou pelo menos Ana Maria) saiu do seu
bairro. Entre um ciúme e uma inquietação, o mundo de Ana Maria mudou:
desapareceu o bairro, a viela, a proximidade geográfica e afectiva dos moradores;

35
surgiu o sucesso, as salas de espectáculos cheias, as jóias que se recebem para
celebrar êxitos. Celebra-se uma vitória conquistada ou reza-se por uma alma
perdida?

Na boca do guitarrista, o tal fiel guardião da pureza de Ana Maria, “coisas


simples” são âncoras determinantes para que o fado, canção cuja natureza não é
intimista desde o seu surgimento, toque o coração de alguém. Ora, é importante
referir que a cantadeira não muda significativamente de repertório ao mudar de
recinto - pelo menos até onde poderemos perceber. Isto é, canta o mesmo género
de fados no Unidos de Alfama e no teatro. É verdade que numa festa na
Embaixada de Espanha canta “No me quieras tanto”50:

No me quieras tanto,
Ni llores por mí!
No vale la pena
Que por mi cariño, te pongas así.

No entanto, num evento organizado pelo Diário de Notícias, Ana Maria volta ao
seu repertório, escolhendo o Fado da Saudade51:

O mais feliz é o teu,


tenho a certeza
É o fado da pobreza,
Que nos leva à felicidade
Se Deus o quis,
Não te invejo essa conquista
Porque o meu é mais fadista
É o fado da saudade.

21.

No filme, Ana Maria não escolhe o Fado da Saudade por acaso. Por um lado, o
tema está de alguma forma alinhado com o ar do tempo, que evoca cada vez mais
figuras e cenas do passado – a Severa, a Cesária, a Júlia Florista, a Rosa Maria, as

50 Música de Lopez Queiroga e versos de Quintero y Leon.


51 Música de Frederico Valério, versos de José Galhardo.

36
idas de tipóia às patuscadas, as noitadas nos retiros, uma suposta fraternidade
entre povo e fidalguia. Se dispuséssemos de uma expressão apenas para
caracterizar esta época ela seria, seguramente, tenho saudade (Nery, p. 238). Por
outro lado, como também vimos ao fazer referência ao martirológio fadista de
Luiz Moita, falar de fado parece implicar, quase se diria forçosamente, falar de
saudade, mesmo que já não evocando figuras do passado ou não tendo uma visão
igual sobre o conceito. Senão vejamos:

Ortega y Gasset, filósofo espanhol que viveu em Portugal, a que chamou “país de
suicidários” (Gouveia, p. 32), diria:

A Saudade não é um tema português, mas o tema português por


excelência. Se outro qualquer pode situar-se na sua periferia é,
porventura, a Descoberta. Ambos polarizam a realidade histórica que é
Portugal. E resulta que são uma contraposição: a Descoberta é a ânsia de
partir, a Saudade a ânsia de voltar. (...) Portugal é o 'filho pródigo' de si
mesmo. O que é nele mais autêntico? O partir ou o voltar?52.

Na mesma linha do filósofo espanhol, Pascoaes escreveria: “Não precisamos de


reunir vários sentimentos comuns dos portugueses, para com eles desenharmos
o seu carácter mortal. Há um que o define por completo. Refiro-me à Saudade”
(Pascoaes, p. 94). Num certo oposto destas duas ideias parece estar a posição de
José Mattoso:

A inventariação dos caracteres específicos do povo português feita até


meados deste século por essa elite cultural resultaria, portanto, de um
processo ilusório. Nem o sebastianismo nem a saudade, postas em relevo
por António Sardinha [...] se podem considerar como características mais
do que imaginárias do povo português” (Mattoso, p. 98).

52 Jose Ortega y Gasset, Saudade (Sete Caminhos)

37
Mattoso acrescenta ainda: “Quanto à saudade-lirismo, não se poderá relacionar
com o facto de tantos portugueses desde sempre terem de emigrar para
sobreviver?” (Mattoso, p. 105).

22.

Uma pesquisa muito rápida, e forçosamente imperfeita53, revela que ‘saudade’


surge no título de mais de 100 fados54. As letras desses fados cruzam quase cem
anos de história, parecendo significar que a palavra, e tudo o que ela representa,
não é datada, isto é, não corresponde a um sentimento ou linguagem específicos
de um único período. E no entanto, lendo as inúmeras letras de fado do período
pré-1927, percebe-se que a expressão ‘saudade’ (que só parece ser ultrapassada
pela expressão ‘amor’) ganha força quando morre o fado político, de intervenção
social, de sátira ou de crónica. E parece ser ainda tão intrínseca à forma de viver
dos portugueses que temos saudades de tudo, inclusivamente de já não ter:

Cansada de ter saudades


tudo fiz para esquecer
e agora sinto saudade
de saudade já não ter.55

Pascoaes sugere que o sentimento ‘saudade’ é formado pelos elementos desejo e


lembrança, gosto e amargura (Pascoaes, p. 94):

Quando alguém vive longe de quem ama


E sente a alma triste, dolorida
Há sempre uma saudade que nos chama
Para nos ir matando e dando vida.56

53 http://www.portaldofado.net/.
54 Uma pesquisa rápida em cerca de 600 fados cuja autoria é atribuída aos poetas da Época de
Oiro detectou cerca de 20 títulos (e títulos apenas) onde consta a palavra ‘saudade’. Alguns
exemplos: A saudade (Linhares Barbosa); A saudade e ela (Carlos Conde); Anda a saudade bem
alta (Gabriel de Oliveira); Cabelo branco é saudade (Henrique Rego); Fado da saudade (José
Galhardo); Matar saudades (Frederico Brito).
55 “Saudade das saudades”, versos de D. António José de Bragança.
56 “A saudade é minha”, versos de Carlos Conde .

38
23.

Donde vem este desespero de saudade que se colou ao fado como algo que nos
consome e nos alimenta? Os organizadores recentes de uma antologia sobre o
tópico consideram que tais assuntos não são “sinónimos de fraqueza ou de
morbidez, mas sim a corporização, sob forma poética, de uma sensibilidade que
nunca se deixou emudecer ante a mágoa da ausência ou da distância.”57 Uma
melancolia que, ainda o fado não era denominação, já gerava uma dolência nas
nossas canções, o que impressionava os estrangeiros que as ouviam (Pimentel, p.
28). Alberto Pimentel considera que tal se deve a “sempre te[r]mos sido um povo
melancólico por efeito das condições da nossa própria existência e de uma
educação tradicional.” (Pimentel, p. 28). A sua descrição lembra o modo como
João Gouveia caracterizou Gonçalo Mendes: “Um fundo de melancolia, apesar de
tão palrador, tão sociável”58. Essa melancolia é “o fundo do fado como a sombra é
o fundo do firmamento estrelado.” (Carvalho, p. 20).

