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Rev. Eletr. Enf. 2008;10(3):849-56.

Available from: http://www.fen.ufg.br/revista/v10/n3/v10n3a31.htm.


_____________________________________________________________________ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO

A história de vida focal e suas potencialidades na pesquisa em saúde e em enfermagem

The focal life story and its potentialities at health and nursing research

La historia de vida focal y sus potencialidades en la pesquisa en salud y en enfermería

Roseney BellatoI, Laura Filomena Santos de AraújoII, Ana Paula Silva de FariaIII,
Elizabeth Jeanne Fernandes SantosIV, Phaedra CastroV, Solange Pires Salomé de SouzaVI,
Sonia Ayako Tao MaruyamaVII

RESUMO Therapeutics Itineraries tackled by the users


Este relato tem por objetivo apresentar nossa when looking for resolutivity for their health
experiência na utilização da História de Vida necessities, and demonstrated a huge potencial
Focal como abordagem metodológica em as a privileged methodological strategy for the
pesquisa que buscou apreender o impacto da health services evalutive practices trough the
experiência de adoecimento e da busca do view from who live the getting illness and the
cuidado por usuários do Sistema Único de care search, that is, the health system user and
Saúde, apontando suas potencialidades na his family.
pesquisa em saúde e enfermagem e na prática
avaliativa de serviços de saúde. A riqueza das Key words: Nursing research; Health system
narrativas fez emergir a subjetividade dos research; Interview; Personal narratives.
usuários, as interpretações e sentidos que os
mesmos vão tecendo neste processo, RESUMEN
possibilitando uma compreensão profunda Este relato tiene por objetivo presentar nuestra
dessa vivência que outras abordagens experiencia en la utilización de la Historia de
metodológicas dificilmente ofereceriam. Por vida Focal cómo abordaje metodológica en
permitir a composição dos Itinerários pesquisa que buscó aprehender lo impacto da
Terapêuticos empreendidos pelos usuários ao experiencia del adolecemiento y de la busca de
buscar a resolutividade para suas necessidades lo cuidado por usuarios de lo Sistema Único del
de saúde, a História de vida Focal demonstra Salud, apuntando sus potencialidades en la
grande potencialidade como estratégia
metodológica privilegiada na prática avaliativa
do cuidado em saúde na perspectiva de quem I
Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de
vivencia o adoecimento e a busca por cuidado, Ribeirão Preto - USP. Docente da Faculdade de Enfermagem
(FAEN) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
ou seja, o usuário e sua família.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Enfermagem, Saúde e
Cidadania” (GPESC). E-mail: roseney@terra.com.br.
Palavras chave: Pesquisa em enfermagem; II
Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de
Pesquisa sobre serviços de saúde; Entrevista; Ribeirão Preto - USP. Docente FAEN/UFMT. Coordenadora do
Grupo de Pesquisa “Gestão do Conhecimento Pluridisciplinar
Narrativas pessoais.
para o Trabalho em Saúde” (GEPLUS) ). E-mail:
laurafil1@yahoo.com.br.
ABSTRACT III
Enfermeira. Mestranda em Enfermagem pela FAEN/UFMT,
The objective of this report is to show up our membro do Grupo de Pesquisa em Enfermagem, Saúde e
Cidadania - GPESC/ UFMT). E-mail: apaula.faria@gmail.com
experience in using Focal Life Story strategy as IV
Enfermeira. Mestranda em Enfermagem pela FAEN/UFMT,
a methodological attacking for researchs that bolsista do CNPq, membro do Grupo de Pesquisa em
tyed to apprehend the getting illness experience Enfermagem, Saúde e Cidadania - GPESC/ UFMT). E-mail:
impact and the care search by the Brazilian beth.mt@ig.com.br.
V
Enfermeira. Mestranda em Enfermagem pela FAEN/UFMT,
Health Unique System users, showing its
bolsista do CNPq, membro do Grupo de Pesquisa em
nursing and health research potentialities and at Enfermagem, Saúde e Cidadania - GPESC/ UFMT). E-mail:
health services evalutive practices. The phaedracastro@yahoo.com.br.
VI
narratives richness came up the users Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto – USP. Docente da
subjectivity, as well as their interpretations and
FAEN/UFMT. Membro do Grupo de Pesquisa GPESC). E-mail:
the meanings during this process, helping us at solps@terra.com.br.
the deep comprehention of this experience, that VII
Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela Escola de
others methodos probably would not offer us. Enfermagem de Ribeirão Preto – USP. Docente da
FAEN/UFMT. Membro do Grupo de Pesquisa GPESC). E-mail:
The Focal Life Story allowed us to build the
soniayako@uol.com.br.

