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Paulo Freire entre os Movimentos de Cultura Popular: projetos e propostas


coletivas de uma educação libertadora

Bruno Botelho Costa1

RESUMO: O presente trabalho visa apresentar as semelhanças em termos de contexto


histórico e conceituação teórica compartilhadas pelos movimentos de cultura popular e
o trabalho inicial de Paulo Freire na transição da década de 1950 para a de 1960.
Começamos por traçar o panorama social, econômico e político desse momento
histórico. Em seguida, nos voltamos a fontes textuais e documentais desses movimentos
sociais, em que o cerne de suas propostas pedagógicas, a conscientização através do
trabalho de cultura popular, mais nitidamente se faz evidente. Passamos, então, a cotejar
obras do começo do trabalho intelectual e prático de Freire, a fim de demonstrar como
suas preocupações estavam, grosso modo, em sintonia com as questões assinaladas
pelos movimentos e com as interpretações e posições que destinavam a essas questões.
Por fim, concluímos que as discussões de cultura popular e a importância que nelas
adquiriu a proposta de conscientização nesses movimentos sociais tiveram forte
influência sobre o pensamento de Paulo Freire e seu projeto educacional libertador,
extrapolando os limites usuais da pedagogia.
Palavras-chave: Paulo Freire, movimentos de cultura popular, conscientização.

Introdução

Pensar e revisitar a obra de Paulo Freire é, por si só, um desafio investigativo. Desafio,
porque o leitor é provocado a lê-la na condição de sujeito, de voz ativa, crítica, e não
apenas passivamente repetidor dos símbolos e signos que estão no texto. Naturalmente,
o mesmo desafio pode – e deve – ser encarado ao lermos qualquer autor. Mas tratando-
se de Freire encontramos uma inquietação a mais, deliberadamente expressa, no modo
como trabalha os temas e destaques que confere às questões que lhe parecem centrais.
Trata-se do desafio de pensar, e de rever-se pensando no curso das proposições e
compreensões a que se chega durante percurso da leitura. Diz Freire:

1
Faculdade de Educação/Universidade Estadual de Campinas; Doutorando em Educação;
brunobcosta2010@gmail.com
2

“Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem,


estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento histórico-
sociológico do conhecimento. É buscar as relações entre o
conteúdo em estudo e outras dimensões afins do conhecimento.
É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outras
dimensões afins do conhecimento. Estudar é uma forma de
reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de
objeto. Desta maneira, não é possível a quem estudo, numa tal
perspectiva, alienar-se ao texto, renunciando assim à sua atitude
crítica em face dele.” (FREIRE, p. 10, 1977)

O texto freiriano é permeado de contexto, assim como o são sua prática e pensamento.
Neste sentido, o exame de suas ideias e proposições no campo da educação requer
adentrar os processos históricos em voga ao momento em que essas ideias e proposições
foram feitas. Seu trabalho com educador tem início precisamente quando no Brasil estão
ocorrendo uma série de transformações na estrutura da sociedade e que têm
repercussões decisivas para o cenário cultural, intelectual, artístico e político. E todas
essas repercussões informam, de certa maneira, as discussões e experiências pelos quais
passará a educação até o golpe militar de 1964.
Que repercussões são essas? Ao final de década de 1950, o Brasil estava em meio e já
alguma coisa adiantado no processo de industrialização iniciado anos atrás, no Estado
Novo. Acabava de sair de Segunda Guerra Mundial, período em que fortaleceu-se o
Estado brasileiro como resposta à conjuntura de reconfiguração das forças sociais que
resultou das transformações estruturais trazidas pela industrialização, criando novas
forças políticas, de cunho urbano-industriais (burguesas), ocupando seus postos e
imprimindo-lhe nova ideologia, uma ideologia do desenvolvimento (BEISIEGEL,
1984). As transformações na estrutura econômica foram acompanhadas de uma
contrapartida ideológica gestada para defender um modelo de Estado que nascia do
definhamento de modelo anterior, agrário-exportador e ideologicamente afeito às
oligarquias tradicionais. Contudo, a nova ideologia do desenvolvimento também tornou-
se, de certo modo, alvo de disputa. Ao encampar o debate intelectual e cultural para um
novo Brasil, os intelectuais simpáticos à causa da construção de uma nova sociedade
brasileira no decurso das mudanças em andamento, encontraram, ao debruçar sobre seus
problemas, uma conjuntura social de insatisfação e mobilização que fez da questão do
desenvolvimento um eixo orientador de câmbios institucionais, cuja efetivamente
3

