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Abas

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Liliane Prata

Uma bebida e um amor


sem gelo, por favor

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Capa

Sinopse

Marina não se acerta com namorados. Eles sempre acabam fugindo, sem dar
explicações. O máximo que conseguiu foi um namoro de três meses com
Gustavo, colega da agência de propaganda onde ela trabalha, e quando já
estava pensando no vestido de noiva, pegou o “noivo” em flagrante com a nova
estagiária. Foi uma decepção e tanto. Como se não bastasse, Juliana, com
quem ela divide o apartamento onde mora, está de casamento marcado, e só
fala nisso e, ainda por cima, Marina tem de fazer um anúncio para o dia dos
namorados. Aos 24 anos, apesar de ser linda e maravilhosa, Marina está
totalmente encalhada. Excluída da campanha de celular, da qual ela tanto
queria participar, precisa fazer um anúncio para uma agência de encontros que
tem um site a internet. Seu chefe sugere que ela entre em um chat , para
conhecer mais sobre namoros virtuais . Assim, ela acaba conhecendo Rafa,
que faz arquitetura. No começo ela resiste, mas acaba se apaixonando por ele.
Quando finalmente se encontram, Marina tem uma grande surpresa, que a
obriga a rever todos os seus conceitos e preconceitos. Ao ler esta história, que
relata o cotidiano de uma jovem de classe média – seus sonhos, suas dúvidas,
e seus problemas – escrita no estilo leve e divertido que já consagrou a jovem
autora, não podemos deixar de pensar que o que importa, acima de tudo, é
viver um grande e intenso amor.

Sobre a autora

Liliane Prata tem 24 anos e trabalha como jornalista, escritora e roteirista. A


autora já publicou 4 romances, e também adaptou O Diário de Débora para os
palcos cariocas. Há três anos, Liliane é colunista da revista Capricho, da
Editora Abril – sua coluna “Quase nada” é uma das preferidas das leitoras.
Conheça mais sobre a autora e o livro acessando www.lilianeprata.com.br e
www.liliprata.blog.uol.com.br.

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Pego uma xícara de café com leite e me sento de frente para o computador.
É mais um daqueles domingos em que o céu nublado parece olhar para mim e
dizer, sorrindo: “Que patético, você não tem ninguém para dividir seu café com
leite e assistir a um filme previsível na TV!”.
Olho para a bebida e me arrependo de não ter comprado o maldito leite
desnatado. Eu tento, mas não consigo beber aquela coisa rala e sem gosto.
Toda vez que entro em um supermercado é sempre a mesma coisa: olho para
a caixa do leite desnatado, ela olha para mim, eu finjo que não a vi olhando e
pego a do leite integral que, por sinal, é muito mais chamativa e colorida. Como
publicitária, teoricamente deveria entender por que eles fazem a embalagem
dos produtos light bem mais sem sal e sem graça, mas não entendo. Não tem
vacas nessas embalagens, só contorno de vacas.
E ainda usam cores como azul-claro e verde-água, as mesmas cores da
lasanha light e do requeijão sem gordura. Eu não tenho vontade de comer nada
que venha dentro de uma embalagem azul-clara com verde-água – todas as
embalagens dessas cores que tenho em casa são de absorvente ou de xampu
para cabelos sem volume.
Não que eu esteja gorda. Se divido meu peso pela minha altura ao
quadrado o resultado sempre balança entre 21 e 22, o que é “normal”, segundo
a tabela que veio dentro de uma caixa de cereal junto com um boneco de
plástico. (Inteligente, isso. A tabela para a mamãe e o boneco para o pentelho,
embora eu não tenha filhos e tenha ficado brava porque os cinco centímetros
de altura do boneco ocuparam o espaço de cinco centímetros de cereal, fora à
largura, que não calculei. Não sou engenheira.) O problema são as velhas
sobrinhas, dobrinhas, camada adiposa, etc. Claro que tento mudar o quadro
deprimente com ginástica, mas tomo leite integral, cereal – com achocolatado e
chocolate granulado, eu falei? – presunto, etc., e a gordura continua lá. É
ridículo. Eu comecei a malhar para emagrecer de forma saudável, mas tudo o
que estou conseguindo é passar a tarde pesquisando condições de pagamento
de uma lipoaspiração.
Também não vou dizer que sou uma bruxa horrorosa. Mas minha
autoestima não me deixa em paz desde que o X fez aquilo comigo. Acho que
estou melhor, apesar de ainda não conseguir falar o nome dele, mas vou dizer
uma coisa: se não fosse o X, que fez a coisa Y com a Z (certo, isso está
virando uma equação matemática), eu não estaria com uma xícara de café com
leite – integral! – em frente ao computador (estaria com uma xícara de café
com leite – integral! – em frente à televisão, mas enfim).
Chega de incógnitas, chega de letras malucas, vamos aos fatos como eles
são: tristes, avassaladores e cruéis. X é Gustavo, que trabalha comigo na
agência de publicidade Os Criativos (eu sei, é um nome previsível, que não
denota criatividade nenhuma, mas o que mais se pode esperar de uma agência
cujo dono escolhe o nome porque teve um sonho em que o Sol e Saturno se
encontraram e sussurraram “Os Criativos deve ser o nome”?). Bem, eu odeio o
Gustavo. Odeio. Mas antes eu o adorava. Adorava. Na verdade, acho que
posso dizer que o amava, apesar de termos ficado só dois meses juntos (como

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é deprimente saber que o relacionamento mais longo da minha vida durou dois
meses). Eu o adorava mais que tudo, mais que o mundo, por que ele foi fazer
isso comigo, aquele filho da puta!!! Certo, eu já superei isso, embora não
pareça. Vamos aos fatos.
Eu estava desesperada. Todas as minhas amigas ou já tinham se casado,
ou estavam namorando o mesmo cara há milênios, muitas vezes morando
junto, e eu não tinha nada. Estava sozinha, desamparada, solitária, sem
perspectivas. Enfim, eu estava exatamente do jeito que estou agora. Quer
dizer, eu ficava cada fim de semana com um cara diferente, e minha cama era
um verdadeiro parque de diversões – mas eu queria mais, eu queria um amor.
É muito isso, querer um amor? Ainda mais para alguém que daqui a poucos
anos vai fazer 30 anos? Ok, faltam seis anos para eu fazer 30 anos, mas o
tempo passa voando. Já pensou? No meu currículo de balzaquiana não vou ter
um único relacionamento longo?
Acontece que todos os homens com quem eu ficava sumiam. Desapareciam
mesmo. Eu só conseguia pensar em como eu seria feliz se conseguisse um
cara bem legal para formar, comigo, um casal de propaganda de margarina.
Mas tudo o que eu encontrava eram homens legais, divertidos e bonitos, mas
que desapareciam sem mais nem menos depois de dois ou três encontros. Isso
me deixava louca: por que não aparecer aqui em casa para dizer que acabou,
ou pelo menos dar um telefonema, mandar um e-mail, um sinal de fumaça,
deixar recado com a vizinha? A expectativa acabava comigo: eu achava que o
relacionamento estava ficando sério, comentava toda animada com as amigas
que o que eu tinha já podia ser chamado de namoro, e pronto – lá se ia mais
um para a minha lista de “desaparecidos, se tiver notícia, avise-me”. Até que
conheci o Gustavo.
Dois meses. Dois meses foi o que durou meu namoro com ele, um
verdadeiro recorde na minha vida amorosa. Fiquei igual a qualquer pessoa que
não está acostumada a namorar por muito tempo: depois de duas semanas,
tinha certeza de que tinha encontrado o homem da minha vida; quando
completamos um mês, já pensava em me casar; com um mês e meio, sabia
que ficaríamos juntos para sempre e, com dois meses, que seria Mariana, se
fosse menina, e Vítor, se fosse menino. A história poderia até ter sido assim
mesmo se, no final de dois meses, eu não o tivesse encontrado agarrando a
estagiária da agência.
Gustavo tinha e infelizmente ainda tem um cargo acima do meu, para piorar.
Mas não é meu chefe (ainda bem!). Fazia poucos meses que ele tinha entrado
na agência e, desde o começo, eu tinha ficado bem interessada por ele. Para
começar, ele é muito bonito. Daquele tipo que tem uma cara de mau, super
charmoso. E ainda malhava. Nossa, eu tenho uma fissura por homem que
malha. Além de eles terem um corpo no mínimo razoável e não apresentarem
barriga de cerveja (argh!), eles entendem sua necessidade diária de contar as
calorias (apesar de eles poderem comer muito mais do que você e não
engordar nada, o que é bastante irritante).
Outra vantagem do Gustavo é que eu já o conhecia, então, quando saímos,
não tivemos que desperdiçar nosso tempo com o que casais que estão
se conhecendo sempre conversam – “qual é o seu tipo de música preferido?”,
“o que você faz da vida?”, etc. É engraçado, conhecer alguém parece
entrevista de emprego, só que os dois fazem perguntas e os dois respondem.

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No final, se rolar, rolou. Como já nos conhecíamos há alguns meses, passamos
a noite conversando sobre assuntos mais profundos e acabamos indo para a...
cama.
Não, eu não acho que ir para a cama com um homem no primeiro encontro
seja a maneira mais eficaz de conquistá-lo, casar e ser feliz para sempre.
Geralmente eu consigo me segurar até a terceira vez que saio com o cara. Mas
eu estava carente (para variar) e tinha a impressão de que conhecia Gustavo
há mais tempo do que uma noite (e conhecia, mesmo). Acabamos indo para
um motel e tivemos uma noite perfeita. Nem sei dizer quantos orgasmos tive
com aquele cachorro. Aliás, esse é um ponto comum entre os homens-
cachorro: eles são bons de cama. Incrível. Ele tinha pegada, ele sabia as
posições do Kama Sutra de cor e é melhor nem mencionar sua habilidade para
fazer outras coisas com a boca que não são beijar.
No outro dia, eu cheguei ao trabalho com a síndrome do pós-primeiro-
encontro-com-o-cara-do-trabalho-com-quem-você-ficou, caracterizada pelas
dúvidas: como ele vai me tratar no trabalho? Como se eu fosse uma simples
colega? Ou ele vai me dar flores e desfilar comigo de mãos dadas pelo
corredor da agência?
No fim das contas, ele foi super-receptivo e simpático, o que me deixou
absurdamente feliz. E com um bônus extra: tecnicamente, ele não poderia
sumir, já que trabalhava comigo e o que não faltaria seriam oportunidades para
tirar satisfação. Quer motivo maior para ficar feliz?
Bem, ele me traiu com a estagiária e eu não tirei satisfação. Não tive coragem.
Fiquei ali, parada, vendo os dois se agarrando e tendo certeza de uma verdade
absoluta: que outra característica comum a esse tipo de homem é ficar com
uma mulher mais bonita e geralmente mais nova que você. Por que eles fazem
isso? Já basta ficar triste e deprimida pela traição, mas não: ainda querem que
a gente fique comparando nossos peitos e constatando que o cabelo dela
brilha mais do que o nosso.
Como me senti enganada! Estava naquela fase de paixão absoluta de
quando nós dormíamos juntos, escovar os dentes discretamente quando
acordava e voltar para a cama, certa de que ele pensaria que eu tinha
acordado com aquele hálito de hortelã! Eu tinha o vestido de casamento na
minha cabeça, estava plenamente informada sobre as flores de cada estação,
tudo!
Mas o pior foi, naquele estado, ter que dar de cara com ele todo dia no
trabalho. Nós não tínhamos contado para ninguém que estávamos juntos, mas
todo mundo sabia. Inclusive a Lu, colega na agência, que já tinha ficado com
ele e me garantiu que ele era homem de uma noite só (apesar de ela ter
passado duas noites com ele). Sugeriu que eu entrasse naquela só para me
divertir. Mas eu entrei querendo algo mais e tive que agüentar a humilhação de
ele não sumir como os demais caras com quem eu fico – em vez disso, me
traiu.
Passei meses acabada. Não podia nem ver um casal se beijando na rua
que começava a chorar. Mas o pior é que estava chegando o dia dos
namorados e eu tinha que fazer uma campanha enorme para a agência. Este é
o problema de ser uma publicitária com o coração quebrado em plena época
do dia dos namorados: além de VER outdoors, anúncios de revista e de jornal,
comerciais de TV, etc., etc., etc. com casais se beijando felizes e contentes, eu

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tinha que INVENTAR outdoors, anúncios de revista e jornal, comerciais de TV,
etc., etc., etc. com casais se beijando felizes e contentes.
Quase fui despedida. Naquele estado miserável, eu não tinha nenhuma
idéia de propaganda com casais a não ser algumas que envolviam facas e
coisas do tipo. Tentei argumentar com o diretor de criação, o Alexandre, falando
que alguém deprimida amorosamente não pode fazer propaganda para
namorados, mas ele disse que não menstrua e mesmo assim, aceita fazer
propaganda de absorvente (o problema de ser publicitária é esse. Seu chefe
sempre tem tiradinhas inteligentemente irritantes que deixam você sem
resposta).
Bom, mas um dia eu precisava sair daquela situação – se não fosse pela
minha auto-estima, que fosse pelo meu emprego, então, já que até cogitei
marcar entrevistas para mostrar meu portifólio, mas não soube de nenhuma
agência que não aceitasse fazer campanha de namorados. Então, decidi que já
era hora de me animar e ficar com outras pessoas. Enfim, hora de voltar a ser
o que eu era.
O problema era esse: igual ao que eu era. Eu não queria voltar à rotina de
ficar um dia com um, outro dia com outro. Eu tinha acabado de fazer 24 anos e
precisava de um relacionamento mais profundo de qualquer jeito! Nem que
fosse para ter alguém para sair com minhas amigas quando elas me
convidavam para uma noite de fondue. E eu queria, de preferência, um homem
não volátil, porque de relacionamentos que se evaporavam eu estava cheia (e
de relacionamentos com homens que me traíam com a estagiária também).
Então o que eu fiz? O que eu fiz? Nada, porque eu não fazia idéia de como
começar. Afinal, nunca tinha namorado a sério na vida e estava decidida a não
ficar com mais ninguém que eu conhecesse no trabalho ou em uma danceteria.
Acabei ouvindo a Juliana, que mora comigo e vive dizendo que eu precisava de
alguém (como se eu não soubesse). Conheci a Ju na faculdade: ela cursava
relações públicas e coincidiu de fazermos algumas matérias juntas. Mas é
como se fosse minha amiga de infância. Assim como eu, ela é de outra cidade
e se mudou para cá para fazer faculdade. A Ju namora há três anos o Bruno e
eles são super margarina juntos. Eles só não moram juntos porque ela faz
questão de se casar na igreja – apesar de o lado careta dela se resumir a isso,
já que ela perdeu a virgindade com 14 anos e antes de conhecer o Bruno tinha
transado com praticamente todos os caras da agenda do celular dela. Enfim:
ela agora vivia uma vida margarina e poderia ter algo a me ensinar. Mesmo
assim, toda vez que ela vinha com uma sugestão, eu mudava de assunto –
acho que não queria tocar no problema. É engraçado isso. Quando a gente tem
um problema, fica ainda mais irritada se as amigas aparecem querendo
arranjar soluções para os nossos problemas. Afinal, por que não deixar o
problema lá, quieto?
Ela me falou que a prima de uma amiga da concunhada dela tinha
conhecido o namorado pela internet – e sim, eles estavam muito felizes. Nós
estávamos em um café e eu respondi que tudo o que eu queria naquele
momento era decidir se pedia um cappuccino com creme, mais calórico, ou um
sem creme, menos calórico, porém menos gostoso.
– Nossa Marina. Nem para aceitar minha sugestão, pelo menos? O que custa
tentar? Só tentar, me fala? – ela perguntou.
– Grande sugestão a sua. Internet? Eu tenho o quê, 109 anos, por acaso?

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– Pois saiba que tem muita gente legal na internet! Mas, se você não quer, fica
aí, sozinha! Depois fica reclamando comigo: “Não tenho ninguém, vou morrer
sozinha, ai, ai”.
De tanto ela insistir, acabei falando que tudo bem, eu procuraria alguém na
internet. Apesar de, desde o começo, ter achado essa idéia ridícula, humilhante
e muito provavelmente ineficaz.
Bom, foi aí que eu vim parar aqui, na frente do computador, com minha
xícara de café com leite integral. E, sinceramente, não estou com a mínima
vontade de cumprir o combinado com a Ju, apesar de achar que vou cumprir
porque ela me prometeu 30 reais se eu tentasse. Em que nível eu estou,
comprometer minha vida sentimental por três notas de 10 reais.
Suspiro, tomo um gole da bebida, olho para a tela e acabo ligando o
computador. Que droga, já uso computador a semana inteira, no trabalho, e
ainda tenho que usar para procurar alguém. Tudo bem, não vou achar
ninguém, faturo meus 30 reais e pronto. Olho mais uma vez para a tela e
desisto. Quer saber? Eu não preciso disso. E posso ter meus 30 reais mesmo
assim, porque acabo de me lembrar que a Ju está me devendo, da última vez
que foi ao salão.
Desligo a máquina e vou para a televisão. Está passando a primeira
temporada da minha sitcom preferida, oba. Definitivamente, foi bom ter
desistido do computador.
Quando a Ju chega, vai logo me perguntando o que eu estou fazendo na
frente da TV em vez de estar teclando.
– Desisti, Ju. Mas você tem que me dar os 30 reais de qualquer jeito. Está me
devendo, lembra?
– Por que você desistiu, Mari? Meu Deus, você é tão cabeça-dura! – ela berra.
– Posso ser cabeça-dura, mas não vou descer a esse nível. Eu sou bonita,
jovem, por que vou conhecer alguém pelo computador?
– Ninguém disse que você é feia. Nem velha. Mas é que você vive reclamando
que está sozinha, e ainda não superou totalmente o caso do Gustavo...
– Superei, sim.
– Tá, superou. Mas o caso é que, se deu certo com a prima da amiga da minha
concunhada, por que não pode dar certo com você?
– Porque eu não vou tentar – eu respondo. – Não se preocupe comigo, eu
acabo encontrando alguém. Só ainda não sei como. Mas eu encontro.
Ela suspira e desiste (finalmente! Já basta ter perdido metade do meu
seriado). Acaba me chamando para almoçar fora e eu digo que topo, assim que
o programa acabar.

Chegamos a um restaurante japonês. Está fechado; também, já são 4 horas


da tarde. Resolvemos ir a um chinês. Comida oriental é estranha: a japonesa e
a chinesa não têm nada a ver, mas sempre que não dá para comer uma, eu
como a outra. Acho que é desejo inconsciente de comer alguma coisa da terra
de pessoas de olhos puxados.
Mal entramos no restaurante, vejo o Gustavo. A Ju se senta, e eu também
quero sentar, mas ele me pega para conversar. É impressionante como ele me
irrita.
– Oi, Marina. Como está bonita, hein?

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Idiota. Não perde uma oportunidade de falar como estou bonita. Eu gostaria
de saber que curso os homens-cachorros fazem para serem homens-
cachorros. Sim, porque são todos estranhamente parecidos. Jogam charme até
quando estão desentupindo uma pia do banheiro (não que eu já tenha
namorado por tempo suficiente para ver um cara nessa situação), sempre
falam que você é linda e adoram chamar você para sair de última hora. Mesmo
sabendo que todos são iguais, não paro de sair com caras assim.
Sinceramente, tem hora que questiono minha inteligência.
– E a campanha do celular, teve idéias? – ele pergunta.
– Por favor, Gustavo. Não vamos falar de trabalho em pleno domingo. – Boa,
Marina. Só para ele deixar de ser intrometido.
– Pois é, mas o Alexandre disse que quer novas idéias para amanhã
urgentemente, na reunião.
Conselhos. Esse tipo de homem ainda nutre uma paixão doentia por dar
conselhos. Essa vaga é melhor do que aquela, é melhor você fazer desse jeito,
você não deveria ter feito aquilo.
– Eu sei o que o Alexandre disse, eu estava na sala, lembra?
– Marina, posso perguntar uma coisa?
– Talvez.
– Você ainda tem raiva de mim por causa daquilo?
– Não sei do que você está falando – eu respondo.
– Sabe, sim.
– Se você está se referindo a eu ter raiva por ter pegado você e a Amanda se
agarrando na escada da agência enquanto eu tinha descido para comprar uma
Coca, eu não tenho mais raiva, não. Agora, se você está falando de não ter me
dado satisfação nenhuma depois, e de ter voltado a me tratar como uma colega
de trabalho, eu também não guardo nenhum rancor.
– Guarda, sim.
– E se eu guardar?
– Queria pedir desculpas. Eu não fiz por mal – ele diz, no velho estilo cãozinho
abandonado.
– Fez por bem, imagino.
– Não. Eu só... você sabe, não ia dar certo.
– Eu não sei de nada.
– Deixa para lá. Eu só queria que não ficasse mais esse clima entre a gente,
entende? Você nunca mais foi à mesma comigo. Eu tenho medo de que isso
acabe prejudicando nosso trabalho em equipe.
Medo de prejudicar nosso trabalho em equipe. Ele fica com a estagiária, me
deixa morta de vergonha dos comentários que rolaram na agência, e tudo o
que ele tem a me dizer é que tem medo de prejudicar nosso trabalho em
equipe. Sem contar que, de brinde, ainda me deixa preocupada com a
campanha do celular. Concordo com a cabeça, tento forçar um sorriso e me
despeço.
– Vamos, come um pouco. Este yakisoba está divino – diz a Ju, pouco depois
de termos nos sentado à mesa.
– Ju, a única vantagem de ficar deprimida e inconsolável é que eu perco a
fome e desincho um pouco. Me deixa curtir essa vantagem.
– Você não precisa desinchar nada. Está ótima. Quem me dera ter esse corpo
e esse cabelo.
Provo um pouco do rolinho primavera. Está uma delícia.

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– Esse Gustavo é um babaca – ela fala. – Esquece.
– O problema é esse. Babaca demais para esquecer.
– Meu Deus, Marina, já faz uns cinco meses.
– Amanhã. Amanhã faz cinco meses que a gente terminou.
– Isso não muda nada. Esquece.
– Fácil falar. Você namora há dois mil anos.
– Se você tivesse encontrado um carinha bem legal na internet, não estaria
assim.
– Ai, lá vem você. Põe na sua cabeça: eu não vou me prestar a esse papel
ridículo.
Terminamos de comer e saímos. No caminho, tento pensar em algumas
propagandas para celular, mas nada me vem à cabeça. Acho que Gustavo faz
de propósito: leva minha fome, mas em compensação, minhas idéias também.
Chego em casa e tomo um banho. É, meu corpo não está nada mal. Mas
bem que eu preferiria ter um corpo igual ao da Ju – que não é feio, mas bem
standard – e ser tão feliz amorosamente como ela. De qualquer forma, desisto
de tentar achar alguém na internet. Estou começando a achar que não vai dar
certo desse jeito nem de nenhum outro – é melhor eu tentar naturalmente. Um
dia, se eu não morrer antes, conheço alguém. Assim, sem forçar, sabe? Do
mesmo jeito que a Ju e o Bruno se conheceram. E do mesmo jeito que eu
conheci o Gustavo (e não deu certo).

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Acordo atrasada, como de costume, especialmente nas segundas-feiras.


Meu Deus, como odeio segunda-feira. Definitivamente, a semana deveria
começar na terça, mas aí as terças virariam segundas, e meu problema não
seria resolvido.
Depois de ativar três vezes a função soneca do meu celular e dormir 30
minutos a mais do que deveria, consigo me arrastar até a cozinha. Leite in-
tegral: não, hoje não. Goiaba: está verde. Mamão e torradas: uma boa idéia.
Sento-me à mesa e dou de cara com uma Juliana mais feliz do que... bem, do
que uma coisa bem feliz (de manhã, não sou muito boa em analogias).
— Você não imagina o que aconteceu, Mari!
— O quê, hein? - eu respondo, tentando demonstrar algum interesse. Afinal,
o que pode ter acontecido de tão fabuloso às 7 da manhã de uma segunda-
feira?
— Na verdade, ainda NAO aconteceu. Mas está por acontecer. Como eu
sou feliz!
— Ótimo. É manhã de uma segunda-feira e você entra na cozinha pulando
por causa de uma coisa que ainda não aconteceu. Eu queria ser assim.
Mordo a torrada e só agora noto que ela é integral. Pelo menos isso, acertei
na torrada. Aliás, por que torrada integral é certo na dieta e leite integral é
errado? Nunca entendi isso.
— O Bruno. O Bruno vai me pedir em casamento hoje.
—Sério? Como você sabe disso? — pergunto, sinceramente interessada.
— Ontem à noite, quando a gente se despediu, ele me olhou com uma cara
de "vou te fazer uma surpresa amanhã".
— A última vez que ele fez essa cara, chegou no outro dia com chocolate
você sabe disso.
— Não Marina, você não está entendendo. A gente tinha conversado há um
mês sobre casamento, lembra? Então. Um mês depois, ele me fala que vai me
fazer uma surpresa? O que isso significa?
— Eu ainda acho que pode ser chocolate.
Ela me olha emburrada e peço desculpas. Ela sabe que eu acordo mal-
humorada nas segundas-feiras. E, depois que aconteceu aquilo com o
Gustavo, acordar e lembrar que eu tenho que ver a cara dele não se tornou à
coisa mais divertida do mundo, seja na segunda, na terça, na quarta ou em
qualquer dia da semana.
— Desculpa, Ju. Eu realmente acho que pode ser casamento.
— Jura?
— Juro.
— E, se for mesmo, você sabe que você vai ser madrinha, não é? — ela
pergunta.
—Sei. Ju.
Excelente. Ser madrinha de casamento era mesmo meu grande objetivo de
vida.
— Eu ligo para a agência mais tarde, para contar para você, tá? - ela fala.
— Tá bom. Liga para... a agência. A agência! Meu Deus, a reunião!