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pesquisa en salud y enfermería y en la practica necesidades del salud, la Historia de vida Focal
de la evaluación de los servicio del salud. La demonstra grande posibilidad cómo estrategia
riqueza de las narrativas hizo emerger la metodológica privilegiada en la practica de la
subjetividad de los usuarios, las evaluación de lo cuidado en salud en la
interpretaciones y sentidos que los mismos van perspectiva de quien vivencia lo adolecemiento
tejiendo neste proceso, posibilitando una y la busca por cuidado, o sea, lo usuario y su
comprensión profunda de esta vivencia que familia.
otras abordajes metodológicas difícilmente
ofrecerían. Por permitir la composición de los Palabras-clave: Pesquisa en enfermería;
Intenerários Terapéuticos emprendidos por los Pesquisa sobre servício del salud; Entrevista;
usuarios al buscaren la resolutividad para sus Narrativas personales.

INTRODUÇÃO na busca por atenção à saúde tem nos


Este artigo é decorrente de estudos sobre possibilitado uma noção ampliada das
o uso de metodologias qualitativas em pesquisa trajetórias por ele empreendidas sendo as
por nós realizada * e nas produções de mestrado mesmas compreendidas como guias de
vinculadas à mesma abordando a história do percursos e produção de sentidos.
adoecimento e busca por cuidado. A discussão Ao buscarmos na literatura estudos que
daí oriunda, nos motivou a relatar a experiência tratem da avaliação de serviços de saúde
da utilização da Historia de Vida Focal na percebemos que as pesquisas que lhes dão
pesquisa em enfermagem junto a usuários do sustentação usualmente utilizam metodologias
Sistema Único de Saúde (SUS) que vivenciam o que pouco conseguem apreender do impacto da
processo de adoecimento e a busca de cuidado experiência de adoecimento e da busca do
nos serviços de saúde. Destacamos as cuidado pelo usuário trazendo, na maioria das
repercussões que esse processo tem no vezes, a percepção dos gestores ou dos
cotidiano do usuário e de sua família e as trabalhadores desses serviços. No esforço por
dificuldades e limitações encontradas nessa apreender a lógica do usuário como um olhar
busca por resolução para as suas necessidades privilegiado para compreender a organização
de saúde. dos serviços e oferta de cuidados à saúde,
Com base na apreensão dessa vivência e buscamos uma estratégia metodológica que
dos sentidos dados à busca por resolutividade fosse a mais propícia para revelar o movimento
para as suas necessidades de saúde, pudemos das pessoas dentro de seu espaço cotidiano e, a
desenhar uma parte do que denominamos de partir dele, o movimento empreendido na busca
Itinerário Terapêutico. Os Itinerários por resolução para seus problemas de saúde.
Terapêuticos, nessa perspectiva, são por nós A História de Vida Focal (HVF) nos pareceu
considerados como os percursos empreendidos a abordagem metodológica que oferecia essa
por usuários e famílias na busca por resolver possibilidade de compreensão profunda do
suas necessidades de saúde e, nesta busca, o vivido, pois permite a descoberta, a exploração
modo como traçam estes percursos segundo e a avaliação de como as pessoas
uma lógica própria, tecida nas múltiplas redes compreendem seu passado, vinculam sua
formais e informais, de apoio e de pertença experiência individual a seu contexto social,
dentre outras, que possam lhes dar certa interpretam-na e lhes dão significado. Portanto,
sustentabilidade na experiência de é uma importante forma de pesquisar, o sentido
(1)
adoecimento . A análise da lógica do usuário da experiência humana(2-3). É na compreensão
do sentido da vivência do adoecimento e da
*
“Os Desafios e Perspectivas do SUS na Atenção à Saúde
busca por cuidado que focamos um dos
em Municípios da Área de Abrangência da BR 163 no Estado objetivos do nosso estudo, tendo na HVF a
de Mato Grosso”. Pesquisa financiada pelo CNPq sob o nº escolha metodológica para nos possibilitar tal
402866/2005-3 – Ed 342005-BR163 2aEt/Edital
MCT/CNPq/MS-SCTIE-DECIT 34/2005 – Área de influência compreensão junto as pessoas que vivenciaram
da BR 163 e desenvolvida pelo Instituto de Saúde tal processo.
Coletiva/UFMT e Grupos de Pesquisa GPESC e GEPLUS da
FAEN/UFMT.