Alberto Pimentel elenca as causa desta melancolia portuguesa: a origem num


grupo de lusitanos, que tiveram de sofrer o choque de povos poderosos, de
imigrações torrenciais e, por último, de fazer a guerra contra os mouros, uma
guerra de fanatismo, que é a mais cruel e intransigente de todas; o facto de
termos ouvido “o canto monótono e lânguido do preto em África” (Pimentel, p.
29); o jugo castelhano; as invasões armadas no séc. XIX; violentas lutas
partidárias; o orgulho na palavra saudade. Por último, mas não menos
importante, o excesso de religião.

57 “Abençoada Saudade”, introdução a Cem Poemas Portugueses do Adeus e da Saudade


(selecção, organização e introdução de José Fanha e José Jorge Letria, Terramar, 2002) que inclui
poemas cobrindo um horizonte temporal de D. Dinis (n. 1261) a José Luís Peixoto (n. 1974).
58 “Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si

mesmo, que acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa...
Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele
arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me
lembra? - Quem? - Portugal."(Eça de Queiroz, in A Ilustre Casa de Ramires)

39
24.

Regressemos ao filme: antes de ser confrontada com a acrimónia de Júlio, a


cantadeira reconhece a perda da alma, a infelicidade de já não saber cantar. Ora,
se o fado – que no filme se chama Ana Maria – perde a alma, significa isso que
abandona, se não a sua espontaneidade, a sua sinceridade, a sua honestidade,
pelo menos a possibilidade dessas sensibilidades. Nessa hipótese, perde o
sentimento que está por trás das palavras, e está assim mais próximo de uma
máquina desprovida de sistema nervoso central. Este pormenor é importante
pois, mais à frente no filme, Luisinha ouvirá Ana Maria cantar em directo – não
no Unidos de Alfama, não no teatro, onde está em carne e osso, mas através de
um aparelho de rádio.

E se reconhece, ele próprio, que já não sabe cantar o fado, reconhece também
que houve uma ruptura dentro de si, uma capacidade perdida ou destruída,
como se materialidade e imaterialidade de um corpo pudessem ser colocadas em
recipientes diferentes. Com a mudança para o teatro (para uma sala de
espectáculo, com uma envolvente humana, técnica, dimensional muito diferente)
o fado deixa para si de ser o que é, passando a ser algo distinto. Esta alteração é
reconhecida por Ana Maria e atestada por Júlio. Isto suscita uma pergunta: se as
palavras são as mesmas, se a cantadeira é a mesma, se os acompanhantes são os
mesmos, se o público é substancialmente o mesmo, mas se o recinto se alterou,
qual foi, na realidade, o agente da mudança?

25.

Chegamos a uma espécie de encruzilhada de raciocínio: as letras de fado


artificiosas, tão características do período pré-1926, não falam à emoção do
povo; a censura (seguramente não em exclusivo) inverte essa situação – é a
aproximação à confissão; os teatros (lato sensu) negam ao fado a arte de saber
cantar, afastam-no das coisas simples. Repito um argumento aduzido
anteriormente: a censura, ao não deixar o fado ser ‘tudo’ (em termos de
linguagem), permitiu-lhe que fosse ‘mais’ (em termos de proximidade). A sala de

40
espectáculos, ao permitir que o fado fosse ‘mais’ (em termos de público) levou-o
a que fosse ‘menos’ (em termos de proximidade – e a repetição é propositada).

26.

Voltemos aos diálogos Ana Maria / Sousa Morais e Ana Maria / Júlio. O primeiro
interlocutor da cantadeira puxa o fado para fora, sugere-lhe novas roupagens,
novos ambientes, novos bairros – não um bairro popular diferente, mas um
andar nas avenidas novas. O segundo interlocutor quer reter o fado cá dentro,
tenta desesperadamente preservar-lhe características que considera
determinantes, sem as quais a genuinidade se perde. Talvez um discurso
centrífugo, outro centrípeto, a alegria e o sofrimento a lutarem pelo mesmo. Os
discursos são antagónicos. Em termos da ligação do fado à confissão, o de Sousa
Morais é claramente mais pernicioso. O fim do filme revelará quão prejudicial é
uma certa versão do fado.

Por outro lado, há uma frase de Júlio que não deve ser deixada em claro: “Quando
cantavas por prazer cantavas como nunca ninguém cantou.” A expressão ‘prazer’
não tem como inversa ‘desprazer’; a intenção de Júlio é contrapor-lhe a
‘profissionalização’. Para ele, arvorado em fiel depositário de uma arca onde se
guarda a pureza do fado, o antónimo de ‘ter prazer em’ é ‘ganhar dinheiro com’.
Se consideramos, então, que o fado ao ser objecto de contrato ou de relação
comercial perdeu algo, podemos então concluir que a profissionalização de Ana
Maria lhe mata (também, porque há outros factores) a alma. E ao perder a alma o
fado descaracteriza-se, deixa de ser confissão, passa a ser apenas um género
musical.

Parece então claro, dos parágrafos anteriores, que ao falarmos da proximidade


do fado (no período entre 1926 e 1962) com a confissão em religião devemos
tomar em consideração vários aspectos: o conteúdo das letras, a especificidade
dos recintos, o amadorismo versus profissionalização, o surgimento de alguma
tecnologia, e outros ainda, porventura mais difusos, não tão evidentes na
visualização e interpretação do filme Fado, História de uma Cantadeira, que é o
guião narrativo deste trabalho.

41
27.

Já aqui aflorei, por diversas vezes, a proximidade do fado à confissão em religião.


É esta relação que pretendo discutir agora. Ora, para isso é preciso um olhar
mais profundo.

No catolicismo, o sacramento da Confissão assume também outros nomes:


sacramento da Conversão, sacramento da Penitência, sacramento do Perdão,
sacramento da Reconciliação. 59 Não se trata de encontrar sinónimos para uma
palavra específica, mas, na diversidade de termos igualmente adequados,
abranger outras dimensões do mesmo acto. Confessamo-nos porque
reconhecemos a falta, porque estamos arrependidos, porque queremos aliviar a
alma de uma carga negativa. Confessamo-nos porque queremos receber de Deus
o amor e a paz que reconciliam. Fixo a expressão ‘reconciliação’.