precisaria da atuação conjunta entre supra-estrutura e base social, entre os de cima e os


de baixo2.
A tônica conferida à questão da formação ideológica das massas, trabalhada pelos
intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), incorporou-se,
particularmente no Nordeste, ao repertório dos setores progressistas da sociedade,
compostos em grande medida por intelectuais, estudantes, professores e artistas, onde
ela pode ser reapropriada de acordo com as questões levantadas por eles em sua
militância social. Ou seja, a discussão de cunho ideológico desceu da supra-estrutura
das instituições canônicas do Estado e transformou-se em arma para a formação
política. Não obstante, tivesse esta formação uma caracterização muito própria dos
objetivos que esses setores pautavam e das estratégias pelas quais optaram para
concretizá-los.
Esta mobilização, na verdade, traça suas origens às lutas sociais que marcaram as
décadas anteriores. Particularmente na Educação, a hegemonia era disputada
centralmente entre católicos e proponentes do escolanovismo. Podemos citar como
exemplos dessas disputas, entre os católicos, a criação do Centro Dom Vital em 1928,
por Jackson de Figueiredo e sucedido na sua gestão por Alceu de Amoroso Lima, órgão
que pulverizou a fundação das Associações de Professores Católicos (APC) que viriam
a formar a Ação Católica Brasileira de Educação. E entre os escolanovistas a articulação
de professores que culminaria no Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova de 1932
(SAVIANI, 2008).
Esta disputa pesou para o nascimento dos movimentos de cultura popular
(ASSUMPÇÃO, BRANDÃO, 2006; BRANDÃO, 1985). Dentre eles, o MEB mais
nitidamente apresentava a herança católica, tendo sido criado por parceria entre a Igreja
e o governo federal (FAVERO, 2006). Mas como esta herança era muito influenciada
pelo pensamento político-filosófico da Ação Católica e seus militantes leigos, a linha
ideológica que gradualmente tomou conta do movimento fora esta, apesar dos conflitos
e derradeira mudança de rumo (DE KADT, 2003). Outros movimentos identificados
com o trabalho de cultura popular também contaram com a militância católica de
esquerda em suas fileiras, cuja atuação foi igualmente decisiva na trabalho político
desempenhado pelo movimento e na construção de suas discussões e proposições
pedagógicas (FAVERO, 2006; SCOCUGLIA, 2001).

2
A este respeito ver “Ideologia e desenvolvimento nacional”, de Álvaro Vieira Pinto (1956).
4

Cultura popular e conscientização nos movimentos de cultura popular

Embora tivessem diferenças em algumas especificidades, as discussões sobre cultura


popular elaboradas pelos movimentos tinham em comum tomá-la como tema central e
conceituá-la como um elo entre o homem simples e dimensão política da realidade
social. Ou seja, concebiam a cultura popular como a realização, prática e ideal, de um
projeto político, que parte da transformação provocada pelo homem no seu meio
entendo-a como cultura, de que historicamente lhe foi negado o direito a conhecer,
interpretar e modificar, tanto a cultura das elites, quanto a sua cultura, costumeiramente
depreciada em comparação à cultura do opressor. Em síntese, como disse Ferreira
Gullar, entendia-se a "cultura popular é em suma a tomada de consciência da realidade
brasileira" (FERREIRA GULLAR, In: FAVERO, 1983, p. 51).
O conceito de cultura popular representou, para esses movimentos, um elemento chave
na identificação das desigualdades sociais. Como vemos em documento do MCP:

“A consciência do problema do desnível cultural nas sociedades


implica, necessariamente, a consciência do desnível de ordem
social, econômica e política, implicando, por isso mesmo, uma
tomada de posição na superação desses desníveis Cultura
popular surge, portanto, como problema ideológico e assume
uma posição de luta pela transformação dos padrões culturais,
sociais, econômicos e políticos que asseguram aqueles
desníveis” (MCP. In: FAVERO, 1983, p.77-78).