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Saio correndo da mesa, visto a primeira roupa que encontro e deixo para
pentear o cabelo no carro. Chego no carro, vejo que o pente não está no porta-
luvas, subo, pego o pente, penteio o cabelo e desço correndo. O Alexandre
odeia atrasos, mas a sorte é que ele mesmo sempre se atrasa, logo, ainda
tenho alguma chance.
O trânsito está horrível, embora isso seja um pleonasmo na região onde
moro, e resolvo cortar caminho por um atalho que nunca tinha visto na vida, o
que me faz chegar mais ou menos 25 minutos mais atrasada do que eu já
chegaria. Eu tenho que parar com essa mania de cortar caminho. Ainda mais
quando não conheço o caminho.
Chego na porta da agência correndo, mas consigo dar um sorriso de leve se eu
tivesse um namorado, e ele estivesse comigo no carro, teria que ouvir meia
hora de implicância porque errei a droga do caminho. É um bom consolo para
quem não tem um namorado,
certo? Errado - fecho a cara, sentindo-me mais idiota do que nunca e pego o
elevador.
Vinte e dois andares. Por que a droga desse prédio tem que ter 22 anda-
res? Não poderia diminuir quando chego atrasada? A sorte é que o prédio tem
vários elevadores e por isso ele vai direto, sem parar muito nos andares, logo
vejo que estou enganada: naturalmente, no dia do meu atraso, o elevador pára
no primeiro andar (eu tenho vontade de enforcar esse sedentário que usa o
elevador para subir um andar), no sétimo (uma criança perdida em entra e ri
para mim. Eu também rio. Adoro crianças), no oitavo (por que essa mulher não
parou no sétimo e subiu um andar? Por isso está gorda), no 12º (andar da
creche, a criança sai. Acho que ela não estava perdida) e finalmente pára no
22º.
Saio do elevador andando rápido e quase bato a cabeça na porta de vidro.
É incrível, é a porta mais transparente que eu já vi – enquanto não colocarem
uma maldita faixa vermelha, como eu já cansei de sugerir, vou continuar quase
batendo. Passo pela recepção.
– Bom dia, Marina – a recepcionista me fala, com a cara de “mau dia” que ela
sempre faz.
– Bom dia, Sônia. O Alexandre já chegou?
– Faz meia hora. Está na sala de reunião.
Meia hora. É sempre assim. Na última reunião, ele tinha chegado duas
horas atrasado – e ninguém pôde falar nada, claro. Chefe é que nem médico:
sempre tem o direito de atrasar. Agora, quando o subordinado atrasa... quer
saber? Isso não vai ficar assim. Não vou entrar naquela sala abalada desse
jeito. Se ele se atrasa sempre e eu não posso falar nada, ele também tem que
entender quando eu me atraso um pouco. E, se não ficar satisfeito, foda-se,
vou embora. Já estou cheia desse Gustavo, mesmo. Respiro fundo, tento me
lembrar de algum mantra para repetir mentalmente, mas não me lembro (eu
deveria ter lido o livro de mantras da Ju) e abro a porta da sala. Encontro
Alexandre e Gustavo jogando dardo, e o resto da criação olhando um site de
piadas na internet.
– Oi, Marina! – o Alexandre grita, empolgado.
– Oi, desculpa o atraso, e...
– Não se preocupe, querida, eu mesmo vivo me atrasando.
Sorrio sem graça e cumprimento o resto das pessoas. Fabiano, nosso diretor
de arte e campeão no pinball, Sérgio, assistente de arte, e Luciana, redatora

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como eu. A Lu é ótima. Quando entrei na agência, ela já trabalhava aqui e
viramos amigas. Não exatamente amigas, mas companheiras de noite. A Lu
sempre sai comigo – ou saía, quando eu estava com ânimo para isso.
Começamos a engatar um papo, quando o Marcos do atendimento liga e
conversa com Alexandre. Eles desligam e o Alexandre pede para o pessoal
parar de jogar – finalmente vai começar a reunião.
– Olhem que legal, conseguimos uma nova conta – o Alexandre diz. É daquele
site Encontro Marcado, não sei se vocês conhecem.
– É um site de namoro virtual, não é? – O Gustavo pergunta. Ele adora mostrar
que sabe alguma coisa, adora.
– Esse mesmo – o Alexandre responde.
– Mas não era a Imagem que estava fazendo a campanha deles? – Eu resolvo
falar.
– Era não, continua sendo. Nós ficamos responsáveis só pelo varejo. Coisa
pequena, fácil de fazer.
Olho para o Gustavo e tento adivinhar daqui a quantos minutos ele vai falar
da campanha do celular. Ele só sabe falar disso. Também, é uma campanha
enorme. E eu também estou empolgada, até porque consegui pensar em
alguma coisa na noite anterior, afinal.
– E a campanha do celular? – o Gustavo diz bingo.
– Ela é a principal, é com o que precisamos nos preocupar agora – responde
Alexandre. – Quero você se empenhando nessa conta, Gustavo.
Que ódio! Por que ele fala com Gustavo como se confiasse tanto nele?
Parece um pai falando para o filho “tome este legado de sua mãe, filho. Ele lhe
pertence e eu confio em você para guardá-lo”. Argh. Patético. Bom, mas não
interessa. Já estou acostumada a trabalhar com o Gustavo. No fim, costuma
dar certo.
– E você, Marina.
– Sim?
– Quero que você fique com a conta da Encontro Marcado, você e o Sérgio.
Você, Lu, fica com o Gustavo no celular, mais o Fabiano, claro.
O quê? Não, eu geralmente fico calada, mas dessa vez eu vou falar.
– Como assim? Só eu como redatora nessa campanha? Por quê? Eu pensei
que todo mundo ia fazer a do celular junto!
O Gustavo ri. Cretino. A Lu me olha com uma cara de “calma”. Mas o
Alexandre continua.
– Eu queria que todo mundo fizesse junto, Marina. Mas não dá tempo. O cliente
quer a campanha do Encontro Marcado semana que vem. Eu preciso de você
nela.
Indignação total. Não bastasse o Gustavo me enchendo, agora o Alexandre
também decide complicar minha vida. É um complô. A campanha do celular era
imensa e permitiria anúncios supercriativos, que poderiam resultar em prêmio –
e é óbvio que eu adoraria ganhar um prêmio, coisa que nunca ganhei, apesar
de existir um prêmio para publicidade em cada esquina. Sem contar que eu
acho essa história de procurar alguém pela internet simplesmente ridícula.
Como vou fazer uma campanha sobre isso? Mesmo sendo só varejo, o arroz-
com-feijão da publicidade. Como vou criar um bom título para uma coisa que
acho patética?
Quando a reunião termina, fico emburrada e resolvo conversar com o
Alexandre, que está na cozinha, tomando um café, mas desisto no meio do

14
caminho – ele provavelmente diria o mesmo que disse quando eu não quis
fazer a campanha dos namorados. Decido mudar de tática: vou mostrar para
ele que eu não sou a pessoa mais indicada para a campanha, até ele perceber
que, se entregar à responsabilidade para mim, vai sair uma porcaria. Porcaria,
não: inviável. É mais profissional.
Vou até ele, lançando meu olhar de “não estou satisfeita”.
– Não precisa falar nada, Marina. Já sei que você veio reclamar do Encontro
Marcado.
– Eu? Imagina. Vim só falar que essa campanha vai ficar uma merda.
– Como é que é?
– É sério, Alexandre. Eu acho ridícula essa coisa de procurar alguém pela
internet. Eu nunca vou conseguir fazer uma boa campanha, nunca.
Ele suspira. Odeio quando o Alexandre suspira. Isso significa que ele vai me
olhar com um olhar paternal.
– Marina, senta aqui.
Não falei? Olhar paternal.
– Você é uma profissional. Se eu passei essa tarefa para você, é porque eu
confio no seu trabalho. Tenho certeza de que você consegue.
– Mas, Alexandre, eu não sei nem por onde começar.
Ele me olha com uma cara de quem acabou de ter uma idéia brilhante.
Sempre tenha medo de idéias brilhantes. Ela pode ser brilhante para quem
fala, não para você.
– Tive uma idéia brilhante.
Não falei? Sabia. Ele continua.
– Por que você não entra em um chat, ou mesmo em um site como o Encontro
Marcado, e tenta conhecer alguém?
– O quê?!
– É isso mesmo! Espera um minuto, que eu preciso anotar isso.
Enquanto ele sai para anotar no seu bloco onde está escrito “Idéias do
caralho”, eu me afundo no sofá, derrotada. Ele definitivamente enlouqueceu.
Dois minutos depois, ele volta, feliz da vida. E eu resolvo dizer que não vai
rolar.
– Não vai rolar.
– Por quê? É uma idéia fantástica! Você conversa com alguém e sente na pele
como é se envolver virtualmente, como é falar sem conhecer, ver, cheirar. Que
tal?
– Nada feito. Eu achava que essa história de conhecer alguém pela internet era
péssima e vou continuar achando. Vou me sentir simplesmente ridícula se fizer
isso.
Ele suspira. Mas nada paternal, agora.
– Ok, Marina, faça como quiser. Mas semana que vem eu quero essa
campanha aqui, na minha mesa. E quero acompanhar você de perto, me
mostre os primeiros títulos que vierem à sua cabeça. Títulos bons, hein? Que
emocionem, que falem ao coração de quem procura pessoas pela internet. É
isso o que o cliente quer. Agora vai.
Merda, merda, mil vezes merda.

– Ah, não, Má, chega de ficar com essa cara – a Lu diz um tempo depois que
voltei para a sala de criação.

15
– Fácil você falar. Pegou uma campanha superlegal.
– O que é isso? A sua é mais legal ainda!
– Mas é varejo, esqueceu? Sem contar que você sabe que eu odeio isso de
conhecer pessoas pela internet.
– Ai, Marina, pára com isso, vai. Vamos falar de coisas mais interessantes. O
que você vai fazer hoje à noite?
– Sofrer.
– E fora isso?
– Pensar nessa maldita campanha.
Ela ri. Isso é legal na Lu: ela sempre me anima. É divertida, empolgada. O
oposto do que eu estou hoje.
– Vamos sair para dançar, Má.
– De jeito nenhum. Não estou nem um pouco empolgada.
– Alôôô? A velha Marina está aí? Aquela que eu conheci antes de o Gustavo
acabar com ela? – ela pergunta, afastando meu cabelo do ouvido.
– Acho que ela saiu de férias e não tem data para voltar.
– É sério, Marina! Desencana!
– Ele ainda está com a estagiária?
– Pirou? Até parece! Ele agora passou para o setor do atendimento.
– Meu Deus, ele vai varrer a empresa toda.
– E você devia parar de pensar no que ele faz ou deixa de fazer. Desencana.
Meu telefone toca. É a Sônia, dizendo que a Ju está na linha.
– Alô? Ju?
– Mari, era casamento mesmo!!!!!!
– Jura? Parabéns, Ju, parabéns!
Desligo o telefone e conto a novidade para a Lu, sinceramente feliz. Mas aí
passam alguns minutos e faço uma cara de afastar até um cachorrinho fofo (é,
pelo visto, as analogias não melhoraram). A Lu me dá um olhar como o que ela
costuma dar quando se desanima comigo.
– Ah, não, Marina, lá vem você.
– Fiquei triste, mesmo. Eu estou sozinha, Lu. Sozinha.
– E eu também. E estou superfeliz por isso! Quer coisa melhor do que sair e
poder dançar sempre que quiser, sem dar satisfação a ninguém? Poder ficar
com uma pessoa diferente sempre que quiser? Melhor ainda: fazer sexo com
uma pessoa diferente sempre que você estiver a fim?
– Já cansei disso. Cansei – eu repito.
O Alexandre entra na sala e diz que um anúncio foi recusado pelo cliente.
Passo a tarde com a Lu, refazendo o anúncio com a ajuda do Fabiano. Por que
é que as amigas têm que se casar antes da gente? Veja bem, eu não estou
com inveja. Gosto muito da Juliana, muito mesmo, é uma irmã para mim. Mas
também gosto de mim. E eu queria muito não estar sozinha.

16
3
Chego em casa muito depois de ter escurecido. Não deu tempo de malhar
hoje. Amanhã eu malho. Como um chocolate e vou para o computador pensar
em alguma coisa para a campanha. É mais fácil pensar em casa e, além disso,
daqui a pouco a Ju chega e não vai dar tempo de fazer mais nada – com
certeza ela só vai querer falar do casamento, e com razão.
Abro o Word. Penso nas palavras: Encontro Marcado. Que idéia quero
transmitir? Pessoas se conhecendo na internet, o que é patético. Certo, vamos
tentar esquecer que é patético e se concentrar nas palavras. Encontro.
Marcado. Amor. Distância. Desencalhar. Solidão. Finalmente um título vem à
minha cabeça: Encontro Marcado – Desencalhando corações à distância.
Nossa, de onde eu tirei isso? Péssimo título. Vou comer outro chocolate.
Quando entro na cozinha, a Ju chega.
– Maaari! Olha só o que eu compreeei!
Viro-me para ela: está com uma pilha de revistas sobre casamento. Nunca
vi tantos tipos de vestido na vida. Um mais perfeito do que o outro. Começo a
folhear e vou ficando cada vez mais deprimida. A campanha que não consigo
fazer. O namorado que não consigo encontrar. O chocolate que não consigo
comer, porque a Ju não me larga.
– Pode parar de olhar as revistas. Deixa para lá – a Ju fala.
– O que é isso, Ju?
– Eu fui insensível, não fui? Meu Deus, como eu fui insensível. Você aí, com
problemas no trabalho, sem namorado, sem conseguir comer esse chocolate.
– Também não precisa exagerar.
– E eu aqui, mostrando revistas de casamento.
– Nada a ver, Ju. Você vai se casar, você tem que mostrar.
– Eu não quero deixar você mais triste ainda. Só vou sossegar quando você
arranjar alguém.
– Lá vem você.
– Você não procurou ontem na internet coisa nenhuma, né?
– Eeeuu? Procurei, sim. Não deu em nada.
– Mentira.
– Ok, você venceu, é mentira. Agora vamos ver os vestidos.
Ela passa a mão no cabelo. Eu adoro o cabelo dela, não sei por que ela elogia
tanto o meu.
– Marina, por favor, olha... tenta só hoje...
– Não vou tentar. Eu me recuso! Aliás, depois você me mostra o vestido, tá? Eu
tenho que trabalhar.
Fecho a cara, vou para o meu quarto e sento na frente do computador.
Começo a pensar. Não chego a lugar nenhum. De repente me dou conta de
que estou com uma blusa extremamente desconfortável. O problema é este:
blusa desconfortável. Prendem minhas idéias. Visto uma blusa larga de
algodão e me sento de novo. Nada de novas idéias.
Olho para o computador. Ele olha para mim. Exatamente como no dia
anterior – está virando um hábito. Clico no provedor gratuito. Demoro 20
minutos para conectar, o que quase me faz desistir – ainda deixo de ser pão-
dura e assino internet a cabo. Finalmente, consigo conectar.

17
No começo, eu só queria olhar um pouco os sites de namoro, juro. Mas,
depois, acabo falando para mim mesma: “É só trabalho. Eu sei que eu não
preciso dessas coisas para arrumar alguém. Então, vamos acabar logo com
isso”. Eu me inspiro para a campanha e pronto, nunca mais ponho o mouse em
um desses sites deprimentes.
Decido acessar o próprio site Encontro Marcado, que jura encontrar sua
alma gêmea. É só preencher uma ficha com meu perfil e teoricamente receber
um monte de e-mails por dia de homens interessados. Mas é só eu conseguir
abrir a página que desanimo completamente. Isso porque: 1- Eu tenho pavor
de caixa de e-mail lotada. Uma vez, entrei em uma lista de discussão e quase
desmaiei ao ver que minha caixa postal tinha 84 mensagens não lidas; 2- Eu
nunca gostei de responder questionários. Na parte em que pedem minha
descrição física, por exemplo, já desanimo. Está escrito que devo pôr a cor do
meu cabelo, mas ele não tem cor definida. É um pouco mel, escuro demais
para ser loiro, mas muito claro para ser castanho, sem contar que faço mechas,
então ele é multicolorido. Logo depois, vejo que perguntam meu peso. Até
parece. Nem a avaliadora física da academia sabe meu peso.
Já que os sites de namoro não me seduzem nem um pouco, resolvo ir a
uma sala de bate-papo. Fazia muito tempo que eu não ia a um chat – só
quando eu instalei internet e nunca tinha mexido antes, porque pessoas que
não estão acostumadas com internet têm mania de amar loucamente as salas
de bate-papo. Enfim, eu já tinha passado daquela fase e nem me lembrava de
como era teclar com alguém, mas só para não ter que ouvir a Ju falando no
meu ouvido “você não tentou, você não tentou“ resolvo escolher logo um
nickname e pronto. "Sozinha" parece bom, sem contar que é verdade. Meu
cabelo nem se lembra de como é receber um cafuné, minha pele não se
recorda de como é ser tocada e minha... bem, digamos que eu esteja em jejum
sexual há algum tempo.
Tem mais sete "sozinhas" na sala,então mudo para Sozinha/24 e pronto.
Decido que não vou abordar ninguém. Vou ficar bem pastel, esperando alguém
falar comigo — afinal, não estou com boa vontade nenhuma e é mais ou
menos isso que eu faço quando vou a um barzinho (e dá certo). Aí, do nada,
aparecem urnas pessoas animadas querendo teclar comigo. Rodrigo Saradão,
Delícia 32, etc. Fico um tempo teclando com esses caras até que aparece um
tal de "Rafa/27".

Rafa/27 escreve: Quer teclar?

Argh! Odeio essa abordagem. E tão óbvia! Mas acabo respondendo "sim,
quero". Estou teclando até com um tal de "Felipe/22 centímetros", por que não
teclar com Rafa/27?

Sozinha 124 escreve: Sim, quero.

Rafa/27 escreve: Que bom, eu também quero. Coincidência, não?

Manjado. Muito manjado.

18
Rafa/27 escreve: Como você se chama?

Sozinha/24 escreve: Marina.

Rafa/27 escreve: Nome bonito.

"Nome bonito". Que espécie de comentário é esse? Não se pode dizer que
ele é um cara muito esperto. Suspiro impaciente.

Sozinha/24 escreve: Quantos anos, Rafael?

Rafa/27 escreve: 27. Pode conferir pelo meu nick, Rafa/27.

Ops. Não fui muito esperta. Acabo rindo. Paquerar pela internet tem essa
vantagem, você ri e a pessoa não vê. Vai rir em um barzinho logo no começo,
para você ver. O cara fica totalmente convencido, com a certeza de que
ganhou você completamente.

Sozinha/24 escreve: O que você faz?

Rafa/27 escreve: Trabalho com arquitetura num escritório que abri com
duas sócias. Não é uma empresa grande, mas já fizemos alguns projetos bem
legais, tanto para apartamentos como casas e mesmo outros escritórios.

Dá vontade de responder "eu sei o que um arquiteto faz", mas fico quieta. Ele
não é tão ruim, no final das contas. Além do mais, algo me diz que o Felipe/22
centímetros começou a se masturbar enquanto tecla comigo, o que obviamente
faz com que eu desista de conversar com ele. E o Rodrigo digita com um
português tão errado que se eu continuar falando com ele vou desaprender
como se escreve.

Rafa/27 escreve: E você?

Sozinha/24 escreve: Sou publicitária.

Rafa/27 escreve: Que legal! Você deve ser supercriativa. E um pouco


arrogante, talvez.

Sozinha/24 escreve: Imagina! Não sou arrogante.

Rafa/27 escreve: Brincadeira.

Ele sabe que publicitários são tachados de arrogantes! Bem, então eu estou
falando com alguém que já sabe um pouco sobre a minha profissão. Isso
ajuda.

Rafa/27 escreve: Você esta sozinha?

19
Eu penso "liihh, mais um que quer fazer sexo on-line. Droga.Vou teclar com
aquele "Leo carente" que também parece interessante.

Sozinha/24 escreve: Estou. Por quê?

Rafa/27 escreve: É que eu não queria teclar com ninguém que estivesse namo-
rando, sabe?

Sozinha/24 escreve: Ah. Pensei que era outra coisa.

Rafa/27 escreve: Outra coisa o quê?

Sozinha/24 escreve: Quando você perguntou se eu estava sozinha, pensei que


queria saber se eu estava com alguma privacidade de onde teclo. Você sabe,
para fazer coisas.

Rafa/27 escreve: Coisas? Não, ainda não. Como você é apressada.

Eu rio novamente. Ele realmente parece ser divertido. Quero saber mais sobre
ele.

Sozinha/24 escreve: O que você gosta de fazer?

Rafa/27 escreve: Vejamos. Cavalgar, escalar montanhas, velejar.

Sozinha/24 escreve: Nossa tudo isso?

Rafa/27 escreve: Não. Falei só pra impressionar você. Na verdade, gosto de


alugar um vídeo, pegar um cinema, sair para dançar, essas coisas. E você?

Sozinha/24 escreve: Ultimamente tenho ficado mais em casa. Mas gosto de


sair para dançar, também.

Rafa/27 escreve: Por que você tem ficado mais em casa?

Sozinha/24 escreve: Porque eu estou meio assim depois que descobri que
meu ex me traía.

Rafa/'21 escreve: Traía você? Como?

Sozinha/24 escreve: Traindo. Ficando com outra mulher ao mesmo tempo, des-
caradamente. Nunca fiquei com tanto ódio na minha vida.

Rafa/27 escreve: Eu nunca traí.

Sozinha/24 escreve: Sei.

20
Rafa/27 escreve: Sério mesmo, de verdade. Mas já fui traído, sei como é.

Sozinha/24 escreve: Jura? Como foi?

Rafa 127 escreve: Ela era uma grande amiga. Eu já estava apaixonado por ela
há muito tempo, mas não fazia nada, com medo de estragar a amizade. Até
que uma noite, nós acabamos ficando. O problema foi depois. Ela sumiu, sem
dar a menor explicação. Desapareceu, sabe? Eu pensei: "Depois que a gente
viveu tanta coisa, uma amizade tão bacana, ela some".

Sozinha/24 escreve: Nossa! De pessoas que somem eu entendo, pode ter cer-
teza.

É estranho. Quando vejo, estou contando toda a trajetória da minha vida


amorosa para aquele desconhecido. E o pior é que eu estou gostando, tanto
que não me interesso em teclar com mais ninguém - nem com o "Sarado".
Conversamos sobre música, literatura, cinema, contamos alguns casos
engraçados de amigos. Mas a inspiração que eu queria mesmo não aparece.
Acho que é porque eu não estou suficientemente envolvida — foi só alguém
legal com quem teclei e pronto. Mas acho que com esse material já dá para
pensar em alguma coisa para a campanha. Não vou precisar perder meu
tempo teclando de novo. Não foi a pior coisa do mundo, mas eu tenho mais o
que fazer.
Me despeço dele e já vou desconectar, quando ele fala que é um absurdo
eu ir embora sem trocarmos e-mails. È mesmo, a velha etiqueta na internet.
Faço isso quando conheço alguém em um bar: peço o telefone e nunca ligo.
Mas odeio quando os homens fazem o mesmo comigo. Como não sou mal-
educada, dou meu e-mail sem drama. Para o meu azar, quando estou
digitando, olho para trás e vejo que a Ju está olhando para a tela e dando
risadinhas.
—Não acredito. Você está teclando com um cara em um um chat!
—Olha aqui.Ju, eu...
—Aaahh, que tudo! Me conta como foi. Qual é o nome dele?
—Ju, querida, não quero decepcionar você, mas isso aqui é trabalho. Tra-
ba-lho!
—Sei.
—É sério. Eu tenho que fazer anúncio para um site de encontros virtuais. Aí
eu comecei a teclar com alguém para me inspirar.
—De verdade?
—De verdade.
—Meu Deus, o que é o destino. Me conta qual é o nome dele. Qual é? Qual
é?
Depois eu é que sou cabeça dura. Não adianta falar para ela que é traba-
lho. Bem, acaba que eu e o Rafael trocamos os e-mails, eu salvo em algum
arquivo que definitivamente não sei onde está e desligo. Amanhã, com certeza,
já tenho as idéias para a campanha e não precisarei mais disso.

21
|

Todas as minhas ex-namoradas me consideravam uma pessoa madura,


equilibrada, racional. Nunca precisei de terapia. Resolvo sozinha meus pro-
blemas. Não tenho o hábito de fazer drama por qualquer bobagem. Não
costumo ter grandes momentos de euforia nem de choradeira. Procuro con-
duzir minha vida, em suas mais variadas esferas, de forma ética. E não faço
brincadeiras de mau gosto.
Já ouvi de duas delas que sou "certinha" demais e preciso relaxar.
Se alguém dissesse às minhas ex-namoradas que fiz o que acabei de fa-
zer, elas não acreditariam.
Quando entrei em um chat, o que tinha em mente era, de certa forma,
desabafar. Digo "de certa forma" porque não sabia bem o que queria: entrar
em um chat era apenas mais uma daquelas atitudes que tomamos quando não
sabemos que atitude tomar, ao mesmo tempo que somos fortemente
acometidas pela necessidade de preencher a necessidade de tomar alguma
atitude.
Talvez a suspeita de que meus amigos estavam cansados de me ouvir falando
sobre a Laura tivesse me influenciado. Não os culparia por isso: desde ela saiu
minha vida, eu, que era relativamente bem humorada, venho me queixando
com freqüência e não tenho sido uma companhia agradável para ninguém não
que tenha mesmo me transformado em uma pessoa desiludida.
(Como odeio admitir que me desiludi... Isso pressupõe que eu havia me iludido
e não suporto a idéia de um dia ter permitido me iludir.)
Vou á cozinha e preparo um pouco de café. Sento-me no sofá com a bebida
e foco um ponto qualquer do nada, enquanto fumo um cigarro. Marina parece
ser uma boa pessoa. Eu não queria ter mentido para ela. Mas estava tão fácil.
E eu, tão triste, depois de ouvir pela terceira vez a mensagem da caixa postal
da Laura.
O que Laura tinha feito comigo? Nunca me permiti sofrer tanto por mulher
alguma.
Assim que entrei na sala de bate-papo, vi uma pessoa que acabara de che-
gar, usando um nick que me chamou atenção: "Sozinha/24". Por que alguém
se auto-intitula "sozinha" quando há mais sete sozinhas na sala? Resolvi per-
guntar se ela queria teclar, mas estava tão desanimada que usei uma aborda-
gem óbvia: "Quer teclar?". Senti vergonha quando, no meio da conversa, ela
disse que era publicitária. Provavelmente riu da minha falta de criatividade.
No começo, eu estava apenas me distraindo, mas ao longo da conversa
Marina se mostrou tão simpática e receptiva que considerei extremamente
condenável meu ato de não tê-la corrigido quando ela me chamou de "Rafael"
em vez de "Rafaela". Mas, se eu tivesse falado que era uma mulher, nós não
teríamos passado da fase do "Qual é o seu nome?". Afinal, que mulher está
procurando outra mulher em uma sala de bate-papo heterossexual?
Agora, estou aqui, com uma sensação ainda pior que a de antes de ter
entrado na sala de bate-papo. Até pedi o e-mail dela, mas não devo mandar
nada, para não piorar as coisas.