No IV Concílio de Latrão (Novembro de 1215), a Igreja Católica instituiu a


obrigatoriedade da confissão auricular anual em substituição da confissão
pública, tendo esta passado a ser reservada às situações raras e graves,
nomeadamente guerra e catástrofes públicas. Embora Antero de Quental (ainda
que referindo-se ao Concílio de Trento, realizado entre 1545-1563) venha a falar
no poder temível do confessionário60, esta mudança de regra na igreja retira à
confissão um carácter público e, por isso, forçosamente despersonalizado,
abrindo portas ao estabelecimento de uma ligação determinante entre pecador e
confessor.

As prescrições sobre a confissão, entre outros aspectos, desenham o retrato do


confessor ideal - alguém mais preocupado em curar almas do que em julgar de
forma exigente e fria. Que o padre que confessa, diz o decreto, seja um homem de
discernimento e prudente para que, como médico experiente, espalhe o vinho e o
azeite sobre as feridas do enfermo. 61 A referência ao decreto não é uma mera

59 Catecismo da Igreja Católica (Gráfica de Coimbra, 1993).


60 Relativamente à substituição da expressão que Deus te perdoe por eu te perdoo, afirmará
Antero de Quental: “Na sessão 14ª de Trento é a consciência cristã definitivamente encarcerada.
Sem confissão não há remissão de pecados! A alma é incapaz de comunicar com Deus, senão por
intermédio do padre! Estabelece-se a obrigação de os fiéis se confessarem em épocas certas, e
exortam-se a que se confessem o mais que possam. Funda-se aqui o poder, tão temível quanto
misterioso, do confessionário.” (1ª sessão das Conferências Democráticas, em 27 de Maio 1871,
sob o título Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos).
61 Yves Chiron, Histoire des Conciles (Perrin, 2011).

42
curiosidade histórica ou um apontamento típico. A confissão não é um elencar
banal de falhas mais ou menos graves para cumprir um calendário, uma
obrigação ou um ritual. A confissão é o restabelecimento de uma ordem que se
opera ao nível daquilo que nos é mais imaterial: a alma. A confissão não consiste
na ‘exposição’ (enquanto sinónimo de ‘confissão’) dos pecados, mas no desnudar
de uma interioridade, no despojamento daquilo que é prejudicial ao caminho de
santidade de um crente. Para isso, entre quem fala e quem ouve deve construir-
se uma corrente de comunicação que constitua um verdadeiro diálogo, pelo que
é imperativo que se estabeleça um eixo relacional forte.

A decisão da confissão auricular anual modificaria a vida religiosa e psicológica


do Ocidente, influenciando marcadamente as mentalidades até aos dias de
hoje.62 O modelo da confissão é tão poderoso na cultura ocidental que afecta
mesmo aqueles cuja religião, ou ausência de, não encontra lugar para a confissão.
A imagem do penitente com o sacerdote no espaço íntimo, privado e protegido
do confessionário63 representa um ritual social fortíssimo (Brooks, p. 3). Noutro
âmbito, também nos é familiar o criminoso fechado numa sala de interrogatórios
despida de adereços, face a face com os agentes da lei. Só que neste caso a
confissão deriva frequentemente, não da contrição espontânea de uma
consciência ofendida, mas da interrogação persistente de detectives. O processo
de reabilitação e reintegração só começa, verdadeiramente, quando o detido diz
a palavra-chave confesso, que lhe dá acesso a um novo patamar de vida (Brooks,
p. 3).

Apesar de todas as diferenças entre as confissões em Religião e em Direito, o


facto é que há manchas de sobreposição entre ambas. (Quase) obrigatória num
caso, (quase) opcional noutro, ambas as confissões são orais, como uma troca
privada de palavras que é detentora de mistério e poder. São Boaventura
entendia que a confissão tinha de ser falada, porque a vergonha seria maior
assim (Brooks, p. 95). E no entanto, o doutor da igreja jamais aceitou a confissão
como algo automático em que o pecador diz o que cometeu e o sacerdote

62Frei Bento Domingues, Jornal Público, 13.01.2008


63“O confessionário, móvel destinado à confissão sacramental, foi introduzido em Milão por S.
Carlos Borromeu, por altura do Concílio de Trento, tendo-se espalhado pelo mundo católico”
[Enciclopédia Católica Popular (Paulinas, 2004)].

43
absolve. A confissão exige arrependimento e propósito sinceros, pois só assim há
verdadeira redenção, só assim Deus entra em comunicação e comunhão com o
pecador. Só assim há verdadeiramente sacramento (da Reconciliação). 64

A confissão anual obrigatória para os católicos tem 800 anos. As crianças


católicas são educadas a confessar as suas faltas, sem o que a pena será agravada
e não poderão voltar ao mundo afectuoso dos pais. Em todas as idades a
confissão é considerada fundamental para a moralidade, porque é a expressão
verbal do auto-reconhecimento dos erros e constitui, assim, a base para a
reabilitação. É condição prévia para o fim do ostracismo, para a reentrada na
comunidade humana (Brooks, p. 2). Está associada ao arrependimento sincero,
condição necessária para atenuação especial da pena. 65 À expressão
‘reconciliação’, fixada mais acima, junto a expressão ‘sinceridade’.

Pese embora haver quem entenda, no exercício da sua consciência individual,


poder confessar-se directamente a Deus (cuja resposta se situa no âmbito do
etéreo66) o facto é que no mundo católico não há confissão sem confessor, como
de certa forma não há escritor sem leitor. E embora a peça de mobiliário em
questão tenha vindo a cair gradualmente em desuso, o Código de Direito
Canónico é bem explícito: “§ 1. O lugar próprio para ouvir as con issões
sacramentais é a igreja ou o oratório. § 2. No que respeita ao confessionário, a
Conferência episcopal estabeleça normas, com a reserva porém de que existam
sempre em lugar patente confessionários, munidos de uma grade fixa entre o
penitente e o confessor, e que possam utilizar livremente os fiéis que assim o

64 No período pós-tridentino a Igreja imporia limitações aos confessores, exortando-os a não


absolver quando o pecador se encontra sem arrependimento sincero e eficaz.
65 Ver ponto 2c) do Artigo 72º do Código Penal: “Ter havido actos demonstrativos de

arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos
danos causados;”. Um Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (192/11.3TACBR.C1, de
30.05.2012) refere, inclusivamente, 1- A simples declaração proferida em audiência pelo arguido
de que está arrependido não tem qualquer valor. O que tem valor, como circunstância atenuante
da responsabilidade criminal do arguido é que o mesmo demonstrou estar arrependido; 2- O
arrependimento é um ato interior, devendo essa demonstração ser visível de modo a convencer o
tribunal que se no futuro vier a ser confrontado com uma situação idêntica, não voltará a
delinquir;
66 Santo Agostinho, por exemplo, entendia que a resposta de Deus às suas confissões não era mais

do que as mudanças que se operavam dentro dele.

