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FACULDADE DE LETRAS
1
Senhora eu tenho fé
De encontrar a minha luz
Nesta imensa escuridão
Venho falar dos meus medos
São vossos os meus segredos
Que eu partilho em confissão
2
AGRADECIMENTOS
Esta tese não teria sido possível sem todos aqueles que aqui, ou no Céu, permitem
que eu seja.
Não teria sido possível sem o incansável apoio, paciência e espírito crítico de
quem me está mais próximo e cuja vida, por isso, se confunde com a minha.
Não teria sido possível sem aqueles que me colocaram uma metafórica guitarra
portuguesa na mão e com isso me incentivaram, leram, corrigiram, elogiaram.
Não teria sido possível sem aqueles que ao longo da vida me falaram de fado.
Não teria sido possível sem o Prof. Miguel Tamen, a quem devo a orientação que
me resgatou tantas vezes e de forma tão determinante. Mas a quem devo também
o humor que simplifica, o conhecimento que esclarece, a pedagogia assertiva, a
disponibilidade permanente.
3
Resumo
O fado nasceu na década de 1830. De lá para cá foi quase tudo: sátira, canção de
combate contra o regime e a igreja, voz contra as injustiças sociais ou como
crónica de costumes; foi “canto peregrino”, canção de amor e saudade, de ciúme e
de traição, elogio musicado das virtudes da singeleza ou da modéstia. O fado foi
ainda lenitivo para quem partiu à procura de melhor, cartão de visita em viagens
para destinos onde não se falava português. Do fado, por ser considerado inferior,
fugiram alguns poetas; desse mesmo fado se aproximaram outros poetas à boleia
de um olhar arrojado e diferente.
O fado pode ser um género musical. Mas o fado pode ser também uma confissão.
Para isso não basta cantar-se o fado Menor ou o Mouraria, juntar-lhe poesia e um
conjunto de guitarras. Para o fado ser confissão é preciso reunir um conjunto
de condições: quem canta, o que canta, quando canta, onde canta ou como canta.
4
Abstract
Fado was born in the 1830s. Since then Fado was almost everything: satire, voice
against the regime, the church or social injustice, a mere chronicle; Fado was a
song of love and longing, jealousy and betrayal, musical praise of the virtues of
simplicity and modesty; Fado was solace for those who emigrated in search of a
better life; Fado was a business card on destinations where Portuguese was not
spoken. Fado, being considered inferior, drove off some poets; other poets
approached Fado because of someone’s audacious and distinctive look.
Fado can be a musical genre. But Fado can also be Confession. It is not enough,
though, to sing the Menor or the Mouraria, to add some poetry and a set of guitars.
For Fado to be Confession it is necessary to meet some conditions: who is singing,
what, when, where and how is someone singing.
In 1927 censorship is established; in 1962 Amália records the album Busto. In the
meantime, Fado lived a time during which the creativity of the poetry
encompassed the small neighbourhoods and their inhabitants; a time during
which the poets sang the everyday lives using words that everyone understood. A
period during which Fado, due to its dimensions of sharing and expression of
intimacy, came to being a prayer, weeping or cry. A period during which Fado
came to being Confession, as we know it in the religious sense.
The purpose of this work is to define - between 1927 and 1962 - the conditions
under which Fado is confession and the conditions under which it is just a musical
genre.
5
Índice
1. …………………………………………………………………………….... 7
2. …………………………………………………………………………........ 7
3. …………………………………………………………………………….... 10
4. …………………………………………………………………………...... 14
5. …………………………………………………………………………….... 16
6. …………………………………………………………………………….... 17
7. …………………………………………………………………………….... 18
8. …………………………………………………………………………….... 18
9. …………………………………………………………………………….... 23
10. ……………………………………………………………………………. 24
11. …………………………………………………………………………….. 25
12. ……………………………………………………………………………. 28
13. ……………………………………………………………………………. 29
14. ……………………………………………………………………………. 30
15. ……………………………………………………………………………. 31
16. ……………………………………………………………………………. 31
17. ……………………………………………………………………………. 32
18. ……………………………………………………………………………. 33
19. ……………………………………………………………………………. 34
20. ……………………………………………………………………………. 35
21. ……………………………………………………………………………. 36
22. ……………………………………………………………………………. 38
23. ……………………………………………………………………………. 39
24. ……………………………………………………………………………. 40
25. ……………………………………………………………………………. 40
26. ……………………………………………………………………………. 41
27. ……………………………………………………………………………. 42
28. ……………………………………………………………………………. 45
29. ……………………………………………………………………………. 48
30. ……………………………………………………………………………. 51
31. ……………………………………………………………………………. 53
32. ……………………………………………………………………………. 54
33. ……………………………………………………………………………. 57
Bibliografia .......................................................................................... 59
6
1.
1830, 1927, 1962 - estas três datas, aparentemente desligadas entre si a não ser
pelo facto de estarem ordenadas cronologicamente, são fundamentais para a
compreensão deste trabalho. Muito embora correspondam, com excepção da
primeira, a acontecimentos bem localizados no tempo, não devem ser
consideradas como rígidas. Isto é, nenhuma delas corresponde a um
acontecimento de natureza disruptiva que rasga brutalmente com um passado
para abrir portas a um futuro substancialmente diferente. Os períodos definidos
por cada um dos marcos temporais não são estanques, definidos com precisão
matemática, onde algo acaba para dar origem a um outro algo. Há realidades que
vêm do período anterior e que persistem; há realidades que desaparecem com o
tempo, não instantaneamente; por vezes há um acontecimento único, bem
datável, que provoca uma espécie de desvio no curso do fado, porque é de fado
que falo: uma mudança de direcção que pode ser subtil ou não, mais ou menos
repentina e que, não alterando por completo o figurino do fado, o leva a outras
paragens, lhe dá horizontes distintos, lhe oferece uma roupagem diferente.
2.
Começo pela primeira data: 1830, que corresponde ao início do primeiro período
desta história do fado. É bastante consensual que o fado como música nasce em
Portugal por volta desta década1, embora a palavra seja muito anterior. Fatum
era, para os romanos, a vontade expressa “em relação ao destino dos homens,
das cidades e das nações.” (Pimentel, p. 7). A expressão ‘fado’, no sentido de
canção, surge pela primeira vez em 1874 no dicionário de Lacerda, com a
seguinte descrição: “Fado, cantiga e dança popular, muito característica e pouco
decente.” A 7ª edição do dicionário de Moraes, de 1878, refere: “Fado, poema do
vulgo, de carácter narrativo, em que se narra uma história real ou imaginária de
1 Há inúmeras obras que convergem ou divergem na teoria sobre as origens do fado: A Origem do
Fado, de José Alberto Sardinha; Lisboa, o Fado e os Fadistas, de Eduardo Sucena; Para uma
História do Fado, de Ruy Vieira Nery; Ao Fado Tudo se Canta? de Daniel Gouveia, O Fado, Canção
de Vencidos, de Luiz Moita; História do Fado, de Pinto de Carvalho; A Triste Canção do Sul, de
Alberto Pimenta, ente outras. Uma corrente (a defendida por Vieira Nery) parece ser a que mais
se aproxima da realidade: “(...) as fontes documentais sobreviventes aprontam sem margem para
dúvidas para um conjunto de manifestações do género na capital que começam a ser referidas de
forma ocasional na viragem da década de 1830 para a seguinte (...)” (Nery, p. 67).
7
desenlace triste, ou se descrevem os males, a vida de uma certa classe, com no
fado do marujo, da freira, etc.“
2A certidão de óbito da Severa, transcrita por Luiz Moita (pg. 110) refere: “no dia 30 de
Novembro de 1846 anos na rua do Capelão nº 35-A, faleceu apoplética, sem sacramentos, Maria
Severa Honofriana (...)”
8
principiou por se cantar com versos ingenuamente populares, improvisados à la
va comme je te pousse.” (Carvalho, p. 83):
9
Destruir a monarquia
Haver no mundo igualdade
São dois pontos sublimes
Por que pugna a sociedade.