22
(Dependendo do meu estado em relação à Laura, talvez eu até envie um
simpático e-mail à Marina, propondo a ela conversarmos de novo. Falar com
ela me fez bem. Mas só seria outra conversa, nada mais.)

23
4
Começo o dia bem: vou à ginástica antes do trabalho, para não poder
enrolar, e ainda percebo que minha porcentagem de gordura provavelmente
caiu um pouco (não que eu tenha usado algum método cientificamente
comprovado: apenas fiquei me apertando em frente ao espelho). O problema
de ir à academia de manhã é que, além de lá ficar vazio — o que é bem
desanimador para malhar —, não tem nenhum cara bonito. Não que eu esteja
querendo conhecer alguém (eu tenho que fingir para mim mesma que não
quero conhecer ninguém, para assim, quem sabe, conhecer alguém).
Chego à agência bem adiantada, para compensar o atraso de ontem, e dou
de cara com uma mulher linda, sentada no sofá da recepção. Alta, morena,
corpaço. Claro que estou curiosa para saber quem é. Assim que Sônia vira
para ela e diz "pode entrar", eu não me contenho (eu tenho que ser curiosa, tá
bom? Bons publicitários são curiosos. Pelo menos foi o que jurou o psicólogo
que fez meu teste vocacional na época do vestibular e cobrou uma fortuna dos
meus pais):
— Quem é, Sônia?
— Parece que é a nova namorada do Gustavo. Ela disse que era bem
rápido, só combinar um almoço com ele.
Sônia se contém para dar uma risadinha, eu fecho a cara e vou ao ba-
nheiro. Ela devia estar morrendo de felicidade ao me contar a notícia, aposto.
Sônia a-do-ra dar esse tipo de notícia. Deveria parar de ser secretária e fazer
jornalismo, para ser jornalista de desastre. Nossa, jornal policial seria o céu
para ela. Ficaria dando essas risadinhas irritantes o dia inteiro.
Uso minha melhor cara de "não estou nem aí" enquanto me dirijo calmamente
ao banheiro. Bem, a questão é: como assim a nova namorada do Gustavo?
Não que eu me importe, claro. Mas vamos ser realistas: 1- Ela é muito bonita
para ele. Não que ele seja feio, mas o que eu quero dizer é que aí tem coisa.
2- Que tipo de mulher vai ao trabalho do namorado para marcar um almoço?
Ela não conhece um aparelho chamado TELEFONE? Deve ser grudentíssima,
aposto. Dessas que não saem do pé do namorado, não deixam que ele tenha
seus próprios programas, querem carinho em tempo integral. Vai ver até veio
só para saber com quem Gustavo trabalha, se com garotas bonitas, feias, novas,
velhas... que coisa irritante. Isso é doentio da parte dela - eu sei como é, já fiz
isso.
Olho para o espelho e constato que deveria ter vindo com uma saia mais
curta do que essa. A vantagem de trabalhar em uma agência de publicidade é
que eu posso aparecer com praticamente qualquer roupa, mas eu preferi vir
com essa saia comprida e sem graça. Ela deve ter me visto na recepção e
nem ter se importado de saber quem eu era. Merda.
—Que foi essa cara, Má? — pergunta a Lu, entrando no banheiro.
—Como você sabia que eu estava aqui?
—A Sônia me falou que você se enfiou no banheiro depois de ter visto a
namorada do Gustavo.
—Que fofoqueira!
—Ela fez isso para ajudar, sabe que somos amigas.
—Sei. Deve estar explodindo de felicidade por dentro. Aquela ali ama ver o

24
circo pegar fogo.
A Lu me olha com aquele olhar que ela tem quando desanima comigo de
novo. Nossa, antes ela costumava economizar mais nesses olhares. Já usou
ontem e está usando hoje.Talvez ela nem esteja me reprimindo.Talvez esteja
precisando ir a um oftalmologista.
—Marina, você precisa desencanar. E uma questão de sobrevivência.
—Eu já desencanei. Há séculos. Eu juro, eu não gosto mais do Gustavo.
—Então?...
—O problema é que eu tenho muita raiva dele e não aceito que ele seja
feliz com ninguém, é isso.
—Uau, isso é muito generoso da sua parte.
Acabamos rindo. Certo, eu posso estar sendo egoísta. Mas é que ainda
estou naquele estágio de esquecer o cara a ponto de não gostar mais dele e
querer conhecer outras pessoas, mas não a ponto de deixá-lo não gostar de
mim e querer conhecer outras pessoas. Apesar de eu ter certeza absoluta de
que ele não gosta mais de mim, se é que algum dia ele gostou, e de que ele já
conhecia outras pessoas mesmo quando estávamos juntos.
Se o Gustavo não trabalhasse no mesmo lugar que eu, provavelmente eu
não teria mais raiva dele. Mas, vendo o babaca todo dia, é meio impossível
não ter raiva. Porra, com a estagiária, na escada! Não é uma coisa das mais
fáceis de esquecer. Meu consolo é que ela faz estágio em outro setor da
agência, então quase não a vejo. Seria um golpe e tanto no meu ego ver uma
garota de 18 anos me olhando com uma cara de "sou melhor do que você".
Saímos do banheiro e dou de cara com a estagiaria. Definitivamente, hoje não é
o meu dia. Ela me olha com uma cara de "sou melhor do que você", a Lu me puxa
discretamente e entramos na sala da criação. Gustavo está jogando dardo,
Alexandre não está, Sérgio e Fabiano fazem alguma coisa no computador que
eu tento, mas não consigo ver o que é. Está vendo? A campanha do celular
deveria ser minha. Esse povo não faz nada. Pelo menos foi bom ir ao banheiro:
a namorada do Gustavo não está mais lá.
—E aí, Mari, já teve alguma idéia para o site? — Gustavo me pergunta.
Quem ele pensa que é? Meu chefe?
—Não, não tive. Estou tentando.
-Ah. Se precisar de ajuda, eu estou meio livre agora.
— Obrigada. Está tudo sob controle.
Ajuda dele! Até parece! Gostaria de saber por que eles estão livres, se a Lu
me disse que o Alexandre pediu a eles que esperassem ele chegar, que ele
quer fazer um brainstorm com todo mundo. Ótimo.Todo mundo vai ficar
discutindo a campanha do celular enquanto eu, nas profundezas da minha
solidão, fico pensando em títulos para essa droga de site.
Bom, chega de reclamar. Sento em frente ao meu computador e começo a
pensar. Analisar as palavras, ontem, não adiantou muito, então mudo de
tática.Vamos lá, Marina, você é uma profissional. Lembro de um manual que os
professores indicavam na época em que eu fiz faculdade, para ajudar quando
não aparecem as idéias.Tento me lembrar e um item me vem à cabeça:
"deslocamento espacial do observador universal", que significa mostrar o que
acontece em outros lugares e que poderia estar acontecendo de modo
diferente.

25
Ei, já sei! Pessoas em um bar, paquerando. Uma mulher entra. Vários caras
ridículos chegam nela, e a câmera mostra isso em flashes. No final, um título
passa a idéia de que você pode estar procurando no lugar errado, o lugar certo
é a internet e pronto. Bingo. Como sou eficiente! Estou orgulhosa de mim.
Terminei tão rápido que posso até fazer a campanha do celular com o pessoal,
quem sabe.
O Alexandre ainda não está na sala. Mostro para a Lu.
— Ficou legal, Mari. Mas não é para você fazer um filme. É para fazer só
um título. E um banner.
Aaaahh, como eu me odeio! Eu me odeio, eu odeio a vida, essa agência, eu
odeio tudo. E sou urna péssima publicitária, vou ser despedida. Quem mais
troca o que tem que fazer?
Perco algumas horas pensando em idéias sem graça quando a Sônia me
passa uma ligação: é a Ju me chamando para almoçar. Topo. Encontrar a Ju
com a Luciana é superdivertido, sempre ficamos rindo e contando casos.
Como é b o m ter amigas disponíveis para passar o tempo com você. Me sinto
querida e evito pensar no Gustavo e coisas desagradáveis do tipo.
— Lu, não marca nada para o almoço, tá? Vamos almoçar eu, você e a Ju –
digo.
— Vou fazer minha unha na hora do almoço, Mari.
Tudo bem, vou só com a Ju e vai ser ótimo. Aproveito para contar a ela o
desastre que foi meu dia hoje e dizer que estou me sentindo mais sozinha e
abandonada do que nunca. Se ela não vier com internet na minha cabeça de
novo, com certeza vai me animar.
No caminho até o elevador, cruzo com Gustavo com a morena X. Tento
passar direto, mas ele me vê antes. Droga.
—Marina, deixa eu apresentar para você minha namorada. Essa aqui é a
Jussara. Jussara, essa é a Marina, uma amiga muito querida, que trabalha
aqui na agência.
—Oi, Jussara, tudo bem?
"Amiga muito querida"! Nossa, o que mais eu tenho que agüentar hoje? Só
falta a estagiária aparecer na recepção e Gustavo apresentá-la como "veja,
essa é a inimiga pouco querida da minha amiga muito querida, mas pode ter
certeza de que as duas são muito queridas por mim".
Saio da agência antes que isso aconteça. Estou louca para desabafar com
a Ju e feliz por ela ter marcado o almoço. Logo que desço do elevador, vejo
que ela está com o Bruno.
—Oi, Mari! Você não se importa que eu trouxe o Bruno, né?
—Não, claro que não.
Por que diabos ela trouxe o Bruno? Não é que eu não goste dele. Mas é
que: 1- Eu queria despachar todo o meu dia infeliz na cabeça da Ju, o que não
vai ser possível com o Bruno lá, já que ele, na condição de homem, vai achar
tudo o que eu disser pura bobagem e tentar resolver meus problemas da
mesma forma que se resolve uma equação matemática e 2- Eu queria ficar só
com a Ju, apesar de parecer estranho já que MORO com ela. Mas agora é que
estou me tocando de que, assim que a Ju se casar, vou morar sozinha, e tenho
que aproveitar o máximo possível todos os momentos com ela. Mesmo porque

26
estou sempre cansada quando chego em casa e mal sobra tempo para a gente
conversar.
Respiro fundo e vamos para o restaurante. Pelo menos isso: não vou ao
self-service porcaria de sempre, já que encontrar com os amigos é sempre
uma boa desculpa para gastar mais (e comer mais) .Vamos a um à Ia carte
com um preço aparentemente camarada. Não conhecia esse restaurante e
meu humor melhora. O ambiente é bem aconchegante e, oba, eles têm arroz à
piamontesa.
-Acho que vou pedir um peixe grelhado e um arroz à piamontesa. E vocês?
- eu pergunto.
-Nossa, arroz à piamontesa, amor. A gente poderia servir como prato
quente do nosso casamento — a Ju sugere.
Como pude ser tão distraída? Lá vai: 3- Eles vão conversar sobre casa-
mento o almoço inteiro.
-Não sei - diz Bruno -, só arroz é meio estranho.
-Mas arroz à piamontesa é diferente, amor. Tem palmito, champignon...
-Bom, então vamos servir meu prato preferido: feijão tropeiro.
-Ah, não, feijão é estranho. O que você acha, Mari?
-Acho que o garçom está esperando.
Os dois me olham. O que eu fiz de errado? O garçom está esperando,
mesmo. Nós pedimos e a Ju continua.
-Estou preocupada é com o vestido.
Eu tento entrar no papo.
-Por que você está preocupada?
- Porque o casamento vai ser em junho, Mari, e junho é frio. Só que eu
queria usar um vestido tomara-que-caia, que é muito aberto.
-Use um tomara-que-caia com luvas. - sugere Bruno. Juliana fica dois
segundos satisfeita com a sugestão.
-Mas e na hora de trocar as alianças? Eu tiro a luva? - ela pergunta.
-Não - diz Bruno.
-Claro que tira. - digo. -Ai! - diz a Ju.
Passamos o almoço conversando sobre as luvas, a cor do vestido das
daminhas, as flores da estação para decorar a igreja e fazer o buquê, se o
casamento vai ser em uma chácara ou em uma igreja e se a azeitona das
empadinhas vai ser verde ou preta. Quando o almoço acaba, fico aliviada. Falo
que tenho que voltar para a agência, sendo que ainda falta meia hora (mas
não é mentira, preciso ir ao banheiro), dou tchau e vou.
Pode parecer má vontade, mas não é. Estou feliz que a Ju vai se casar. Mas eu
não queria que ela falasse tanto sobre o casamento. É pedir demais? Bem,
acho que é. Vou continuar ouvindo os preparativos sem falar nada. Afinal, um
dia será a minha vez, e com certeza ela vai ouvir tudo o que eu tenho a dizer,
com a maior atenção. Tirando polêmica da azeitona, que aí demais
obviamente, azeitona de empada é verde.
Só sei que ver minha melhor amiga se casando é como esfregar na minha
testa que eu estou sozinha, desamparada e sem perspectivas amorosas
concretas para os próximos cinco anos ou mais. Nossa, não quero falar sobre
isso. Já basta precisar correr na esteira o dobro para compensar o arroz
piamontesa.

27
Volto para a agência e tenho que me contentar em gastar cada minuto
pensando em idéias ridículas para o site. O Sérgio até que tenta disfarçar, mas
me olha com uma cara de "ficou péssimo"a cada idéia que eu tento discutir
com ele. Pergunto se ele quer trocar: ele arranja uma idéia superlegal e eu faço
o layout no lugar dele. Ele ri. Eu estava falando sério.
No final da tarde, o Alexandre aparece.
—E aí, Mari, como é que estão os títulos para o site?
—Mais ou menos.
—Mas já fez alguns, né?
—É, já.
Mostro o arquivo para ele. Ainda bem que eu anotei minhas idéias hor-
ríveis, mesmo sendo horríveis. Estou sendo muito pessimista. Quem sabe,
ele gosta de algumas? Isso acontecia direto quando eu estava no colégio:
tinha a certeza de que tinha ido muito mal na prova e, quando recebia a nota,
via que tinha ido bem. È, quem sabe ele gosta?
— Não gostei, Marina.Tem muito o que melhorar. É. Isso também vivia
acontecendo no colégio. —Você chegou a teclar com alguém na internet?
—Não. Quero dizer, sim. Mas não conta para ninguém. Ele ri.
— Só você mesmo, Marina.
Concordo com a cabeça. É, só eu mesma. Ele deixa a sala e eu estou tão
desanimada que nem me viro para ver sua bunda. O Alexandre realmente tem
uma bundinha linda. Aliás, ele é todo lindo, mas nunca tivemos nada um com o
outro. Já tenho problemas com o Gustavo, imagina se fizer sexo com meu
chefe — que, aliás, é casadíssimo. Isso fere meu código interno de ética
amorosa (apesar de eu já ter feito sexo com muito homem casado. Ai, sou uma
idiota mesmo).
Passo a tarde tentando ter novas idéias, mas não tenho. Resolvo dar uma
navegada na internet, para relaxar. Abro minha caixa de e-mails e dou de cara
com uma mensagem do Rafael. Nossa, tinha até esquecido quem é Rafael.
Mas logo me lembro e abro o e-mail.

Oi, Marina!
Tudo bem? Gostei muito de ter conversado com você. Por que é que hoje a
gente não se encontra naquele mesmo chat? As 8 da noite, que tal?
Beijo,
Rafa

Verifico a data do e-mail: ele mandou hoje mesmo. Deixo para responder
depois. Apesar de não ter dado muita bola, confesso que estou meio intrigada.
Ele não disse nenhuma das três coisas que um cara costuma dizer depois que
acaba de conhecer uma mulher:
1-Não tirei você da cabeça a noite toda;
2-Eu nunca me senti daquele jeito, como me senti com você;
3-Você é a mulher mais linda que eu já vi (bem, isso ele não poderia dizer
mesmo. Ele nunca me viu).
No lugar disso, só um "gostei muito de ter conversado com você". Estranho,
muito estranho. Ou esse cara está fazendo tipo ou é diferente dos outros caras.
Diferente dos outros caras? Não, não sou ingênua a esse ponto.

28
Definitivamente, a primeira opção. Em todo caso, fico feliz em saber que tenho
um "encontro" à noite e decido ir. Afinal, nem vou ter que me arrumar mesmo
— posso ficar de pijama e pantufas na frente do computador e, dependendo do
meu ânimo, até com uma máscara facial. É, eu posso odiar a idéia, mas tenho
que admitir: encontros virtuais têm suas vantagens.
Pego minha bolsa e me preparo para ir embora quando o Gustavo entra na
sala de criação. A Lu vira-se para mim:
—E aí, Má, vamos fazer alguma coisa hoje?
—Não vai dar. Eu tenho um encontro.
—Um ENCONTRO? Que ótimo! Com quem?
—Com alguém.
—Onde?
— Em um lugar bem privativo. -Você tá cheia de mistérios, hein, Má!
O Gustavo ouve tudo e faz uma cara de "não gostei". Acontece que eu
adorei. Afinal, ele não precisa saber que a fracassada aqui vai teclar com um
cara que nunca viu, em um patético chat na internet.

29
5

Chego em casa completamente desanimada. Minha vontade de ir ao tal


encontro desmoronou. Vejo que a Ju não está e me sinto pior ainda. A casa
Vazia eu na minha solidão, com um encontro ridículo marcado e nenhuma
coisa gostosa na geladeira. Eu deveria comprar um cachorro. Sempre penso
nisso quando estou sozinha. Depois que a Ju se casar, tenho que arranjar um
de qualquer jeito. De preferência um cachorro que trabalhe e divida comigo, as
contas.
Pego um iogurte vencido e me jogo no sofá. Meu Deus, eu não era assim. A
Lu tem razão: cadê a Marina que adora sair? Mas não adianta. Já não tenho o
menor ânimo para me produzir por horas, sair para uma boate e encontrar um
cara que vai dizer todas as coisas maravilhosas do mundo só pra me levar para
a cama. Claro que eu me divirto também. Nossa, e como me divirto. Corno foi
legal quando eu e aquele Marcos - Marcos mesmo? - Ou João Marcos? Uma
coisa assim — fomos para um motel, levamos algemas e ... Esquece, Marina.
Não quero mais isso — não só mais isso. Acho que vou chegar ao cúmulo de ir
a livrarias e supermercados 24 horas, de madrugada para tentar encontrar
alguém que esteja comprando um vinho e queira um compromisso que dure
mais do que uma noite.
Paro de tomar o iogurte na metade e pego meu celular: são oito e quinze
da noite. Suspiro, levanto e vou para a frente do computador.
Consigo conectar de primeira. Pelo menos isso. Tento me lembrar da sala
em que eu tinha conhecido o Rafael. Só me lembro do site, e não do número
da sala. Entro em três e já estou quase desistindo quando o encontro na
quarta.

Sozinha/24 escreve: É você, Rafael?

Rafa/27 escreve: estava indo embora...Você demorou.

Sozinha/24 escreve: Desculpe. Cheguei tarde do trabalho.

Rafa/27 escreve: Ou então chegou do trabalho e desistiu de me encontrar,


porque se sentiu ridícula.

O que ele é? Vidente?

Sozinha/24 escreve: O que você é? Vidente?

Rafa/27 escreve: Não... Mas é que eu mesmo me sinto meio ridículo de


marcar um encontro na internet.

Sozinha/24 escreve: Sério? Pensei que você estivesse acostumado com isso.

30
Rafa/27 escreve: Na verdade, você é a primeira pessoa com quem eu
converso em um chat.
Sozinha/24 escreve: Duvido.

Rafa/27 escreve: Eu já teclei com outras pessoas, mas nunca levei a sério,
sabe? Quando eu quero encontrar alguma pessoa mesmo, eu vou a um bar ou
coisa parecida.

Sozinha/24 escreve: E por que desistiu?

Rafa/27 escreve: Não é bem desistir. Só estou dando um tempo nesse esque-
ma.

Sozinha/24 escreve: Pessoas que não querem nada sério, só se divertir. Sei
bem o que é isso.

Rafa/27 escreve: Pois é. Acho que a gente já está meio grandinho para isso,
não é?

Sozinha/24 escreve: Ehehe. É. Apesar de que o esquema também tem seu


lado divertido.

Rafa/27 escreve: Isso é. As pessoas estão sempre reclamando. Quem está


como a gente, solteiro, reclama que quer um compromisso sério. Quem está
com alguém tem saudade dos tempos em que era solteiro.

Sozinha/24 escreve: Falando nisso, minha melhor amiga acabou de marcar o


casamento.

Rafa/27 escreve: Sério? Tenta falar menos com ela, senão você vai acabar
ficando triste.

Sozinha/24 escreve: Não dá. Ela mora comigo!

Rafa/27 escreve: E, eu não queria estar no seu lugar.

Interessante, ele é compreensivo. Difícil achar um homem assim hoje em dia.


E ele parece ser bem sensível, também. Acho que só cheguei perto de
conhecer um cara sensível uma vez: a gente estava no cinema e ele começou
a chorar no filme. Eu bem que achei estranho já que era uma comédia. Pen-
sando bem, aí já é sensibilidade demais. Mas também pode ser simplesmente
que o nariz dele estivesse escorrendo, já que ele estava gripado. Não sei.
Tenho vontade de saber mais sobre o Rafael. Ele parece ser bem legal. E não
é um internauta encalhado, como eu pensava. Também não está acostumado
a paquerar em chat, como eu. Apesar de eu estar teclando com ele só a
trabalho, claro.

Rafa/27 escreve: Como foi o seu dia hoje?

31
Nossa, nem me lembro da última vez que um cara perguntou isso para
m i m . Aliás, acho que nunca perguntaram. Só minha mãe, pelo telefone, e a
Ju, de vez em quando, querendo saber como foi meu dia.

Sozinha/24 escreve: Mais ou menos. Sabe aquele cara, que eu falei para
você que me traiu? Hoje ele estava insuportável. E ainda descobri que está
namorando de novo.

Rafa/27 escreve: Mas como você soube disso?

Sozinha/24 escreve: Ué, não contei para você? Ele é do meu trabalho.

Rafa/27 escreve: Mas você é sortuda, hein? Sua amiga que vai se casar
mora com você. E seu ex que traía você trabalha no mesmo lugar que você.

Ele presta atenção no que eu digo e se comove com meus problemas.


Legal, isso. Estou começando a achar que ele é um fofo. Será que é bonito,
também?

Sozinha/24 escreve: Como você é?

Rafa/27 escreve: Ah, estava demorando!

MORRO de vergonha.

Sozinha/24 escreve: Se não quiser falar, tudo bem.

Rafa/27 escreve: Não, sem problema. Quer que eu mande uma foto minha
para você?

Hum, ele se candidatou a mandar foto. Feio não deve ser, senão não
mandaria. Eu já ia teclar um "sim, quero", mas resolvo manter o suspense.
Além disso, eu já tinha mostrado meu lado fútil e preocupado com a beleza
quando perguntei como ele é. Se eu aceitar a foto, aposto que ele vai se sentir
como se eu estivesse escolhendo carne em um açougue. Não quero estragar
tudo, vamos deixar como está.

Sozinha/24 escreve: Não, não precisa.

Rafa/27 escreve: Posso garantir que não sou de se jogar fora.

Sozinha/24 escreve: Sério, esquece isso, estou me sentindo mal. Isso não
tem a menor importância para mim.

Hum, então ele não é de se jogar fora? Interessante.

32
Rafa/27 escreve: Não se sinta mal. Eu também estou curioso para saber
como você é.

Sozinha/24 escreve: Eu também posso garantir que não sou de se jogar


fora.

Rafa/27 escreve: Posso apostar que não.

Que empolgante esse clima de suspense! E ele realmente parece ser um cara
legal. Bom, posso confessar uma coisa? Eu tinha me esquecido com-
pletamente de teclar com ele por causa de trabalho. O que eu estaria fazendo
se não estivesse teclando com ele? Vendo alguma coisa sem graça na TV,
ingerindo calorias ou outra coisa do tipo. Mas não: estou confortavelmente
instalada em uma cadeira, conhecendo alguém sem sair de casa. Prático, isso.
Claro que eu sei que isso tudo não passa de uma brincadeira, mas uma
brincadeira legal.
Estou rindo dos casos dele, em frente ao monitor, quando a Ju chega.

—Teclando com aquele cara de novo? Que legal!


—Como é que você sabe se é o mesmo cara, Ju?
—Ah, aposto que é. É o mesmo cara?
—Não sei.
—Fala, Mari, é o mesmo cara? -Não.
—Confessa!
—Tá bom, é o mesmo cara! E ele é bem legal. —Você
está se interessando por ele.
—Também não vamos exagerar, Ju. Só estou matando o tempo.

Como a Ju é exagerada. Acaba que eu olho para o relógio e vejo que tenho
que dormir, senão não consigo acordar amanhã nem para trabalhar, nem para
fazer ginástica. O tempo passou bem rápido. Eu me despeço do Rafael e ele
me faz jurar que eu não vou sumir. Não é bonitinho? Ele não quer que eu
suma. Talvez eu me vingue de todos os homens que sumiram da minha vida e
suma da dele também. Não, coitado, ele não tem nada com isso. Faço o
juramento, com a Ju do meu lado, rindo, desligo o computador e vou para o
meu quarto.

—Não vai sumir, hein, Mari?


—Cala a boca Ju.

A gente ri. Tudo bem, não vou sumir. Mandar um e-mail não faz mal para
ninguém. Amanhã mesmo, assim que chegar a agencia, mando.