Esta concepção de luta cultura, social e política motivou os militantes nesses


movimentos a construírem estratégias de formação e ação, donde as iniciativas de
educação de adultos se tornaram mais e mais o campo de maior atuação, dada a
importância que a questão a alfabetização vinha tomando tanto nos setores populares
quanto nas políticas de Estado. A maioria dos movimentos optou por construir seu
próprio material didático, em que os temas que consideravam de maior relevância e os
conceitos caros à sua perspectiva política pudessem orientar o trabalho educativo. Neste
aspecto, é mister reconhecer uma de suas preocupações centrais era que os alunos
participassem ativamente da elaboração do material, levantando temáticas e questões de
seu interesse ou relacionados a sua realidade social, auxiliados pelos educadores (DE
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KADT, 2003; FAVERO, 2006). Assim, foram criados o Livro de Leitura para Adultos
do MCP, a “cartilha” Viver é Lutar do MEB, entre outros.
Dentre as discussões encampadas por tais movimentos estava a da conscientização,
como papel preponderante da cultura popular, enquanto recurso pictórico, mediático, e,
sobretudo, histórico e politizador. Embora sua origem terminológica remeta a
formulações dos intelectuais isebianos Álvaro Vieira Pinto e Alberto Guerreiro Ramos
(VIEIRA PINTO, 1956; GUERREIRO RAMOS, 1958), na transição entre as décadas
de 1950 e 1960 no Brasil a conscientização já se encontrava entre os conceitos
paradigmáticos dos movimentos sociais. Favero coloca que, na linha do que propôs o 1º
Encontro Nacional de Coordenadores do MEB, a associação feita pelo movimento entre
cultura popular e conscientização objetivava criar uma “pedagogia da revolução”
(FAVERO, 2006, p. 99). O mesmo traz em seus estudos uma citação do Pe. Henrique
de Lima Vaz, eminente líder na Juventude Universitária Católica que formou muitos
dos dirigentes e militantes do MEB, para quem:

“[O] problema da „conscientização‟ se colocou, inicialmente,


num terreno pedagógico, e apareceu intimamente ligado com o
conceito de „educação de base‟ [formulada pelo MEB]. (...)
[U]ma „educação de base‟, que ponha em questão a situação
global da comunidade, seus estilos de vida, sua atitude diante
dos desafios que se lhe oferecem, em uma palavra, sua
„consciência‟” (VAZ apud FAVERO, 1983, p. 100).

Neste sentido, pode-se dizer que a conscientização nasceu e desenvolveu-se entre os


movimentos de cultura popular como uma proposta de formação educativa coletiva com
ênfase nas apropriações das pessoas envolvidas – enquanto sujeitos concretos – sobre os
problemas constitutivos de sua realidade social. Identificando estas apropriações, fazia-
se possível problematizá-las a fim de o grupo conseguisse coletivamente chegar às
causas históricas desses problemas e elaborar soluções que envolvessem os mesmos.
Assim, forjavam parâmetros de uma nova consciência social, voltada a problematizar e
desvendar os problemas da sociedade à luz das leituras e interpretações que esses
mesmos sujeitos fazem, circulando saberes que se repõem criticamente a necessidade de
revisão e atualização. A atribuição prática desta dinâmica fundamentou-se justamente
nessa apropriação de natureza coletiva, uma vez que as ações levadas adiante pelos
grupos que realizam o trabalho educativo passam, inevitavelmente, a ser resultado das
discussões feitas e das reflexões que puderam ser desenvolvidas, de modo que
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entendimento alcançado constitui-se como constructo cultural e herança histórica das