44
desejem. § 3. Não se oiçam confissões fora dos confessionários, a não ser por
causa justa.”67

Desta visita ao acto de confessar ressaltam termos importantes: espaço,


sinceridade, proximidade, escuta, entendimento. Em que foi mudando a natureza
deste acto à medida que o confessionário perdia importância e a reconciliação se
passou a realizar no sossego de um gabinete ou no remanso de um passeio pelo
jardim? Os motivos que levaram a esta abolição são apenas prosaicos, associados
ao conforto ou à maior proximidade entre confessor e pecador, assumem a
necessidade, mais ou menos explícita, mais ou menos subliminar, de eliminar o
carácter algo acabrunhante do sacramento, mitigando a vergonha? Como se
alteraria o acto de questionar um detido se o interrogatório se realizasse no
pavilhão de caça de uma quinta fora de portas, à vista de um descampado que se
confunde com o céu e ao som de ruídos bucólicos e relaxantes? A eficácia da
confissão na Religião e no Direito assenta, não só na genuinidade de quem
reconhece, mas também no local onde se reconhece? O que é preciso mudar para
que reconheçamos que não estão reunidas as condições para o sacramento ou
para o acto legal?

28.

O que é comum à imagem do pecador e do presumível criminoso? A ideia de


ruptura, se não com Deus e com a Igreja, pelo menos com o mundo e com a
ordem jurídica vigente. Todo o crime é potencial pecado, embora a lei dos
homens nem sempre coincida com a lei de Deus. Porém, é também comum a
ideia de que confessar é ultrapassar a culpa e a vergonha em nome da verdade
(de Man, p. 279). O confessor e o detective assumem, enquanto depositários do
reconhecimento de uma falta, o papel de facilitadores do caminho da
recuperação. Não há verdadeiramente confissão (pese embora algumas
excepções) se não houver quem a oiça: o sacerdote ou o agente da lei. A confissão
em Direito ou em Religião é o restabelecimento de um diálogo, o primeiro passo
para a eliminação da desordem causada.

67 Cânone 964.

45
O que confessa o criminoso? Um roubo, um assassínio, um acto de corrupção. O
que confessa o pecador? Um roubo, um assassínio, um acto de corrupção. Mas
confessa também o que não justifica confessar-se na sala de interrogatórios: a
vaidade, a descompaixão pelo próximo, o orgulho ou a inveja. O fadista, por sua
vez, confessa uma traição, um ciúme, uma saudade, uma desgraça própria. Uns
procuram no receptor do seu arrependimento a recuperação que anima ou a
remissão que alivia. Outros, tal como Ana Maria, confessam-se, não para a
atenuação da pena ou para absolvição do pecado – porque não são criminosos ou
pecadores - mas como uma espécie de terapia que, através da partilha, promove
o ordenamento de um coração que entrou em ruptura com o mundo que lhe está
próximo, ou mesmo em ruptura consigo próprio. Nesse sentido, o público é o
agente da lei que ouve o criminoso, é o sacerdote que escuta e absolve o pecador.

‘Partilha’, ‘reconciliação’, ‘sinceridade’ – três palavras destacadas de parágrafos


anteriores e que estão intimamente ligadas quando falamos de confissão. São um
meio, um objectivo, uma condição. Palavras ou conceitos que utilizo agora,
porque são elas (também) que suportam a pergunta e resposta seguintes: para
que haja confissão, basta a existência de um criminoso e de um agente da lei, de
um pecador e de um sacerdote? Não, não basta.

Se quiséssemos dar à confissão em Religião uma imagem geométrica, esta


poderia ser, no limite, a de um triângulo: num vértice o pecador, como elemento
que se confessa; noutro o confessor, como elemento com dever de escuta e
autoridade para a absolvição; no vértice de cima Deus, não comprovável por
critérios humanos, que é elemento necessário, embora não suficiente, para que
se verifique este sacramento. Para que haja verdadeira confissão é imperiosa a
reunião destas três condições. Mas também poderemos dizer que a estrutura da
confissão é (e seria originalmente) um quadrilátero: o pecador, o sacerdote, o
confessionário, espaço reservado e discreto que garante a eficácia do acto e a
presença de Deus. O que distingue o triângulo do quadrilátero? O confessionário
– representativo de um espaço físico onde tudo tem lugar.

Consideremos então cinco situações possíveis: (i) um católico (pressupondo o


adjectivo no sentido de quem cumpre as práticas com convicção) ajoelha-se num
confessionário e, perante um padre, elenca as suas falhas. No entanto, por um

46
motivo qualquer, decide ignorar uma; (ii) um católico ajoelha-se num
confessionário e, perante um padre, elenca as suas falhas. No entanto (apesar
desta aparente contradição) tem sérias dúvidas de que o sacramento seja um
sinal sensível instituído por Deus para lhe dar a Sua graça; (iii) um católico
ajoelha-se num confessionário e, perante um padre, elenca todas as suas falhas.
No entanto, não sente arrependimento relativamente a uma específica; (iv) um
católico ajoelha-se num confessionário e, perante um padre que por um motivo
qualquer não o ouve ou não o percebe, elenca as suas falhas; (v) um católico
ajoelha-se num confessionário e, perante um padre, elenca as suas falhas. No
entanto, por esquecimento ou distracção, não recebe a absolvição.68

A estas cinco hipóteses não totalmente inverosímeis (pese embora a


incongruência de um católico que se confessa não acreditar totalmente no sinal
sensível de Deus), poderiam juntar-se outras, como a eventualidade de quem
está no confessionário não ser um padre, mas alguém sem autoridade para o
acto.

Retomemos as hipóteses (i) a (v). É verdade que em todas elas se verifica uma
confissão dos pecados, ainda que na primeira algo fique escondido. Em todas elas
houve alguém que, por uma necessidade qualquer, entendeu querer partilhar as
suas falhas. Em todas elas há o tal triângulo com um quarto lado. E no entanto,
será que em todas elas houve sacramento da confissão? Não. O que faltou, então?
A sinceridade, o arrependimento, a escuta por parte de quem tem o poder da
absolvição, a crença no sacramento, a inteireza.