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Pela própria característica dessa HISTÓRIA DE VIDA FOCAL E A ENTREVISTA


abordagem a sua operacionalização só poderia EM PROFUNDIDADE: ALGUMAS
se dar através de uma estratégia que permitisse CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-
uma relação de proximidade entre o METODOLÓGICAS
pesquisador e o sujeito da pesquisa, como é o A História de Vida deriva da História Oral,
caso da entrevista que, necessariamente, vem e esta última pode ser considerada tão antiga
acompanhada da observação que lhe dá quanto a própria história humana. No entanto,
suporte(2). Foi, então, nossa opção empregar a ela pode ser datada como uma metodologia
entrevista em profundidade e a observação em moderna a partir de 1947, quando Allan Nevins,
nosso estudo, caminhando em sentido a uma da Universidade de Columbia em Nova York
interação com graus de aprofundamento oficializa o termo empregando-o em seus
paulatino junto à pessoa entrevistada. trabalhos. Essa metodologia tem sido
Assim, este texto tem por objetivo relatar amplamente utilizada pela História e pela
a experiência de um grupo de pesquisadoras na Historiografia na reconstituição de eventos
utilização da HVF como abordagem passados por pessoas que podem oferecer
metodológica privilegiada para a compreensão versões próprias dos fatos por elas vivenciados.
da vivência do adoecimento e da busca por Nesse sentido, a História Oral é uma alternativa
cuidado empreendida por usuários em serviços à história oficial consagrada por expressar
de saúde do SUS em Mato Grosso. Destacamos, interpretações feitas, quase sempre, com o
ainda, as potencialidades da HVF na pesquisa auxílio exclusivo da documentação escrita e
em saúde e enfermagem e na prática avaliativa cartorial(4).
de serviços de saúde, bem como alguns Além de nos possibilitar o uso do conceito
cuidados na sua utilização. de personagem histórico, a História Oral aborda
Os livros de metodologia de pesquisa de a questão do cotidiano, ou seja, a história dos
abordagem qualitativa na área da saúde cidadãos comuns, procurando conhecer a rotina
apresentam, usualmente, a finalidade e os usos explicada na lógica da vida coletiva. Nesse
de diversas estratégias metodológicas em sentido, ela é sempre a história do tempo
pesquisa e mostram os instrumentos destas presente(4).
estratégias, mas não trazem consigo as A utilização da História Oral na pesquisa
experiências e as dificuldades na forma como tem assumido, na maioria das vezes, a
são vivenciadas pelos pesquisadores. Assim, denominação de história de vida, com caráter
temos como propósito apresentar nossas mais tópico ou completo, de acordo com o
experiências em pesquisa com o uso das objetivo de seu emprego. Na área da pesquisa
estratégias e instrumentos idealizados para em saúde a História de Vida tem sido
compreender a vivência do adoecimento dos trabalhada de maneira restrita a um evento ou
usuários e o caminho empreendido por estes no época da vida, razão pela qual História de Vida
SUS em busca de resolutividade para os seus Focal é uma de suas denominações, termo que
problemas de saúde. Trazemos aqui as adotamos, por ser pertinente ao nosso
discussões empreendidas no grupo de trabalho propósito, qual seja de enfocar, através das
da pesquisa já citada quanto aos aspectos narrativas, a experiência de adoecimento e de
teóricos e práticos do percurso metodológico busca por cuidado às necessidades de saúde.
empreendido, compartilhando as experiências A entrevista em profundidade, que põe em
de mestrandas, bolsistas de iniciação científica e movimento a HVF, se apresenta a nós como um
pesquisadoras. encontro com a alteridade radical do outro. Tal
alteridade nos obriga a reconhecer que é uma
realidade estranha a nós, que tem sua própria
identidade, obrigando-nos a um
descentramento de nossas próprias histórias,
indo, de maneira intencional, à compreensão
empática daquele que está diante de nós(5).