pessoas envolvidas, numa memória que, a despeito das mudanças, permanece viva.
Neste sentido, tais construções exprimem uma amplitude ao mesmo tempo concreta e
universalizadora dessas experiências específicas, capaz de elucidar com as populações
marginalizadas a potencialidade emancipadora inerente às leituras que podem fazer das
representações culturais quando elas percebem nelas seu o caráter político e as
transformam em ilustrações de reivindicações sociais; modo que, em si, já se constitui
numa forma de engajamento para mudar as estruturas e os contextos a partir de seus
problemas. Quanto mais essa potencialidade ia se transformando em ação, mais essas
pessoas tinham esperança de expandir seus campo de atuação e abalar as relações de
dependência em que historicamente o povo estava inserido no Brasil, como assinalavam
os documentos políticos orientadores dos movimentos de cultura popular (MCP, MEB,
CPC DA UNE, CAMPANHA DE PÉ NO CHÃO TAMBÉM SE APRENDE A LER,
In: FAVERO, 1983), expressando claramente o quanto nesses movimentos se acreditou
que grandes transformações sociais haveriam de vir dessa mobilização e da proposta
pedagógica radical que ela continha.
Estes movimentos foram, particularmente no Nordeste, os principais responsáveis por
encabeçar as campanhas massivas de alfabetização. E a ênfase que davam na formação
política possivelmente é uma das razões de seu trabalho ter se tornado um divisor de
águas na história da Educação de Adultos, lançou os alicerces do que posteriormente
veio a chamar-se Educação Popular (FAVERO, 2006). Em que pese a contribuição
decisiva de Freire nesse processo, é mister reconhecer que a mesma deu-se em meio a
um profundo contexto de debate político dos rumos da sociedade brasileira,
impulsionado pelas transformações econômicas e sociais em curso, e no qual esses
movimentos estiveram intensamente atuantes. Entre os mais conhecidos, está o
Movimento de Cultura Popular, organização com a qual Freire primeiramente
estabeleceu parceria através do Serviço de Extensão Cultural, da Universidade do
Recife. Também contando com ampla atuação no Brasil, o Movimento de Educação de
Base compartilhou da mobilização em torno do trabalho de cultura popular, assim como
o Ceplar, da Paraíba, e a Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler. Não é
possível afirmar que sejam esses movimentos os únicos a abordar a cultura popular com
finalidade educativa e politizadora. No entanto, constituem todos os quatro exemplos
que contribuíram para que, no Nordeste brasileiro, essa experiência de conscientização
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tomasse corpo e provocasse mudanças tanto no curso políticos dos acontecimentos


conjunturais, como nas vidas de pessoas que testemunharam a transformação que aquela
experiência de participação popular lhes propiciou.

Paulo Freire e sua aproximação com os movimentos

O trabalho do educador pernambucano Paulo Freire abrange uma série de temáticas que
envolvem a dimensão humana. (TORRES, 1981). Sua perspectiva pedagógica não se
volta exclusivamente ao manejo das ferramentas didáticas, nem se localiza entre as
teorias que discutem a educação unicamente desde princípios universais norteadores,
mas circunscreve entre as leituras de realidades sociais vistas como campo de mediação
de relações pedagógicas, em que a dimensão educativa é criada na comunicação entre
sujeitos a respeito de sua experimentação e socialização no/com o mundo. Neste
sentido, concordamos com o filósofo Ernani Maria Fiori, quando ele afirma que Paulo
Freire “fez da pedagogia uma antropologia” (FIORI, In: TORRES, 1981, p. 12). A obra
freiriana não se restringe a apenas uma dimensão específica do conhecimento e sua
aquisição formal, mas à variedade de dimensões que esse conhecimento e a aquisição
dele envolvem. Por esta razão, optamos por escrever este trabalho no eixo Educação e
Cultura, por entender, juntamente com outros especialistas em Paulo Freire e seu
legado, que a cultura compõe o cenário discursivo político e educativo central da
proposta conscientizadora, em que a construção da pedagogia libertadora em Freire se
desdobra com maior profundidade. É no terreno da cultura que Freire constrói sua
concepção de homem e das relações entre ele e o mundo, lançando mão de uma
conceituação dialética da mediação pedagógica entre as consciências, e fomentando, a
cada intervenção requerida pela prática, a recomposição da conscientização nos termos
que na prática se fazem presentes, por intermédio dos “temas geradores” impregnados
de “situações existenciais”.
Educação e atualidade brasileira (2003), a primeira obra de Freire, foi escrita em 1958,
quando ainda não havia se voltado dedicado especificamente à educação de adultos,
mas, já engendra uma perspectiva política e pedagógica alternativa à educação
tradicional e forma coro com a mobilização de intelectuais propositores de reformas
educacionais, Anísio Teixeira. Ao mesmo tempo em que testemunha sua experiência
como educador no SESI, Freire ilustra um pensamento crítico do contexto social
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brasileiro, politicamente impelido a lidar com sua dependência econômica, questão que
só haveria de solucionar com a inserção participativa das camadas populares nas esferas
de decisão sobre o destino do país. Neste sentido, Freire propõe um pacto de construção
cidadã da sociedade, uma aliança entre as instituições políticas brasileiras e os cidadãos
majoritariamente excluídos de tais espaços, algo que apenas através da experiência, e
não com receitas prontas, o povo brasileiro pode adquirir:

“Se há um saber que só se incorporou ao homem


experimentalmente, existencialmente, este é o saber
democrático. Saber que pretendemos, às vezes, os brasileiros, na
insistência de nosso gosto intelectualista, transferir ao povo,
nocionalmente” (FREIRE, 2003, p. 15, grifos meus).