Este primeiro período do fado inicia-se, como vimos, em 1830, porque é aqui,
nesta década, que tudo começa. Este tempo é caracterizado sobretudo pela
envolvente e pelos protagonistas do fado, fado este que parece ter mais impacto
como realidade sociológica do que como género musical. O termo ‘fado’ é
utilizado metaforicamente na acepção de sina ou destino: ‘mulher do fado’ e
‘mulher da vida’ são, neste contexto, sinónimos. É a boémia, a prostituição, o
bordel, a taberna – ainda que com um início de incursão pelos salões nobres da
fidalguia. Mas o primeiro período também é caracterizado pelas formas singelas
(quadras soltas, ou glosadas em décimas), pelas letras artificiosas e, por isso,
desprovidas de algum sentimento, e pela variedade dos temas: não só o jogo de
paixões, de desejo, de posse amorosa, da traição e da saudade, mas também as
histórias locais, os óbitos de personalidades célebres, os grandes cataclismos, os
momentos estabelecidos de festa e de lazer, como as corridas de touros. O fado é,
nesta altura, um género essencialmente popular. Poderemos falar em reflexo de
um determinado contexto social boémio, mais do que em emoção?
3.
Enquanto o primeiro período tem o seu começo de uma forma mais difusa, não
num momento específico, mas numa década suposta - 1830 - o segundo período
inicia-se com base num acontecimento singular, datado, ainda que não
produzindo efeitos imediatos.
Estamos em 1927. Antes deste momento o fado já saíra dos bordéis para entrar
nos palácios; o fado já fora gravado em disco e o fadista já não era o faia “com
uma voz soluçada, quebrada na laringe, acompanhada da expressão fisionómica
de uma sentimentalidade de enxovia, pelintra e miserável “ (Moita, p. 124). Antes
de 1927 o fado já se tornara apresentável, e muito antes disso, fruto de uma
realidade socioeconómica das décadas de 1850 e 1860 que gera uma classe
10
média ávida de divertimentos públicos (Nery, pg. 126), o fado chega ao teatro,
cantado pelos actores das revistas em cena.3
Qual é, então, o ponto de inflexão que marca o início deste intervalo temporal? A
resposta é o Decreto 13564, de 6 de Maio de 1927, um marco suficientemente
importante para dar origem ao segundo período desta história do fado.
Seja porque as limitações da censura tornam o terreno propício, seja porque esta
é a verdadeira natureza nacional, o facto é que o ar do tempo favorece o
social e deverá ser exercida de forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem contra
a verdade, a justiça, a moral, e a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados
os princípios fundamentais da organização da sociedade.” (Artº 3º do Decreto-lei 22469, de 11 de
Abril de 1933).
5 “Carta da aldeia”, versos de António Vilar da Costa.
11
surgimento de uma outra poesia popular do fado. A esta época, que começa ainda
antes da censura, com o surgimento das gravações discográficas (por volta de
1904) e termina com a chamada internacionalização do fado, Daniel Gouveia
chamou a “Idade de Ouro dos Letristas” (Gouveia e Mendes, prefácio): falamos de
Avelino de Sousa (1880 – 1946), de Linhares Barbosa (1893 – 1965), de
Henrique Rego (1893 – 1963), de Frederico de Brito (1894 – 1977), de Carlos
Conde (1901 – 1981), de Francisco Radamanto (1908 – 1972), de entre os 27
que compõem a antologia, responsáveis por mais de metade desta poesia
popular.6 Ao escrever uma outra poesia, estes poetas populares não referiam
nada que lhes fosse essencialmente extrínseco, como um renque de flores
impessoal, a morte de um conde às mãos de um rufião ou a seca prolongada que
provoca fome em quem já a tem. Muito pelo contrário, estes poetas cantavam a
saudade, a traição, a desgraça, o engano, o ciúme, o destino ao qual não podemos
fugir. Não como sentimentos que lhes eram estranhos, mas como algo que
sentiam verdadeiramente.
6 A este respeito fará sentido referir a obra de Vítor Pavão dos Santos (Amália e os Poetas,
Bertrand, 2014) onde são mencionados outros letristas da altura, não incluídos na colectânea de
Gouveia e Mendes, nomeadamente José Galhardo, Guilherme Pereira da Rosa, e outros).
7 “Conselhos de minha mãe”, versos de Linhares Barbosa.
12
vir disfarçado de subtilezas de linguagem para poder passar ao crivo do lápis
azul.
A política deixa de ser tema, o que pode significar, ainda que ironicamente, que a
censura centrou a temática do fado naquilo que é transversal a uma franja
significativa do povo português, deixando a poesia de intervenção para o que
viria a ser a música de intervenção. O fado passa a cantar o dia a dia da gente
simples, tantas vezes na exaltação das virtudes da modéstia e do trabalho.
Ou talvez o fado cante apenas os temas à volta dos quais tudo gira: o amor e a
morte.10 E ao fazê-lo, o fado abre a porta à confissão do fadista, à partilha da
realidade que o envolve e que o constitui. Se unirmos esta dimensão de partilha e
confissão ao espaço intimista da colectividade de bairro, da casa de fados, onde o
português é língua dominante, elevamos o fado a uma dimensão superior. É o
fado a cantar poesia na primeira pessoa do singular.
13
4.
14
diferença das letras de Avelino de Sousa e de Luís de Macedo.13 Surge uma nova
linguagem poética e, com esse surgimento, algo da confissão desaparece.
“Então vamos lá às óperas...”, frase dita por José Nunes à entrada de uma das
sessões de gravação (Nery, p. 309) ou “agora a Amália canta letras à Picasso”
(idem) são evidências suficientes da importância de 1962 nesta história do fado.
Nunca tendo abandonado por completo os fados castiços mais tradicionais,
Amália cantará quem pouco ou nada se cantava até então: Camões, José Régio,
Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, entre outros. Apesar das emoções poderem ser
13 Luís de Macedo (1925 – 1987) “foi um dos poetas do grupo da Távola Redonda, do qual faziam
parte David Mourão-Ferreira, António Manuel Couto Viana (...) todos amando Teixeira de
Pascoaes, Paul Valéry, T. S. Eliot ou Ezra Pound.” (Pavão dos Santos, p. 675). Avelino de Sousa
(1880 – 1946) embora tendo morrido como primeiro conservador da Torre do Tombo, começou
como compositor tipográfico (Gouveia e Mendes, p. 15).
14 O fado “Abandono”, faixa nº 6 do álbum Busto, tem música de Alain Oulman.
15
as mesmas – o amor, a saudade, o destino - há um afastamento muito grande com
uma tradição letrista que surgiu com a censura.
5.
Temos portanto três datas: 1830, 1927, 1962. Como já foi referido, estes marcos
cronológicos criam períodos de tempo não estanques, não definidos a régua e
esquadro, com zonas de intersecção não nulas; períodos de tempo durante os
quais algumas características do fado e de tudo o que o rodeia se mantêm, outras
desaparecem, outras surgem. É por isso que cada época é relevante: numa houve
a criação e o crescimento na marginalidade lisboeta; noutra o impacto da
censura que faz florescer uma certa poesia intimista; noutra, por fim, os
caminhos da erudição e da internacionalização.
Para efeitos desta tese interessa o segundo período desta história do fado: um
período que começa com o advento da censura e termina com a gravação do
álbum Busto; um tempo durante o qual a criatividade das letras se expandiu até
ficar do tamanho dos bairros populares, das vidas dos seus moradores; um
tempo durante o qual se cantaram as vidas corriqueiras com palavras que eram
de todos, porque entendidas por todos: ciúme, saudade, traição, destino, fado.
Um período durante o qual o fado, pela sua dimensão de partilha e de expressão
16
de intimidade, mais se aproximou de ser “prece, pranto ou pregão”16, mas, acima
de tudo, se aproximou da confissão, tal como a conhecemos no sentido da
Religião. É essa proximidade entre fado e confissão que tentarei identificar,
assim como procurarei demonstrar o que os afasta e em que condições o fado
deixa de ser confissão para ser género musical.
6.
Para esta história do fado, e apesar das inúmeras obras já aqui referidas que
apresentam uma cronologia do Fado baseada em argumentos válidos, provas
documentais ou análises cuidadas, decidi seguir o filme Fado, história de uma
cantadeira, realizado por Perdigão Queiroga, muito embora me socorra das
obras referidas, sempre que necessário, para um verdadeiro enquadramento
histórico do fado. Mas o filme, guião narrativo deste trabalho, é, ele mesmo, a
história do fado.
Deste filme destacarei principalmente cinco cenas, não obstante referir outras
menos relevantes:
17
7.