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A partir dessa perspectiva de ir ao A HISTÓRIA DE VIDA FOCAL COMO


encontro do outro na sua vivência a ser POSSIBILIDADE DE APREENSÃO DA
narrada, é necessário considerar que há uma VIVÊNCIA DO USUÁRIO: RELATO DE UMA
caixa preta da memória que precisa ser ativada, EXPERIÊNCIA
pois há coisas que sabemos, embora A HVF compõe um dos recursos
esquecidas. Portanto, há necessidade que, metodológicos utilizados na pesquisa que trata
neste encontro, haja a motivação para que essa do atendimento aos princípios da integralidade
memória aflore. É desse diálogo longo e e da resolutividade na atenção à saúde no
empático com o ator que a sua memória contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) na
emerge, quer dizer, ela não está inteiramente área de abrangência da BR-163 em Mato
pronta, mas pode ser ativada. Essa experiência Grosso. Entendemos que o estudo da
de busca pela memória pode ser chamada de resolutividade dos problemas de saúde da
arqueologia da experiência(6). população pressupõe operar, num mesmo
Nesta arqueologia que o pesquisador momento, duas lógicas que se inter-relacionam,
empreende junto ao entrevistado é necessário se interpõem e se tensionam: a lógica dos
considerar que “na maior parte das vezes, serviços de saúde em torno da organização da
lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, atenção e a lógica dos usuários que buscam os
repensar, com imagens e idéias de hoje, as serviços de saúde a partir de um recorte de
experiências do passado. A memória não é suas necessidades.
sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar É sob as perspectivas privilegiadas destas
da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e duas lógicas que esta pesquisa se propôs a
que se daria no inconsciente de cada sujeito. A analisar o princípio da Integralidade da atenção
lembrança é uma imagem construída pelos em saúde, na forma como este tem se efetivado
materiais que estão, agora, à nossa disposição, na rede de serviços de saúde, em seus diversos
no conjunto de representações que povoam níveis de complexidade.
nossa consciência atual. Por mais nítida que nos Seguindo a lógica do usuário, este projeto
pareça a lembrança de um fato antigo, ela não teve como objetivo compreender como os
é a mesma imagem que experimentamos na usuários do SUS redesenham a
infância, porque nós não somos os mesmos de configuração/hierarquia entre os serviços de
então e porque nossa percepção alterou-se e, saúde ao buscarem a integralidade e a
com ela, nossas idéias, nossos juízos de resolutividade para seus problemas de saúde.
realidade e de valor. O simples fato de lembrar Nossos objetivos específicos foram de indagar
o passado, no presente, exclui a identidade sobre o trajeto percorrido pela pessoa na busca
entre as imagens de um e de outro, e propõe a por atendimento à sua necessidade de saúde,
sua diferença em termos de ponto de vista”(7). desde o aparecimento da doença de base até
A rememoração, portanto, não se traduz sua internação no Hospital de referência
em um dado imediato à percepção, mas terciária em Cuiabá; compreender qual a lógica
representa um ato cognitivo de uma pessoa empregada pelo usuário na busca pelos serviços
situada em uma posição distanciada das de saúde e rede de apoio tendo por referência a
situações que foram vividas e que são, no integralidade da atenção à saúde; e realizar o
momento, narradas. Assim, se instaura na mapeamento dos serviços de saúde e rede de
narrativa uma atribuição de sentido atual a uma apoio procurados nesse trajeto empreendido
vivência anterior que comporta, dentre outras pelo usuário.
possibilidades, uma análise daquilo que A HVF foi o recurso metodológico utilizado
constituiu uma experiência e, nessa análise, para a apreensão da lógica do usuário, pois é
pesquisador e entrevistado constroem uma ele quem detém a história de seu processo de
interpretação daquilo que é dado como real(8). adoecimento e de busca por assistência junto
aos serviços de saúde. E nesta busca desenha
uma trajetória própria que obedece mais a
lógica da resolutividade dos seus problemas do