II

33
Pego uma xícara de café , acendo um cigarro e ligo a TV. Fui fraca. Não
resisti e conversei novamente com a Marina.
Eu estava mal quando lhe mandei um e-mail: a Laura finalmente tinha
atendido uma ligação minha e deixado claro que não queria mais nada. Não
satisfeita com a humilhação de ouvir isso, eu insisti, insisti de novo e implorei a
ela, que já tinha ido embora, que não fosse embora. Então ela disse mais uma
vez "Acabou".
Com aquele tom de voz apático que só as pessoas que não gostam mais
das outras têm.
Eu queria saber o que fiz de errado. A Laura tinha terminado seu longo
namoro com a Tatiana, uma mulher de quem, aliás, nunca gostei muito, já
havia alguns meses. Laura e ou éramos amigas, companheiras, estávamos iras
e tínhamos atração uma pela outra. Eu tinha por ela e sei que ela tinha por
mim. Não entendo por que não funcionou.
Mas até essa parte da história eu sou capaz de digerir, porque sei que não
dá para racionalizar o amor. Ele simplesmente não se ajusta às regras da
razão, pelo menos da razão que conhecemos, com as regras que conhecemos
(ou que queremos acreditar que conhecemos). O que não consigo, não quero e
não posso admitir é que tenha saído da minha vida, mesmo depois BC ser
minha amiga por tanto tempo. Por que ela não foi honesta, dizendo que não
queria mais, em vez de covardemente desaparecer? E por que, depois de
finalmente ter conversado comigo, foi tão fria e distante, dando a entender que
não tinha interesse nem em manter nossa amizade? Se eu soubesse que ela
agiria dessa forma infantil, não teria ficado com ela. Se eu soubesse que fazer
sexo com ela destruiria tudo, se eu tivesse percebido que estava brincando
com a possibilidade de tirar do meu convívio uma pessoa tão importante...
Se, se, se. Isso não adianta nada.
Preciso parar de pensar em possibilidades e caminhos que não se con-
cretizaram.
Preciso esquecer essa pretensão juvenil de procurar entender o que não
tem explicação.
Preciso esquecer a Laura.
Tento me concentrar no filme da TV, mas desligo o aparelho depois de
alguns minutos. Quando mandei o e-mail para a Marina, eu estava triste por
causa da Laura e ainda sem nada para fazer no trabalho. E coração partido e
ócio não combinam. Ou melhor: combinam explosivamente bem. É nesse ócio
que surgem as maiores burradas. Como ligar para a Laura e logo depois mentir
novamente para a Marina.
Talvez eu esteja carente e por isso tenha cometido o clássico erro de ver
nas pessoas recém-conhecidas as qualidades que quero ver, e não as que
elas realmente têm.
Ou talvez a Marina seja mesmo interessante.
O fato é que nossas conversas não serviram apenas para me distrair: gostei
de estar ali com ela, mesmo virtualmente. E seus problemas me comoveram.
Impressionante como ela consegue falar deles mantendo o bom humor.
Em um determinado momento da conversa, senti necessidade de contar
logo a ela que eu sou uma mulher, mesmo sabendo que depois disso ela muito
provavelmente me xingaria e desistiria de manter alguma amizade. Cheguei a
me oferecer para mandar uma foto, torcendo secretamente para que ela
aceitasse e visse logo a verdade.

34
E torcendo mais secretamente ainda para que ela recusasse a foto e assim
eu pudesse continuar mentindo para ela. Como de fato ocorreu.

35
6
Corro durante 40 minutos depois que acordo. Não sei o que é pior, correr ou
ir à academia. Acho que os dois são ruins. Mas não adianta reclamar: se não
malho, engordo mesmo. Então tudo o que faço é me dar opções, igual a uma
mãe que quer obrigar os filhos a comer verdura: você quer alface ou espinafre?
Nenhum dos dois não pode. Comigo também é assim: "Mari, (essa é minha voz
interior falando comigo) você quer correr na praça, fazer aula de spinning na
academia ou pedalar na ergométrica?".
Chego à agência atrasada. Nossa, eu tenho que mudar. É a segunda vez
esta semana que chego atrasada. Por sorte, o Alexandre ainda não chegou.
Por azar, só vejo o Gustavo na sala da criação.
- Oi, atrasadinha.
Ele passa a noite elaborando maneiras de como me deixar irritada, com
certeza. Mas hoje ele não vai conseguir. Li em uma revista que correr libera
endorfinas, então vai ver que é por isso que estou levemente bem-humorada.
Endorfinas são legais. É a mesma substância que seu corpo libera quando
você tem um orgasmo, eu acho. Se bem que não pode ser. Ter orgasmo é tão
melhor do que correr. Claro que eu tenho que fechar os olhos e me concentrar
um pouco para me lembrar de COMO é um orgasmo, mas, pelo o que eu me
lembro, a sensação é bem melhor do que depois que eu corro pela praça.
Talvez eu devesse ter um orgasmo sozinha. Não é difícil. Eu já fui boa
nisso. O problema é que chegar ao clímax e depois não ter ninguém para
abraçar aumenta ainda mais minha solidão. È, está decidido: vou continuar não
me lembrando de como é.
O Gustavo tinha essa vantagem. Quer dizer, ainda deve ter, mas agora não
me interessa. Gustavo era ótimo de serviço. Disso eu não posso reclamar. Se
bem que, na hora do depois, ele invariavelmente virava para o canto e dormia.
Nenhuma palavra de amor. Nenhum cafuné. È, pensando bem, eu posso
reclamar, sim.
Desprezo o comentário do Gustavo e vou para o meu computador. Entro no
meu e-mail e tenho uma surpresa: alguém mandou um cartão virtual para mim!
-É vírus - diz Gustavo.
-O quê? Que coisa feia, olhando os meus e-mails de longe.
-Não está dando para olhar de onde eu estou. Não tenho culpa se você
grita "alguém mandou um cartão virtual para mim!".
-Ah.
Então eu gritei. Que coisa.
-Mas falando sério, pode ser vírus. Está tendo um vírus superfamoso por aí.
No assunto do e-mail, eles colocam: "Há um cartão para você"- insiste ele.
-Não está escrito "Há um cartão para você". Está "Alguém lhe enviou um
cartão".
-Sei lá.
— Então você acha que eu não posso receber um cartão, é isso?
Apelo mesmo. Ainda mais que o Alexandre não está na sala. O Gustavo
finalmente fica na dele e eu abro meu cartãozinho em paz. É dele mesmo:
Rafael. Que meigo! Eu tinha combinado de mandar um e-mail para ele e ele
nem me esperou. O cartão é urna gracinha: uma vaca listrada dançando, com
a mensagem: "Passamos momentos divertidos juntos". Embaixo, o texto dele:
"E vamos continuar passando, não é? Estou gostando muito de conhecer você.

36
E aí, o chato está perto de você? Não esquenta. À noite a gente conversa e
você esquece".
Como ele é atencioso! O chato está mesmo perto de mim, para variar. Mas
o que ele quer dizer com "à noite a gente conversa?". Será que ele quer se
encontrar comigo à noite de novo? Não sei se eu quero. Vou estar cansada,
tenho que ir para a cama cedo, e esse negócio já está viciando... Não estou
disponível todos os dias da minha vida, como ele está pensando. Avalio cui-
dadosamente a situação por dois segundos e mando um e-mail para ele:

Combinado. Hoje, às 8 da noite, na mesma sala.


Beijos,
Marina

Ah, não tenho nada a perder, mesmo!


—E o encontro ontem à noite, Má? — diz a Lu, logo depois de entrar na
sala e cumprimentar eu e o Gustavo.
—Foi bem legal! Hoje tem mais.
—Maaais? Que empolgação, hein? Quem te viu e quem te vê.
—Pois é.
—E o título e o banner do site, como estão?
O site! Meu Deus, como eu pude esquecer? Fecho meu e-mail, abro o Word
e começo a digitar um monte de títulos. Encontro marcado: marque seu
encontro aqui. Internet: você conectado ao amor. Você esta sozinho? Não fique
mais e ... o Alexandre chega, droga, droga. Eu estava indo bem (ou não).

— Oi gente. Vamos ver se hoje, a gente adianta a campanha do celular, hein?


Ele não está talando comigo. Ótimo. Continuo digitando como se eu estivesse
escrevendo alguma coisa que valesse a pena.
— E aí. Má, como está no site?
— Está indo.
— Indo como?
— Bem. Está indo bem.
— Bom, imprime o que você já fez, que eu quero dar uma olhada.
— Tem certeza?
O Gustavo ri. A Lu ri. Eu rio. O Alexandre não ri.
— Marina, o que está acontecendo? Você tem ou não tem alguma coisa
pronta?
— Não, ainda não. Desculpe, Alexandre, mas eu não estou tendo muitas
idéias.
Ele fecha a cara. Eu fico com medo. Aí eu também fecho a cara. Ele não
fica com medo. O telefone toca. Telefone pode ser útil às vezes. O Alexandre
conversa nele por alguns minutos.
— Gente, emergência. Todo mundo trabalhando na campanha do Alquimista.
— Ué, a que a gente fez na semana passada? — a Lu pergunta.
— Essa mesma. O cliente não gostou. Mãos à obra.
Que bom! Adoro fazer campanha de perfume. Além de eu não poder mexer
com o site agora, eu tenho a chance de dar boas idéias e "desqueimar" meu
filme. Bem, espero que eu tenha idéias melhores do que o neologismo
"desqueimar".
Passamos à tarde em cima da campanha. Nem almoço: a gente resolve
pedir pizza, para não ter que parar. É só um anúncio de revista que a gente

37
tem que refazer, porque o cliente aprovou o resto da campanha. Eu adoro fazer
anúncio de revista. Nem ligo de almoçar correndo.
O Alexandre fica visivelmente estressado. Tadinho. Fica tão bonitinho
quando está com medo de alguma coisa. Parece uma criança indefesa. Ele diz
que a conta é grande e por isso não podemos fazer feio com o cliente, mas
todo mundo sabe que ele não quer fazer feio porque o cliente é nada menos do
que o sogro dele. Deve ser péssimo trabalhar para o sogro.
De repente, a luz da publicidade me ilumina e eu tenho uma superidéia.
— Tive uma idéia super super superlegal!
— Fala - O Alexandre responde, sem a mínima esperança.
— Brincar com os conceitos de que perfume deixa passar mensagem de
aventura, sensualidade, dinamismo. No final, o que interessa é se o cheiro é
bom ou não.
— Interessante. Desenvolve.
— Bom, na primeira página, um texto mais ou menos assim: "A gente poderia
dizer que Duna, o novo perfume do Alquimista, traz um conceito de
feminilidade, mas não deixa de ter um quê aventureiro, sempre agregando urna
atitude jovem e revelando uma personalidade determinada". A foto...
— Tá muito grande esse texto.
ODEIO quando as pessoas me cortam no meio de um raciocínio. E odeio essa
coisa de que texto de publicidade tem que ser minúsculo. Dá para esperar, dá?
Estou tentando dar à luz uma idéia, aqui.
— Posso completar meu raciocínio? — continuo.
— Certo, vai em frente.
— A foto é de um perfume, pura e simplesmente, com fundo branco. Aí você
vira a página. Tem um homem deitado, um homem lindo, claro, cheirando uma
peça de roupa feminina, com o título: "Mas a gente prefere não dizer nada". E o
texto pequeno embaixo: "Duna. Uma fragrância que dispensa apresentações".
O Alexandre pára por um minuto, tentando "ver" o anúncio. Todo mundo me
olha. Finalmente, o Alexandre fala:
— Bom. Muuuito bom.
Legal. "Bom" não é bom, mas "muuuito bom" é ótimo. Todos me elogiam, até o
Gustavo. Bem que o Alexandre, como bônus, poderia me tirar da campanha do
site.
— Aí está minha Marina de volta! — comenta Alexandre, virando-se para
mim. — Não é nada digno de Cannes, mas o que importa é que sua
criatividade está voltando. Vai fazer maravilhas na campanha do site, aposto.
Bom, também não posso dar sorte em tudo. De qualquer forma, tudo indica
que não tenho mais que mexer com o site hoje. Vamos passar a tarde
ajustando a minha idéia e escrevendo os textos do Alquimista.
Verifico meus e-mails antes de sair da agência. O Rafael não respondeu
minha mensagem. Será que ele leu? Detesto essas pessoas que não conferem
seus e-mails pelo menos 20 vezes por dia, como eu. Afinal, ou tem e-mail e
confere ou não tem. É a mesma coisa que ter telefone e não atender, não ouvir
o recado na secretária eletrônica, nada. Dou "atualizar" três vezes, mas não
adianta: não tem nenhuma mensagem dele MESMO. Droga. Um verdadeiro
bolo virtual. A-pos-to que ele não vai aparecer hoje. É uma pena, queria falar
para ele que hoje tive uma superidéia na agência, só para ele ver como eu sou
criativa e bem-sucedida.

38
7

Chego em casa toda feliz com a campanha e ligo o computador antes mesmo
de abrir a geladeira. Vou ao chat meio preocupada. Afinal, o entro ficou meio no
ar, tenho medo de que ele não venha. Minha dúvida acaba assim que entro no
chat.

Sozinha/24 escreve: Você veio. Que bom!

Rafa/27 escreve: Claro que eu vinha! Por que você ficou na dúvida?

Sozinha/24 escreve: Não sei, tinha ficado meio no ar... amei seu cartão,
sabia?

Argh! Falei como se fosse a namorada dele. Reticências no meio da frase e


“sabia" no final, com interrogação, são extremamente meigos, até se eu se
brigando. Olha só: "Estou com raiva de você... sabia?" é muito mais delicado
do que um "estou com raiva de você, seu cretino”. Também, qualquer frase é
mais delicada do que uma que termina com "seu cretino". Enfim, eu não devia
ter falado desse jeito, definitivamente. Não sei o que aconteceu comigo. E ele
está demorando para responder minha mensagem. Droga.

Rafa/27 escreve: E eu estou amando conhecer você... sabia?

Que meigo! Adorei! Minha vez de ser legal. Vou perguntar como foi o dia
dele. Afinal, essa é a vantagem de se teclar à noite.

Sozinha/24 escreve: Como foi seu dia?

Rafa/27 escreve: Mais ou menos. Um cliente não gostou muito de um projeto


nosso aqui do escritório.

Sozinha/24 escreve: Que coincidência! Um cliente, hoje, desaprovou uma


campanha que fizemos e tive que fazer de novo. Pelo menos ficou ótima,
meu chefe até me elogiou.

Ótimo. Em vez de perguntar mais sobre o dia dele, dei detalhes do meu e
ainda contei vantagem. Ele vai pensar que sou uma egocêntrica. Melhor
consertar logo.

Sozinha/24 escreve: Mas me faia mais, desse projeto. Por


que não gostaram?
Rafa/27 escreve: Porque estava r u i m mesmo.

39
Morro de rir. O Rafael é ótimo. Eu, crente de que ele ia xingar o cliente,
dizendo que esses caras não sabem o que querem, etc, etc, etc.

Sozinha/24 escreve: É, tem dia que dá preguiça mesmo...

Rafa/27 escreve: E como foi a campanha que você fez e seu chefe elogiou?

Sozinha/24 escreve: Não posso falar. Desculpe, mas não podemos falar de
propagandas que não foram veiculadas ainda.

Ai! Será que ele ficou com raiva de mim? Mas eu não posso falar MESMO!

Rafa/27 escreve: Ah, tá.

Sozinha/24 escreve: Não achou ruim não, né? Quero dizer, não é nada
pessoal, mas não posso contar mesmo.

Rafa/27 escreve: Ah, não esquenta não.

Sozinha/24 escreve: Jura que não ficou com raiva?

Rafa/27 escreve: Juro.

Meu Deus! O que está acontecendo comigo? Há quantos anos eu penso


que estou com esse cara? E nem o conheço pessoalmente, ainda por cima!
Como sou ridícula!

Sozinha/24 escreve: Você me acha ridícula?

Ai, só estou piorando as coisas! Ele vai pensar que sou uma idiota insegura.
Droga, droga, mil vezes droga. Assuntos amenos. Tenho que falar de assuntos
amenos.

Sozinha/24 escreve: Engraçado, estava tão quente de manhã, mas agora


parece que vai chover.

Rafa/27 escreve: Olha, a última coisa que você é na vida é ridícula.

Sozinha/24 escreve: Sério mesmo? É que às vezes eu fico meio sem graça
quando converso com um cara, sabe? Vou tentar voltar ao normal.

Rafa/27 escreve: Você fica sem graça com qualquer um, ou só quando
realmente está interessada pela pessoa?

40
Hum, ele esta me analisando psicologicamente. Vejamos: quando eu ia para a
cama com caras lindos que eu conhecia na noite, eu ficava sem graça? Lembro
que em uma das ultimas vezes que isso aconteceu, logo antes de eu conhecer
o Gustavo, um cara bem bonitinho começou a conversar comigo. Eu estava
com um tomara que caia e ele elogiou meu colo. Aí eu olhei para ele disse:
"isso é porque você ainda não viu o resto". É, acho que, quando quero só
caçar, não sou exatamente tímida.

Sozinha/24 escreve: Hum... talvez eu fique assim só com quem me


interesse. Mas eu disse TALVEZ.

Ótimo. Tenho o controle da situação. Essa sim, sou eu. Vamos lá.

Rafa/27 escreve: É porque eu estou me interessando, e muito, por você,


com certeza. Mas eu digo COM CERTEZA.

AAAhh, que lindo! Ele está babando por mim! E eu não sei o que está
acontecendo, mas eu não consigo sair mais desse teclado! E a campanha que
se dane!!!
A Ju chega e entra no quarto bem no auge da minha felicidade.

—Oi, Mari! Estou escolhendo o bufe, quer ajudar? A gente pode...


—Psiu! Tô teclando com o Rafael. Preciso ficar concentrada.
—Hum, então ele se chama Rafael? Interessante.
. — Interessante, nada. Interessantíssimo. Ele é um amor.
—Mari! Você está ficando a fim de um cara que conheceu na internet! Que
ótimo!
—Certo, você ganhou, estou ficando a fim. Ficando. Agora dá licença,
senão eu digito com erro de gramática e ele vai me achar burra.
A Ju sai toda satisfeita, e eu continuo teclando. Nós dois conversamos por
quatro horas no chat. Quando foi a última vez que eu conversei quatro horas
com um cara? Acho que quando eu tinha 14 anos.
A gente se despede e combina de teclar só no final de semana, porque ele
tem uma viagem de trabalho marcada para amanhã. Mando um beijo para ele,
ele me manda outro e desligo o computador. Deito-me na cama pensativa. Eu
sou uma ridícula que paquera pela internet ou sou uma ridícula que custa para
admitir que está a-do-ran-do tudo isso? Acho que as duas coisas. Mas não
importa se eu me acho ridícula: o que interessa é que a ultima coisa que eu
sou é isso. E que a gente vai continuar teclando, pra ver no que dá.

III
Chego na porta do trabalho, mas não desço do carro. Quatro horas con-
versando com a Marina pela internet. Com certeza, perdi o controle sobre a
situação, se é que já cheguei a ter algum tipo de controle.

41
Passei dos limites. Não sei se estou mais assustada comigo mesma ou
envergonhada.
Mas, seja o que for que estou sentindo em relação a mim, não é bom.
Também não sei se é exatamente ruim. De qualquer maneira, por mais co-
varde, forçado e mentiroso que possa parecer, é, como disse, incontrolável. De
qualquer modo, não sei se ter consciência disso vai funcionar como urna
ferramenta para eu finalmente assumir o controle e acabar com essa farsa.
Temo que não.
Que fraqueza. Que fraca, eu.
Suspiro ao me lembrar de que agarrei um curto momento de força para
inventar uma viagem de trabalho.
Menti que ia viajar, quando na verdade o que vou é refletir sobre minhas
mentiras.
Um lado meu deseja parar com tudo isso. Sim, tenho esse lado, junto com o
lado que precisa dar continuidade a essa situação por não querer abandonar o
contato com a Marina, e acho que meu lado que deseja parar com tudo é mais
forte, porque não me deixa em paz o dia todo, enquanto o outro lado me
acomete apenas por momentos específicos, os momentos em que converso
com ela... Mas, se é mais forte meu lado que deseja parar, por que ele não
vence meu outro lado?
Ela é meiga. Meio atrapalhada e aparentemente confusa, mas meiga. In-
teligente. E engraçada, bem-humorada.
E esse envolvimento está sendo tão rápido. Vejo precipitação nas atitudes e
falas dela; tudo cheira a ansiedade, muito provavelmente porque ela ainda não
se curou de seu último desapontamento amoroso.
(Mas e eu? Tento agir racionalmente, mas não estou sendo precipitada?).
Saio do carro, vou para o escritório e tento me empenhar nas tarefas do dia.
Mas não consigo parar de pensar nela.
Ela me contou episódios de sua infância, como quando fugiu de casa le-
vando uma mochila com um iogurte e uma caixa de Lego. Comentou que era
tímida na época do colégio. Que adora chocolate ao leite, sem crocante, sem
recheio, sem nada; só ao leite. Que às vezes sente saudade de quando
morava com sua família, antes de ter mudado de cidade para fazer faculdade e
posteriormente trabalhar.
Eu queria ter contado a ela algumas lembranças que me marcaram, mas,
para não mentir de novo, me contive e não contei quase nada. Como eu
contaria a ela sobre a carta que escrevi para meus pais quando eu tinha 19
anos, explicando que era gay? Hoje sou serena em relação à minha sexuali-
dade, mas, quando alguém vem desabafar comigo sobre uma mochila com
Lego, conto o episódio da carta.
Eu realmente gostaria de ter dito isso a ela.

42
8

Estou na agência, sentada em frente ao computador, tentando pensar em


alguma idéia para o Encontro Marcado. Minhas pernas estão doloridas - eu
deveria ter feito alongamento antes de correr hoje. Mas é que eu levo uns 10
minutos fazendo alongamento e, como eu só poderia correr por meia hora,
porque não consegui acordar muito cedo, deixei o alongamento para lá. Agora,
estou toda doendo. Mas é uma dor boa. Se não dói depois que eu malho, eu
fico pensando que malhei à toa.
O que será que o Rafael está fazendo agora? Esqueça, estou sendo pa-
tética. Não sei como fui dormir tão animada ontem à noite! Parecia até que eu
estava namorando alguém. Definitivamente, não sei onde estou com a cabeça.
É só alguém com quem eu estou teclando. Ele pode ser gordo, feio e careca,já
pensou? Nossa, agora que pensei em uma coisa: e se ele acha que eu é que
sou uma baranga? Eu tenho que dar um jeito de dizer a ele que sou bonita.
Tudo o que eu disse para ele até agora foi que "não sou de se jogar fora", mas
o que isso significa, afinal? Um iogurte ruim, porém dentro da validade, não é
de se jogar fora - e é uma porcaria. Nossa, que tipo de analogia eu estou
fazendo?
-Oi, Marina! Hora de acordar!
-O quê? Ah, oi, Lu.
-Nossa, você estava viajando, hein? É aquele cara que você conheceu?
Não tem ninguém na sala de criação além de nós duas. De repente, sinto
uma vontade incrível de falar para a Lu que estou conversando com um cara
que conheci na internet. Para ver o que ela acha, sabe? A Juliana me incen-
tivou tanto a procurar alguém pela internet, é claro que ela está achando o
máximo. Então, talvez eu deva pegar a opinião de uma pessoa que não seja a
Ju, para ver se tem alguém que concorde com ela ou se ela é uma lunática
mesmo. Afinal, eu sempre achei essa história de procurar pessoas pela internet
ri-dí-cu-la. Talvez, se a Lu me apoiar, eu fique mais relaxada.
-Lu, vou contar uma coisa para você.
-Hum.
-Sabe esse cara que eu conheci?
- Claro que sei. Eu acabei de perguntar sobre ele.
Respiro fundo. Não quero que ela me ache deprimente.
- Então, sabe esse cara?
-Meu Deus, Má, fala logo!
- Ele é ...
- É...
-Um Deus grego.
-Eu já imaginava. É isso aí, ninguém segura a velha e boa Marina! Certo, não
consegui. Mas é que eu respeito a opinião da Lu, sabe? Ela é tão descolada,
tão cabeça-feita, tão moderna. Quando a gente costumava sair à noite, antes
de eu conhecer o Gustavo, eu lembro que tooodos os caras babavam por ela.
Claro, babavam por mim também, mas a Lu é diferente. Sabe aquela mulher
que sabe andar, sabe falar, sabe partir o cabelo do jeito certo? A Lu é assim.
Aliás, eu também costumava ser assim — até o Gustavo jogar minha auto-

43
estima em um buraco e despejar terra em cima. Agora, só sobrou esse traste
que paquera pela internet.
Chega à hora do almoço e vou com a Lu a um restaurante natural. Não
gosto desse restaurante porque lá as sobremesas não têm açúcar nem ado-
çante, só mel. E eu odeio mel. Então costumo pedir um bolo de chocolate com
banana, apesar de eu achar que é um desperdício de calorias, já que eu tento
tirar o. mel e comer o que sobra, que é uma massa disforme de chocolate com
banana nem um pouco doce. Nossa, já estou pensando na sobremesa antes
mesmo de almoçar. Que horror. Vou almoçar primeiro, depois eu penso com
calma qual é a melhor forma de gastar minha cota doce diária de calorias.
Sentamos à mesa. A Lu pede uma lasanha verde com creme de ervas e eu
tento procurar no cardápio alguma coisa que não tenha mel, ervas ou soja.
Não sei por que aqui não tem carne. Afinal, carne é feita em laboratório, por
acaso? Carne é supernatural. Acabo pedindo uma salada com queijo, que
parece ser boa.
-Má, fala mais desse cara. Onde vocês se conheceram?
-Em um bar.
-Que bar? Quem sabe lá eu arranjo alguém também.
-Ah, não sei, um bar.
-Credo, não sabe o nome do bar? Bom, em todo caso, eu não quero arranjar
ninguém mesmo. Adoro não ter compromisso.
-Ai, eu bem que queria ser assim de novo. Mas eu sinto tanta vontade de ter
alguém para me fazer um cafuné, para dormir abraçadinha...
-De-tes-to dormir abraçadinha. Gosto de dormir sozinha, sem ninguém para
babar no meu travesseiro.
—Ai, quem dera ter alguém para deixar meu travesseiro todo babado.
—Eca, que nojo, Marina.
Estou me sentindo mal de mentir para a Lu. Por que eu não conto a ver-
dade? Ela é minha amiga. Ela nunca me acharia ridícula! Acho até que ela me
admira o mesmo tanto que eu a admiro. Afinal, eu não sei andar como ela, nem
falar como ela, mas meu cabelo é ótimo.
—Lu, preciso contar uma coisa.
—Não é sobre o Gustavo, é? Não agüento quando você fala do Gustavo.
—Nããão é sobre o Gustavo. Aliás, acho que estou esquecendo o Gustavo
finalmente.
—Jura? Nossa, esse cara que você conheceu fez milagre, hein?
—É sobre esse cara que eu quero falar.
Ela me olha supercuriosa. A Lu adora unia novidade, uma fofoca, um segredo e
coisas do gênero.
—Ele é gay. É isso, Má?
—Gay? NÃO! Não é nada disso.
—Travesti?
—Sem chance.
—Casado?
—Não, não. Quer dizer, não tenho certeza. Não tenho certeza de nada sobre
ele.
-Ai, conta logo!