Significa isto, então, que o elencar dos pecados não chega, a presença do
confessor não chega, a fé na existência de Deus não chega. Para que haja
confissão (e não ‘constatação’ apenas dos pecados) é necessário satisfazer-se um
conjunto alargado de condições, para além do triângulo. De referir, porém, pela
sua importância, que a existência de pecador e confessor englobam as dimensões

68“No sacramento da penitência, os fiéis que confessem os seus pecados ao ministro legítimo,
estando arrependidos de os terem cometido, e tendo também o propósito de se emendarem,
mediante a absolvição dada pelo mesmo ministro, alcançam de Deus o perdão dos pecados
cometidos depois do baptismo, ao mesmo tempo que se reconciliam com a Igreja que vulneraram
ao pecar. (Cân. 959 do Código de Direito Canónico). “A confissão individual e íntegra e a
absolvição constituem o único modo ordinário pelo qual o iel, consciente de pecado grave, se
reconcilia com Deus e com a Igreja.” (Cân. 960 do Código de Direito Canónico)

47
já referidas de sinceridade, inteligibilidade, exercício do poder de que se reveste
uma das partes, etc. É uma presença de corpo e alma, com todos os deveres e
responsabilidades de ambas as partes.69

29.

Numa gíria desprovida de sentido ou de criatividade, pode afirmar-se que num


determinado momento ‘houve fado’ (e desenvolverei este tema mais adiante)
mas não é vulgar (embora seja possível) afirmar-se que ‘houve confissão’. E
todavia esta impossibilidade reside mais num pudor da linguagem do que numa
veracidade da frase, porque, de facto, em não havendo sinceridade,
arrependimento, etc., não há confissão. As frases ‘haver confissão’ e ‘haver fado’
não pertencem, portanto, ao domínio apenas da criatividade da língua. Ambas
reflectem uma realidade quase palpável.

Ora, se consigo afirmar, com um relativo grau de certeza, que nem todo o elencar
de pecados é confissão, também posso afirmar, com o mesmo grau de convicção,
que nem todo o fado é confissão. Para isso preciso ainda de abordar o problema
de outro ângulo.

Todas as manifestações artísticas podem suscitar uma emoção: observar o jogo


de cores de um quadro, atentar na tridimensionalidade de uma escultura, ler um
poema ou ouvir uma peça musical, estimulam-nos os sentidos. Podem ser coisas
‘belas’ e, no entanto, como diria David Hume “a Beleza não é uma qualidade das
coisas em si mesmas: só existe na mente que as contempla e cada mente percebe
uma beleza diferente.” (Eco, p. 247). Significa isto que o impacto de uma obra de
arte é diferente em cada um de nós, variando de acordo com uma miríade de
factores: a sensibilidade artística, a cultura ou a experiência técnica do
observador, o grau de compreensão da obra admirada, o estado de espírito
naquele momento específico, etc. Afirmaria Jean-Jacques Rousseau: “Assim, um
pintor diante de uma bela paisagem ou de um belo quadro entra em êxtase por
coisas que um espectador vulgar nem sequer nota.” (Eco, p. 237).

69Para além do cânones já referidos, o Código de Direito Canónico, nos seus capítulos do
Sacramento da Penitência, da Celebração do Sacramento, do Ministro do Sacramento da
Penitência, do Penitente descreve exaustivamente as condições necessárias e os impedimentos
associados a este Sacramento.

48
Por vezes, a contemplação de um quadro ou a escuta de uma música –
transformados em objectos para efeitos de raciocínio - é a apreciação pura e
simples da sua Beleza: a proporção, o equilíbrio das cores, o jogo de palavras, o
ritmo, a criatividade. Por vezes, esta mesma contemplação é apenas (ou também
é) um exercício de lembrança, pois remete-nos para uma pessoa, para um
momento, para um lugar. Nesse caso, a emoção não advém só da beleza
intrínseca do objecto, mas daquilo que lhe associamos: um amor perdido, um
tempo fagueiro, um lugar onde a felicidade se estabeleceu. “Quantas coisas só se
percebem graças ao sentimento, mesmo que isso não se possa justificar”, diria
ainda Jean-Jacques Rousseau (Eco, p. 237). Entre o objecto e quem o observa
estabelece-se uma relação própria, próxima, pessoal, quase intransmissível, e
poderá ser isso que distingue um quadro de outro quadro, um livro de outro
livro, uma música de outra música.

Estreito o raciocínio para a música, pois é disso que falo. A música pode entrar
em comunicação connosco, dar-nos a mão para viajarmos até um passado mais
ou menos distante, revisitarmos memórias que nos são ternas ou dolorosas, pôr-
nos à conversa com gente que desapareceu do nosso mundo, que preencheu
gavetas da nossa história ou que calcorreou as nossas ruas. Mas a música pode
ter apenas uma dimensão estética, de uma Beleza que nem sempre provoca
desejo de possessão ou de autoria, sobre a qual (falo de música, mas poderia
falar de um quadro e de um campo de flores, mas também de uma escultura e de
um mar cristalino) poderíamos dizer ‘é belo’, ou mesmo ‘é muito belo, mas não
me emociona’. Num determinado sentido, a estética é independente, portanto, de
uma certa emoção, mesmo que ambas não constituam entre si um conjunto
totalmente disjunto. Isto é, em toda a Beleza existe a possibilidade de retenção
da atenção, porque os nossos olhos se prendem em algo. Mas nem toda a beleza
nos emociona, no sentido em que nos abala.

Em A Câmara Clara, Roland Barthes aborda o tema do detalhe aplicado à


fotografia. Há o studium70 – uma espécie de interesse humano geral pela
fotografia que nos remete para uma informação clássica, mais ou menos

70“(...) que não significa, pelo menos imediatamente, ‘o estudo’, mas a aplicação a uma coisa, o
gosto por alguém, uma espécie de investimento geral, empolgado, evidentemente, mas sem
acuidade particular”. (Barthes, p. 34).

49
estilizada, mais ou menos conseguida em função da mestria do fotografo: um par
de velhos, um cão a dormir ao calor do verão, um boné grande de um rapaz. Para
Barthes, o studium está na ordem do gostar, e não do amar71, é uma “espécie de
educação (saber e delicadeza)”. E depois há o punctum, um elemento que vem
perturbar o studium. “O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere
(mas também me modifica, me apunhala).“ (Barthes, p. 35). 72 Uma nova
definição, mais à frente:

(...) por vezes (mas, infelizmente, raras vezes) um ‘pormenor’ chama-me a


atenção. Sinto que a sua presença por si só modifica a minha leitura, que é
uma nova foto que contemplo, marcada, aos meus olhos, por um valor
superior. Este ‘pormenor’ é o punctum (aquilo que me fere). (Barthes, p.
51).