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que da configuração/hierarquia e/ou relação entre pesquisador e usuário que se


regionalização do sistema de saúde. Assim, o dispõe a compartilhar sua experiência.
usuário foi valorizado como fonte de informação Tendo por base a questão norteadora, as
e, a partir da lógica que tece ao viver o indagações subseqüentes foram realizadas de
adoecimento, vislumbramos aspectos relevantes maneira a aprofundar e explorar a experiência
a serem considerados na avaliação do cuidado do adoecimento e de busca por cuidado, tendo
prestado. como ponto de ancoragem o relato fornecido
Nesse sentido, a HVF nos permitiu a pelo usuário. Embora haja a recomendação de
apreensão da realidade das práticas de saúde roteiros para as questões a serem respondidas
efetivadas nos serviços do SUS. Este novo olhar pelo entrevistado(2), em nossa pesquisa
foi apreendido a partir da subjetividade do constatamos que estes roteiros foram
usuário em condição crônica, utilizando como dispensáveis, à medida do estreitamento da
recurso central as narrativas da experiência de relação e do aprofundamento da narrativa em
adoecimento e de busca de cuidado a saúde. torno do vivido(9). A entrevista direcionada por
Na aplicação desta abordagem utilizamos roteiros, dentre suas limitações, restringia a
a entrevista em profundidade onde o usuário expressão livre, a escuta atenta e a
“[...] é convidado a falar livremente sobre um possibilidade de se tecer relações no encontro
tema e as perguntas do investigador, quando com o usuário.
são feitas, buscam dar profundidade às Contudo, utilizamos alguns roteiros por
reflexões [...]”(2). fornecerem certo suporte inicial à insegurança
Na condução da entrevista em vivida por algumas pesquisadoras no início da
profundidade, a relação com o outro foi um dos relação com o usuário; mas, tais roteiros,
elementos essenciais com o qual nos precisaram ser flexibilizados, possibilitando que
deparamos, exigindo esforços reflexivos e de durante a entrevista surgissem novos dados e
condução para que conseguíssemos uma dimensões narrativas que não foram pensadas.
interação tal que possibilitasse emergir e Eles também se mostraram úteis na fase de
explorar o universo do usuário. pré-categorização e análise dos dados, pois
Este recurso pressupõe o estabelecimento anteciparam elementos analíticos relevantes.
de um relacionamento aberto e informal. Assim Mais que o roteiro, é a condução da
sendo, ao realizarmos a entrevista foi entrevista que fornece os elementos essenciais
importante termos claro quais seriam os para o aprofundamento da narrativa. Assim, o
objetivos do estudo, estarmos abertos e atentos usuário foi convidado a falar sobre sua
às dificuldades inerentes a fase de aplicação e experiência de forma livre e, a partir do
execução do método e, especialmente, estabelecimento do vínculo, deu-se o
reconhecermos a importância da relação usuário aprofundamento dos temas, daquilo que ele
e pesquisador na sua aplicação e condução, nomeou como importante e significativo na sua
mantendo uma disposição para compreender a experiência. Neste contexto, a escuta atenta é
experiência do outro. essencial(10).
É importante salientar que a entrevista em Realizamos vários encontros com o
profundidade é do tipo aberto, onde o mesmo usuário possibilitando este
pesquisador poderá formular a questão aprofundamento a partir de questões lançadas
norteadora para o início da aproximação do pelo próprio relato da experiência vivida. As
universo do entrevistado(2). Na pesquisa esta perguntas foram conduzidas de forma a levá-lo
questão foi formulada nos seguintes termos: a rememorar essa experiência, expressar
Conte-me como se deu a busca por sentidos e emoções ancoradas pela sua
atendimento ao seu problema de saúde desde o imaginação e por aquilo que ele se dispôs a
seu aparecimento até a sua internação neste compartilhar com o pesquisador.
serviço de saúde. A partir desse momento A memória traz a temporalidade e
inicia-se um movimento de construção de uma contextualidade das relações, ou seja, é
cultural, social e historicamente construída,