44
Eu me concentro para falar. Ela é minha amiga, não é? Vamos lá, Marina. Seja
homem.
—Bem... é que a nossa relação é meio assim... diferente.
—Como assim? — ela pergunta.
—Nós não nos conhecemos em um bar. Foi em um...
—Ótimo, foi em uma boate. E daí?
Ela toma um gole do suco. Eu queria um gole de paciência. Já contei que
detesto que me interrompam?
— Nós nos conhecemos em um chat. Pronto, falei.
Ela me olha fixamente por três segundos e meio. E começa a dar uma
gargalhada que o casal da última mesa do lado oposto à nossa deve ter ou-
vido.
— Você tá brincando, né, Má? Em um chat? Que brega!
— Não ria, Luciana. Eu também achava essa história ridícula.
Ela não me ouve. Continua gargalhando. Ela ri tanto que engasga, e eu
tenho que dar um tapa em suas costas. Aproveito a raiva de ter contado para
ela e dou um tapão.
- Ei, doeu - ela reclama, refazendo-se do tapa. - Desculpe, estou tentando não
rir. Mas me conto, como ele é pessoalmente?
—Não sei.
—NÃO SABE?Vocês não se encontraram?
—Não. Ainda não.
—E aquele encontro de que você tinha falado?
—Era um encontro mesmo. Só que virtual.
—Marina, Marina... em que nível você chegou.
Ouço as gozações dela até que a comida chega. Que bom, talvez ela mude o
assunto para aquele sobre como comida natural é mais saudável. Estou
profundamente irritada. Para completar, tem soja na minha salada, sendo que
no cardápio não falava que tinha.
—Droga. Vou trocar essa salada. Veio soja — eu reclamo.
—Fale mais sobre esse seu... amor virtual, Má.
—Será que, se eu pedir para trocarem a salada, eles vão me dar outra nova ou
vão simplesmente tirar a soja desta? Porque, assim, ela vai continuar com
sabor de soja.
—Bom para você. Com soja é dois reais mais caro.Vai, fala.
—Lu, você JURA que não conta para ninguém?
—Contar o quê? Do seu amor virtual?
—Pára de falar assim. Ele não é meu amor.
—Tá, eu juro - ela responde, rindo.
— Jura mesmo?
—Juro. Quem mais sabe? –A Ju e o Alexandre.
—O Alexandre?!
—É, ele me pediu para teclar com alguém para me inspirar para o slogan do
Encontro Marcado. Foi aí que eu conheci o Rafael.
—Que romântico, Mari!
—Pára de encher, Lu. E, de novo, não conta para ninguém. Eu não me sinto
nem um pouco confortável com essa história.

45
Passo o resto do almoço calada. Se arrependimento matasse... bem, eu já
estaria morta há muito tempo, e o que não faltariam era ocasiões para eu
morrer: 1- Quando eu contei para a Lu sobre o Rafael, 2- Quando eu comecei
a namorar o Gustavo, 3- Quando eu comi aquela torta imensa de chocolate
com chantilly sozinha (eu estava de TPM), 4 - Quando eu fui de calça jeans em
uma festa cm que todas as mulheres estavam de longo, 5 - Quando eu tinha
18 anos e contei para a minha amiga que o namorado dela estava ficando com
uma menina. Eles reataram e nenhum dos dois falou mais comigo. Bem, vou
parar de enumerar os arrependimentos da minha vida, para não ficar ainda
mais deprimida do que já estou.
Saímos do restaurante. A conta fica uma fortuna, mas a Lu faz questão de
pagar para mim. Não sei se ela faz isso porque se arrependeu de ter me
enchido a paciência ou se ela tem a consciência de que ganha bem mais do
que eu.
—Má, eu tenho que salvar você, amiga.
—Do que você está falando?
—Esse negócio de internet, Má. Não dá - ela diz, com ar de professora.-Vou
fazer você sair dessa: esta noite, a gente vai sair para uma supernoitada.
—Nem pensar, Lu. Não estou nem um pouco animada.
—Ah, não, não aceito um não como resposta.Você tem que voltar à vida.
—Já voltei. Estou conhecendo um cara legal na internet.
—Não voltar à vida virtual, mas à vida, menina.Vamos sair hoje, sim.
—Não vamos, não, Luciana. Ela suspira.
—Nossa, Má, não sei mais o que fazer para ajudar você.
—Eu sei — respondo.
—O que é?Você pensou cm um lugar legal?
—Não, não estou falando de sair. Você quer me ajudar? Faça um slogan para
o Encontro Marcado, para mim.
—Só se você pensar com carinho em sairmos mais tarde.
—Fechado.
Passo a tarde praticamente à toa na agência, já que a Lu fica pensando no
slogan para mim. Prático, isso. Aproveito para checar meus e-mails e vejo que
o Rafael não mandou nada. Também, ele não disse para onde viajaria — pode
ser lá para o meio do mato. Eu poderia teclar com ele agora, no computador da
agência, se ele estivesse aqui. Seria divertido. Talvez eu devesse mandar um
cartão para ele. É, acho que vou fazer isso. Não, pensando bem, não vou, não.
Esqueça.
—Má, olhe o que acha desse aqui.
—Psiu! — eu respondo. A Lu é louca: com o Gustavo na sala, ela quer me
mostrar o trabalho que era para EU ter feito. Digo para ela imprimir um papel
com a idéia anotada e vamos para o banheiro.
— “ Encontro Marcado – Porque causar uma boa impressão é mais fácil
quando não tem ninguém olhando “. E aí, gostou? – A Lu pergunta, assim que
entramos no banheiro e verificamos se não tem ninguém olhando.
— É, legalzinho. Mas eu esperava mais.
— Ai. Má, deixa de ser chata. Aposto que o Alexandre vai gostar.
— Ok. vou mostrar para ele. Mas esse slogan não merece uma saída hoje.
— Como assim?! Espertinha, você, né?

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Procuro o Alexandre para mostrar o título "pseudo-meu" e a Sônia me diz
que ele viajou, para visitar não sei qual cliente em não sei qual cidade. Só volta
segunda-feira e ainda deixou um recado para mim: assim que ele chegar, quer
ver o material do Encontro Marcado perfeito e na mesa dele. Na mesa dele é
fácil, perfeito é que é o problema. Afinal, perfeição é uma idéia meio vaga. Uma
flor perfeita para mim é uma rosa, enquanto para outra mulher pode ser uma
margarida. Mas acho melhor nem usar esse argumento com ele, senão ele vai
perder a paciência.
Mantenho firme a minha resolução de não sair, mesmo tendo que agüentar
a cara feia da Lu até nos despedirmos, no estacionamento, e me preparo pra
minha noite superemocionante em frente à TV, já que nem teclar com o Rafael
esta noite eu vou poder.

47
9

Acordo com a cara inchada. Eu seria uma boa fonte de inspiração para mim
mesma se tivesse que fazer agora uma propaganda sobre bolacha Maria. Não
sei se estou assim porque me entupi de sorvete ontem à noite, porque fui
dormir tarde e acordei cedo ou se foi porque... porque passei a noite virando na
cama, pensando no Rafael.
É engraçado. Mesmo só tendo teclado com ele e mais nada, sinto carinho
por ele. Acho que já conversei com ele mais do que com o Gustavo durante
nosso namoro inteiro. Falei da minha vida, do trabalho, do que eu gosto, do
que eu não gosto. Eu realmente gosto de conversar com ele e, mesmo me
sentindo ridícula, tenho que admitir que estou com saudades dele. Ontem,
antes de dormir, fiquei olhando para o computador e pensando nos nossos
papos. Ele é tão divertido.Tão legal.Tão atencioso.
Torno um copo de leite desnatado e procuro uma revista no quarto da Ju,
que já foi trabalhar. A Ju adora revistas femininas, ainda mais agora, que ela
compra qualquer uma que tenha a palavra "casamento" na capa.Já a vi lendo
desde "Os vestidos mais bonitos para o seu casamento" até "Como superar a
crise dos 20 anos de casados". Olho várias revistas na estante dela e acabo
achando o que eu queria: "Casais que se conheceram pela internet".
Vamos ver."Conhecer casais pela internet pode parecer estranho, mas sua
alma gêmea pode estar esperando você na web. Blá-blá-blá..." Ah, vou pular
essa parte. Parece a Juliana falando comigo.Vamos aos casos. Hum, achei.
Vejamos. "Larissa é uma médica de 29 anos que está há dois com Leonardo,
engenheiro de alimentos de 32 anos". O que diabos faz um engenheiro de
alimentos? Deixa para lá, vamos continuar. "Por incrível que pareça, eles se
conheceram pela internet." E claro que eles se conheceram pela internet. A
matéria é sobre isso. Continuemos. "Um dia, Larissa estava navegando em um
chat quando Leonardo apareceu na mesma sala que ela. 'Papo vai, papo vem,
e conversamos por horas', diz Larissa, feliz com o relacionamento. 'Nunca
pensei que fosse encontrar uma mulher tão interessante pela internet.
Confesso que foi uma agradável surpresa', acrescenta Leonardo. Os dois
estão tão felizes juntos que já pensam em casamento. “ Não me imagino mais
sem meu Léo” , suspira Larissa, apaixonada. “
Interessante... muito interessante. Sento-me no sofá e começo a me
empolgar com a matéria. Depois de uma hora, já sei tudo sobre o romance de
Pedro e Claudia, Thiago e Vanessa e Anderson e Paula – todos começaram na
internet. Alguns levaram meses para se conhecer pessoalmente, e nunca mais
se desgrudaram. Outros se conheceram dias depois do primeiro encontro
virtual.
O telefone toca.
— Alô?
—Marina?
—Sou eu. Quem é?

48
—Sou eu, a Lu! Por que você ainda não veio para a agência, doida?
Aaahh! Nossa, são dez e meia da manhã e eu não estou nem pronta ain
da! Não corri, não tomei café, não fiz nada!
Visto a primeira roupa que vejo pela frente, não como mais nada para
compensar o tanto que eu não corri, desço, entro no carro e saio.
Chego na agência completamente atrasada, descabelada e correndo, entro
na sala de criação toda suada, para quê? Não tem NADA para fazer. O Gus-
tavo e o Sérgio estão jogando dardo, a Lu está ouvindo música e o Fabiano
está navegando na internet. Sento-me em frente ao meu computador.
— Ai, Lu. Para que você me chamou, se não tem nada para fazer?
— Pode aparecer, querida. Além disso, pega mal faltar assim sem mais nem
menos, sabia?
— É, tem razão. Mas é que eu estava tão compenetrada, lendo uma matéria
sobre casais que se conheceram na internet.
— Estou falando, Má: isso não é normal. Até matéria sobre isso você está
lendo.
Passamos a tarde conversando e tomando café. Eu deveria pensar em
alguma coisa para o Encontro Marcado, mas acho que o que a Lu fez já está
bom. Não foi uma sacada de gênio, mas dá para o gasto. O celular da Lu toca
umas quatro vezes e ela não atende.
—Nunca vi esse número. Deve ser o dele.
—Dele quem?
— Do carinha de ontem.Você não quis sair, mas eu sim — ela diz. — Não sei
onde eu estava com a cabeça de dar meu número para ele.
Enquanto a Lu discorre sobre as estratégias para fugir de caras de uma noite
só, aproveito para verificar meus e-mails. Nada do Rafael. Que droga! Por que
ele não me manda nada? Só falta ele sumir, como os outros. Já pensou,que
humilhação? Sumir sendo que nem nos conhecemos ainda! Droga,droga, mil
vezes droga. Belo jeito de passar uma sexta feira.
Seis horas da tarde, nada do Alexandre, nada para fazer, eu e a Lu
decidimos ir embora. Claro que ela tenta me convencer a sair com ela de novo,
porque dessa vez vai ser ótimo, etc, mas eu não vou mesmo. Aproveito que saí
mais cedo e passo na academia para pegar uma aula de spiiming. Essa aula é
ótima, eu perco cerca de 600 calorias por hora (embora eu não acredite muito,
mas o professor jura que é verdade). Saio da academia e vou para a casa
decidida a descansar. Quero fazer pipoca com bacon no microondas, leite com
achocolatado, procurar um bom filme na TV a cabo e ficar assim até dormir.
Nunca pensei que falaria isso, mas tomara que a Ju não esteja lá. Senão, ela
vai falar sobre o casamento e eu não estou com o menor ânimo para escutar.
Abro a porta já com um humor bem melhor. Nada como chegar em casa.
Entro na sala e vejo uma pilha de revistas espalhadas em cima do sofá, junto
com fitas de vídeo. Será que a Juliana resolveu abrir uma loja de... coisas
espalhadas, talvez?
—Maaari! Que bom que você chegou!
—Que bagunça é essaju?
—Vem, quero que você me ajude. São revistas de casamento. Elas têm
modelos de vestidos lindos. Essa aqui tem um vestido champanhe divino,
essa aqui, um longo tomara que caia... vem ver.
—E essas fitas de vídeo?
—São filmes de casamento para a gente assistir! — ela responde, empolgada.

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— Eu quero ver os vestidos, a decoração, o que dá certo, o que dá errado...
- Como assim? Tipo "O pai da noiva", "O casamento do meu melhor
amigo" e coisas do gênero?
— Não, boba, são fitas caseiras de casamentos de algumas amigas minhas!
— Ju, definitivamente eu não vou ver isso. Desculpe, mas eu estou muito
cansada e...
— O QUE? Nossa, Mari, é o meu casamento! Eu sou sua melhor amiga!
Que bela madrinha, você, hein?
—Ju, não faz isso...
—Tudo bem, tudo bem, eu vejo as fitas e as revistas sozinha! Eu fico aqui
sofrendo! Se eu escolher um vestido ridículo, quem se importa?
Eu mereço. A Ju faz pipocas no microondas, para me deixar mais animada
(pelo menos a parte alimentícia do meu plano deu certo), vamos para a frente
da TV e assistimos, por 4 horas e 32 minutos, ao casamento da ex-vizinha da
mãe da Ju, ao da prima da futura cunhada da Ju e ao da irmã do dentista do
namorado da Ju. Nossa, esses vídeos de casamento são péssimos. A noiva
entrando, a noiva chorando, os noivos colocando as alianças... Não tenho
nada contra quem manda filmar seu casamento, mas é que: 1- Essas fitas
deveriam permanecer na casa dos donos, que são as únicas pessoas da Terra
que querem ver esses vídeos e 2 - Excluindo o fato de que a ex-vizinha era
um pouco mais gorda que a prima, e que o vestido da irmã era mais decotado
que o das outras duas, as três fitas eram EXATAMENTE iguais.
A Ju ainda me faz olhar mais três ou quatro revistas quando eu reivindico a
minha liberdade de volta, vou para o meu quarto e fecho a porta. Ligo o
computador e conecto para ver se tem alguma mensagem do Rafael, embora
eu tenha certeza de que não tem. Abro meu e-mail e vejo que eu estava certa
realmente não tem nada dele. Ah, que tédio. Eu definitivamente me sentiria
mais feliz se pudesse teclar com ele agora. Acho que posso até falar que estou
com saudade dele. Saudade talvez não seja a melhor palavra, talvez eu esteja
sentindo... falta, é isso. Falta de conversar com ele.

50
10

Acordo e olho para o relógio: 10 horas. Será que o Rafael já voltou da


viagem? Ele disse que voltaria no final de semana. Que droga, por que ele não
falou se voltava no sábado ou no domingo? Estou superansiosa para voltar a
teclar com ele. Ele realmente fez falta.
Conecto a internet e mando um e-mail para ele, pedindo que me dê um
toque quando chegar. Ai será que dei muito na cara que estou pensando nele?
Afinal, nós não temos nada sério. Aliás, nós não temos nada. Será que ele
ainda se lembra de mim?
Como um monte de frutas, dois pães integrais e uma fatia de queijo e vou
correr. Vamos ver se hoje eu consigo fazer 50 minutos em vez dos habituais
40. O problema é que o sol está forte e antes de dar a segunda volta na praça
eu já estou vermelha. Droga, eu deveria ter corrido na esteira da academia.
Consigo correr por exatamente 41 minutos (eu tentei, mas foi meu máximo),
compro uma água-de-coco industrializada, sento cm um banquinho e fico
olhando para o tempo. Já pensou se, daqui a 30 anos, estou nesse mesmo
banquinho, tomando água-de-coco, e ainda sem ninguém para me fazer um
cafuné? Credo, deixa eu virar minha própria boca para lá. Cadê as malditas
endorfinas que os exercícios supostamente liberam? Já estou deprimida antes
de chegar à metade da água-de-coco.
Vou para casa caminhando e antes mesmo dos abdominais ligo o com-
putador. Conecto para ver se ele deixou alguma mensagem e... nada. Droga.
Faço os benditos abdominais e a Ju chega.
— Oi. Ju, onde você estava?
— Fui com a minha mãe olhar alguns bufês para o casamento. Também
olhei alguns vestidos, e nada.
Ainda bem que ela não me chamou.
— Eu ainda tinha esperança de comprar algum vestido, mas estou vendo
que vou ter que mandar fazer - ela continua. - Mas, pelo menos, o vestido
das convidadas está decidido: ninguém vai de preto.
— Como assim? Preto é uma das cores preferidas das convidadas.
— Não quero saber. Quero que as pessoas vão de preto no meu funeral, não
ao meu casamento. Vou escrever uma observação no convite – ela explica. –
Mas e você? Por que não está no computador?
— Bem que eu queria. Mas ele está viajando.
— TecIa com outro cara, ué.
Outro cara? (como eu não tinha pensado nisso antes? Deixe-me pensar agora
outro cara, outro cara... não. Com certeza não.
— Outro cara não rola.
— Por que, Mari?
— Porque eu gostei desse! Ele parece ser tão legal.
— Nossa... não sabia que você estava tão interessada assim nele.
Sabe o que essa conversa me deu vontade? Olhar no computador se ele já
me mandou um e-mail. Deixo a Ju falando sozinha e conecto. Não, ele não
mandou nada. Que saco.

51
Eu queria ficar em casa para poder verificar meus e-mails de uma em uma
hora, mas a Ju insiste tanto que eu saio com ela para almoçar. Eu queria ter
um celular igual ao da Lu, que dá para consultar e-mail. Agora, seria uma
maravilha. Mas vou tentar não pensar muito nisso. Afinal, uma hora ele chega,
e eu confio em mim — sei que ele não vai me ignorar.
Vamos a um restaurante chinês. Está lotado, então vamos a um japonês. É
bom que engorda menos, se bem que eu não resisto e acabo pedindo um
pedaço enorme de torta de chocolate na lanchonete bem brasileira que tem do
lado, assim que acabamos de almoçar.
A Ju cisma de passar no shopping depois do almoço.
—Ai, Ju, para quê?
—Para olhar uns vestidos para as daminhas, em uma loja fofa que abriu.
Vamos.
—Por que você não deixa as mães das daminhas olharem?
—Ficou louca? E se elas escolherem vestidos horrorosos? Ou então mais
bonitos do que o meu? É claro que eu tenho que ajudar a escolher.
— Ju, eu tenho certeza de que ninguém vai ficar reparando quem está mais
elegante, a noiva ou uma menininha de cinco anos.
—Deixa de ser chata, Mari, vem. Afinal, por que você quer tanto voltar para a
casa?
—Para ver se o Rafael já chegou, né! A-pos-to que ele já chegou.
—Mari, você está ficando obcecada. Vamos, vamos.
Acabo indo. Mas, entre nós duas, tenho sérias dúvidas se sou eu que estou
ficando obcecada.
A Ju fez questão de entrar na loja e pedir para a vendedora que desça todos
os vestidos de dama. Depois olha um por um, ela agradece e sai da loja.
—Ainda bem que a gente foi, Mari. Foi superútil - ela diz, sorrindo.
—ÚTIL? Você não comprou nada! Você nem gostou de nada.
—Útil sim, Mari! Depois de olhar tanto vestido, agora eu tenho uma noção do
que eu quero que as daminhas usem.
—E o que é?
—Uma coisa assim, sabe, meio anos sessenta.
Anos sessenta. Ótimo. Espero que as convidadas não tenham que ir de
anos sessenta. A gente passa em uma livraria e depois a Ju cisma de comer
alguma coisa na praça de alimentação. Depois vem reclamar do peso comigo.
Hoje, eu é que não abro mais a boca para comer porcaria, depois daquela
sobremesa que supriu cerca de 320% da minha necessidade diária de gordura.
Já está escurecendo quando finalmente vamos para casa. No meio do ca-
minho, lembro que tenho que tirar dinheiro no caixa eletrônico e lá vamos nós,
de novo, para o shopping, que é mais longe, porém mais seguro para tirar
dinheiro. Claro que a Ju tem que passar de novo na loja das daminhas para ver
se chegou alguma novidade nesses 15 minutos que ficamos longe.
Aproveitamos para comprar papel higiênico e sabão em pó e finalmente vamos
embora.
—Mari, pára de andar tão rápido. Estou custando a alcançar você!
—Eu nunca deveria ter vindo almoçar fora. Se ele tiver chegado, eu mato
você!
—Mata nada. Você vai ficar tão feliz que nem vai se lembrar de mim.
—Sabe que você tem razão? Agora vamos. Anda, anda.

52
Entro em casa e vou correndo para o computador. Nem acredito como a
conexão está benevolente comigo. Consigo conectar de primeira e vou para o
meu e-mail. Entro e... nada. Nem um cartão. Nem um e-mail. Nem uma
corrente. Totalmente decepcionada e já arrependida de não ter comprado um
potão de sorvete junto com o papel higiênico e o sabão, dou um atualizar, só
para não perder o hábito. Espere, o que é isso? Um e-mail do Rafael! Não
pode ser, essa coisa de atualizar nunca dá em nada! Vamos parar de reclamar
e abrir logo. Estou com sorte hoje. Meu paraíso astral deve estar começando
— eu tinha lido a data em um site, mas esqueci.

Oi, Marina!
Que saudade! Queria ter mandado um e-mail para você da viagem, mas eu
não tinha computador lá. O que você acha de a gente se encontrar hoje no
mesmo chat de sempre? Ou você vai estar muito ocupada? Um beijo enorme,
Rafa

Que e-mail interessante! Posso inferir várias informações preciosas dele:


1 – Ele ficou com saudades de mim, assim como eu fiquei dele; logo, não te-
nho mais que ficar com modo de ele ter se esquecido de mim. 2- Ele pensa
que eu tenho uma vida social agitada, mas nem desconfia que a última coisa
que eu estou hoje à noite é ocupada e que, mesmo se eu estivesse, não esta-
ria mais. 3- Eu estou desesperada agora, porque ainda são seis e meia e ele
costuma entrar no chat às oito.
Bom, mas tem um consolo quanto a esse terceiro item: eu não tenho que
me preocupar com o que vestir, nem com a maquiagem, nem com o cabelo.
Conto a novidade para a Ju, deito-me no sofá da sala com a melhor cara do
mundo e fico pensando. Agora, já tenho CERTEZA que sinto pelo Rafael o que
eu nunca pensaria que chegaria a sentir por um cara que conheci na internet.
Na verdade, mesmo comparando com meus romances frustrantes, porém
reais, essa minha relação com o Rafael ganha em vários quesitos. Por
exemplo: nós conversamos muito e ele se interessa pela minha vida como
ninguém nunca se interessou. O Gustavo, que posso dizer que foi o único
namoro que deu mais ou menos certo, apesar de ter dado completamente
errado, não estava nem aí para o que eu sentia, pensava ou fazia sem contar
que qualquer propaganda mais legalzinha que eu fazia, ele dava um jeito de
falar que ele tinha ajudado a fazer.
Mas o mais legal no Rafael é que ele conversa comigo e quer saber de
mim antes mesmo de termos ido para a cama. Alguns caras já fizeram tipo e
fingiram interesse pela minha vida, mas só antes de irmos para a fase carnal
da coisa. Com o Rafael, não. Nós já conversamos várias vezes e nem foto ele
pediu. Com certeza não iria se decepcionar com a minha aparência, mas eu
quero alguém que se interesse pelo que eu tenho por dentro — e ele se
interessa.
Resolvo entrar no chat. Quem sabe ele resolveu ir mais cedo, não é? Mas
ele não está lá. Aliás, a sala está bem vazia — só um tal de "Anjo solitário"
que, sinto muito, vai continuar solitário, porque eu só entrei na sala para
procurar o Rafael.