Os grifos que pontuamos na citação do texto freiriano são para destacar a égide do
projeto pedagógico social a que ele se opõe. São muitos os aspectos do estranhamento
em relação à experiência que ao longo dessa obra Freire comenta e situa na constituição
histórica do povo brasileiro. Desses aspectos, o assistencialismo e sua prática no
contexto social merece atenção:

“Cada vez mais compreendemos menos a hipertrofias dessas


instituições assistencialistas, perigosamente alongadas em
assistencialistas, levando-as a resolver os problemas de seus
clientes (...), quando resolvem, sem sua colaboração. (...)
Instituições envolvidas num doloroso paradoxo – o de
„assistencializarem‟ seus clientes, esperando que fiquem de
maior para que então, e só então, sejam eles lançados em
experiências democráticas” (idem, p. 19).

Neste sentido, Freire via na educação um papel central e revolucionário, cujo momento
histórico oferecia uma oportunidade ímpar, com as mudanças sociais em curso que
diretamente afetavam a educação, com mobilização do pelo direito de estudar que as
próprias campanhas alfabetizadoras encampavam e que punha em questão as
dissintonias e conflitos de visão de mundo entre as elites, tradicionais gestores do
expediente educativo, e a população que reivindicava acesso à educação. Freire ressalta
aí a fundamental importância da participação popular elaboração do projeto educacional
do país. Preocupado com os perigos trazidos com a industrialização – ainda que
reconheça a contribuições desse processo – Freire alerta contra a visão técnica
especializante produzida nessa forma de organização do trabalho, e seus perigos para a
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educação, que enxerga os problemas pedagógicos como resolvíveis a partir de aplicação


de soluções tópicas, imediatas, sem articulação com o todo, com as questões sociais a
eles diretamente relacionadas.

“Ao exigir dele comportamento mecanizado pela repetição de


um mesmo ato, com que realiza uma parte apenas da totalidade
da obra, de que se desvincula, „domestica-o‟. Não existe atitude
crítica total diante de sua produção. Desumaniza-o. Corta-lhe os
horizontes com estreiteza da especialização exagerada. Faz dele
um ser passivo. Medroso. „Ingênuo‟. Diante da sua grande
contradição: a ampliação das esferas de participação do nosso
homem, para que marchemos, provocada pela industrialização e
o perigo de esta ampliação sofrer distorção com a limitação da
criticidade, pelo especialismo exagerado da produção em série.”
(idem, p. 42).

Consideramos lícito dizer que a preocupação de Freire com que a educação naquele
momento não legitimasse ou reforçasse a alienação proporcionada pela nova
organização do trabalho que era introduzida tenha sido motivo de sua aproximação com
os movimentos de cultura popular, que também faziam a crítica ao sistema econômica
vigente, por vezes claramente contrapondo-se ao capitalismo (SCOCUGLIA, 2001),
outras vezes endereçando seus efeitos e reivindicando a humanização da sociedade,
como ele próprio o fez (FREIRE, 2003, p. 42-43).

A alfabetização como prática pedagógica conscientizadora – diálogos entre Freire


e os movimentos

A crítica política anunciada por Freire em sua primeira obra é acentuada em Educação
como prática de liberdade (1975), onde o aspecto pedagógico dessa crítica se alia à
experimentação didática e metodológica dos seus trabalhos de alfabetização. Assim, é
importante destacar a conceituação que Freire faz do homem como “ser de relações e
não só de contatos, [que] não apenas está no mundo, mas com o mundo” (FREIRE,
1975, p. 39), e que, na mediação de intencionalidade com a natureza realizada pela
ação, recria o mundo como terreno da cultura, em que as mudanças provocadas sobre a
natureza ganham significado e realizam a humanidade do homem. Cientes disso
podemos entender a escolha que Freire faz por trabalhar com a alfabetização em um
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contexto distinto daquele das estruturas tradicionais da escola3, privilegiando trabalhar a