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perpetuando os modos de vida e de relações contar o tempo. À primeira vista, a narrativa do


estabelecidas entre os seres humanos(7). É usuário nos parece confusa na sua
subjetivamente tecida e, nesta perspectiva, a configuração, mas deve estar claro para nós
utilizamos, pois percebemos que a lembrança que se constitui um trabalho apenas do
de cada entrevistado trouxe sentidos e pesquisador o posterior ‘ordenamento’ temporal
significados próprios de seu adoecimento. Na do relato.
rememoração, o entrevistado ao lançar mão de Esta aparente confusão do relato advém
suas experiências significativas, se reconstrói do fato de que a lembrança esquecida ou
como pessoa. adormecida tem detalhes periféricos, ou
A rememoração, ao recuperar aspectos do situações que servem como ancoragens da
passado que se faz presente, o que vivemos e realidade vivida, as quais possibilitam ao
que se realiza e é percebido na esfera subjetiva, usuário a rememoração de determinados
pode ganhar dimensão social na medida em que eventos a partir de outros que lhe dão
possa ser narrado obtendo, assim, testemunhas sustentação ou se constituem em guias de
e reafirmando que viver algo significativo gera a referência e de sentidos. Ainda, a projeção
necessidade de ser partilhado com outras dessas lembranças no presente, através da
pessoas(7). rememoração, foi possível à medida que essas
Rememorar a experiência do adoecimento foram acionadas pelas indagações elaboradas
não se mostrou algo fácil para o usuário, pois pelo pesquisador na busca por aprofundamento
relembrar as dificuldades impostas pela vida e da entrevista.
pela cronicidade da sua doença fez, em diversas Percepção do outro, vivacidade e presença
ocasiões, com que o mesmo tomasse de espírito são elementos imprescindíveis ao
consciência das repercussões que o pesquisador na condução desta metodologia;
adoecimento e a busca por cuidado imprimiram desta forma, elaboramos uma combinação de
no seu corpo, na sua vida, na sua família e nos estratégias que pudessem dar conta de uma
rearranjos no cotidiano que as dificuldades e conversa com finalidade e da observação,
limitações promoveram. A narrativa dessa através das quais o entrevistador pudesse estar
vivência também produz efeitos no pesquisador, atento às reações não verbais, ao contexto, às
dado o vínculo e a empatia estabelecida, o que sensações e sentimentos que compõem, na
faz com que o pesquisador se perceba narrativa e na relação, a história de vida do
comprometido com a situação de saúde e de usuário.
vida do usuário, e não mero ouvinte da Nossas entrevistas foram todas gravadas,
narrativa de sua experiência. Não há, desta utilizando-se um gravador de voz manual,
forma, a neutralidade e impessoalidade na sendo transcrita posteriormente pelo próprio
condução desta abordagem metodológica, pois pesquisador. Utilizamos, também, um
pesquisador e pesquisado estão mutuamente instrumento de registro nomeado diário de
implicados. campo, composto por um campo descritivo das
O recurso da memória traz, também, a observações realizadas durante o encontro com
necessidade de compreendermos a o usuário, um campo descritivo das percepções
temporalidade inscrita na historia de vida, pois e vivencias pessoais do pesquisador e um
é sempre o tempo presente, ainda que nem campo para a transcrição da própria entrevista.
sempre expresso em palavras, que serve de É importante salientar que esse diário de
ponto de ancoragem e de partida para a campo foi preenchido depois de cada entrevista
rememoração(11). Voltar no tempo é um realizada, recuperando a memória recente do
exercício que necessita de um constante ir e próprio pesquisador. A transcrição das
voltar, pois cada lembrança ancora-se a um entrevistas foi feita na íntegra e complementada
momento presente. A estrutura cronológica do por apontamentos de situações que
relato se baseia muito mais na significação aconteceram durante a realização e que possam
subjetivamente tecida pelo usuário, do que na dar sentido às narrativas.
cronologia oficial na qual nos baseamos para