53
Deixo conectado e vou para a sala conversar com a Ju antes de o Bruno
chegar — eles vão jantar fora (se a Ju continuar assim, ela não vai caber no
vestido). Interrompo a conversa de cinco em cinco minutos para verificar se o
Rafael já entrou na sala, ela perde a paciência comigo, o Bruno chega, eles
vão embora, eu fico sozinha e passo a dar uma olhada na sala quando quero.
Olho para o relógio: são dez para as oito. Será que ele não vem? Nossa,
pareço uma adolescente insegura. Primeiro, fiquei na dúvida se ele ainda se
lembrava de mim, então vi que se lembrou e, em vez de ficar feliz, fico
preocupada se ele vai me dar o cano. Por que eu sou assim?
Isso mesmo. Chega de insegurança. Decido desligar o computador para
parar de conferir se ele chegou, feito uma louca. Depois eu volto. Confiro pela
última vez e vejo que ele está na sala! Ótimo, porque com certeza eu não
conseguiria desligar o computador e me sentiria uma idiota.
Será que dou só um "oi" seco e sem graça? Mas, se fizer isso, ele pode
achar que eu não liguei a mínima para o fato de ele ter viajado. Por outro lado,
se eu fizer festinha ao cumprimentá-lo, ele pode achar que eu sou uma
oferecida e que ele me ganhou completamente. Quer saber? Vou esperar ele
teclar alguma coisa, para ver COMO ele me cumprimenta.

Rafa/27 escreve: Marina! Que saudade!

Bingo.
Sozinha/24 escreve: Oi, Rafael! Eu também estava com saudades!

Rafa/27 escreve: Eu queria ter entrado em contato com você lá, mas não tinha
o menor jeito de usar um computador.

Sozinha/24 escreve: Eu senti tanta falta dos nossos papos!

Rafa/27 escreve: Eu também. Mais do que os nossos papos, eu senti falta de


você. Sabe de uma coisa, Marina?

Sozinha/24 escreve: O quê?

Rafa/27 escreve: Acho que a gente deveria marcar um encontro.

UM ENCONTRO! Como eu não pensei nisso antes? Finalmente, eu deixaria


de ter encontros virtuais, a Lu pararia de me encher e eu conheceria o Rafael
de verdade! Que coisa perfeita!

Sozinha/24 escreve: Não, Rafael, acho melhor não.

Rafa/27 escreve: Por que não?

Sozinha/24 escreve: Não sei por quê... depois a gente vê isso.

Rafa/27 escreve: Você não está gostando de teclar comigo? É isso?

54
Sozinha/24 escreve: NÃO! Definitivamente não é isso.

Rafa/'27 escreve: O que é, então?

Sozinha/24 escreve: Sabe o que é, Rafael? Você pode achar estranho, mas é
que... esta bom demais assim. Entende?

Rafa/'27 escreve: Para falar a verdade, não.

Sozinha/24 escreve: Não sei, é que... eu me machuquei muito com relaciona-


mentos Muito mesmo. Só tive decepções até hoje.

Rafa/'27 escreve: Eu sei. É por isso que eu estou aqui. Para você ter uma
relação diferente.

Sozinha/24 escreve: Pois é. Mas é que a única relação legal que eu tive até
hoje foi virtual! Tenho medo de fazer tudo ficar real e as coisas mudarem. Eu
não quero me machucar mais. Eu não quero estragar a relação mais legal que
já tive!

Rafa/27 escreve: Você não vai se decepcionar. Vai ser ótimo, é só você querer
e não ter medo de nada.

Sozinha/24 escreve: E eu quero. Mas não agora... quero ir devagar. Daqui a


um tempo a gente se encontra. Pode ser?

Rafa/27 escreve: Se você quer assim, eu respeito.

Sozinha/24 escreve: Já sei! Por que a gente não conversa pelo telefone? Aí
nossa relação vai evoluindo aos poucos.

Rafa27 escreve: Ah, não. Pelo telefone, não. Ou nos encontramos ao vivo, ou
continuamos teclando.

Sozinha/24 escreve: Certo. Mas você vai ter paciência comigo? Vai esperar eu
me sentir pronta?

Sinto-me uma virgem de 14 anos.

Rafa/27 escreve: Espero.

Uma virgem feliz, agora.

Sozinha/24 escreve: Que ótimo! Gosto muito de você, sabia?


Rafa/27 escreve: Eu também gosto muito de você. Vamos fazer uma coisa?
Vamos ser namorados virtuais até nos conhecermos pessoalmente?
Sozinha/24 escreve: Como assim?

55
Rafa/27 escreve: Eu não fico com ninguém e você também não. Igual a
qualquer namorado. Pelo menos teoricamente...

Sozinha/24 escreve: Isso parece perfeito. Namorados virtuais, livres dos


problemas reais que os casais têm. Feito!

Rafa/27 escreve: Agora me conta sobre você. Corno passou esses dias em
que a gente esteve longe?
Passamos horas conversando sobre nós dois, música, cinema...Tudo que os
namorados felizes conversam. Espero que em muito pouco tempo sejamos
namorados de verdade, Estou morrendo de vontade de conhece-lo, claro - mas
realmente quero ficar mais assim por algum tempo. Não quero nem vou me
iludir nem me machucar. Quando eu o conhecer ainda melhor, quando sentir
que estou pronta... aí nos encontramos e seja o que Deus quiser!

IV
Despeço-me da Marina, termino de comer a pizza que tinha pedido no
almoço e me deito na cama. Estou feliz. Está tudo errado, mas estou feliz.
O que torna as coisas mais erradas ainda.
Durante a viagem que não existiu, aproveitei para terminar de digerir minha
desilusão com a Laura. Fiquei surpresa ao perceber com alguma dose de
certeza que já me recuperei da decepção. Que ainda não sou capaz de sorrir e
dizer "Vamos tomar um café pelos velhos tempos", se me encontrar com ela na
rua, mas que já não estou emocionalmente abalada como antes.
Mas o foco de meus pensamentos era a Marina. Ah, minha mente era dela.
Procurei pensar sobre o modo como venho agindo. E decidi esquecê-la e parar
com essa história. Seria difícil, mas eu estava determinada.
Algumas horas depois da minha decisão, mandei um e-maíl para ela mar-
cando um encontro no chat.
Não sei por que pensei e refleti tanto para agir do modo como agi, ou seja,
para agir do modo corno agia antes de pensar e refletir. Mas cansei de tentar
entender. De pensar. De raciocinar.
(O que eu queria era só sentir.)
Quando faltava uma hora para a gente se encontrar, o Davi me ligou.
—Oi, Davi.
—Nossa, que voz triste! O que aconteceu?
—Aquilo.
—Aquilo o quê?
—Aquilo da Marina.Você sabe.
—Não! Você continua com isso! Você é ótima, Rafa — Ele falou, morrendo de
rir.
—Não ri. É sério. Eu comecei com isso e não consigo mais parar.
—Rafinha, vou te falar uma coisa - ele disse, depois de uma longa baforada. —
Marca logo um encontro com essa Marina, para ver no que dá. Com certeza
vai dar errado. Aí você desencana dessa história.
—Sem chance, Davi.

56
Meu "sem chance", ele sabia e eu desconfiava, significava naquele mo-
mento: tem chance.
Muita chance.
Até então, eu não tinha nem cogitado um encontro. Mas um dia ela iria me
propor isso. Ninguém fica teclando na internet para sempre com outra pessoa.
E o que eu faria? Ia boicotar nosso relacionamento, ficando chata aos poucos,
para ela terminar virtualmente comigo? Ou ia simular uma briga e terminar com
ela? Ou simplesmente sumiria?
Pode dar tudo errado. Tem 99% de probabilidade de dar tudo errado.
Noventa e nove vírgula nove por cento de dar tudo errado.
Mas a farsa teria fim. E isso daria vitória ao 0,1% certo.

57
11
Entro na agência mais feliz do que quando meu pai me deu os patins que eu
queria quando fiz 16 anos. Claro, duas semanas depois eu nem ligava mais
para o presente. Como é tranqüilo ter 16 anos! A gente pode mudar de opinião,
de vontades, de tudo, que ninguém liga, já que é normal. Sem contar que eu
podia comer tudo, incluindo pizza no almoço e chocolate de sobremesa, que eu
não engordava um grama. Bendita fase de crescimento.
A Sônia olha para a minha cara.
— Nossa! Pesou e viu que emagreceu?
Essa mulher me odeia. Eu estou gorda, por acaso? Meu peso nunca esteve
tão bom. Claro, faz mais de um mês que eu não peso, mas minhas calças não
têm reclamado.
—Melhor do que isso, Sônia. É o amor.
—Nossa! Ai se o Gustavo sabe.
—Gustavo? Que Gustavo?
Saio da recepção sentindo-me vitoriosa. Definitivamente, eu arrasei.
Também, mesmo se eu só entrasse e não dissesse uma palavra, já teria
arrasado. Afinal, meu cabelo brilha, minha pele irradia e meu sorriso cativa —
sem contar que uma espinha que apareceu há uma semana por causa de um
cosmético gorduroso que eu usei sumiu -, tudo isso por causa do amor. Nossa,
eu realmente estou me sentindo bem. Uma tranqüilidade. Uma paz. Nunca
pensei que um chat em que eu entrei depois de brigar com uma conexão lenta,
em um dia sem graça, seria capaz de me fornecer isso.
Entro na sala da criação.
—Oi, Má! Que cara boa, hein?
—Oi, Lu! É que eu estou namorando, sabe? N-a-m-o-r-a-n-d-o.
O Gustavo, que está do outro lado, escuta e faz uma cara horrível. A Lu me
puxa para um canto.
—MENTIRA! Sério mesmo? Que ótimo! Finalmente vocês se conheceram ao
vivo, hein?
—Não, a gente ainda não se conheceu. Estamos no plano virtual ainda.
—O QUE? Então como você me fala que estão namorando?!
—Nós combinamos nem eu nem ele vamos ficar com ninguém. Não é legal ?
A Lu suspira, desanimada.
— Superlegal, Marina.
Não quero nem saber: nada me desanima hoje. Eu estou gostando do meu
relacionamento assim, e problema de quem não gostar. Ainda mais depois de
domingo: passei o dia inteirinho com o Rafael no computador. Eu acordei e nós
teclamos; eu almocei e nós teclamos; tomei banho e nós teclamos, vesti meu
pijama e nós teclamos. Até escolhi uma camisolinha sexy (ligeiramente
empoeirada e com cheiro de guardada, mas ainda assim sexy) para me sentir
mais fatal, entende? Apesar de que não fizemos sexo on-line. Sexo se faz
pessoalmente, né? Se bem que conhecer pessoas também se faz
pessoalmente, mas como eu disse nada me desanima hoje. O Alexandre entra
na sala com uma cara de quem comeu e odiou.
— Oi, gente.
—Nossa, que cara, hein, Alexandre! — eu comento.
—Não quero comentários sobre isso. Os títulos, Marina.

58
Não é bom mostrar títulos para seu chefe quando ele está com uma cara
horrível. Se cheguei até aqui na publicidade, foi porque aprendi isso cedo -
apesar de que, ok, "aqui" não é lá grande coisa.
— O que é isso, Alexandre. Vamos tomar um cafezinho primeiro.
— Os títulos, Marina.
Respiro fundo. Ele quer o título, ele vai ter o título. Aliás, já está mais do
que na hora de eu me livrar dessa campanha. Essa porcaria de título me
custou uma noite horrível.
— Na verdade, Alexandre, só fiz um título - eu falo, firme e decidida. O segredo
é esse: ser firme e decidida quando se fala com o chefe.
— UM título? Que maravilha vou escolher um entre o seu "um título".
O clima fica levemente... levemente o quê? Levemente pesado isso. O
Gustavo ri, a Lu se concentra no computador e finge que não está ouvindo tudo
atentamente, o Fabiano e o Sérgio não fazem nada porque ainda não
chegaram. - Mas é um título bom, Alexandre. Um supertitulo.
— Ok, fala.
Eu procuro algum ponto no infinito para me concentrar e impostar minha
voz enquanto falo. Não se pode falar um título como quem conta uma piada,
tem que impostar a voz. Bom, vamos lá. Qual era o título mesmo? Ah, é,
lembrei.
— Encontro Marcado: porque causar uma boa impressão é mais fácil
quando não tom ninguém olhando. Que ta l? Gosto u?
— Nossa, Marina, você gastou uma semana para pousar nesse título? É
legalzinho, mas eu esperava mais! Falta graça, falta humor. O cliente queria
uma coisa leve, divertida, e você vem com esse clichê.
Olho para a Luciana. Ela olha para o mesmo ponto no infinito que eu
deveria ter patenteado. O ruim de pedir favor é isso. Se tivesse ficado ótimo, eu
quereria as glórias para mim. Se tivesse ficado qualquer coisa menos que
ótimo, eu quereria que a bronca fosse para ela. É bem justo, não é? Da pró-
xima vez, vou tentar combinar assim.
O Alexandre passa a mão na cabeça e eu e a Lu disputamos o mesmo
ponto. O Alexandre vê que a cabeça dele acabou e por conseqüência seu
passatempo, bufa e dá as costas para a gente. Eu levanto um pouco a voz.
— E que tal "Relacionamentos virtuais sem os problemas dos reais"?
Ele pára. Adoro quando eu falo alguma coisa e a pessoa, que antes estava
andando, pára. A não ser que ela esteja com uma faca, claro. Ele se vira para
mim.
— Bom, Marina. Muuuito bom.
Como "bom" não é bom, mas "muuuito bom" é ótimo, eu abro um sorriso e a
Lu também. Ela é esperta e sabe que agora eu não tenho mais motivos para
esganá-la. Eu sou uma ótima publicitária, mesmo. Eu deveria ganhar mais.
—É o amor, hein, Má! - a Lu fala.
— Hum...quer dizer que a Marina está namorando? — diz o Gustavo, querendo
se meter na história.
— É aquele cara, Marina? - o Alexandre pergunta.
— Não! O cara do chat, você quer dizer? Claro que não. Aquilo foi trabalho.
A Lu dá uma risadinha para mim e eu rio também. Todos voltam às suas
atividades. A Lu me puxa.

59
— Namoro virtual e ainda por cima escondido. Você voltou a ter 16 anos,
Marina.
Voltei, mesmo. Agora só falta pedir de novo ao meu pai os patins que eu
queria, porque aqueles já estão velhos.
Aproveito a hora do almoço para mandar um e-mail para o Rafael.

Oi, querido,
Você está livre agora? A gente podia ir ao chat para teclar um pouco. Estou
com saudades. Você me deu uma ótima idéia no trabalho hoje, sabia? Beijo,
Marina.

Entro no chat e espero alguns minutos enquanto como um sanduíche, patê de


ervas, apesar de eu ter pedido sistematicamente no telefone queria que viesse
sem patê de ervas. Oba, esqueça o patê, ele entrou no chat.

Marina escreve: Oi!

Rafa escreve: Oi, Marina! Que idéia foi essa que eu dei para você no trabalho,
hein?

Marina escreve: Ah! Foi um título que eu fiz para uma campanha aqui na agên-
cia. Era para um site de encontros, então eu lembrei de você.

Rafa escreve: Por falar nisso, qual é o nome da agência em que você trabalha,
hein? Você nunca me falou.

Marina escreve: Os Criativos. Por quê?

Rafa escreve: Por nada.

Marina escreve: Sabe, eu estava pensando... Por que não baixamos um


programa desses para conversar instantaneamente? Aí não temos que ficar
combinando esses encontros.

Rafa escreve: Eu até tenho MSN, mas nem te dei porque evito usar. Me
desconcentrava muito no trabalho. Mas se você quiser, posso voltar a usar
com você.

Marina escreve: Não, deixa pra lá, é até mais romântico assim. Hehehe...

Teclamos por umas duas horas sobre trivialidades desse tipo, porque não
apareceu nada para eu fazer no trabalho e nem para ele. O Rafael é um fofo.
Teve uma hora em que eu falei:

Marina escreve: Não deu tempo de correr hoje antes do trabalho. Vou ver se eu
pego uma aula de spinning mais tarde.

Rafa escreve: Para que você quer malhar? Você já é perfeita Marina.

Marina escreve: Você nunca me viu, Rafael.

60
Rafa escreve: Não preciso ver como você é fisicamente. Independentemente
de como é seu corpo, você já é perfeita.

Combinamos teclar à noite, assim que eu chegar da academia e tomar banho.


Mando um beijo, ele manda outro e eu saio do chat. O Gustavo aparece.
—Não acredito! Teclando em um chat no horário de trabalho!
—Quem está teclando em um chat? Entrei no site errado. Além disso, estou
ocupada demais para conhecer pessoas, porque estou na-mo-ran-do.
— Hum! Que interessante! Onde você co-nhe-ceu o ca-ra?
Enjoado! Fica mo imitando! Ele vai ver! Eu:
— Hum! Que interessante! Onde você co-nhe-ceu o ca-ra?
— Ai, Marina, você não está falando sério. Fazia anos que alguém não
brincava disso comigo.
— Ai, Marina, você não está falando sério. Fazia anos que alguém não
brincava disso comigo.
—Engraçadinha, você. Tchau, vou pegar um café.
Incrível! Dei uma ótima idéia para o Alexandre, estou com o moral lá em
cima aqui na agência e ainda fiz hora com a cara do Gustavo. O dia hoje
realmente está ótimo. Para completar, sinto mais do que nunca que eu estou
namorando. Hoje nós fazemos dois dias de namoro. Quanto tempo eu espero
para conhecê-lo pessoalmente? Três dias? Um mês? Vamos ver, vamos ver.
Depois eu penso nisso. Não quero me machucar de jeito nenhum! Quero sentir
firmeza primeiro. Fir-me-za. Nossa, tenho que parar de picar as palavras.

61
12
Chego na agência e a Sônia comenta que a minha pele está mais bonita.
Realmente, eu não queria falar nada, mas ela está mesmo mais luminosa
radiante e macia. Será que foi o creme novo que eu usei ontem? Nããão, por
que eu não usei creme novo nenhum - o tratamento se chama Rafael e foi
intensificado ontem, depois de cinco horas que a gente passou teclando na
internet. Não cinco minutos nem cinco meias horas, e sim cinco HORAS. Como
sou uma mulher feliz.
Entro na sala de criação e não tem ninguém — tudo o que tem aqui dentro
além do cheiro de cigarro do Alexandre é um buquê de rosas amarelas em
cima da mesa. Com certeza, alguma namorada baranga do Gustavo está
mandando para ele. Quem dá rosas amarelas? Vermelhas dão uma idéia de
paixão e sensualidade, brancas trazem paz e são recomendadas para quem
acabou de fazer uma operação de apendicite, mas amarelas?! O que elas
querem dizer, afinal? Que você está pálida? Observo as flores por mais um
segundo e a Sônia entra na sala.
— Esqueci de avisar, Marina, essas flores aí são para você.
PARA MIM?! Que flores lindas, nossa. Nem tinha reparado direito. É um
amarelo diferente, expressivo. Eu pensava que não queriam dizer nada porque
eu tinha olhado rápido e achado que as flores eram amarelo-ovo, mas agora
vejo que é amarelo-manteiga e aí tudo muda. Amarelo-manteiga traz o quê?
Paz, sensualidade e tudo junto que as outras cores não trazem. Foi uma bela
escolha. Agora vamos parar de enrolar e ver logo o cartão, porque eu não
tenho a mínima idéia de quem me mandou essas flores.

Querida Marina,
Gostou das flores? Espero que você esteja com saudades de mim, porque eu
estou de você. Tenha um ótimo dia, malhe bastante e tenha ótimas idéias (sei
que vai ter, porque você é o máximo!). Mas não se esqueça de mim quando
chegar em casa, hein?Vou estar te esperando no chat, como sempre. Beijos,
Rafa

Nossa, que lindo! Como o Rafael é sensível! Foi por isso que ele tinha me
perguntado o nome da agência! Confesso que eu tinha ficado, por três minutos
e meio, pensando na chance de ele ser um psicopata que ia me agarrar depois
de pegar o endereço do meu trabalho, mas agora vejo que esses três minutos
e meio foram a maior perda de tempo e que tudo o que ele queria me dar eram
flores. Muito, muito, muito lindo. Será que a Lu não chega nunca? E o Gustavo,
será que ele não vem mais? O que adianta ganhar flores se ninguém vê?
Quero dizer, as flores são lindíssimas e eu fiquei muito feliz em ganhá-las, mas
ficaria mais feliz ainda se alguém visse que eu ganhei. Nossa, estou parecendo
criança. Tenho que parar com isso. Oba, a Lu chegou, ela vai ver minhas flores.
—Lu, olha o que eu ganhei!
—Nooossa, que lindas, Má! Foi o homem invisível que te deu?
—Ele não é invisível, Lu, ele existe! A gente nunca se viu, mas ele existe.
—Má, eu estava pensando. E se esse cara for um maluco?
—Ai, meu Deus, lá vem você.
—Sério — ela continua — e se ele for psicologicamente afetado? Doido da

62
silva? Será que você não deveria se encontrar logo com ele para ver como ele
é?
—Pirou? Se ele for doido, eu quero continuar sem vê-lo!
—Marina escuta o que eu estou falando. Você deveria se encontrar com ele
logo. Ele pode não ser doido, mas ser feio, o que é pior ainda.
Por que as pessoas têm a capacidade de colocar idéias na minha cabeça?
Sem contar que a Lu é que é doida. Primeiro, acha ridículo eu conhecer um
cara pela internet e quer que eu desencane de qualquer jeito; depois, surta
porque acha que eu preciso conhecer o cara pessoalmente. Mas devo admitir
que agora estou na maior dúvida. Não que eu tenha medo que o Rafael seja
feio ou louco, mas é meio surreal receber flores de alguém que eu não conheço
de verdade, não é? E lindo, mas surreal. Por outro lado, eu tenho a sensação
de que conheço mais o Rafael do que qualquer cara que eu já conheci na vida.
Mando um e-mail para o Rafael, falando que amei as flores, e telefono para a
Ju, perguntando se ela pode almoçar comigo. Ela pode e eu desligo o telefone
satisfeita, para me lembrar dois minutos depois que ela não vai dar a menor
atenção aos meus problemas porque vai ficar questionando quais as flores que
ela deve colocar na igreja e no buquê ou coisa parecida. Não quero nem saber:
hoje ela vai me ouvir. Ela é minha amiga, não é? E daqui a pouco vai me
abandonar e eu vou morar sozinha com um estoque de congelados e sabendo
de cor a programação da TV aberta. Não. isola, daqui a pouco eu vou estar
morando com o Rafael que não ó feio nem psicótico, é o meu namorado
perfeito.
Desço de elevador e passo direto pelo restaurante natural — decretei que
hoje é dia coisa gordurosa e combinei ir com a Ju a um lugar ótimo que tem
comida mineira. Entro no restaurante e sinto o cheiro delicioso de lingüiça frita
engordurando minha pele, meu cabelo e meu coração. Há quanto tempo eu
não como coisas assim! Mal posso esperar.
Vejo a Ju sentada. Ela está sem o Bruno, ótimo — já é um ponto positivo I
talvez ela me dê a atenção que eu mereço. Eu me sento toda feliz.
—Oi, Ju! Quero te falar uma coisa.
—Oba, você já pensou?
—Pensou o quê? — eu pergunto assustada.
—Se vão ser rosas ou flores-do-campo; você disse que ia me ajudar a decidir!
—Eu disse? Nossa, Ju, eu nem me lembrava disso.
—Você nem liga para o meu casamento, Mari. Por você, eu morro viúva ou
divorciada antes de me casar.
— Não é isso, Ju.
—E isso, sim. Você só pensa em você.
—Que injustiça! Não é não.
—Ah, é? E o que você ia me contar tão animada assim que me viu? Era sobre
meu casamento, por acaso?
—Na verdade, era sim.
—Não acredito. O quê você ia falar? O quê? — ela pergunta, dando chilique.
—Eu ia pedir para você, pelo menos neste almoço, NÃO FALAR SOBRE A
DROGA DO SEU CASAMENTO!
O restaurante todo olha para a gente. Eu olho para a Ju e uma lágrima está
saindo dos seus olhos. Eu queria dizer o que penso para ver se ela melhora,
mas acho que falar "como você chora à toa" não vai adiantar muito. A Ju passa
a refeição inteira calada e vai embora sem dizer uma palavra. Pelo menos eu

63
não perdi meu tempo pedindo conselhos para uma futura esposa
descontrolada. Que raiva da Ju! É tão horrível assim eu querer falar de outro
assunto que não seja o casamento dela? Não, não é horrível. Eu não tenho a
auto-estima tão baixa assim para me sentir mal por uma coisa que eu não
tenho culpa. Então, por que é que eu me sinto culpada? Acho que o problema
foi a "droga" no meio. Não querer falar sobre casamento é uma coisa, não
querer falar sobre a droga de um casamento é outra completamente diferente.
Assim que chegar em casa, vou pedir desculpas a ela. Não pela frase toda,
mas só pelo "droga". Casamento não é uma droga. Alias, eu bem que queria
me casar. Claro que conhecer meu noivo primeiro ajudaria, mas não vamos
falar sobre isso. A briga com a Ju tirou todo o meu humor.
Chego na agência e a Lu me entrega um buquê de rosas vermelhas, Eu:
— Outro?
— Tá que tá, hein, Má!
Que lindo! Meu humor está de volta com toda a força. Eu queria ter o
telefone do Rafael agora só para falar que ele é o homem mais doce do
mundo. Eu disse mais doce? Ai, meu Deus. Será que ele é gay? Droga, a
Luciana conseguiu mesmo me preocupar. Se fosse antes de a Lu rogar praga,
eu estaria saltitante de felicidade com as flores. Mas graças a ela meus saltos
duraram só um minuto e deram lugar à temível dúvida de que tem alguma
coisa errada com o Rafael. Ou ele é feio, ou ele é psicótico, ou ele é gay.
Se ele for feio, bem, essa é a melhor das hipóteses. E tão deprimente
perceber que a melhor das hipóteses já é uma droga! Eu nunca namorei um
cara feio na vida. Eu conheço e admiro mulheres bonitas que têm namorados
horrendos (desde que eles não tenham uma carteira linda e recheada, porque
aí minha admiração vai para o espaço), mas acho que EU não consigo. Eu
ficaria pensando: "Que horror, Mari, você não arranja coisa melhor?". Nossa,
agora que eu estou vendo como sou fútil, má e calculista. Não sabia que eu era
assim. Talvez eu não me importe tanto se ele for feio. Talvez eu só pense que
me importe, mas na verdade eu seja muito mais legal e benevolente do que eu
imagine. Droga, para quem eu estou mentindo? Eu quero é que o Rafael seja
mais lindo, mais alto e mais forte do que todos os caras com quem eu fiquei.
Agora, se ele for psicótico, complica. Afinal, tudo bem que eu estou mor-
rendo de vontade de ter um relacionamento, mas se eu realmente morrer não
vou ter relacionamento nenhum. Talvez seja bom checar a ficha dele na polícia.
Será que dá para fazer isso pela internet? Ano passado, quando a Ju ficou
desconfiada de que o Bruno não a pedia em casamento porque era muito
católico e ela não tinha crismado, ela resolveu crismar pela internet por uma
pechincha. No final, foi só imprimir o certificado e pronto! Uma Ju
superecrismada saindo. Sem contar que, hoje em dia, até namorados se co-
nhecem pela internet, não é mesmo? E é uma coisa muito comum. Pena que
eles ficam na dúvida sobre quando devem se conhecer pessoalmente.
Mas, se ele for gay, eu desisto mais rápido do que o tempo que meu
macarrão instantâneo demora para ficar pronto. Eu já me apaixonei por um
cara gay e posso garantir que não é um processo muito interessante. Claro que
ele sabe reconhecer que você fez mechas cappuccino no cabelo e sabe de cor
a letra.da ultima musica da Madonna, o que são grandes vantagens, mas é
estremamente frustrante gostar de alguém que acha um abacate mais
interessante do que a sua bunda e que fica de olho no entregador de pizza
quando você se vira para pegar os pratos.