Este filme de 1948 inclui no seu elenco nomes tão importantes como Virgílio
Teixeira, António Silva, Vasco Santana ou Eugénio Salvador, e conta “a
vertiginosa trajectória de uma fadista de Alfama dividida entre o sucesso e as
suas origens populares”.17 Mas seria “acima de tudo uma assumida homenagem a
Amália Rodrigues”18, então com 28 anos, no papel de uma cantadeira de fado.
Ana Maria, assim se chama o personagem, é protagonista de uma carreira
fulgurante. Estreia-se com grande êxito num retiro em Lisboa, êxito esse que
acaba por levá-la ao teatro. Apesar de tudo, Ana Maria não se deixa contagiar
pelo sucesso e continua ligada ao seu homem de sempre, o Júlio guitarrista. No
entanto, a atracção por uma vida luxuosa e de celebridade leva-a a afastar-se de
Júlio, que pensa em partir para África.
Num primeiro olhar, a sinopse do filme parece não deixar margem para dúvidas:
falamos, de facto, da vida de uma cantadeira – do seu início de carreira, dos seus
triunfos, dos seus desalentos, dos amores e desamores, porque os estados de
alma afectam as carreiras emergentes. Ora, um olhar mais arrojado poderá ver
neste filme, não a história de uma mulher que canta o fado, mas uma metáfora
para a própria história do fado. Talvez mais prudentemente, para uma certa
história do fado. Nesta linha de raciocínio, Amália, a actriz principal, não é Ana
Maria (que seria, ela própria, Amália) mas o próprio fado. E o título do filme
poderia alterar-se para: Ana Maria, ou a verdadeira história do fado. Talvez por
isso em vários momentos seja duvidoso quem faz o quê. É Ana Maria que diz ou é
o fado que diz? Na última cena do filme quem regressa, de facto, ao Unidos de
Alfama?
8.
18
que este facto não seja explícito, termine sensivelmente um ano depois, talvez
um pouco mais.
Após a morte de sua mãe, uma cantadeira afamada chamada Maria do Rosário,
Ana Maria é criada pelas mulheres do bairro. Segue-lhes os passos nesse desvelo
pelo próximo ajudando a criar Luisinha, com 8 anos, de quem diz ser tão sua filha
como ela é filha do bairro. Um bairro piedoso, que “dá às suas ruas nomes de
santos e de mártires” (Chantal, p. 256); um bairro todo descrito, na sua geografia
física e afectiva, pela quintilha de Frederico de Brito.
Obviamente, Alfama não surge por acaso. É nos bairros populares19 - em Alfama,
mas também na Mouraria, na Bica ou na Madragoa - que o fado, esta canção de
“miséria e de resignação”20 ganha corpo. “Alfama não cheira a fado / mas não
tem outra canção”21. Não só Alfama não tem outra canção, como a canção não
sobreviveria em sítios abertos e minados de sons incaracterísticos; não resistiria
às avenidas rasgadas, aos prédios altos, amplos e impessoais, aos jardins
desafogados e silenciosos. Numa certa dimensão, o fado, ao contrário de outras
formas musicais, dá-se mal com os grandes espaços, sente um excesso de ar que
o sufoca, lhe retira espontaneidade, criatividade, matéria de inspiração. Parece
precisar de proximidade, dos becos, das escadinhas, das pequenas praças, das
travessas, do casario encavalitado pela encosta abaixo, do traçado labiríntico das
ruas, pois o fado é constituído por todos os sons que o bairro emite e que
Suzanne Chantal (p.260) tão bem caracterizou:
19 “E, antes de mais, [o fado] aparece como profundamente ligado à velha Lisboa, aos bairros
populares ‘alfacinhas’” (Firmino da Costa, p. 119)
20 “É uma canção de escravos, uma canção de miséria e de resignação, é preciso para a cantar uma
voz de choro e, segundo Júlio Diniz, a certeza de morrer ao 20 anos” (Chantal, p. 455).
21 “Alfama” (versos de José Carlos Ary dos Santos).
19
(...) Todas as vozes, o bater da roupa que se lava, as ferraduras dum burro,
o choro duma criança, o grito cantante das vendedeiras de peixe ou de
laranjas, as discussões de taberna, a T.S.F., o acordeão, um carro que
manobra nas ruas principais, o vento no catavento dum campanário, a
recitação na sala da escola, o som abafado dos pés descalços nos degraus
e pedra, a campainha dum eléctrico distante.
É por esta arquitectura urbana que Ana Maria (ou o fado?) caminha nas suas
rotinas de trabalho, de lazer, de namoro: “É certo que a morfologia física tem a
sua eficácia própria nas relações sociais. Ela é aqui um dos factores favoráveis ao
estabelecimento de laços de vizinhança e regimes de interacção como os que se
têm desenvolvido em Alfama” (Costa, p. 303). Falamos de Alfama, objecto de
estudo da obra citada, mas a frase aplica-se ao Castelo, ao Bairro Alto, à Graça – à
generalidade dos bairros populares com estas características. É aqui, na
Mouraria, que a Bia florista namora o Chico cauteleiro22. É aqui, no mercado da
Ribeira, que a mãe da Rita lhe proíbe o namoro com o Chico, que é pescador 23 . É
aqui, na Travessa da Palha, que o homem dela, gingão, aparece com a outra pelo
braço24 . É também aqui, num qualquer tribunal, que uma velhinha jura que o
filho não lhe bate nem a rouba25. Mas é também aqui, como diria ainda Suzanne
Chantal (p. 283), que
20
Talvez porque uma procissão também possa ser vista, para além da sua
dimensão genuinamente religiosa, como uma metáfora para esta vida bairrista
feita de tabernas e de igrejas, de más vidas e de devoções – o percurso, as
paragens, as etapas certas, a solenidade, os olhos postos na Senhora que todos
ouve, a todos guarda. No fundo, a crendice, a fé e a vida real a calcorrear as ruas
lado a lado, porque nos bairros populares umas não vivem sem as outras,
alimentando-se mutuamente.
21
para casa enquanto estendem a roupa ou cozinham a sopa do jantar; no café, os
homens discutem os destinos da colectividade do bairro, olham para as raparigas
com sonhos de namoro ou fraquezas de traição. “As portas são pegadas: todas as
visitas são notadas. Como as compras se fazem na soleira das portas, sabe-se o
que comeram na véspera os vizinhos da direita, o que gasta a família em frente”
(Chantal, p. 246). A exiguidade dos espaços é geradora de intensidade emocional
que se reflecte nas manifestações, tantas vezes exaltadas, de solidariedade ou de
conflitualidade. A privacidade está reduzida a um mínimo, não só por força desta
pequenez das casas, mas também porque é assim que os bairros populares
gostam de viver: num cochicho constante de mulheres debruçadas no vão de
uma janela, dando fé do que acontece, pois não há, numa certa época portuguesa,
hábito mais nacional do que ver quem passa – e tirar ilações do que se passa.
22
9.
Foi aqui que o fado nasceu por volta de 1830 – e a expressão ‘aqui’, repete-se,
engloba todos os bairros populares. Nasceu como canção marginal cantada nos
locais da marginalidade. A partir dos anos 20 do século passado, o circuito mais
enraizado da prática fadista é a “rede tradicional dos espaços de sociabilidade
popular dos bairros pobres da capital” (Nery, p. 216). São as tabernas e casas de
pasto, mas cada vez mais as sedes das inúmeras colectividades populares
lisboetas de que o Unidos de Alfama, o Retiro do Alexandrino28, ou o grémio onde
Caetano (António Silva) coroa a filha Alice (Beatriz Costa) Miss Castelinhos29, são
alguns exemplos: espaços (sala ou esplanada) com mesas e / ou cadeiras
dispostas em plateia, onde os espectadores (moradores ou não) se acomodam
para ouvir os seus artistas. Qualquer que seja a sua profissão de base (Vasco
Leitão sabe-se que é estudante cábula, e Alice é costureira) há um estatuto
dominante: o amadorismo. 30 Ana Maria, a quem não se atribui qualquer
actividade óbvia, remunerada ou não, faz a sua estreia num retiro típico, o
Unidos de Alfama, lugar geométrico de todas as colectividades de bairro. Porque
foi também aqui, neste ou noutro retiro que, pese embora algumas diferenças, o
fado se estreou.
