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Introdução
Pensar e revisitar a obra de Paulo Freire é, por si só, um desafio investigativo. Desafio,
porque o leitor é provocado a lê-la na condição de sujeito, de voz ativa, crítica, e não
apenas passivamente repetidor dos símbolos e signos que estão no texto. Naturalmente,
o mesmo desafio pode – e deve – ser encarado ao lermos qualquer autor. Mas tratando-
se de Freire encontramos uma inquietação a mais, deliberadamente expressa, no modo
como trabalha os temas e destaques que confere às questões que lhe parecem centrais.
Trata-se do desafio de pensar, e de rever-se pensando no curso das proposições e
compreensões a que se chega durante percurso da leitura. Diz Freire:
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Faculdade de Educação/Universidade Estadual de Campinas; Doutorando em Educação;
brunobcosta2010@gmail.com
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O texto freiriano é permeado de contexto, assim como o são sua prática e pensamento.
Neste sentido, o exame de suas ideias e proposições no campo da educação requer
adentrar os processos históricos em voga ao momento em que essas ideias e proposições
foram feitas. Seu trabalho com educador tem início precisamente quando no Brasil estão
ocorrendo uma série de transformações na estrutura da sociedade e que têm
repercussões decisivas para o cenário cultural, intelectual, artístico e político. E todas
essas repercussões informam, de certa maneira, as discussões e experiências pelos quais
passará a educação até o golpe militar de 1964.
Que repercussões são essas? Ao final de década de 1950, o Brasil estava em meio e já
alguma coisa adiantado no processo de industrialização iniciado anos atrás, no Estado
Novo. Acabava de sair de Segunda Guerra Mundial, período em que fortaleceu-se o
Estado brasileiro como resposta à conjuntura de reconfiguração das forças sociais que
resultou das transformações estruturais trazidas pela industrialização, criando novas
forças políticas, de cunho urbano-industriais (burguesas), ocupando seus postos e
imprimindo-lhe nova ideologia, uma ideologia do desenvolvimento (BEISIEGEL,
1984). As transformações na estrutura econômica foram acompanhadas de uma
contrapartida ideológica gestada para defender um modelo de Estado que nascia do
definhamento de modelo anterior, agrário-exportador e ideologicamente afeito às
oligarquias tradicionais. Contudo, a nova ideologia do desenvolvimento também tornou-
se, de certo modo, alvo de disputa. Ao encampar o debate intelectual e cultural para um
novo Brasil, os intelectuais simpáticos à causa da construção de uma nova sociedade
brasileira no decurso das mudanças em andamento, encontraram, ao debruçar sobre seus
problemas, uma conjuntura social de insatisfação e mobilização que fez da questão do
desenvolvimento um eixo orientador de câmbios institucionais, cuja efetivamente
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A este respeito ver “Ideologia e desenvolvimento nacional”, de Álvaro Vieira Pinto (1956).
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KADT, 2003; FAVERO, 2006). Assim, foram criados o Livro de Leitura para Adultos
do MCP, a “cartilha” Viver é Lutar do MEB, entre outros.
Dentre as discussões encampadas por tais movimentos estava a da conscientização,
como papel preponderante da cultura popular, enquanto recurso pictórico, mediático, e,
sobretudo, histórico e politizador. Embora sua origem terminológica remeta a
formulações dos intelectuais isebianos Álvaro Vieira Pinto e Alberto Guerreiro Ramos
(VIEIRA PINTO, 1956; GUERREIRO RAMOS, 1958), na transição entre as décadas
de 1950 e 1960 no Brasil a conscientização já se encontrava entre os conceitos
paradigmáticos dos movimentos sociais. Favero coloca que, na linha do que propôs o 1º
Encontro Nacional de Coordenadores do MEB, a associação feita pelo movimento entre
cultura popular e conscientização objetivava criar uma “pedagogia da revolução”
(FAVERO, 2006, p. 99). O mesmo traz em seus estudos uma citação do Pe. Henrique
de Lima Vaz, eminente líder na Juventude Universitária Católica que formou muitos
dos dirigentes e militantes do MEB, para quem:
O trabalho do educador pernambucano Paulo Freire abrange uma série de temáticas que
envolvem a dimensão humana. (TORRES, 1981). Sua perspectiva pedagógica não se
volta exclusivamente ao manejo das ferramentas didáticas, nem se localiza entre as
teorias que discutem a educação unicamente desde princípios universais norteadores,
mas circunscreve entre as leituras de realidades sociais vistas como campo de mediação
de relações pedagógicas, em que a dimensão educativa é criada na comunicação entre
sujeitos a respeito de sua experimentação e socialização no/com o mundo. Neste
sentido, concordamos com o filósofo Ernani Maria Fiori, quando ele afirma que Paulo
Freire “fez da pedagogia uma antropologia” (FIORI, In: TORRES, 1981, p. 12). A obra
freiriana não se restringe a apenas uma dimensão específica do conhecimento e sua
aquisição formal, mas à variedade de dimensões que esse conhecimento e a aquisição
dele envolvem. Por esta razão, optamos por escrever este trabalho no eixo Educação e
Cultura, por entender, juntamente com outros especialistas em Paulo Freire e seu
legado, que a cultura compõe o cenário discursivo político e educativo central da
proposta conscientizadora, em que a construção da pedagogia libertadora em Freire se
desdobra com maior profundidade. É no terreno da cultura que Freire constrói sua
concepção de homem e das relações entre ele e o mundo, lançando mão de uma
conceituação dialética da mediação pedagógica entre as consciências, e fomentando, a
cada intervenção requerida pela prática, a recomposição da conscientização nos termos
que na prática se fazem presentes, por intermédio dos “temas geradores” impregnados
de “situações existenciais”.