partir da palavra dos próprios educandos, seja para a discussão dos temas geradores,
seja na escolha dos vocábulos de base de leitura. A partir de sua palavra, de cuja
dimensão cultural os educandos gradualmente iam-se tornando conscientes, a
prospecções de mudanças desejadas podiam assumir forma concreta, como projetos nos
quais ele se esforçavam por realizar. Trabalhando essa compreensão nos círculos de
cultura, a experiência pedagógica primava pelo fundamental: se as soluções de prontos
não aconteciam, o mais importante é que a apatia que até então naturalizara as relações
dessas pessoas com sua realidade lugar a uma criticidade em construção e motivada
pelas identidades coletivas de quem conhece vivencialmente os dilemas do povo
brasileiro. A prática esforçava-se por concretizar os conceitos de base.
Contudo, como vemos defendendo ao longo desse artigo, a entrada de Freire e seu
trânsito pelo campo da cultura não se deu só e faz-se necessário reconhecer um conjunto
riquíssimo de colaboradores – muitos ainda pouco conhecidos - que não foram somente
parceiros de trabalhos, mas percursores de muitas das discussões que o levaram a
partejar suas próprias ilustrações conceituais. Jarbas Maciel, colega de Freire no Serviço
de Extensão Cultural da Universidade do Recife, elaborou um trabalho intitulado
Fundamentação teórica do Sistema Paulo Freire de Educação (In: FAVERO, 1983), no
qual esmiúça cuidadosamente os elementos centrais de debate da equipe junto no
Movimento de Cultura Popular de Recife ao formarem, como o nome do trabalho diz, a
base teórica da proposta pedagógica com que vinham trabalhando. É mister reconhecer,
também, que os cursos fornecidos pela equipe do SEC a movimentos como o Ceplar em
João Pessoa, formavam educadores na linha gerais do programa, mas deixavam a esses
a tarefa de adaptar os recursos conceituais à realidade de sua atuação (SCOCUGLIA,
2001). Assim, os preceitos filosóficos centrais, de problematização política da realidade
social, de sua dinâmica contraditória, permaneciam, mas sem deixar de constituir um
esforço por manter aberto o canal com a população que participava dos programas

3
Diz Freire: “De acordo com as teses centrais que vimos desenvolvendo, pareceu-nos
fundamental fazermoa algumas superações, na experiência que iniciávamos. Assim, em lugar de
escola, que nos parece um conceito, entre nós, demasiado carregado de passividade, em face de
nossa própria formação (mesmo quando se lhe dá o atributo de ativa), contradizendo a dinâmica
fase de transição, lançando o Círculo de Cultura. Em lugar de professor, com tradições
fortemente doadoras, o Coordenador de Debates. Em lugar da aula discursiva, o diálogo. Em
lugar de aluno, com tradições passivas, o participante de grupo. Em lugar dos „pontos‟ e de
programas alienados, programação compacta, „reduzida‟ e „codificada‟ em unidades de
aprendizado.” (1975, p. 103).
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educacionais, na buscar por envolver o povo na criação de um projeto pedagógico e


cultural legitimamente popular.

Conclusões

O foco do nosso trabalho foi essencialmente o de trazer a público fontes e excertos


documentais dos movimentos de cultura popular e, contrastando com o texto freiriano
de obras que foram escritas ou fazem referência ao período histórico comum a ambos,
mostrar que discussões e concepções em torno da conscientização e do papel que tem a
cultura para o ser humano no seu processo de libertação a que se reportou Freire foram
também, e muitas vezes, alvo de debates e considerações muito elaboradas por
movimentos sociais como o MCP, MEB e outros que cabem dentro da designação de
“movimentos de cultura popular”. O mesmo constitui parte das investigações que temos
feito ao longo da realização de nossa pesquisa doutoral, ainda em curso. Acreditamos
que tais reflexões auxiliem-nos a compreender o papel determinante que tiveram esses
movimentos sociais para a proposição de uma educação crítica e libertadora no Brasil,
cujos frutos, tanto conceituais como práticos, se espalharam – muito graças a Paulo
Freire – pelo mundo. Neste sentido, cabe reconhecer a importância deles para o
pensamento e trabalho de Freire, como igualmente deve-se destacar, talvez hoje mais do
que sempre, a importância que teve esse pensador e educador pernambucano e brasileiro
para o legado da Educação, como testemunho, entre tantas coisas, do seu vínculo
inequívoco à construção do ser humano, a que está inseparavelmente ligada a
construção do saber e da sociedade que queremos e defendemos.

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