Numa determinada fotografia, aquilo que fere o filósofo francês, enquanto


spectator, é (ou pode ser) diferente daquilo que me fere a mim, igualmente
spectator, mas provido de outra sensibilidade, outra circunstância, outro olhar.
Há um je ne sais quoi, porventura inominável, que cada um de nós, spectatores,
acrescenta à fotografia, apesar de esse algo já lá estar.

Apropriando-me desta ideia de Barthes, é possível supor que algumas músicas


sejam o punctum de um conjunto mais vasto, como se um espectáculo musical
fosse uma imensa fotografia viva durante o qual um artista interpreta diversas
canções que me suscita emoções: comovo-me com alguma tristeza, alegro-me
com alguma jovialidade, talvez agite o corpo ao ritmo da música. Depois, de uma
forma que me é totalmente imprevista – o tal acaso de que falava Barthes - o
artista entoa uma canção específica. É o meu / nosso punctum, que “nos modifica,
nos apunhala.” Porquê? Porque essa música específica – ou mesmo esse conjunto
de músicas – me remete para um tempo, para um lugar, para uma pessoa. Então,
numa sala de espectáculos com vinte pessoas ou com dez mil pessoas, o artista (o

71to like versus to love na edição referida.


72“porque punctum é também picada, pequeno orifício, pequena mancha, pequeno corte – e
também lance de dados. “(Barthes, p. 35)

50
operator) canta exclusivamente para quem se sentiu modificado, apunhalado (o
spectator). De todos os milhares de olhos que potencialmente o vêem, são esses
que ele foca, que lhe prendem a atenção – porque é esse spectator que o escuta, é
dessa vida que ele fala: dos desamores, das traições, das saudades, de tudo aquilo
que torna o spectator infeliz ou a sua inversa. É nesse momento que a Beleza se
sublima73, que casa a dimensão estética com a dimensão emocional, e que
proferimos a frase ‘a música, não só é bonita, como me emociona’. Verifica-se,
por fim, uma condição para o estabelecimento de uma ligação própria, próxima,
pessoal, talvez intransmissível, entre quem canta e quem ouve. Trata-se de uma
ligação muito semelhante à que se estabelece entre o pecador e o confessor
quando o primeiro desnuda uma alma pedinte e sincera à misericórdia divina e,
por maioria de razão, uma ligação muito semelhante à que se estabelece entre o
fadista e o público presente na sala. A emoção é, portanto, um elemento a fixar,
pois, não sendo determinante – nem tendo, sequer, de ser igual entre quem canta
e quem ouve - colabora no estabelecimento do tal eixo relacional forte que une
emissor e receptor.

30.

Recordo mais uma vez o remoque de Júlio lançado à cara de Ana Maria: “Quando
cantavas por prazer cantavas como nunca ninguém cantou. Agora os teus fados
não falam ao coração de ninguém. (...) Porque te afastaste das coisas boas e
simples.” E recordo também a frase de Ana Maria em resposta a um elogio: “Eu já
não sei cantar o fado; perdi a alma.”

Nas frases que Ana Maria diz e ouve neste curto excerto de diálogo, é evidente
uma ausência – a da emoção. Ana Maria é a mesma pessoa, canta as mesmas
letras acompanhada dos mesmos músicos. O local, entre outros factores, é
diferente. O que é necessário, então, para que se possa dizer ‘houve fado’, sendo

73Afirmará Pseudo-Longino: “Já que, quando um leitor culto e experiente, lendo e ouvindo várias
vezes alguma coisa, não sente dentro de si nada de grande nem nenhuma reflexão mais rica do
que a percepção literal do discurso, mas antes se apercebe de que, lendo e relendo, aquela obra
carece de sentido; então, não se encontra diante do verdadeiro Sublime, mas diante de algo que
apenas dura o tempo da leitura e da audição” (História da Beleza, p. 278).

51
que a frase tem como sinónimo, ou equivalente, a frase ‘houve confissão’, e não
as frases ‘houve fandango’ ou mesmo ainda ‘houve milongas’.

Consideremos várias situações: (i) Luisinha, entrevada numa cadeira de rodas,


de olhos muito felizes para a telefonia que recebeu por compaixão, ouve de Ana
Maria: “É o fado com que me estreio logo à noite e que vou cantar para ti.” 74 O
‘vou cantar para ti’ tem uma dimensão apenas afectiva, porque entre Ana Maria e
Luisinha haverá quilómetros de distância e uma total invisibilidade de uma
relativamente à outra; (ii) uma islandesa, devota da nossa canção nacional,
decide cantar o fado. Não percebe uma palavra do que diz, embora a dicção seja
bastante boa; (iii) um(a) fadista é contratado(a) para cantar na Rússia (e
podemos lembrar-nos de Amália Rodrigues no Sankei Hall, Tóquio, em 1970)
sendo que muito poucos entendem o português. No entanto, um dos presentes
comove-se ao ‘ouvir’75 “Duas lágrimas de orvalho / Caíram nas minhas mãos /
Quando te afaguei o rosto / Pobre de mim pouco valho / P’ra te acudir na
desgraça / P’ra te valer no desgosto.”76; (iv) um fadista canta o fado “Chama-me
apenas mulher / e não um nome qualquer / tão igual a toda a gente / chama-me
irmã, companheira / amante p’ra vida inteira / tua amiga eternamente”77; (v)
numa determinada noite, um(a) fadista canta num teatro para dez mil pessoas.

Em todas as situações se canta o fado – há a viola e a guitarra, a estrutura


musical, os versos com a métrica adequada e a temática não desconforme. Há
um(a) estrangeiro(a), de facto, mas nada impede um não-português de cantar o
fado, como nada impede um português de cantar um tango ou arriscar a
zarzuela. Tendo-se escutado o fado, podemos dizer, sem margem para dúvidas,
que ‘houve fado’? A resposta é tendencialmente ‘não’. Apesar de tudo ser fado,
por vezes esta palavra denota mais do que um género musical: há um fado que é
confissão, e ‘haver fado’ é sinónimo de ‘haver confissão’. Embora fale de estados
de alma, de episódios taurinos ou de pedagogias modestas, cumpre uma outra
função, abrange outra dimensão, chega aonde o outro não chega – um fica no

74 Ana Maria cantará “Ó Fado não sei quem és”, música de Frederico de Freitas, versos de José
Galhardo, referido anteriormente.
75 Roland Barthes, num texto chamado “Escuta” (O óbvio e o obtuso, Ed. 70, 2009) afirma: “Ouvir
é um fenómeno fisiológico; escutar é um acto psicológico.”
76 Duas lágrimas de orvalho (versos de João Linhares Barbosa).
77 Chama-me apenas mulher (versos de Mário Rainho).