64
Fico com essas hipóteses malucas na cabeça até o expediente acabar.
Durante o dia inteiro não teve absolutamente nada para fazer na agência. Logo
hoje que eu queria ocupar minha cabeça com outras coisas que não fossem os
prováveis segredos do Rafael nem a culpa pela briga com a Ju.
Chego em casa e a Ju não está. Pego uma tigela de leite desnatado e co-
loco uma aveia esquisita, que vem com frutas amarelas e baunilha, que eu
comprei da última vez que fui ao supermercado. É incrível, eu não consigo
resistir às novidades que aquelas prateleiras danadinhas do supermercado re-
velam. Da última vez, comprei uma caixinha de suco de melancia com leite de
soja, que era hipercalórico, porém hor-rí-vel. Eu não aprendo mesmo, f
Embalagens coloridas e alegres me seduzem, fazer o quê? Derramo a pasta
na tigela e, para a minha surpresa, fica ótimo. Sento-me no sofá e fico pen-
sando na vida. Será eu devo me encontrar com o Rafael agora? Será que ele é
louco? Argh, vou conectar.
Vou para o computador e encontro o Rafael assim que entro no chat.

Rafa escreve: Oi! Pensei que você não viesse mais.

Marina escreve: Demorei, né?

Rafa escreve: Gostou?

Marina escreve: De quê?

Rafa escreve: Das flores, ué.

AS FLORES! Nossa, tadinho, ele me manda mil flores e eu só mando um e-


mail, nem falo nada depois. Ele todo sensível e eu aqui, pensando mal ele. Eu
não o mereço. Ele vai terminar comigo. Eu sei que vai. Está decidido: eu não
vou mais pensar mal dele. Não vou.

Marina escreve: Nossa, se eu gostei? Eu amei as flores.

Rafa escreve: Sério? Eu pensei que você tivesse esquecido.

Marina escreve: Imagina! Foi só por um momento. E que eu estava pensando


em outra coisa.

Rafa escreve: No que, você pode me contar? ou é segredo?

Bem, ele pediu para eu contar. Então, se eu perguntar se ele é louco, gay ou
assustador, a culpa não é minha.

Marina escreve: Sabe o que é Rafael? Eu estava pensando... sei lá, eu gosto
muito de você, e tal, mas eu fico meio insegura... pensando se você é diferente
do que eu estou imaginando.

Rafa escreve: E o que você está imaginando?

65
Estou imaginando um cara lindo, alto e forte — mas se ele for heterossexual,
não quebrar o espelho quando olha para ele e nunca ter matado ninguém, já
me dou por satisfeita. Hum, tenho que arranjar uma maneira melhor de falar
isso.

Marina escreve: Não sei direito... fico pensando se você não está fazendo hora
com a minha cara, sabe? Se você realmente está interessado por mim, se
você... se você gosta de mim.

Ei ficou bom! Ponto para mim. Um pouco melodramático, mas bom.

Rafa escreve: Marina, se eu não gostasse de você, por que eu mandaria flores
no meio da tarde? Ou você pensa que eu mando flores para uma mulher que
eu acabei de conhecer em um bar?

Marina escreve: Bem, se você fosse um psicopata e gostasse de perseguir


mulheres para fazer salsicha com elas, talvez você mandasse.

Certo, meus pontos acabam aqui.

Rafa escreve: Pode ficar tranqüila, Mari. Eu só quero te fazer bem. Mas, se
você está tão insegura, por que a gente não se conhece pessoalmente de uma
vez por todas?

Marina escreve: É, talvez fosse o melhor a fazer. Mas eu não quero quebrar a
magia, eu não quero estragar tudo... é ridículo, mas esse relacionamento virtual
ganha de todos os reais que eu já tive. Quero dizer, não é ridículo, não foi isso
que eu quis dizer.

Rafa escreve: Também foi a melhor relação que eu tive. Por que a gente não
torna isso real logo?

Marina escreve: Olha só, sexta-feira. Sexta-feira eu dou a resposta, pode ser?

Rafa escreve: Combinado. Agora vamos falar de outras coisas, que eu não
quero ver você esquentando a cabeça.

Ele é realmente um amor. Não quer que eu esquente a cabeça, fica me


protegendo... um doce. Realmente, não tem como eu pensar mal dele. Eu
estou loucamente apaixonada pelo Rafael, penso nele dia e noite, meu
coração não pode estar enganado! Vou deixai rolai e sexta feira eu decido.
Teclamos até meia noite, quando a Ju finalmente chega. Eu me despeço do
Rafael e resolvo verificar se ela ainda está com ódio mortal de mim.
— Lu? Você está aí?
— Rosas ou flores do campo, Marina?
— Hã?
— Responde logo, senão vou pensar que você não está nem aí para mim.
—Certo. Flores do campo com rosas cor-de-rosa enfeitando a igreja, para

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simbolizar amor e ternura, e rosas amarelas para o seu buquê.
— Amarelas? Por que amarelas?
— Porque transmitem paz, sensualidade e tudo o que as outras cores
transmitem.
— Jura? Ai, amiga, obrigada! Eu sabia que você se importava comigo!
Problema 2 resolvido, fico novamente com o problema 1. Mas tudo bem, ainda
tem um monte de dias antes de sexta-feira e vou dormir tranqüila.

67
13
Ótimo, já é quinta-feira e eu não tenho a menor idéia do que faço da vida
amanhã. Como a semana passa rápido quando você não quer que ela passe.
Para piorar a situação, não preguei o olho à semana inteira de tanta ansiedade.
Sem contar o trabalho: esta semana apareceu uma campanha de celular para
a gente fazer. Dessa vez eu vou participar o que é ótimo, mas ninguém está
tendo idéia nenhuma, o que é péssimo. O cliente quer uma campanha
romântica, mas sem falar de amor. Como vou fazer uma campanha romântica
sem falar de amor? Eles disseram que querem que a gente faça uma coisa
calma, que passe uma paz interior para quem está vendo, como se o mundo
fosse um lugar bem romântico, mas sem falar de amor. Eu mereço.
O Alexandre anda pela sala de um lado para o outro, tentando pegar alguma
idéia no ar, e eu finjo que estou superconcentrada, pensando na campanha,
quando na verdade estou superconcentrada pensando se encontro ou não o
Rafael logo. Como é fácil fingir que você está concentrada quando você de fato
está concentrada, mas em outra coisa.
Mas o que eu estou fazendo? Estou muito indecisa. Eu preciso ser mais
rápida, preciso resolver o que quero fazer. Por que eu não quero encontrar o
Rafael agora? O que pode dar de errado? Na verdade, tudo. Bem, isso não
está me ajudando. Abro o Word e resolvo fazer uma lista. Listas são sempre
boas.
De um lado, escrevo "O que pode dar errado". Do outro, escrevo o que eu
faço caso isso aconteça. Acho que assim eu fico mais calma.
Bem, se ele for psicopata, eu chamo a polícia; se ele for gay eu corro; se ele
for casado, talvez eu dê uns beijinhos; se ele for horroroso, eu coloco os óculos
de grau da Juliana, não enxergo nada e decido o que fazer no próximo
encontro; se ele comer de boca aberta, eu olho para o outro lado; se ele não
gostar de mim, talvez eu tinja o cabelo e capriche mais na malhação; se a
gente ficar sem assunto, eu levo dois lap tops e começamos a teclar. Está
vendo, Marina? Foi mais fácil do que você pensava. Com exceção da última,
todas as soluções que levantei são perfeitamente viáveis.
Mas a principal coisa que pode dar errado é se, quando eu o conhecer
pessoalmente, eu não sentir o click que eu sinto quando a gente tecla. Pela
internet, a sensação que tenho é que nos conhecemos há séculos q que
nascemos um para o outro. Mas pode sei que, quando eu o encontrar em um
bar, ele seja só mais um desses caras sem graça que a gente encontra em um
bar e eu perca o namorado que eu nunca tive. Como estou poética hoje tenho
que anotar isso em algum lugar.
Eu sei que estou sendo boba de não arriscar, mas não quero deixar de ter
essa sensação tão boa de chegar em casa todo dia e saber que tenho um cara
legal para conversar durante horas. Ontem mesmo, nós ficamos até 3 horas da
manhã teclando. Eu sei qual é a sobremesa preferida dele (torta de morango),
o tipo de música de que ele mais gosta (MPB), a ficha da sobrinha dele
(chama-se Sabrina, tem três anos e meio e semana passada roubou o
bombom de uma coleguinha e ficou de castigo), se ele gosta de feijão ao lado
ou em cima do arroz (ao lado, igual a mim) e até se ele costuma dormir logo
depois de fazer sexo (ele conversa primeiro, vivaaaa!).

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Por outro lado, não quero ficar teclando com ele para sempre, né? E a coisa
tem que evoluir. Será que o método de jogar cara e coroa é cientificamente
comprovado?
—Marina! E a última vez que chamo você! Olho para o lado e vejo a Lu com
cara de brava.
—Desculpa Lu, eu estava viajando.
—Aposto que você estava pensando se encontra ou não com ele — ela diz,
com aquela cara de sabe-tudo. Incrível como ela sabe tudo, mesmo.
—Imagina! Eu estava pensando era na campanha.
—Má, — ela ri —, pode falar o Alexandre não está mais na sala.
—Eu estou tão confusa, Lu! Não sei se quero me encontrar com ele.
—Ai, Marina, vira homem!
—Hã?
—Sério, Má, deixa de bobagem e marca um encontro com ele logo.
A Luciana é tão insensível, às vezes. Parece que tudo para ela é superfácil.
Ah, mas sabe que ela tem razão? Eu deveria parar com essa frescura e marcar
um encontro logo. Eu preciso conhecer pessoalmente meu namorado, não
preciso? Está decidido, não vou nem esperar amanhã: vou falar com ele hoje.
Calma, também não é assim. Eu preciso de um sinal, de uma coisa que me
indique que o melhor a fazer c isso mesmo. Bem, eu mantenho minha decisão
caso o Alexandre, em dez segundos, entre naquela porta. Um, dois e... o
Alexandre entra. Droga. Minha decisão está tomada, então. Se essa história ri-
dícula de sinal que eu inventei deu certo, deve ser o melhor a fazer mesmo.
Decido mandar um e-mail ao Rafael, antes que eu mude de idéia. Também não
vou perguntar a opinião de ninguém, senão coloco todos os fatores na balança
e acabo desistindo. Li em algum lugar que o importante não é pensar muito, é
pensar bem. Esta certo que eu tomei a decisão em cinco minutos,, mas eu
acho que pensei bem, não pensei? Se bem que dizem que a pressa é inimiga
da perfeição. Droga, o que tem de errado com essas frases feitas?
Chega de lentidão. Vamos tentar ser dinâmicas. Ligo o monitor para me
conectar à internet. Droga, já está conectado. É por isso que não gosto de
tomar decisões importantes na internet aqui do trabalho. Nem os 10 minutos
que levaria lá em casa para conectar eu tenho para pensar. Bem, vamos em
frente. Entro no meu e-mail e não tem nenhuma mensagem nova. Se o Rafael
me amasse mesmo, ele teria me mandado alguma mensagem, certo? Então
acabo de desistir da minha decisão. Não, Marina, o que é isso? Você não pode
ser volúvel assim. Você decidiu, não decidiu? Agora vamos em frente.
Clico em "escrever nova mensagem". Droga, por que a conexão aqui é tão
rápida? Parece que todo mundo tem que estar com pressa, pressa, pressa.
Mais tarde, vou escrever um e-mail para o provedor reclamando que eles são
rápidos demais. Bom, continuemos. Não vou me desviar do meu objetivo.
Vejamos como eu começo o e-mail? Acho que posso começar escrevendo
"Rafael". Fica bom, não fica? Afinal, é o nome dele. Vamos lá.

Rafael,
Sábado será o grande dia, certo? A Cafeteria Bahamas parece ser um lugar
bem acolhedor. Estou ansiosa para conhecer você finalmente e mostrar todo
o meu amor.
Mil beijos,
Marina

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O que é isso? Eu estou me jogando para cima dele! Além do que está
romântico e brega demais. Grande dia? Acolhedor? Posso fazer melhor do que
isso. Um estilo low profile costuma funcionar bem. Vejamos.

Rafael,
Encontro você na Cafeteria Bahamas no sábado. Vai ser legal.
Beijo,
Marina

Certo, agora consegui ser tão casual como a filha que avisa a mãe que está
indo à padaria comprar pão. Não acho que seja uma boa idéia. Ele não pode
pensar que estou pronta para o casamento, mas também não pode achar que
vale para mim o mesmo tanto de um pão quentinho — definitivamente ele vale
muito mais. Sem contar que de onde eu tirei Cafeteria Bahamas? Eu odeio
aquele lugar.

Rafael,
Pensei muito e decidi: já está na hora de a gente se encontrar. O máximo que
pode acontecer é dar absolutamente tudo errado, não é? . O que você acha
do Café Marília de Dirceu? Poderia ser no sábado, às 20h.
Beijos,
Marina

Perfeito. Delicado, sem ser casual demais e ainda tem uma piadinha no
meio para aliviar a atmosfera. Eu sou um gênio. Agora só falta o último
des afio: clicar no botão "enviar".
Nunca tive tanto medo desse botão. Ainda mais que nesse computador é
tão rápido que vai bastar eu encostar de leve nele que a mensagem será
enviada. Aliás, o que me garante que, se eu colocar o mouse em cima do
botão, mas sem apertar, a mensagem não será enviada? Não ia ser nada justo.
Seria como pular de pára-quedas sem a chance de mudar de idéia no meio da
queda! Digo, essa chance existe, certo? Se não existir, alguma coisa está
errada nesse esporte.
Olho para o botão enviar. O botão enviar olha para mim. Resolvo revisar a
mensagem antes de mandar. Nada pior do que uma mensagem errada. Já
pensou se, em vez de "máximo", eu escrevi "máchimo", por exemplo? Ele vai
me achar uma idiota e não vai querer se encontrar comigo. Vou revisar essa
mensagem logo... não, está tudo certo. Mas será que tenho certeza mesmo?
Eu daria minha vida por isso? Melhor revisar de novo.
Leio linha por linha umas sete vezes. Não, não há nada errado — ainda
bem, são só seis linhas e eu me sentiria muito estúpida. Droga, por que es-
crevo tão certo assim? Já acabou minha revisão. O jeito é mandar essa men-
sagem logo.
Pouso levemente o mouse sobre o botão e preparo-me para apertar.
Espere, talvez seja melhor copiar a mensagem de novo. Vai que dá a louca
nesse computador e ele apaga a mensagem que eu demorei um tempão para
elaborar. Pronto, copiei. Agora é só enviar mesmo. Ande Marina, é só mandar
um e-mail, você faz isso tantas vezes... o que custa mais uma... Respiro fundo
e decido que a hora é agora. Agora, não: no três. Então vamos lá. Um, dois e...

70
— Marina, já pensou em alguma coisa? — o Alexandre pergunta. -Alguma
coisa? Como assim?
— Para a campanha, Marina. Do celular. Aqui da agencia. Lembrou?
— Aaah. Já vou pensar, espera um minuto – Como se eu não estivesse
fazendo nada.
Pronto. Ele cortou meu raciocínio e eu não vou mais mandar esse e-mail.
Não tenho mais preparação psicológica. Talvez daqui a dois anos, se não
chover, eu mande.
Resolvo atualizar meu e-mail antes de voltar ao trabalho, quando vejo uma
mensagem do Rafael. Que lindo, vamos ler isso logo!

Oi.Mari!
Que saudades! Não quero te pressionar, nem nada, mas você já pensou na
sua resposta? Sei que é amanhã, mas... você sabe... não consigo parar de
pensar em você.
Mil beijos,
Rafa

Como ele é romântico! Ele realmente gosta de mim como eu gosto dele! O
que eu estou esperando? Vou mandar meu e-mail para ele e pronto.
Colo a mensagem que eu tinha escrito e, sem pensar muito, clico no enviar.
Ai, agora não tem mais volta! A mensagem já foi. E a resposta dele deve vir
super-rápido, porque, se ele me mandou um e-mail agora, é porque está no
computador neste exato minuto. Tudo o que eu tenho que fazer, então, é dar
um atualizar de cinco em cinco segundos para ver se ele já respondeu. Nossa,
estou sendo uma adolescente, né? Nem sei esperar, credo. Vou olhar só de
dez em dez segundos.
Já faz mais de uma hora que eu mandei a mensagem e nada. O pior é que
minha mente está temporariamente bloqueada para pensar na campanha do
celular, porque só consigo pensar nesse e-mail que o Rafael não manda nunca.
É tão ruim pensar em coisas que não acontecem.
A Lu, que tinha saído para não-sei-quê, entra na sala.
— Vamos comer alguma coisa, Má? - ela pergunta.
— Não posso. Estou aqui, olhando se o Rafael já respondeu meu e-mail.
— Então vai ficar aí o dia inteiro, né? Afinal, vocês namoram por e-mail.
— Não, Lu, agora é mais importante do que nunca. Eu marquei um encontro
com ele.
— Jura? Não acredito? Para que dia? Daqui a menos de dois anos?
— É sério! Marquei para este sábado. Só não sei se ele aceitou ainda.
— Parabéns, Má, você está evoluindo. Agora, vamos.
— Não vamos, não.
A Lu vai e eu fico em frente ao computador. Acho que ele está estragado,
não é possível. Primeiro, faz tudo rápido demais. Agora é essa lerdeza. Bem
que poderia ser no meio termo o tempo todo.
Bem, vamos parar de pensai no Rafael e pensar no trabalho, que eu sou
paga isso, muito mal paga, por sinal. Era para todo mundo estar pensando na
campanha, mas o Alexandre não está na sala, a Lu foi comer e o Gustavo...
bom, eu não discutiria a propaganda com ele nem se ele fosse uma doceria e
eu estivesse há uma semana sem brigadeiro. Ei, estou criativa, hoje. Quem
sabe eu consiga manter esse nível e faça uma ótima propaganda, que
impressione o Alexandre, me faça ganhar prêmios e ainda aumente meu
salário. Bem, eu quero fazer tudo isso, mas antes vou verificar meu e-mail.

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Não acredito! O que é isso? Ele me mandou uma mensagem. Parece um
sonho, nossa. Vamos ver logo o que ele escreveu.
—E aí, Marina, já pensou em alguma coisa? — o Alexandre me pergunta,
depois de me pegar de surpresa e me fazer dar um superpulo na cadeira. Não
é possível. Ele fica atrás da porta esperando a pior hora para me abordar,
tenho certeza.
—Ainda não — eu respondo. — Por que não fazer um brainstorm, com todo
mundo da criação?
—É o que nós vamos fazer, lindinha. Mas eu não quero que vocês cheguem
crus como legumes na reunião. Hum, ficou bom, vou anotar isso.
Eu não acho que ficou bom, porque os legumes podem estar cozidos, mas
vamos pensar em coisas mais importantes. O Alexandre pega o seu bloquinho
para anotar e eu aproveito a brecha para ver logo o que o Rafael me mandou.

Oi, Mari!
Não acredito que nós vamos nos encontrar, que bom que você decidiu! Espero
que goste de mim e que sua mente esteja aberta para um namoro não exata-
mente padrão. Estamos marcados, então: sábado, às 8, no Marília de Dirceu.
Beijos, Rafa

NAMORO NÃO EXATAMENTE PADRÃO? O que ele quer exatamente


dizer com isso? Agora fiquei preocupada. Namoro fora do padrão, para mim,
era o que a gente estava tendo agora. Se mesmo depois de a gente se
conhecer, continuar fora do padrão, aí complica!
Droga, por que ele foi tão vago? Se ele dissesse: "espero que sua mente
esteja aberta para um namoro maluco, em que a gente vai saltar de pára-
quedas todo dia" ou então "espero que sua mente esteja aberta para um
namoro muito liberal, na base do ninguém-é-de-ninguém", eu ficaria mais
tranqüila. Quer dizer, eu não me encontraria nunca mais com ele em toda a
minha vida, mas ficaria mais tranqüila. Agora, só namoro fora do padrão. Como
assim?
Vou pedir a opinião da Lu. Não, da Lu não, da Ju. Ligo para o celular dela.
Atende Ju, atende.
— Alô.
—Ju? Que bom que você atendeu!
—Oi, Mari! Fala rápido que eu estou escolhendo o prato quente da festa do
meu casamento.
—Não ia ser arroz à piemontesa? — eu pergunto.
—Pois é, mas arroz à piemontesa só com molho branco ou com champignons
no meio? Se for com champignons, é melhor com palmito também, porque já
tem champignons, ou sem palmito, justamente por que já tem champignons?
Ai, me ajuda, Mari!
— Depois, pode ser? - eu respiro fundo - estou com um problema agora.
— Você não foi despedida, foi?
— Não, não é isso. É que... eu combinei de me encontrar com o Rafael
pessoalmente, olha só!
— Nossa Mari! Parabéns!Vai dar tudo certo, você vai ver. Vocês nasceram um
para o outro. Mas por que isso é problema?
— Porque ele acabou de me mandar um e-mail dizendo que espera que minha
mente esteja aberta para um namoro fora do padrão! O que será que ele quis
dizer com isso?! Estou quase desistindo! — eu grito. Ainda bem que o

72
Alexandre saiu da sala.
—Como você é pessimista, Marina! Veja bem: seu padrão de namoro é
péssimo, certo? E ele sabe disso, não é? Então: ele disse "fora do padrão"
porque vai ser ótimo!
Devo admitir que eu não tinha pensado por esse lado. Talvez, em um
universo paralelo, colorido e longínquo, ela esteja certa. Nossa, estou real-
mente sendo pessimista. Por que o Rafael falaria alguma coisa para me as-
sustar, não é? Deve ser coisa boa. Tudo bem que é um pouco pretensioso o
fato de se considerar um novo paradigma na minha vida amorosa, mas eu
gosto de homens seguros e confiantes. Sem contar que é muito melhor ele ser
convencido do que ser gay, psicopata ou horroroso.
O negócio, agora, é me acalmar. Fui extremamente corajosa ao decidir
marcar um encontro com ele e devo saborear essa vitória, como pregam os
autores de livros de auto-ajuda. Pronto, saboreei. O que faço agora? Como vou
sobreviver até depois de amanhã?
Vou fingir que o encontro não existe e é uma mera alucinação do meu
inconsciente. É, vou fazer isso. Não adianta, eu não consigo! EU SEI que
depois de amanha é o dia D. Bom, vou fazer planos para o encontro, então.
Talvez isso me acalme.
Vamos começai pela roupa. Definitivamente, não tenho nada em casa que
sirva. Preciso comprar alguma coisa nova. O ideal é que seja uma peça
espojada, sem sei esportiva demais; sexy, mas sem querer dizer "veja meus
peitos, como querem ser agarrados por você"; antenada com a moda, mas não
a ponto de me fazer parecer uma estilista de vanguarda que paquera pela
internet para buscar inspiração para suas coleções; e romântica, mas não tanto
que ele ache que eu sou uma louca para casar só de olhar para minha roupa.
Será que se eu explicar isso à vendedora ela vai entender e me trazer uma
roupa à altura?
Vejamos. Calça de cintura baixa é legal, realça minhas curvas que, mo-
déstia à parte, não estão deixando a desejar. Claro que não posso combinar
uma calça desse tipo com um top minúsculo, ou ele vai pensar que nosso
encontro no café custa 50 reais a hora. Esqueça, estou fazendo tudo errado.
Como o encontro vai ser em um café, vamos estar sentados, provavelmente
um de frente para o outro. Então, é melhor investir na parte de cima da roupa, e
não na de baixo, que ele mal vai ver. Talvez uma calça sem barriga de fora e
uma blusa com decote arrasador. Não até o umbigo, mas arrasador. É, é isso.
Hoje mesmo, depois do trabalho, passo no shopping e torro meu cartão de
crédito. A ocasião merece.
Sorrio feliz e satisfeita com minha resolução, e já vou comunicá-la a Lu,
quando o Alexandre entra na sala.
— Já fizeram alguma coisa, pelamordedeus? — berra o Alexandre, com
cara de nenhum amigo.
Ninguém responde. O Alexandre continua.
— Estão sem inspiração, eu respeito. Vamos fazer o brainstorm assim mes-
mo. Todo mundo varando a noite aqui hoje.
Varar a noite? Alôòô, eu tinha planos de ir ao shopping daqui a pouco.
Como ficam meus planos?
— A gente pode pedir pizza na mesma pizzaria do mês passado — a Lu
propõe. Eu aqui com meus dilemas, e ela pensando se vai ser de frango ou
portuguesa.
Tudo bem. Devemos ter esportiva nessa vida. Amanhã, assim que sair da
agência compro as roupas.