Educação e atualidade brasileira (2003), a primeira obra de Freire, foi escrita em 1958,
quando ainda não havia se voltado dedicado especificamente à educação de adultos,
mas, já engendra uma perspectiva política e pedagógica alternativa à educação
tradicional e forma coro com a mobilização de intelectuais propositores de reformas
educacionais, Anísio Teixeira. Ao mesmo tempo em que testemunha sua experiência
como educador no SESI, Freire ilustra um pensamento crítico do contexto social
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brasileiro, politicamente impelido a lidar com sua dependência econômica, questão que
só haveria de solucionar com a inserção participativa das camadas populares nas esferas
de decisão sobre o destino do país. Neste sentido, Freire propõe um pacto de construção
cidadã da sociedade, uma aliança entre as instituições políticas brasileiras e os cidadãos
majoritariamente excluídos de tais espaços, algo que apenas através da experiência, e
não com receitas prontas, o povo brasileiro pode adquirir:
Os grifos que pontuamos na citação do texto freiriano são para destacar a égide do
projeto pedagógico social a que ele se opõe. São muitos os aspectos do estranhamento
em relação à experiência que ao longo dessa obra Freire comenta e situa na constituição
histórica do povo brasileiro. Desses aspectos, o assistencialismo e sua prática no
contexto social merece atenção:
Neste sentido, Freire via na educação um papel central e revolucionário, cujo momento
histórico oferecia uma oportunidade ímpar, com as mudanças sociais em curso que
diretamente afetavam a educação, com mobilização do pelo direito de estudar que as
próprias campanhas alfabetizadoras encampavam e que punha em questão as
dissintonias e conflitos de visão de mundo entre as elites, tradicionais gestores do
expediente educativo, e a população que reivindicava acesso à educação. Freire ressalta
aí a fundamental importância da participação popular elaboração do projeto educacional
do país. Preocupado com os perigos trazidos com a industrialização – ainda que
reconheça a contribuições desse processo – Freire alerta contra a visão técnica
especializante produzida nessa forma de organização do trabalho, e seus perigos para a
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Consideramos lícito dizer que a preocupação de Freire com que a educação naquele
momento não legitimasse ou reforçasse a alienação proporcionada pela nova
organização do trabalho que era introduzida tenha sido motivo de sua aproximação com
os movimentos de cultura popular, que também faziam a crítica ao sistema econômica
vigente, por vezes claramente contrapondo-se ao capitalismo (SCOCUGLIA, 2001),
outras vezes endereçando seus efeitos e reivindicando a humanização da sociedade,
como ele próprio o fez (FREIRE, 2003, p. 42-43).
A crítica política anunciada por Freire em sua primeira obra é acentuada em Educação
como prática de liberdade (1975), onde o aspecto pedagógico dessa crítica se alia à
experimentação didática e metodológica dos seus trabalhos de alfabetização. Assim, é
importante destacar a conceituação que Freire faz do homem como “ser de relações e
não só de contatos, [que] não apenas está no mundo, mas com o mundo” (FREIRE,
1975, p. 39), e que, na mediação de intencionalidade com a natureza realizada pela
ação, recria o mundo como terreno da cultura, em que as mudanças provocadas sobre a
natureza ganham significado e realizam a humanidade do homem. Cientes disso
podemos entender a escolha que Freire faz por trabalhar com a alfabetização em um
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Diz Freire: “De acordo com as teses centrais que vimos desenvolvendo, pareceu-nos
fundamental fazermoa algumas superações, na experiência que iniciávamos. Assim, em lugar de
escola, que nos parece um conceito, entre nós, demasiado carregado de passividade, em face de
nossa própria formação (mesmo quando se lhe dá o atributo de ativa), contradizendo a dinâmica
fase de transição, lançando o Círculo de Cultura. Em lugar de professor, com tradições
fortemente doadoras, o Coordenador de Debates. Em lugar da aula discursiva, o diálogo. Em
lugar de aluno, com tradições passivas, o participante de grupo. Em lugar dos „pontos‟ e de
programas alienados, programação compacta, „reduzida‟ e „codificada‟ em unidades de
aprendizado.” (1975, p. 103).
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Conclusões
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