De referir ainda que nessa mesma tarde Ana Maria confessará ao seu homem,
artesão e tocador de guitarra: “Ai Júlio, tenho tanto medo de cantar logo à
noite...” E acrescentará, desta vez a sorrir, dando o mote musical a todo o filme:
Fado é sorte
e do berço até à morte
ninguém foge, por mais forte
ao destino que Deus dá.31
28 “A Canção de Lisboa”, um filme de 1933, realizado por Cottinelli Telmo, com Vasco Santana,
Beatriz Costa e António Silva, entre outros.
29 Id.
30 “De acordo com este interlocutor [o proprietário de uma casa de fados de Alfama], ‘(…) o fado
verdadeiro não pode ser nunca uma forma de ganhar dinheiro’, ou seja, quando é cantado por
compromisso profissional, não acontece verdadeiramente.” (artigo de F. M. Mendonça, Luciana: O
fado e “as regras da arte”: “autenticidade”, “pureza” e mercado (Sociologia, Revista da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, Vol. XXIII, 2012, pág. 71-86)),
(http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/10296.pdf, acedido a 14.09.2015).
31 “Fado de cada um” (Música de Frederico de Freitas e versos de Silva Tavares).
23
10.
Na época em que o filme de Perdigão Queiroga foi realizado, para a maior parte
dos portugueses a prática religiosa não perdera qualquer sentido, apesar das
cerimónias litúrgicas que poderiam não compreender na totalidade. O
materialismo prático não invadira a cultura do tempo e as igrejas estavam
cheias, fosse de gente inquieta que procurava responder às exigências do seu
cristianismo, fosse de gente que obedecia “mais aos ritmos biológicos e sociais da
sua existência do que a imperativos da sua consciência religiosa.” (Fernandes, p.
10). Tudo tem uma capa de religiosidade óbvia – até a solução para as
inquietações das almas simples. “A religião opera a reconciliação do homem
consigo mesmo, com Deus, com os outros homens e com a própria natureza.”
(Fernandes, p. 32). O gesto de Ana Maria não é, por isso, estranho.
24
A forte e antiga influência católica33 no povo português faz-se sentir nos hábitos
da sociedade portuguesa e, por isso, também nas letras de carácter religioso que
constituem o espólio artístico do fado deste tempo – as procissões, a fé, a
devoção a Nossa Senhora da Saúde (Fátima, como altar do mundo, é fonte e
destino de todo o olhar mariano) - porque, como diz Pascoaes, entre a poesia e a
religião há estreitos laços de parentesco. Mas é esta religiosidade, tantas e tantas
vezes independente das convicções de quem escreve ou de quem canta, que
permite que a expressão ‘confissão’ - expressão esta que atravessará todo este
trabalho, como se fosse a frase ‘fado é sorte’, que Ana Maria profere diversas
vezes com diferentes expressões faciais - não seja um espinho cravado no género
musical, uma protuberância que o desfeia, uma excentricidade crente que destoa
de uma circularidade secular.
O fadista junta as mãos, como se rezasse; põe os olhos – ainda que porventura
fechados – no alto, onde se acredita que está Deus e o céu34. E conversa com Ele.
Confessa, confessa-se.
11.
Ana Maria, na sequência do sucesso que constitui a sua primeira actuação como
cantadeira, está determinada a prosseguir uma carreira fora da pequenez do
bairro de Alfama. Quer respirar outros ares, pisar outros palcos, ouvir os
aplausos e sentir o público; tira o cartão de artista (e a informação não é
despicienda, pois era um requisito do Decreto 13564, de 27 de Maio de 1927,
que inaugura, ainda que por outros motivos, o segundo período desta história do
33 Alberto Pimentel afirma inclusivamente que a melancolia portuguesa deriva, entre outros
motivos, de “excesso de religião” (p. 29)
34 “sem recorrer mesmo à efabulação mítica, o céu revela directamente a sua transcendência, a
sua força e a sua sacralidade. A simples contemplação da abóboda celeste provoca na consciência
primitiva uma experiência religiosa.” (Mircea Eliade, citado por Fernandes, p. 30).
35 “A Minha Oração” (versos de Mário Rainho).
25
fado) e entrega-se nas mãos do destino, suspensa dos contratos que chegarem.
Júlio acede: “há-de ser o que Deus quiser.” Durante alguns minutos de filme, o
casal de namorados ensaia vários fados:
Ave-maria fadista36:
Alamares37:
Na Mouraria
Desde a Amendoeira à Guia
Vamos encher de alegria
Esse bairro sonhador
Que esta guitarra
Tenha a voz duma cigarra
Que o seu trinado desgarra
Numa cantiga de amor.
Só à noitinha38:
Só à noitinha
Quando me chega a saudade
Choro sozinha
P’ra chorar mais à vontade.
Duas luzes39:
Eu gostaria, mãezinha,
de cantar pra ti somente,
mas tu és tão pobrezinha
que canto pra toda a gente.
26
Desespero40:
27
ordenamento de um coração que vive ao ritmo de um sobressalto que aflige ou
de um amor que pacifica.
12.
Não foi sempre assim, como também já vimos. Regressamos ao primeiro período
desta história do fado, que vai de 1830 a 1927 e encontramos uma diversidade
imensa de temas que Alberto Pimentel reproduz, dos quais respigo alguns
exemplos:
Fado enigmático:
Minha T-O-L-A
Só tu és a minha nini!
Manda carta p’lo correio
P’ra o teu querido K-H-I.
Fado tautófono:
Fado mitológico:
28
13.
Quem eram então estes poetas (ou letristas para ser talvez mais correcto) que,
nascendo alguns antes do advento do Estado Novo, são protagonistas desta
transição para um fado não político?
descrevesse, ela própria, uma inevitabilidade que nos persegue ou que a alma
nacional agarra, com pavor de perda da identidade. Ou como se esta outra
quadra
29
explicasse de forma sucinta, em quatro linhas singelas, todo um destino nacional
cantado apenas na capital. Um destino que só conhecemos na infelicidade.
14.
Falemos dos poetas populares: Avelino de Sousa (1880 – 1946) começou, como
já referi, como compositor tipográfico. Linhares Barbosa (1893 – 1965) tinha a
instrução primária e, até ter fundado o jornal Guitarra de Portugal, era torneiro
mecânico. Henrique Rego (1893 – 1963) um dos poetas preferidos de Alfredo
Marceneiro, era funcionário subalterno do Ministério da Guerra. Frederico de
Brito (1894 – 1977) também conhecido por Britinho ou Poeta Chofer, foi
estucador e motorista de táxi. Carlos Conde (1901 – 1981) era chefe de
escritório. Francisco Radamanto (1908 – 1972) nome pelo qual ficou conhecido
Francisco Duarte Ferreira, passou pelas cadeias de Monsanto e do Limoeiro, após
o que dedicou a sua vida ao jornalismo. Seis letristas, de entre os 25 que
compõem a antologia, são responsáveis por mais de metade desta poesia
popular. São pessoas sem grande formação académica mas que, mesmo assim,
tocaram a alma de milhares de portugueses que se reviam na proximidade dos
temas e das palavras, que não eram, afinal, mais do que a realidade que
conheciam ou a linguagem que lhes era familiar.44
44 A este respeito fará sentido referir a obra de Vítor Pavão dos Santos (Amália e os Poetas,
Bertrand, 2014) onde são mencionados outros letristas da altura, não incluídos na colectânea de
Gouveia e Mendes, nomeadamente José Galhardo, Guilherme Pereira da Rosa, e outros).
45 Em A Triste Canção do Sul, A Pimenta ilustra bastante alguns destes temas (págs. 101 a 130),
de que refiro um exemplo: “Em pleno século das luzes.../Chega a par’cer impossível!/N’uma
cidade brilhante/Cometeu-se um crime horrível”.
30
amor, é claro, mas também os trabalhos e sofrimentos das classes sociais em
contacto com o fadista, os aspectos da vida popular e a notícias das ruas, os
grandes crimes e os grandes desastres que impressionam a opinião pública, a
morte de personagens célebres ou “expressão de malícias e gaiatices” (Pimentel,
p. 103), numa linguagem obscena ou que recorre a equívocos e trocadilhos, entre
outros.
15.
Ana Maria também canta a vida das pessoas, não aquela que poderia surgir numa
crónica de costumes ou em retratos mais ou menos impessoais do quotidiano,
mas a que revela um estado de alma - ciúmes, fraquezas, misérias e esperanças.