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O diário de campo possibilitou trazer durante a entrevista. Esta familiaridade é


elementos que são dificilmente apreendidos possível através de um contato prévio.
apenas através das narrativas do usuário, Outra questão ainda pouco considerada é
muitos dos quais são melhor expressos através o retorno da entrevista para o usuário após a
da linguagem não verbal, auxiliando o sua transcrição. Trata-se de importante como
pesquisador na composição da história narrada procedimento ético e respeitoso, assim como
pelo usuário e na compreensão do contexto no uma forma de validação dos dados da pesquisa.
qual o mesmo está inserido(11). Assim,
dimensões familiares, sociais, culturais, dentre CONSIDERAÇÕES FINAIS
outras, puderam ser apreendidas, ampliando o A HVF e a Entrevista em Profundidade que
contexto em que a experiência do adoecimento a operacionaliza têm nos revelado suas
e da busca de cuidado se insere. possibilidades de utilização na prática avaliativa
Privilegiamos, no contexto da observação do cuidado em saúde a partir da apreensão do
e da narrativa, a fala em suas pequenas impacto que a experiência de adoecimento e de
nuances, uma vez que expressam, além do busca por cuidado tem para o usuário e sua
sentido explícito das palavras, também as família. As narrativas dessa vivência nos
emoções através das pausas, dos silêncios, dos apontam, também, elementos para apreender
risos, do choro. A própria entonação da voz se as práticas de cuidado e de gestão que estão
mostrou reveladora, dando um ‘tom’ para cada sendo efetivadas no cotidiano dos serviços de
entrevista, permitindo compor o modo como saúde e de que formas estes conseguem
cada usuário se posiciona frente aos atender aos princípios da integralidade e da
acontecimentos em sua vida. resolutividade na atenção à saúde.
Este nosso entendimento nos levou a uma A HVF tem nos possibilitado também a
escuta atenta até mesmo no momento da composição dos Itinerários Terapêuticos
transcrição de nossas entrevistas gravadas, pois empreendidos pelo usuário na busca pela
a narrativa, na forma como é oferecida pelo resolutividade para as suas necessidades de
entrevistado, com sua linguagem própria, saúde, sendo por nós compreendidos como
pronúncia e modos de expressão, compõem os ‘guias de percursos e produção de sentidos’,
pequenos detalhes que enriquecem o corpus de visto trazerem não apenas a trajetória
análise, demonstrando outras possibilidades de empreendida na busca pelos serviços de saúde,
compreensão da fala e seu sentido(11). mas também a lógica que direcionou essa
Reforçamos, então, que, por mais que busca.
estivéssemos gravando a conversa, houve a Esta abordagem metodológica em
necessidade de sermos hábeis em perceber os pesquisa em saúde e em enfermagem permite
sentimentos expressos nas narrativas e em toda outra possibilidade de avaliar as práticas de
a gestualidade do usuário. saúde a partir da perspectiva do usuário
Algumas questões de ordem técnica foram tornando possível avaliá-las segundo a
também consideradas e discutidas, dentre as percepção daquele que vivencia o adoecimento
quais o uso do equipamento de gravação. e a busca de cuidados. Desta forma, possibilita
Pudemos vivenciar a importância da trazer dimensões que não são consideradas nos
familiaridade com o manuseio do gravador de processos avaliativos baseados em indicadores
voz por parte do pesquisador, evitando erros de de saúde de cunho quantitativo e/ou centrados
gravação e perdas na entrevista. Assim, a nos gestores e profissionais da saúde.
escolha do local para a entrevista também deve Consideramos, então, que tal metodologia traz
ser considerada para a qualidade da gravação, nova perspectiva na avaliação do cuidado, a
dentre outras razões(12). partir daquele que o recebe.
Percebemos também a necessidade da Destacamos a importância de outras
familiaridade do usuário com o equipamento perspectivas teóricas e metodológicas para além
para que se sinta mais confiante e confortável da perspectiva clínica na pesquisa em
enfermagem e na avaliação de práticas de