52
sentido da audição, o outro tem-lhe inerente uma emoção. Se entendermos o
punctum de Roland Barthes como ‘algo para além de...’, e associarmos o conceito
à música (‘a música é bonita e emociona-me’ – sendo que a segunda parte da
frase se refere ao ‘algo para além de...’) então a resposta à pergunta é, de facto,
‘não’. O fado pode ser sempre um género musical – mas nem sempre é
confissão78. Importa portanto perceber o que distingue um do outro e, nesse
sentido falaremos sempre de condições normais, porque são essas as
estatisticamente relevantes. O resto são nichos.

31.

Ana Maria, que está no teatro, canta para Luisinha, que está em Alfama. A
primeira tem um público pela frente; a outra, um aparelho que permite ouvir em
tempo real (mas não ‘ver’ e por isso apenas’ intuir’) o que se passa à distância.
Um pecador pode pegar num telefone e, ligando para um padre que é seu amigo,
pretender confessar-se? Não. O ritual exige presença, olhos nos olhos (mesmo
que esta expressão seja moderadamente metafórica), presunção de sinceridade.
Por mais que Ana Maria fale no fado de cada um e pense na criança desgraçada
para a vida, não é possível estabelecer-se entre ambas uma corrente de emoção.
Nada é biunívoco, apesar da modernidade e da técnica permitirem a ideia do ‘em
directo’. É por isso que o fado gravado não é confissão. A esse respeito, recordo
de novo o lamento de Ana Maria ao dizer que perdeu a alma, como se se tivesse
transformado num aparelho de rádio propiciador de prazer e entretenimento,
mas desprovido de sistema nervoso central.

Seguindo o mesmo raciocínio, o fado afasta-se da confissão quando é cantado


para quem não entende as palavras do artista, ou quando o artista não entende
as próprias palavras que canta. Para a islandesa bem intencionada, a quadra
“nesse Domingo de Agosto / foi linda a espera de gado / desde manhã ao sol
posto / houve alma, toiros e fado”79 nada mais é do que um alinhamento de
palavras com uma estrutura, métrica e rima reconhecíveis. O mesmo se aplica ao

78 Na entrevista de Maria do Rosário Pedreira (DN, 3 de Maio de 2015) esta diz: “Não escrevo
para me confessar, escrevo para me limpar.”
79 “Domingo de Agosto”, versos de Carlos Conde.

53
fado que é cantado para dez mil pessoas, ou aquele que revela uma total
discrepância entre a letra cantada e, por exemplo, o sexo de quem canta. Todo
este fado entra na categoria de género musical, afectado pelos grandes recintos
despersonalizados, pela engenharia de som e luz que retira forçosamente a
proximidade, pela estranheza do discurso, ou pela ausência, nalguns casos total e
completa, de interacção com o público. A analogia seria com uma confissão em
religião realizada por interposta pessoa a quem se passa uma procuração de
plenos poderes, ou através do envio para um apartado de um CD gravado. Ou,
ainda, como se a absolvição pudesse ser dada por via electrónica, como uma
assinatura que se apõe num documento oficial expurgada de toda a dimensão
afectivamente humana.

O fado, enquanto género musical, pode ouvir-se em qualquer lado, em qualquer


suporte, qualquer que seja a assistência: no limite, um esquimó a cantar para
beduínos, numa telefonia roufenha, num aparelhagem de alta-fidelidade, numa
taberna infecta ao som de moscas que fritam num mecanismo eléctrico, nos
salões nobres da fidalguia, na intimidade de um recinto onde há silêncio e luz de
velas. No entanto, para o fado ser confissão – tal como para o elencar de pecados
ser confissão – há requisitos que devem ser respeitados: a presença do artista, o
entendimento por todos das palavras ditas, a emoção biunívoca que se
estabelece entre as partes.

32.

1949, talvez, embora possa ser pouco mais tarde. O local é Alfama e estamos nos
últimos minutos do filme. É a 5ª e última referência ao filme.

Ana Maria havia voltado do Brasil onde fora cumprir um contrato. Escorraçada
da casa da Mãe Rosa, que parece ser a porta-voz de uma alma colectiva, cruza-se
com Júlio que, carregado de ciúme, raiva e álcool, a atira ao chão. O desajuste da
vida da cantadeira (ou do fado?) é evidente. A vida da rapariga é inicialmente
simples, bairrista, calcorreando ruelas, sentando-se nas fontes, conversando e
cochichando segredos, ambicionando uma vida modesta, pouco além das vielas
labirínticas. Num instante, fruto de uma visão empresarial que a transcende e de

54
um retiro onde cantará presumivelmente naquela noite apenas, tudo muda.
Horas antes da sua estreia, o Pai Damião revelará a sua preocupação, imaginando
Júlio e Ana Maria pelos retiros: “não vás tu mais ela fazerem do fado uma
negociata como os outros.” Num instante, o fado sai do Unidos de Alfama para
ocupar o palco de um teatro, ser o destaque de uma embaixada, viver a
internacionalização do Brasil; o fado sai de uma modesta casa num bairro
popular para se instalar numa vida com “automóvel e porteiro fardado”. Dirá o
taberneiro: “Esta coisa de ela ter ido para as avenidas novas, sem mais nem
mais.”

Este desajuste é uma desconformidade. O papel que Ana Maria desempenha


nesta sua nova vida cai(-lhe) mal. Nos outros é motivo de inveja, de desprimor,
de raiva. Nela, na sua vida real, é origem de infelicidade. Ana Maria larga tudo
para procurar uma quimera, para escapar de uma vida que aparentemente a
aperreia. Acaba por aceitar – e fugir, ainda a tempo de - um casamento (Ana
Maria e Sousa Morais ou o fado e o teatro?) onde não há amor. Ironicamente,
tudo se desfaz, ainda que unilateralmente, no dia da sua suposta última actuação
no teatro. Perante a pateada audível da plateia insatisfeita, a cantadeira que
encantou o teatro não comparece: chora, de olhos fixos numa folha de jornal que
noticia a partida de Júlio para África. Minutos antes, referindo-se ao guitarrista, o
tal guardião da pureza do fado, dirá uma frase que só não é profética porque se
refere ao passado: “eu era dele, guardasse-me.”

Desfeito o equívoco que a afastou das suas origens – um desentendimento de


mensagens - Ana Maria regressa ao Unidos de Alfama, a colectividade do bairro
onde se junta dinheiro para o exílio africano de Júlio. As pessoas levantam-se à
sua passagem, abrem alas como se assistissem a uma espécie de regresso
glorioso do filho pródigo, e o palco, o público e as lágrimas de comoção fossem o
vitelo mais gordo com que se celebra o encontro com alguém perdido. Pelo
caminho, apanha um xaile que põe pelas costas. Seguramente o mesmo xaile com
que cantou aqueles mesmos versos pela primeira vez, pouco tempo antes de
partir.