O fado é, no segundo período desta sua história, muito mais do que uma sátira,
um ataque, ou uma espécie de apontamento noticioso sob a forma de quadra
glosada em décimas. O fado – que neste filme de Perdigão Queiroga tem um
nome, Ana Maria – é beneficiário de uma ironia do destino: a censura não o deixa
ser tudo, pelo que passa a ser mais. Mais ilustrativo das emoções, revelando mais
sobre a alma das pessoas, aproximando-se mais de um intimismo que floresce
neste tempo fadista, chegando-se mais ao paradigma da confissão em Religião.
16.
46É possivelmente por isso, por este intimismo que é prece, pranto – e por vezes confissão - que
na generalidade dos espectáculos musicais se “iluminam os artistas e se escurece o público,
enquanto que no Fado se ilumina o público e se escurecem os artistas” (Gouveia, p. 54). Quem
reza, quem chora, ou quem (se) confessa, requer recato visual.
31
e, neste movimento de aproximação a Deus, confessamos um louvor e uma fé;
mas também por via da ideia de que confessamos um amor, uma esperança – ou
mesmo uma vida desgraçada. Afinal, confessar também é confidenciar, revelar –
ou partilhar, expressão que fixo pela sua importância.
17.
“Tenho a certeza de que vai agradar muito no teatro”, diz-lhe o empresário Sousa
Morais. O semblante de Júlio, que encarna, quase tanto como acompanhante, uma
espécie de sumo-sacerdote encarregue de preservar a pureza do fado num
templo guardado, carrega-se. Afasta-se, sentindo-se arredado de um projecto que
o desconforta e no qual não tem lugar – o fado e o teatro juntos, com um
negociante pelo meio. Ana Maria segue por um caminho que os seus olhos não
descortinam, como se ao destino lhe faltasse o controlo do futuro.
Após o acidente de Luisinha, Ana Maria, martirizada, quer desistir do fado. Dirá
ao Chico Fadista, o empresário local, que a responsabilidade pelo acidente é dela.
“Fui eu, a minha vaidade, o fado e a sina que Deus me deu.” Em nome do fim de
um sentimento de culpa que a entristece e invocando uma hipotética
necessidade de se arranjar dinheiro para o tratamento da criança, é finalmente
convencida por Júlio a assinar um contrato com o referido empresário. No dia em
que canta no teatro pela primeira vez para ser apresentada aos autores da peça,
diz o que quer cantar: “talvez aquele fado mais alegre...” Influência da saída da
vida triste de bairro para o ambiente mais jovial do teatro?
47“Dá-me um beijo” (também conhecido por “És tudo para mim”) música de Frederico de Freitas,
versos de Silva Tavares.
32
No mesmo dia em que Luisinha regressa a casa, Ana Maria estreia-se com um
enorme sucesso no teatro, cantando:
Ó fado
Torturado
Tão magoado
Quem te fez?
Ó fado
Não sei quem és.48
Volver
De novo ao fado e sofrer
Porque sofrer é viver
E eu vivo e sofro a cantar.
18.
48“Ó Fado não sei quem és”, música de Frederico de Freitas, versos de José Galhardo.
49“(...) a teoria de Mantegazza, que, discreteando a respeito da mímica como expressão dos
afectos e movimentos físicos, diz que a alegria é centrífuga, enquanto que a dor é centrípeta”.
(Carvalho, p. 8).
33
período para o segundo período, o fado deixa de ter uma linguagem de crónica
para adquirir uma linguagem de confissão e, portanto, na primeira pessoa do
singular. São expressões de intimismo, reflectoras dos desejos, desalentos,
paixões, traições – e vontades de partilha - que fazem parte da natureza humana.
Mas nessa mesma passagem o espaço abre-se, torna-se maior e, potencialmente,
mais impessoal. E torna-se um negócio – um aspecto que não é irrelevante.
19.
Ao longo de um ano Ana Maria conquista o público do teatro. Inaugura uma vida
nos meios de uma sociedade chamada alta, deixa para trás Luisinha, entrevada
numa cama, e Alfama, o bairro de vielas estreitinhas que a viu nascer e crescer,
onde ela aprendeu palavras como destino, fado, desgraça, sorte, Deus, morte,
Júlio. Nesse mesmo dia, no final de mais uma actuação, estabelecem-se dois
diálogos importantes – de que reproduzo partes que só aparentemente são
soltas - tendo Ana Maria como menor múltiplo comum e que responde, talvez
não como a pessoa que é, mas como a pessoa que quer ou tem de ser em função
dos interlocutores - pessoas diferentes, que representam realidades diferentes,
com olhares diferentes sobre os mundos próprio e alheio.
34
Sousa Morais: esta noite cantou melhor que nunca.
Júlio: Quando cantavas por prazer cantavas como nunca ninguém cantou.
Agora os teus fados não falam ao coração de ninguém. (...) Porque te
afastaste das coisas boas e simples.
20.
Passou-se um ano desde que o fado (ou pelo menos Ana Maria) saiu do seu
bairro. Entre um ciúme e uma inquietação, o mundo de Ana Maria mudou:
desapareceu o bairro, a viela, a proximidade geográfica e afectiva dos moradores;
35
surgiu o sucesso, as salas de espectáculos cheias, as jóias que se recebem para
celebrar êxitos. Celebra-se uma vitória conquistada ou reza-se por uma alma
perdida?
No me quieras tanto,
Ni llores por mí!
No vale la pena
Que por mi cariño, te pongas así.
No entanto, num evento organizado pelo Diário de Notícias, Ana Maria volta ao
seu repertório, escolhendo o Fado da Saudade51:
21.
No filme, Ana Maria não escolhe o Fado da Saudade por acaso. Por um lado, o
tema está de alguma forma alinhado com o ar do tempo, que evoca cada vez mais
figuras e cenas do passado – a Severa, a Cesária, a Júlia Florista, a Rosa Maria, as
36
idas de tipóia às patuscadas, as noitadas nos retiros, uma suposta fraternidade
entre povo e fidalguia. Se dispuséssemos de uma expressão apenas para
caracterizar esta época ela seria, seguramente, tenho saudade (Nery, p. 238). Por
outro lado, como também vimos ao fazer referência ao martirológio fadista de
Luiz Moita, falar de fado parece implicar, quase se diria forçosamente, falar de
saudade, mesmo que já não evocando figuras do passado ou não tendo uma visão
igual sobre o conceito. Senão vejamos:
Ortega y Gasset, filósofo espanhol que viveu em Portugal, a que chamou “país de
suicidários” (Gouveia, p. 32), diria:
37
Mattoso acrescenta ainda: “Quanto à saudade-lirismo, não se poderá relacionar
com o facto de tantos portugueses desde sempre terem de emigrar para
sobreviver?” (Mattoso, p. 105).
22.
53 http://www.portaldofado.net/.
54 Uma pesquisa rápida em cerca de 600 fados cuja autoria é atribuída aos poetas da Época de
Oiro detectou cerca de 20 títulos (e títulos apenas) onde consta a palavra ‘saudade’. Alguns
exemplos: A saudade (Linhares Barbosa); A saudade e ela (Carlos Conde); Anda a saudade bem
alta (Gabriel de Oliveira); Cabelo branco é saudade (Henrique Rego); Fado da saudade (José
Galhardo); Matar saudades (Frederico Brito).
55 “Saudade das saudades”, versos de D. António José de Bragança.
56 “A saudade é minha”, versos de Carlos Conde .
38
23.
Donde vem este desespero de saudade que se colou ao fado como algo que nos
consome e nos alimenta? Os organizadores recentes de uma antologia sobre o
tópico consideram que tais assuntos não são “sinónimos de fraqueza ou de
morbidez, mas sim a corporização, sob forma poética, de uma sensibilidade que
nunca se deixou emudecer ante a mágoa da ausência ou da distância.”57 Uma
melancolia que, ainda o fado não era denominação, já gerava uma dolência nas
nossas canções, o que impressionava os estrangeiros que as ouviam (Pimentel, p.
28). Alberto Pimentel considera que tal se deve a “sempre te[r]mos sido um povo
melancólico por efeito das condições da nossa própria existência e de uma
educação tradicional.” (Pimentel, p. 28). A sua descrição lembra o modo como
João Gouveia caracterizou Gonçalo Mendes: “Um fundo de melancolia, apesar de
tão palrador, tão sociável”58. Essa melancolia é “o fundo do fado como a sombra é
o fundo do firmamento estrelado.” (Carvalho, p. 20).
mesmo, que acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa...
Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele
arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me
lembra? - Quem? - Portugal."(Eça de Queiroz, in A Ilustre Casa de Ramires)
39
24.
E se reconhece, ele próprio, que já não sabe cantar o fado, reconhece também
que houve uma ruptura dentro de si, uma capacidade perdida ou destruída,
como se materialidade e imaterialidade de um corpo pudessem ser colocadas em
recipientes diferentes. Com a mudança para o teatro (para uma sala de
espectáculo, com uma envolvente humana, técnica, dimensional muito diferente)
o fado deixa para si de ser o que é, passando a ser algo distinto. Esta alteração é
reconhecida por Ana Maria e atestada por Júlio. Isto suscita uma pergunta: se as
palavras são as mesmas, se a cantadeira é a mesma, se os acompanhantes são os
mesmos, se o público é substancialmente o mesmo, mas se o recinto se alterou,
qual foi, na realidade, o agente da mudança?
25.
40
espectáculos, ao permitir que o fado fosse ‘mais’ (em termos de público) levou-o
a que fosse ‘menos’ (em termos de proximidade – e a repetição é propositada).
26.
Voltemos aos diálogos Ana Maria / Sousa Morais e Ana Maria / Júlio. O primeiro
interlocutor da cantadeira puxa o fado para fora, sugere-lhe novas roupagens,
novos ambientes, novos bairros – não um bairro popular diferente, mas um
andar nas avenidas novas. O segundo interlocutor quer reter o fado cá dentro,
tenta desesperadamente preservar-lhe características que considera
determinantes, sem as quais a genuinidade se perde. Talvez um discurso
centrífugo, outro centrípeto, a alegria e o sofrimento a lutarem pelo mesmo. Os
discursos são antagónicos. Em termos da ligação do fado à confissão, o de Sousa
Morais é claramente mais pernicioso. O fim do filme revelará quão prejudicial é
uma certa versão do fado.
Por outro lado, há uma frase de Júlio que não deve ser deixada em claro: “Quando
cantavas por prazer cantavas como nunca ninguém cantou.” A expressão ‘prazer’
não tem como inversa ‘desprazer’; a intenção de Júlio é contrapor-lhe a
‘profissionalização’. Para ele, arvorado em fiel depositário de uma arca onde se
guarda a pureza do fado, o antónimo de ‘ter prazer em’ é ‘ganhar dinheiro com’.
Se consideramos, então, que o fado ao ser objecto de contrato ou de relação
comercial perdeu algo, podemos então concluir que a profissionalização de Ana
Maria lhe mata (também, porque há outros factores) a alma. E ao perder a alma o
fado descaracteriza-se, deixa de ser confissão, passa a ser apenas um género
musical.
41
27.
42
curiosidade histórica ou um apontamento típico. A confissão não é um elencar
banal de falhas mais ou menos graves para cumprir um calendário, uma
obrigação ou um ritual. A confissão é o restabelecimento de uma ordem que se
opera ao nível daquilo que nos é mais imaterial: a alma. A confissão não consiste
na ‘exposição’ (enquanto sinónimo de ‘confissão’) dos pecados, mas no desnudar
de uma interioridade, no despojamento daquilo que é prejudicial ao caminho de
santidade de um crente. Para isso, entre quem fala e quem ouve deve construir-
se uma corrente de comunicação que constitua um verdadeiro diálogo, pelo que
é imperativo que se estabeleça um eixo relacional forte.
43
absolve. A confissão exige arrependimento e propósito sinceros, pois só assim há
verdadeira redenção, só assim Deus entra em comunicação e comunhão com o
pecador. Só assim há verdadeiramente sacramento (da Reconciliação). 64
arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos
danos causados;”. Um Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (192/11.3TACBR.C1, de
30.05.2012) refere, inclusivamente, 1- A simples declaração proferida em audiência pelo arguido
de que está arrependido não tem qualquer valor. O que tem valor, como circunstância atenuante
da responsabilidade criminal do arguido é que o mesmo demonstrou estar arrependido; 2- O
arrependimento é um ato interior, devendo essa demonstração ser visível de modo a convencer o
tribunal que se no futuro vier a ser confrontado com uma situação idêntica, não voltará a
delinquir;
66 Santo Agostinho, por exemplo, entendia que a resposta de Deus às suas confissões não era mais
44
desejem. § 3. Não se oiçam confissões fora dos confessionários, a não ser por
causa justa.”67
28.
67 Cânone 964.
45
O que confessa o criminoso? Um roubo, um assassínio, um acto de corrupção. O
que confessa o pecador? Um roubo, um assassínio, um acto de corrupção. Mas
confessa também o que não justifica confessar-se na sala de interrogatórios: a
vaidade, a descompaixão pelo próximo, o orgulho ou a inveja. O fadista, por sua
vez, confessa uma traição, um ciúme, uma saudade, uma desgraça própria. Uns
procuram no receptor do seu arrependimento a recuperação que anima ou a
remissão que alivia. Outros, tal como Ana Maria, confessam-se, não para a
atenuação da pena ou para absolvição do pecado – porque não são criminosos ou
pecadores - mas como uma espécie de terapia que, através da partilha, promove
o ordenamento de um coração que entrou em ruptura com o mundo que lhe está
próximo, ou mesmo em ruptura consigo próprio. Nesse sentido, o público é o
agente da lei que ouve o criminoso, é o sacerdote que escuta e absolve o pecador.
46
motivo qualquer, decide ignorar uma; (ii) um católico ajoelha-se num
confessionário e, perante um padre, elenca as suas falhas. No entanto (apesar
desta aparente contradição) tem sérias dúvidas de que o sacramento seja um
sinal sensível instituído por Deus para lhe dar a Sua graça; (iii) um católico
ajoelha-se num confessionário e, perante um padre, elenca todas as suas falhas.
No entanto, não sente arrependimento relativamente a uma específica; (iv) um
católico ajoelha-se num confessionário e, perante um padre que por um motivo
qualquer não o ouve ou não o percebe, elenca as suas falhas; (v) um católico
ajoelha-se num confessionário e, perante um padre, elenca as suas falhas. No
entanto, por esquecimento ou distracção, não recebe a absolvição.68
Retomemos as hipóteses (i) a (v). É verdade que em todas elas se verifica uma
confissão dos pecados, ainda que na primeira algo fique escondido. Em todas elas
houve alguém que, por uma necessidade qualquer, entendeu querer partilhar as
suas falhas. Em todas elas há o tal triângulo com um quarto lado. E no entanto,
será que em todas elas houve sacramento da confissão? Não. O que faltou, então?
A sinceridade, o arrependimento, a escuta por parte de quem tem o poder da
absolvição, a crença no sacramento, a inteireza.
Significa isto, então, que o elencar dos pecados não chega, a presença do
confessor não chega, a fé na existência de Deus não chega. Para que haja
confissão (e não ‘constatação’ apenas dos pecados) é necessário satisfazer-se um
conjunto alargado de condições, para além do triângulo. De referir, porém, pela
sua importância, que a existência de pecador e confessor englobam as dimensões
68“No sacramento da penitência, os fiéis que confessem os seus pecados ao ministro legítimo,
estando arrependidos de os terem cometido, e tendo também o propósito de se emendarem,
mediante a absolvição dada pelo mesmo ministro, alcançam de Deus o perdão dos pecados
cometidos depois do baptismo, ao mesmo tempo que se reconciliam com a Igreja que vulneraram
ao pecar. (Cân. 959 do Código de Direito Canónico). “A confissão individual e íntegra e a
absolvição constituem o único modo ordinário pelo qual o iel, consciente de pecado grave, se
reconcilia com Deus e com a Igreja.” (Cân. 960 do Código de Direito Canónico)
47
já referidas de sinceridade, inteligibilidade, exercício do poder de que se reveste
uma das partes, etc. É uma presença de corpo e alma, com todos os deveres e
responsabilidades de ambas as partes.69
29.
Ora, se consigo afirmar, com um relativo grau de certeza, que nem todo o elencar
de pecados é confissão, também posso afirmar, com o mesmo grau de convicção,
que nem todo o fado é confissão. Para isso preciso ainda de abordar o problema
de outro ângulo.