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cuidado e dos serviços em saúde visto serem 8. Santos ACA. Fontes orais: testemunhos,
elas, nos caminhos diferenciados que trajetórias de vida e de história [Internet] [cited
percorrem, complementares. Se a pesquisa 2007 abr 07]. Available from:
clínica e as avaliações de práticas pautadas em http://www.pr.gov.br/arquivopublico/pdf/palest
dados epidemiológicos elucidam aspectos ra_fontes_orais.pdf
necessários à saúde humana, as perspectivas 9. Souza ER, Minayo MCS, Deslandes SF, Veiga,
de cunho qualitativo podem mostrar o que está JPC. Construção dos instrumentos qualitativos e
guardado no íntimo de cada ser e, quantitativos. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza
particularmente, frente a sua experiência de ER, organizador. Avaliação por triangulação de
adoecimento. Permitem, assim, um saber e métodos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 133-
uma compreensão que não estão evidentes, 156.
mas essencialmente ligados aos fenômenos do 10. Spindola T, Santos RS. Trabalhando com a
viver humano. história de vida: percalços de uma
Pelas potencialidades que a abordagem pesquisa(dora?). Revista da Escola de
metodológica da HVF nos aponta, consideramos Enfermagem da USP. 2003; 37(2):119-26.
importante destacar neste relato a nossa 11. SANTOS, FSD. Histórias de vida e história
experiência com a utilização da mesma, da cultura. História, Ciências, Saúde—
destacando os cuidados na sua utilização, de Manguinhos 1998;5(1):85-98.
maneira que possa ser também empregada por 12. Gonçalves RC, Lisboa TK. Sobre o método
outros pesquisadores, ampliando tais da história oral em sua modalidade trajetórias
potencialidades. de vida. Revista Katálysis. 2007;10(spe):83-92.

REFERÊNCIAS
1. Araújo LFS, Bellato R, Souza SPS, Maruyama Artigo recebido em 05.09.07
SAT. A entrevista desenhando itinerários Aprovado para publicação em 30.09.08
terapêuticos em saúde em pesquisa sobre
integralidade. Anais do 14º Seminário Nacional
de Pesquisa em Enfermagem; 2007 mai 30-01;
Florianópolis/SC, Brasil; 2007.
2. Minayo MCS. O desafio do conhecimento.
Pesquisa qualitativa em saúde. Rio de Janeiro
(RJ): Hucitec; 2006.
3. Reinaldo MAS, Saeki T, Reinaldo TBS. O uso
da história oral na pesquisa em enfermagem
psiquiátrica: revisão bibliográfica. Revista
Eletrônica de Enfermagem [Internet]. 2003;
5(2):65-70. Available from:
http://www.fen.ufg.br/revista/revista5_2/pdf/hi
storia.pdf
4. Meihy JCSB. Manual de História Oral. São
Paulo: Loyola; 1996.
5. Carvalho AS. Metodologia da entrevista: uma
abordagem fenomenológica. Rio de Janeiro
(RJ): Agir; 1987.
6. Gomes AC. História oral e história de vida:
temas e abordagens. 3º Encontro de História e
Saúde: Cadernos de História e Saúde; 1992;
Rio de Janeiro, Brasil. p. 179-82.
7. Bosi E. Memória e sociedade: lembranças de
velhos. São Paulo: Cia das Letras; 1994.

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