55
Fado é sorte
E do berço até à morte
Ninguém foge por mais forte
Ao destino que Deus dá
Que bom seria, poder um dia, trocar-se o fado
Por outro fado qualquer
Mas a gente já traz o fado marcado
E nenhum mais inclemente
Do que este de ser mulher
Bem pensado
Todos temos nosso fado
E quem nasce mal fadado
Melhor fado não terá
Fado é sorte
E do berço até à morte
Ninguém foge, por mais sorte
Ao destino que Deus dá

Ana Maria (ou o fado?) volta para casa, para o bairro que a viu nascer. Volta para
uma vida própria, para os mistérios que se escondem por trás de casas modestas
‘onde a miséria fez morada / [e] nunca mais quis sair’80, onde o segredo e a
bisbilhotice andam por vezes de mãos dadas, porque uma intriga não é mais do
que o uso indevido de uma confidência. Volta para as luzes esmorecidas dos
candeeiros da rua sob os quais se segredam amores, ciúmes, traições; volta para
o som dos rádios que tocam roufenhos nas salas pequenas, para as noites tantas
vezes tristes feitas de crochet e ceias pobres onde se confessam tristezas,
anseios, desgraças – ou simplesmente irritações. Tudo se faz em voz baixa,
porque confessar é revelar um segredo, é partilhar algo que nos atormenta, nos
sufoca. O ruído persistente do bairro, “um rumor de vida, complexo e denso
como um perfume” (Chantal, p. 260), não é mais do que a soma de infinitos

80 “Pombalinho”, versos de Carlos Nozes.

56
sussurros, de infinitas confissões. De uma casa para outra, enquanto o gato
ronrona ou alguém trauteia o Menor no fundo de uma viela, uma rapariga
lamenta o seu amor enganado, uma mãe confidencia um filho preso, um rapaz
reconhece um ciúme sofrido. Porque o fazem? Porque a confissão é a condição
prévia para o reordenamento da alma; porque a confissão também é partilha, a
incidência repartida de uma luz sobre um buraco negro que corrói por dentro.
Confessar um crime, um pecado, uma desgraça ou um temor têm o mesmo
objectivo comum: a redenção, que mais não é do que uma libertação, seja de uma
culpa, de um remorso, de uma infelicidade, de uma inquietude. Confessar - nas
múltiplas acepções desta palavra – é estender as mãos numa súplica de perdão
ou de compaixão. O criminoso, arrependido em desordem com a lei vigente, ou o
pecador, arrependido em desordem com a lei de Deus, revelam as traições de
ordem diversa, confiantes no remorso que mitiga ou na absolvição que redime. O
fadista, com uma alma atormentada pela desgraça, pela saudade, pelo ciúme ou
pelo destino, estende uma fragilidade ao público, convicto de que a partilha o
salvará.

33.

Pela imperiosa natureza das circunstâncias, o fado não nasceu como música do
mundo, e assim se manteve durante mais de um século. Quando surgiu – nas
tabernas, nos bordéis, na vadiagem, na prostituição – mantinha uma relação
relativamente simples com o mundo em seu redor: quem ouvia percebia o que se
cantava, quem cantava sabia que era entendido. A comunicação que se
estabelecia entre artista e público assentava na pequenez do recinto, na
familiaridade da música, na dimensão de entretenimento. Por último – mas não
menos importante – numa letra que todos entendiam, mesmo que abordasse
assuntos relativamente extrínsecos à vida do público. De alguma forma estavam
reunidas quase todas as condições necessárias para, deste ambiente, nascer uma
proximidade afectiva ou se desenvolver essa proximidade que existia em estado
larval.

O fado sai da taberna, dos palácios, entra no teatro, apanha um avião. É curioso
que, ao embarcar rumo ao Brasil, aceitando o contrato que lhe é proposto, Ana

57
Maria ainda se detenha um instante à porta do avião, quem sabe se na
expectativa de um último acenar que a retenha, que a faça voltar para trás, a
impeça de se comportar, como dirá mais tarde ao Lingrinhas, como uma “mosca
doida”. O fado ganha espaço, perde proximidade. Já antes perdera liberdade,
ganhara proximidade.

“Tu pertences aqui a Alfama”, dirá Júlio, a certo momento, como quem define
com vigor e autoridade o espaço preciso do fado, não enquanto música, mas
enquanto confissão. Não se trata de um local apenas geográfico, mas de um
ponto de encontro de um conjunto de factores de que fui falando ao longo deste
trabalho. Júlio poderia repetir a frase na última cena do filme de Perdigão
Queiroga – o tal filme sobre o fado que só por desatenção parece ser a história de
uma cantadeira – porque os últimos minutos são, de facto, sobre o regresso a
casa, e as migalhas de pão que ajudam o fado a encontrar o caminho de volta têm
também o nome do acompanhante. De novo no seu mundo, Ana Maria canta o
fado de cada um. A referência sem aspas nem itálico ao nome do fado é
propositada: qualquer que fosse o tema escolhido para acompanhar o guitarrista
nas vésperas da sua hipotética partida para África, a cantadeira cantaria o fado
de cada um: o fado da mãe Rosa, do taberneiro, do pai Damião, do Lingrinhas, ou
mesmo da Luisinha, já só presente em espírito; o fado dela e do Júlio, pois no
início do filme Ana Maria diz-lhe: “Júlio: Aconteça o que acontecer, tenha eu o
futuro que tiver, seja a mulher mais feliz ou mais desgraçada deste mundo, quero
ser feliz ou desgraçada contigo, percebeste? Enquanto me quiseres, hás-de ser
sempre o mesmo para mim. O nosso destino há-de ser um só.” A cantadeira
cantaria ainda o fado de cada um dos presentes no Unidos de Alfama – gente
anónima carregada de tristezas, ciúmes, saudades, amores entristecidos pela
ausência ou pela traição. E cada um destes presentes, lugar geométrico de todos
os presentes em todos os pequenos recintos de todos os bairros populares,
entenderia as palavras ditas ao vivo por uma pessoa com alma que sente o que
canta, como sentiria quem se confessa com inteireza a um sacerdote, desejoso de
ser perdoado.

58
Bibliografia citada

Barthes, Roland, A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 2013.

Brooks, Peter, Troubling Confessions. Chicago and London: The University of


Chicago Press, 2001.

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