69Para além do cânones já referidos, o Código de Direito Canónico, nos seus capítulos do
Sacramento da Penitência, da Celebração do Sacramento, do Ministro do Sacramento da
Penitência, do Penitente descreve exaustivamente as condições necessárias e os impedimentos
associados a este Sacramento.
48
Por vezes, a contemplação de um quadro ou a escuta de uma música –
transformados em objectos para efeitos de raciocínio - é a apreciação pura e
simples da sua Beleza: a proporção, o equilíbrio das cores, o jogo de palavras, o
ritmo, a criatividade. Por vezes, esta mesma contemplação é apenas (ou também
é) um exercício de lembrança, pois remete-nos para uma pessoa, para um
momento, para um lugar. Nesse caso, a emoção não advém só da beleza
intrínseca do objecto, mas daquilo que lhe associamos: um amor perdido, um
tempo fagueiro, um lugar onde a felicidade se estabeleceu. “Quantas coisas só se
percebem graças ao sentimento, mesmo que isso não se possa justificar”, diria
ainda Jean-Jacques Rousseau (Eco, p. 237). Entre o objecto e quem o observa
estabelece-se uma relação própria, próxima, pessoal, quase intransmissível, e
poderá ser isso que distingue um quadro de outro quadro, um livro de outro
livro, uma música de outra música.
Estreito o raciocínio para a música, pois é disso que falo. A música pode entrar
em comunicação connosco, dar-nos a mão para viajarmos até um passado mais
ou menos distante, revisitarmos memórias que nos são ternas ou dolorosas, pôr-
nos à conversa com gente que desapareceu do nosso mundo, que preencheu
gavetas da nossa história ou que calcorreou as nossas ruas. Mas a música pode
ter apenas uma dimensão estética, de uma Beleza que nem sempre provoca
desejo de possessão ou de autoria, sobre a qual (falo de música, mas poderia
falar de um quadro e de um campo de flores, mas também de uma escultura e de
um mar cristalino) poderíamos dizer ‘é belo’, ou mesmo ‘é muito belo, mas não
me emociona’. Num determinado sentido, a estética é independente, portanto, de
uma certa emoção, mesmo que ambas não constituam entre si um conjunto
totalmente disjunto. Isto é, em toda a Beleza existe a possibilidade de retenção
da atenção, porque os nossos olhos se prendem em algo. Mas nem toda a beleza
nos emociona, no sentido em que nos abala.
70“(...) que não significa, pelo menos imediatamente, ‘o estudo’, mas a aplicação a uma coisa, o
gosto por alguém, uma espécie de investimento geral, empolgado, evidentemente, mas sem
acuidade particular”. (Barthes, p. 34).
49
estilizada, mais ou menos conseguida em função da mestria do fotografo: um par
de velhos, um cão a dormir ao calor do verão, um boné grande de um rapaz. Para
Barthes, o studium está na ordem do gostar, e não do amar71, é uma “espécie de
educação (saber e delicadeza)”. E depois há o punctum, um elemento que vem
perturbar o studium. “O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere
(mas também me modifica, me apunhala).“ (Barthes, p. 35). 72 Uma nova
definição, mais à frente:
50
operator) canta exclusivamente para quem se sentiu modificado, apunhalado (o
spectator). De todos os milhares de olhos que potencialmente o vêem, são esses
que ele foca, que lhe prendem a atenção – porque é esse spectator que o escuta, é
dessa vida que ele fala: dos desamores, das traições, das saudades, de tudo aquilo
que torna o spectator infeliz ou a sua inversa. É nesse momento que a Beleza se
sublima73, que casa a dimensão estética com a dimensão emocional, e que
proferimos a frase ‘a música, não só é bonita, como me emociona’. Verifica-se,
por fim, uma condição para o estabelecimento de uma ligação própria, próxima,
pessoal, talvez intransmissível, entre quem canta e quem ouve. Trata-se de uma
ligação muito semelhante à que se estabelece entre o pecador e o confessor
quando o primeiro desnuda uma alma pedinte e sincera à misericórdia divina e,
por maioria de razão, uma ligação muito semelhante à que se estabelece entre o
fadista e o público presente na sala. A emoção é, portanto, um elemento a fixar,
pois, não sendo determinante – nem tendo, sequer, de ser igual entre quem canta
e quem ouve - colabora no estabelecimento do tal eixo relacional forte que une
emissor e receptor.
30.
Recordo mais uma vez o remoque de Júlio lançado à cara de Ana Maria: “Quando
cantavas por prazer cantavas como nunca ninguém cantou. Agora os teus fados
não falam ao coração de ninguém. (...) Porque te afastaste das coisas boas e
simples.” E recordo também a frase de Ana Maria em resposta a um elogio: “Eu já
não sei cantar o fado; perdi a alma.”
Nas frases que Ana Maria diz e ouve neste curto excerto de diálogo, é evidente
uma ausência – a da emoção. Ana Maria é a mesma pessoa, canta as mesmas
letras acompanhada dos mesmos músicos. O local, entre outros factores, é
diferente. O que é necessário, então, para que se possa dizer ‘houve fado’, sendo
73Afirmará Pseudo-Longino: “Já que, quando um leitor culto e experiente, lendo e ouvindo várias
vezes alguma coisa, não sente dentro de si nada de grande nem nenhuma reflexão mais rica do
que a percepção literal do discurso, mas antes se apercebe de que, lendo e relendo, aquela obra
carece de sentido; então, não se encontra diante do verdadeiro Sublime, mas diante de algo que
apenas dura o tempo da leitura e da audição” (História da Beleza, p. 278).
51
que a frase tem como sinónimo, ou equivalente, a frase ‘houve confissão’, e não
as frases ‘houve fandango’ ou mesmo ainda ‘houve milongas’.
74 Ana Maria cantará “Ó Fado não sei quem és”, música de Frederico de Freitas, versos de José
Galhardo, referido anteriormente.
75 Roland Barthes, num texto chamado “Escuta” (O óbvio e o obtuso, Ed. 70, 2009) afirma: “Ouvir
é um fenómeno fisiológico; escutar é um acto psicológico.”
76 Duas lágrimas de orvalho (versos de João Linhares Barbosa).
77 Chama-me apenas mulher (versos de Mário Rainho).
52
sentido da audição, o outro tem-lhe inerente uma emoção. Se entendermos o
punctum de Roland Barthes como ‘algo para além de...’, e associarmos o conceito
à música (‘a música é bonita e emociona-me’ – sendo que a segunda parte da
frase se refere ao ‘algo para além de...’) então a resposta à pergunta é, de facto,
‘não’. O fado pode ser sempre um género musical – mas nem sempre é
confissão78. Importa portanto perceber o que distingue um do outro e, nesse
sentido falaremos sempre de condições normais, porque são essas as
estatisticamente relevantes. O resto são nichos.
31.
Ana Maria, que está no teatro, canta para Luisinha, que está em Alfama. A
primeira tem um público pela frente; a outra, um aparelho que permite ouvir em
tempo real (mas não ‘ver’ e por isso apenas’ intuir’) o que se passa à distância.
Um pecador pode pegar num telefone e, ligando para um padre que é seu amigo,
pretender confessar-se? Não. O ritual exige presença, olhos nos olhos (mesmo
que esta expressão seja moderadamente metafórica), presunção de sinceridade.
Por mais que Ana Maria fale no fado de cada um e pense na criança desgraçada
para a vida, não é possível estabelecer-se entre ambas uma corrente de emoção.
Nada é biunívoco, apesar da modernidade e da técnica permitirem a ideia do ‘em
directo’. É por isso que o fado gravado não é confissão. A esse respeito, recordo
de novo o lamento de Ana Maria ao dizer que perdeu a alma, como se se tivesse
transformado num aparelho de rádio propiciador de prazer e entretenimento,
mas desprovido de sistema nervoso central.
78 Na entrevista de Maria do Rosário Pedreira (DN, 3 de Maio de 2015) esta diz: “Não escrevo
para me confessar, escrevo para me limpar.”
79 “Domingo de Agosto”, versos de Carlos Conde.
53
fado que é cantado para dez mil pessoas, ou aquele que revela uma total
discrepância entre a letra cantada e, por exemplo, o sexo de quem canta. Todo
este fado entra na categoria de género musical, afectado pelos grandes recintos
despersonalizados, pela engenharia de som e luz que retira forçosamente a
proximidade, pela estranheza do discurso, ou pela ausência, nalguns casos total e
completa, de interacção com o público. A analogia seria com uma confissão em
religião realizada por interposta pessoa a quem se passa uma procuração de
plenos poderes, ou através do envio para um apartado de um CD gravado. Ou,
ainda, como se a absolvição pudesse ser dada por via electrónica, como uma
assinatura que se apõe num documento oficial expurgada de toda a dimensão
afectivamente humana.
32.
1949, talvez, embora possa ser pouco mais tarde. O local é Alfama e estamos nos
últimos minutos do filme. É a 5ª e última referência ao filme.
Ana Maria havia voltado do Brasil onde fora cumprir um contrato. Escorraçada
da casa da Mãe Rosa, que parece ser a porta-voz de uma alma colectiva, cruza-se
com Júlio que, carregado de ciúme, raiva e álcool, a atira ao chão. O desajuste da
vida da cantadeira (ou do fado?) é evidente. A vida da rapariga é inicialmente
simples, bairrista, calcorreando ruelas, sentando-se nas fontes, conversando e
cochichando segredos, ambicionando uma vida modesta, pouco além das vielas
labirínticas. Num instante, fruto de uma visão empresarial que a transcende e de
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um retiro onde cantará presumivelmente naquela noite apenas, tudo muda.
Horas antes da sua estreia, o Pai Damião revelará a sua preocupação, imaginando
Júlio e Ana Maria pelos retiros: “não vás tu mais ela fazerem do fado uma
negociata como os outros.” Num instante, o fado sai do Unidos de Alfama para
ocupar o palco de um teatro, ser o destaque de uma embaixada, viver a
internacionalização do Brasil; o fado sai de uma modesta casa num bairro
popular para se instalar numa vida com “automóvel e porteiro fardado”. Dirá o
taberneiro: “Esta coisa de ela ter ido para as avenidas novas, sem mais nem
mais.”
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Fado é sorte
E do berço até à morte
Ninguém foge por mais forte
Ao destino que Deus dá
Que bom seria, poder um dia, trocar-se o fado
Por outro fado qualquer
Mas a gente já traz o fado marcado
E nenhum mais inclemente
Do que este de ser mulher
Bem pensado
Todos temos nosso fado
E quem nasce mal fadado
Melhor fado não terá
Fado é sorte
E do berço até à morte
Ninguém foge, por mais sorte
Ao destino que Deus dá
Ana Maria (ou o fado?) volta para casa, para o bairro que a viu nascer. Volta para
uma vida própria, para os mistérios que se escondem por trás de casas modestas
‘onde a miséria fez morada / [e] nunca mais quis sair’80, onde o segredo e a
bisbilhotice andam por vezes de mãos dadas, porque uma intriga não é mais do
que o uso indevido de uma confidência. Volta para as luzes esmorecidas dos
candeeiros da rua sob os quais se segredam amores, ciúmes, traições; volta para
o som dos rádios que tocam roufenhos nas salas pequenas, para as noites tantas
vezes tristes feitas de crochet e ceias pobres onde se confessam tristezas,
anseios, desgraças – ou simplesmente irritações. Tudo se faz em voz baixa,
porque confessar é revelar um segredo, é partilhar algo que nos atormenta, nos
sufoca. O ruído persistente do bairro, “um rumor de vida, complexo e denso
como um perfume” (Chantal, p. 260), não é mais do que a soma de infinitos
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sussurros, de infinitas confissões. De uma casa para outra, enquanto o gato
ronrona ou alguém trauteia o Menor no fundo de uma viela, uma rapariga
lamenta o seu amor enganado, uma mãe confidencia um filho preso, um rapaz
reconhece um ciúme sofrido. Porque o fazem? Porque a confissão é a condição
prévia para o reordenamento da alma; porque a confissão também é partilha, a
incidência repartida de uma luz sobre um buraco negro que corrói por dentro.
Confessar um crime, um pecado, uma desgraça ou um temor têm o mesmo
objectivo comum: a redenção, que mais não é do que uma libertação, seja de uma
culpa, de um remorso, de uma infelicidade, de uma inquietude. Confessar - nas
múltiplas acepções desta palavra – é estender as mãos numa súplica de perdão
ou de compaixão. O criminoso, arrependido em desordem com a lei vigente, ou o
pecador, arrependido em desordem com a lei de Deus, revelam as traições de
ordem diversa, confiantes no remorso que mitiga ou na absolvição que redime. O
fadista, com uma alma atormentada pela desgraça, pela saudade, pelo ciúme ou
pelo destino, estende uma fragilidade ao público, convicto de que a partilha o
salvará.
33.
Pela imperiosa natureza das circunstâncias, o fado não nasceu como música do
mundo, e assim se manteve durante mais de um século. Quando surgiu – nas
tabernas, nos bordéis, na vadiagem, na prostituição – mantinha uma relação
relativamente simples com o mundo em seu redor: quem ouvia percebia o que se
cantava, quem cantava sabia que era entendido. A comunicação que se
estabelecia entre artista e público assentava na pequenez do recinto, na
familiaridade da música, na dimensão de entretenimento. Por último – mas não
menos importante – numa letra que todos entendiam, mesmo que abordasse
assuntos relativamente extrínsecos à vida do público. De alguma forma estavam
reunidas quase todas as condições necessárias para, deste ambiente, nascer uma
proximidade afectiva ou se desenvolver essa proximidade que existia em estado
larval.
O fado sai da taberna, dos palácios, entra no teatro, apanha um avião. É curioso
que, ao embarcar rumo ao Brasil, aceitando o contrato que lhe é proposto, Ana
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Maria ainda se detenha um instante à porta do avião, quem sabe se na
expectativa de um último acenar que a retenha, que a faça voltar para trás, a
impeça de se comportar, como dirá mais tarde ao Lingrinhas, como uma “mosca
doida”. O fado ganha espaço, perde proximidade. Já antes perdera liberdade,
ganhara proximidade.
“Tu pertences aqui a Alfama”, dirá Júlio, a certo momento, como quem define
com vigor e autoridade o espaço preciso do fado, não enquanto música, mas
enquanto confissão. Não se trata de um local apenas geográfico, mas de um
ponto de encontro de um conjunto de factores de que fui falando ao longo deste
trabalho. Júlio poderia repetir a frase na última cena do filme de Perdigão
Queiroga – o tal filme sobre o fado que só por desatenção parece ser a história de
uma cantadeira – porque os últimos minutos são, de facto, sobre o regresso a
casa, e as migalhas de pão que ajudam o fado a encontrar o caminho de volta têm
também o nome do acompanhante. De novo no seu mundo, Ana Maria canta o
fado de cada um. A referência sem aspas nem itálico ao nome do fado é
propositada: qualquer que fosse o tema escolhido para acompanhar o guitarrista
nas vésperas da sua hipotética partida para África, a cantadeira cantaria o fado
de cada um: o fado da mãe Rosa, do taberneiro, do pai Damião, do Lingrinhas, ou
mesmo da Luisinha, já só presente em espírito; o fado dela e do Júlio, pois no
início do filme Ana Maria diz-lhe: “Júlio: Aconteça o que acontecer, tenha eu o
futuro que tiver, seja a mulher mais feliz ou mais desgraçada deste mundo, quero
ser feliz ou desgraçada contigo, percebeste? Enquanto me quiseres, hás-de ser
sempre o mesmo para mim. O nosso destino há-de ser um só.” A cantadeira
cantaria ainda o fado de cada um dos presentes no Unidos de Alfama – gente
anónima carregada de tristezas, ciúmes, saudades, amores entristecidos pela
ausência ou pela traição. E cada um destes presentes, lugar geométrico de todos
os presentes em todos os pequenos recintos de todos os bairros populares,
entenderia as palavras ditas ao vivo por uma pessoa com alma que sente o que
canta, como sentiria quem se confessa com inteireza a um sacerdote, desejoso de
ser perdoado.
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Bibliografia citada
De Man, Paul, Allegories of Reading. New Haven and London: Yale University
Press, 1979.
Nery, Ruy Vieira, Para uma História do Fado. Lisboa: INCM, 2012.
Teixeira de Pascoaes, Arte de Ser Português. Lisboa: Edições Roger Delraux, 1920.
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