73
14

É sexta-feira à noite e, inacreditavelmente, ainda estou nesta maldita


agência. O que há com essas pessoas? Ninguém tem idéia nenhuma para a
campanha? Se alguém, ontem mesmo, tivesse tido um surto de criatividade, eu
já estaria na minha casa há muito tempo. Mas tudo o que saiu das nossas
reuniões foi o slogan ridículo do Gustavo: "Por que celulares GN? Porque sim".
Pelo menos descontraiu o ambiente: assim que viu a cara péssima do
Alexandre, o Gustavo perguntou:
— Por que você não gostou?
E o Alexandre:
— Porque não.
E hoje está à mesma coisa. Pelo menos o Alexandre não está mais irritado: já
tinha passado da hora de ele perceber que ficar nervoso não é a melhor
maneira de arrancar boas idéias da mente das pessoas (de arrancar medo de
ser demitido, talvez).
—Vamos lá, gente. A idéia que você tinha dado estava interessante. De-
senvolva mais, Luciana - o Alexandre fala.
Isso, Luciana, desenvolva. Se você desenvolver alguma idéia sensacional
agora, talvez ainda dê tempo de eu pegar o shopping aberto.
— Já sei - diz a Lu. Oba. - Vamos pedir outra pizza.
— Vamos - responde o Gustavo.
Eu resolvo me intrometer.
— Ah, gente, vamos embora. Segunda-feira trazemos idéias fresquinhas.
— Segunda?! - responde o Alexandre - Amanhã. Se não sair nada hoje, a
gente vai ter que trabalhar no fim de semana. O cliente quer isso para
segunda.
Só faltava essa! Não preciso de pizza, preciso de idéias. Idéias urgentemen-
te, para não ter que trabalhar amanhã! Seria um pesadelo! Estou até vendo: eu
comprando as roupas sábado à tardinha, na maior correria, e chegando ao
encontro com a cara toda inchada de cansaço. Isso na melhor das hipóteses,
porque o mais provável é que a gente passe à noite de sábado aqui também,
como já fizemos várias vezes. Que arrependimento! Eu deveria ter pensado
em alguma coisa no meio da semana!
A p i z z a c h e g a e t o d o s c o m e m s e m a m e n o r pressa. Que droga, por
que ninguém esta pensando em propaganda? Tudo bem, eu penso sozinha em
alguma coisa. Celular ... romântico sem falar de amor... Droga, eu nunca vou
sair daqui.
São 2 horas da manhã e estou aqui presa na agência. É melhor esquecer a
idéia de estar com os olhos brilhantes e reluzentes no encontro. Ou melhor,
talvez nem tudo esteja perdido. Posso chegar em casa, falar para a Ju não fa-
zer nenhum barulho e dormir a tarde inteira. Acordo dou uma corrida no parque
para desinchar, compro uma roupa bacana e chego meia hora atrasada ao
encontro — é até bom, para dar um suspense. É, vamos ser otimistas.
Começo a viajar pensando no encontro e deito a cabeça na mesa enquanto
todos discutem.
— Marina? Pode ir embora — diz o Gustavo, me tirando de alfa.

74
— Hum?
— Eu tive uma idéia, depois explico para você. Vamos todos para casa — diz
a Lu.
Só não fico mais feliz porque estou morrendo de sono. Antes de sair, o
Alexandre diz:
— Lembrando que quero todo mundo de plantão amanhã, certo?
PLANTÃO? O que ele pensa que eu sou, médica? Odeio essa história de
plantão. Significa que eu passo o fim de semana sem aproveitar direito, porque
a qualquer momento podem me ligar da agência falando para eu largar tudo e
ir trabalhar.
— É mesmo necessário, Alexandre? — eu pergunto.
— Como você está preguiçosa, hein, Marina? Vou mostrar o anúncio para
o cliente amanhã. Se ele não aprovar, a gente tem que fazer outro.
Imagine a cena: eu saindo do banho, me arrumando para ver o Rafael,
quando o Alexandre me liga falando que devo vir para a agência. Até parece!
Já fiz isso muitas vezes, mas amanhã, não. Não quero nem saber: vou desligar
o celular.
— Tchau, Lu, tchau, Marina - diz o Alexandre. - Até amanhã, se for o caso.
—Até — eu respondo. Vai sonhando. Desço no elevador com a Lu.
—Que chato, hein, Má? Talvez mele o seu encontro amanhã.
—Pois é... Mas não vou ficar triste antes da hora.
Tudo bem, a Lu é minha amiga, mas talvez não queira ser minha cúmplice.
Melhor só eu saber da minha estratégia maligna. Rafael, me aguarde!
Chego em casa, olho para minha cama querida e me deito. Antes, porem,
certifico que desliguei o celular, para não acordar de jeito nenhum. Alias vou
esquecer que tenho celular até domingo. O Rafael não vai me ligar mesmo,
porque ele não tem o número. Conhecer pessoas pela internet tem muitas
vantagens. Se ele fosse um cara que conheci em um bar, eu provavelmente
passaria o dia aflita, esperando que ele me ligasse a qualquer momento pelo
celular para desmarcar o encontro.
Bom, agora chega de pensar, vou dormir. Como será que vai ser amanhã,
hein? Será que é melhor eu chegar ao encontro antes dele ou depois? Talvez
eu mantenha minha resolução de chegar atrasada, embora eu não precise
mais dela — afinal, terei o sábado inteiro para correr, comprar minha roupa no
shopping, tomar um banho bem cheiroso e fazer uma escova caprichada no
cabelo. Mas talvez seja melhor eu chegar primeiro ao encontro, porque, afinal,
ele vai me achar muito mais bonita se eu não fizer suspense nenhum.
Suspense gera ansiedade e, quando eu finalmente chegar, ele vai pensar: "ufa,
ainda bem que ela é bonita". Porém, se eu estiver sentadinha quando ele
aparecer por lá, ele vai olhar para mim e talvez fique espantado com a minha
beleza. Não que eu seja uma Gisele Bündchen, mas, convenhamos, quando
você encontra alguém que conheceu pela internet pode dar de cara com
QUALQUER COISA. Não sou uma diva maravilhosa, mas com certeza ele vai
ficar aliviado ao constatar que estou longe de ser assustadora.
Bom, amanhã decido se chego mais tarde ou mais cedo. Tudo o que preciso
agora é de uma boa noite de sono para acordar com a pele bem bonita. Nossa,
agora estou pensando uma coisa: não falei com que roupa eu vou estar, nem
ele me falou como vai estar vestido. Como vamos nos reconhecer? É melhor

75
eu mandar um e-mail para ele agora, dizendo como vou estar vestida. Mas,
pensando bem, nem comprei minha roupa ainda.
Estou feliz por termos marcado no Marília de Dirceu e não no Bahamas. O
Bahamas é enorme, mas o Marília é pequeno e aconchegante — mesmo se
continuarmos sem combinar a roupa, acho que não teremos problemas em nos
encontrar.
Meu Deus, já faz mais de meia hora que estou na cama pensando! Preciso
dormir, definitivamente. Talvez um leite ajude.
Esquento o leite e derramo na caneca, quando escuto a porta da sala se
abrindo. É a Ju, que chega chorando.
— O que aconteceu,Ju?
— Aconteceu que o Bruno é um grosso!!!
Vamos para a sala.
— Senta aqui, Ju - digo -, agora se acalme. O que o Bruno fez?
— Nós saímos para jantar fora. Ele acabou de me deixar aqui. Sabe o que ele
fez? Sabe?
— Não. O quê? - pergunto,
— Ele apelou comigo quando eu tirei uma revista de casamento da bolsa para
mostrar o terno do noivo!
Não sei por que, mas eu entendo o Bruno.
— Nossa, Ju, mas no meio do restaurante? — pergunto delicadamente.
— Você também não me entende, né, Mari? Poxa, agora que já escolhi o
vestido e tudo... vai ser um trabalho perdido se o terno dele não combinar com
o meu vestido!
Eu abro a boca para falar que ela está exagerando, quando ela começa a
chorar como nunca, no estilo de um bebê cuja mãe parou para atender ao
telefone no meio da mamada.
— Não sei se quero mais me casar, Mari! Estou tão confusa!
ELA está confusa? Primeiro, o casamento era a força motriz da vida dela.
Agora, ela me diz que não sabe mais se quer se casar. Se ela está confusa,
imagine como eu estou.
—Calma, Ju. Você está nervosa por causa da briga. Amanhã você já vai estar
normal.
—Não vai ter amanhã! Eu quero morrer antes de amanhã chegar! — ela berra.
— Sem contar que, quanto mais pesquiso o preço das coisas, mais angustiada
fico. Se eu for me casar do jeito que estou querendo, com a festa que quero o
vestido maravilhoso que quero, a lua-de-mel em Paris como quero, etc., vai
demorar mais de um ano pra eu ter dinheiro suficiente! Mesmo com meus pais
ajudando!
—Mas olha por esse lado, você não disse que está confusa e não sabe se quer
mais casar? Se você não casar, não vai gastar nada!
—Mari!
—Olha, você quer o meu leite?
Ela não quer. E eu passo duas horas inteiras tentando consolá-la. Posso
estar sendo egoísta, mas a questão é que, se eu conversar com ela por duas
horas, amanhã ela já está boa. Mas, se eu ficar muda como uma pedra e
deixar ela chorando sozinha, amanhã ela já está boa do mesmo jeito! Porque
qualquer um pode ver que ela está tendo um clássico piripaque pré-casamento
e que isso é passageiro! O fato é que, se amanhã ela já está boa, POR QUE

76
EU NÃO POSSO DORMIR PARA CUIDAR DA MINHA PELE E ME PREPARAR
PARA O ENCONTRO DE AMANHÃ?
Bom, já são 5 horas da manhã e finalmente vou para cama. Acordo às 8,
graças à sinfonia da reforma que o vizinho está fazendo no apartamento dele, e
constato no espelho a maravilha que foi para o meu visual eu dormir por três
horas. Só falta terem jogado uma bomba no shopping e não ter mais nenhuma
roupa disponível. Eu mereço.
Ok, vamos melhorar esse humor. Chego na cozinha e vejo que a Ju já
levantou e já saiu. Ótimo, deve ter ido fazer as pazes com o Bruno e
comemorar, mostrando a ele todos os lançamentos em revistas para noivas.
Bato sorvete com leite no liquidificador e verifico meus e-mails: tem uma men-
sagem do Rafael confirmando o encontro e dizendo que mal pode esperar para
me ver. Nossa! Nem me fale! Mando uma mensagem para ele confirmando e
vou ao shopping. Que bom seria o mundo se todos os homens confirmassem
os encontros, assim como o Rafael. Realmente tirei a sorte grande ao conhecê-
lo. Quer saber? Acho que nada que aconteça no encontro hoje à noite vai tirar
o encantamento que tenho pelo Rafael e a certeza de que ele é o homem da
minha vida.
Chego ao shopping e começo a vasculhar uma roupa absolutamente
apropriada e de preferência acessível. Depois de cinco lojas com forte em
jeans, estou quase decidindo por uma calça, quando vejo uma saia maravi-
lhosa amarela. Como ela é lisa e tem poucos detalhes, posso combiná-la com
uma blusa arrasa-quarteirào, sem problemas. Nossa como sou uma mulher
mais feliz depois que comprei essa saia.
Problema da parte de baixo da roupa resolvido, vamos para o mais impor-
tante: a parte de cima. Entro em uma das minhas lojas preferidas e simples-
mente me apaixono por uma blusa azul. Espere um pouco: azul com amarelo
definitivamente não vai rolar. Droga, por que comprei a saia primeiro? Por que
faço as coisas sem pensar, às vezes? Maldita saia.
Peço ã vendedora que reserve a blusa e vou à loja da saia.Vejo que eles
têm o mesmo modelo, mas preto. Que bom! Azul com preto vai ficar ótimo.
Volto para a loja da blusa e peço feliz, à vendedora que embrulhe a minha
blusa azul, quando dou de cara com uma blusa maravilhosa, toda preta, na
vitrine da loja. Não tem discussão: aquela blusa foi feita para mim. Troco a azul
pela preta e assunto resolvido: vou toda de preto ao encontro, bem sexy. Até
que não foi difícil.
Antes de ir embora, passo em uma das minhas lojas favoritas de cosméticos
e leio as palavras mágicas: "Máscara iluminadora e revitalizante". Tudo o que
minha pele está precisando é de se iluminar e se revitalizar para o encontro. A
maravilha é importada e custa uma pequena fortuna, o que não estava nos
meus planos, mas sei que, se não comprar, assim que me olhar no espelho e
me deparar com essa pele sem vida e pedindo uma boa noite de sono, vou me
arrepender.
Do shopping, vou direto para o parque e dou uma corrida. Como uma
salada com frango em um restaurante light e vou embora. Entro em casa e vejo
que a Juliana ainda não chegou. Adoro a Ju, mas nada é antes de um encontro
importante do que ter a casa só para mim. Coloco uma musica ambiente,
encho a banheira, estico a roupa nova em cima da cama, confiro meus e-mails
- ufa, ele não mandou nada e o programa está perfeitamente de pé - entro na
banheira e consigo relaxar um pouco.Já são 4 da tarde, mas até o encontro,

77
ainda tenho bastante tempo. Passo a máscara no rosto e entro na banheira,
depois de fazer um coque no cabelo. Estou parecendo uma diva francesa,
definitivamente. Ei, vou continuar pensando coisas do tipo. É sempre bom
levantar a auto-estima antes de um grande encontro, para chegar lá arrasando.
Talvez eu até invente um mantra. Não, pensando bem, já basta ter que inventar
coisas durante a semana (se bem que essa semana eu não inventei nada).
Abro os olhos e vejo que o CD parou de tocar. Nossa, como eu relachei,
Acho que é essa espuma de maracujá que eu joguei na banheira. Tenho que
ver seja passaram os 20 minutos da máscara. O quê? O relógio está marcando
sete e meia. Como assim? Ele estava marcando quatro horas quando entrei na
banheira!
Pego uma toalha e levanto apressada. Ligo o computador para ver que
horas são de verdade e... realmente, são sete e meia! Ou melhor, depois de
levantar e ligar o computador, já são sete e trinta e quatro! Eu DORMI na
banheira! Não posso acreditar!
A MASCARA!! Vou correndo para o banheiro e enxáguo tudo na pia. Vamos,
vamos, essa coisa tem que sair. Eu me sinto como alguém que caiu em um
vulcão e tem lava fria e seca no rosto! Olho no espelho e vejo que minha pele
está mais seca do que... uma coisa bem seca. Não tenho tempo para
analogias!
Começo a chorar de desespero. Calma, Marina, dá tempo. Visto a roupa
nova em um minuto e solto o cabelo. Melhor nem passar base e muito menos
pó facial, senão minha pele vai simplesmente esfarelar. Pego um pote de
hidratante de pés da Ju e rezo para dar certo. Tem que dar, afinal, é um
hidratante para calcanhares secos — isso deve ser mais oleoso do que óleo de
soja. Olho no espelho e vejo que, agora, minha pele está brilhando e soltando
óleo. Nossa, tenho que enxaguar isso. Depois de três enxaguadas, minha pele
finalmente está normal.
Pego minha bolsa, as chaves do carro e desço a escada correndo. Não,
carro não, senão vou perder mais tempo ainda procurando vaga. Subo e ligo
para um táxi. Ele demora 15 minutos e finalmente chega. Será que se eu
pagar o dobro, ele vai mais rápido?
O trânsito pára nas imediações do Marília de Dirceu. Esqueci que esse
bairro é cheio de bares e boates. Droga, por que todo mundo quer sair num
sábado à noite? Só porque amanhã não tem que trabalhar? Grande coisa.
Pago o taxista e desço a alguns quarteirões do café.
Chego na porta do Marília e vejo que não tirei a enorme etiqueta de
plástico, nem da saia, nem da blusa. Eu pareço um manequim ambulante de
alguma vitrine. Que coisa, essa etiqueta não sai! O que eles querem que eu
use? Solvente? O Marília de Dirceu é relativamente pequeno, mas eu tenho
que conseguir um jeito de entrar, ir direto para a cozinha sem o Rafael me ver,
pedir uma tesoura ou faca e arrancar essas malditas etiquetas. Quando chego
na porta da cozinha, consigo tirar as etiquetas — era só uma questão de jeito.
Ótimo. Agora é só não fazer uma cara de "estou com tanto ódio de tudo o que
me aconteceu" e me sentar em alguma mesa.
Sento e olho à minha volta. Há várias pessoas sentadas e uma ou outra em
pé. O garçom me traz o cardápio. Olho para o meu relógio: quinze para as
nove. Será que ele já veio, desistiu e foi embora? Ou isso ou ele está aqui,

78
possivelmente me observando — droga, eu queria tanto ter chegado antes
dele!
Calma, Marina, calma. Com certeza ele está aqui — 45 minutos de atraso
são aceitáveis, não são? Vou dar uma olhada no ambiente para ficar mais
tranqüila. Nossa, olha a saia daquela moça. É mais bonita do que a minha.
Onde será que ela comprou? Também, com aquele corpo, tudo fica bem. Eu
precisava malhar mais. Pronto, estou melhor. Roupas e malhação são
realmente bons assuntos para se pensar quando se está nervosa.
Peço uma cuba-libre e olho mais um pouco para os lados. A bebida chega e
eu tomo um gole. Onde está o Rafael? Será que ele já foi embora? Não vou
pensar nisso. Tomo um pouco mais da bebida e a mulher da saia se aproxima
de mim. Aposto que ela vem perguntar as horas. Odeio andar de relógio por
causa disso. Sempre tem esses sem-relógio que ficam incomodando.
—Também gosto de cuba-libre — ela diz.
—Desculpe, eu conheço você?
Ela estica a mão.
—Prazer, eu sou a Rafaela. Estava ansiosa para a gente se conhecer. Por um
momento as coisas rodam na minha cabeça. A cuba-libre, as pessoas, as
mesas. RAFAELA? Isso não faz nenhum sentido ou sou eu que fiquei burra de
repente? Onde está o Rafael? O que diabos está acontecendo aqui?
— Eu sei que você esta surpresa, Mari. Eu posso explicar...
— Espera – eu gaguejo -, preciso entender o que esta acontecendo. Foi você
que teclou comigo todo esse tempo? É isso?
— É, mas eu não queria que você ficasse com raiva de mim...
De repente, me dá uma coisa. Essa mulher estranha na minha frente,
dizendo que pode explicar alguma coisa e ainda me chamando de Mari?
Esqueço tudo o que sei sobre boa educação, dou um empurrão nela e saio
correndo, chorando, um pouco por raiva, um pouco por tristeza, um pouco por
tudo misturado...
Então tudo era uma FARSA! Não existe Rafael. Não existe Rafael! Quem é
essa mulher?? O que ela pensa que eu sou, lésbica? Por que ela fez isso?
Não, não quero respostas. Eu só quero ir embora! Agora! Nesse minuto!
Entro em casa, jogo as chaves no sofá e choro como não chorava deis que
caí de bicicleta quando tinha 7 anos. Que HUMILHAÇÃO!! Todo esse tempo
para nada, todas as mil conversas por internet para nada As conversas!!
Quantas vezes me abri com ele. Ou melhor, com ela! O que ela queria brincar
comigo? Eu devia processar essa mulher! Eu já estava envolvida! O tempo
todo envolvida por uma pessoa que não existe... não, isso não pode ser
verdade. Minha saia... a máscara...o celular desligado... tudo perfeitamente
pronto para o grande encontro... e dou de cara com essa palhaçada! Eu sou
uma idiota mesmo. Eu realmente devo ter nascido para ficar sozinha. Que
papel ridículo que eu fiz! E pensar que eu já me sentia como se estivesse
namorando sério... e ela lá, fazendo hora com a minha cara! Rafaela... que
ódio!
Dou mil socos na almofada, para aprender a deixar de ser burra. Burra!
Quantas esperanças, quantas expectativas para nada, absolutamente nada.
Tempo perdido, emoções perdidas, tudo perdido! Droga preciso entrar na
internet para verificar quanto tenho no banco. Porque, definitivamente, vou
precisar pagar um analista agora. Não, pensando bem, não vou fazer mais
esse papel de idiota. Afinal, o analista vai rir da minha cara! Não vou sair por aí

79
contando meus problemas para um estranho e ainda pagar por isso. Melhor eu
tentar me analisar sozinha. Por que estou com tanta raiva? Porque fui en-
ganada o tempo todo, ora! Nossa que bela análise, a minha. Acho que não vou
chegar a lugar nenhum, mas pelo menos não paguei por isso.
Alguém abre a porta da sala — é a Ju com o Bruno. Não, casamento não!
Tudo menos isso. Eu como um pote de mostarda misturada com jiló e
marshmallow (não gosto de marshmallow), mas não escuto esses dois falando
de casamento agora.
—Mari, o que aconteceu?
—Porque você está perguntando isso? eu questiono, tentando enxugar
minhas lágrimas. Disfarçar é o segredo.
—Porque você está inchada de tanto chorar e porque as almofadas também
estão inchadas, provavelmente porque você bateu nelas.
—Veja por esse lado, pelo menos elas ficaram mais fofinhas - eu falo, solu-
çando. Não há dúvidas de que estou mentindo: ninguém soluça ao constatar a
fofura das almofadas.
—-Agora me deixa com a minha solidão, que eu quero morrer.Você e sua ótima
idéia de eu conhecer alguém pela internet.
Como eu desconfiava, ela despacha o Bruno e me persegue até o quarto.
Droga, ela leu algum manual de "como uma amiga deve agir quando a outra
está à beira do desespero"? Eu não estava fazendo charminho quando disse
que queria ficar sozinha.
—Mari, se abre comigo... diz o que aconteceu...
—Esquece. È tudo culpa sua — eu berro, mergulhando minha cabeça no
travesseiro. Como é bom poder culpar alguém quando algo dá errado.
—Poxa, Mari, eu sou ou não sou sua amiga? Você não confia mais em mim?
Isso, eu não mereço sua confiança, obrigada...
Pronto, ela começa a agir como se o problema fosse ela. Agora não só te-
nho que conviver com o meu problema como tenho que agüentar a falta de
auto-estima dela decorrente do meu problema - qual é o sentido disso?
— Conta, Mari, conta, conta, conta... - ela implora.
Nunca dá para saber se suas amigas querem ouvir seus problemas porque
realmente se preocupam com você ou porque estão apenas curiosas.
—Tá bom, Ju, eu conto. Mas só se você me deixar sozinha no quarto depois,
sem me chamar para nada.
—Fechado. Agora se acalme e me conte o que aconteceu.
Como contar uma coisa tão profunda para alguém? Como traduzir em
palavras uma decepção que estragou minha vida até não sei que ano? Como
expressar minha tristeza sem pisar no meu orgulho, para que não tenham pena
nem riam de mim?
— Rafael era Rafaela, Ju. Agora suma.
Ela me olha com uma cara de quem não entendeu. Depois, faz uma cara de
quem entendeu mais ou menos e que ficaria pasma se realmente as coisas
forem como ela tinha entendido.
—O QUE? Como assim??
—O Rafael não existe! Era uma mulher fazendo hora com a minha cara. Eu fiz
papel de otária, entendeu? Agora me deixa sozinha.
Ela se levanta, mas eu começo a chorar, chorar, chorar. Ela me dá um
abraço.

80
— Não fica assim, Mari... Que loucura, isso... Mas não fica assim...
Frases deveriam ser abolidas do vocabulário das amigas quando você esta
triste por algum motivo: “não fica assim”, “tudo vai dar certo”, “daqui a pouco
você nem lembra disso”. Irritantes. Mas, ok, eu preciso de um abraço. E de
flores. E de alguém para dizer que me ama. Nossa como eu preciso de alguém
para dizer que me ama.

V
Chego ao meu prédio sem cumprimentar o porteiro, coisa que nunca me
esqueço de fazer. Subo as escadas por impaciência de esperar o elevador,
abro a porta do meu apartamento e me jogo no sofá.
Estava me contendo desde que saí do café, mas agora não agüento mais e
me permito chorar.
Chorar muito.
Eu sou egoísta. Não penso nas pessoas.
Abro a geladeira e vejo que não tem cerveja, nem vinho, nem nada que as
pessoas gostam de tomar quando se sentem egoístas. Pego um copo de leite,
apesar de não ser a bebida mais apropriada para o momento, fumo um cigarro
e volto para o sofá.
Por que ela precisava ser tão linda? Ela tem os cabelos longos, o corpo
definido, o rosto delicado. Se eu já não conseguia parar de pensar nela quando
não nos conhecíamos pessoalmente, agora é que não consigo mesmo.
O que torna as coisas ainda piores.
Eu tinha pensado que havia 99,9% de chance de dar errado, mas que como
a farsa teria fim, esses 99,9% seriam certos.
Então, por que não me sinto bem?
(Quando aprenderei que saber como as coisas funcionam é diferente de
sentir? Que nem tudo é racional, que nossos pensamentos não operam
matematicamente?).
Acho que vou mandar um e-mail para ela, pedindo desculpas. Mesmo tendo
a certeza de que ela não vai aceitar.
Eu só queria que ela entendesse que eu nunca quis magoá-la. Nunca mesmo.

81
15

Acordo. Lembro que é segunda-feira e meu corpo cisma em não levantar.


Nem parece que eu passei o domingo inteiro deitada, mesmo sob os protestos
insistentes da Ju — coitada, sei que ela queria meu bem, mas tudo o que eu
precisava ontem era ficar sozinha. Se bem que fiquei sozinha e não adiantou
nada.
O problema de dividir esse tipo de problema com alguém é que, além de já
estar acabada pela tristeza e decepção, você passa a ficar acabada pela
vergonha de anunciar para as outras pessoas que você fez papel de boba.
Para a Lu eu não vou contar, de jeito nenhum, que ela vai rir da minha cara. A
Ju foi superfofa, mas, mesmo assim, me senti péssima por ter contado. Eu
queria apagar da minha vida o que aconteceu, para ninguém, nem eu mesma,
ficar sabendo o que aconteceu. Mas agora que eu tive o domingo inteiro para
digerir o assunto — leia-se: comer quilos de pipoca com refrigerante,
esparramada no sofá e assistindo à TV a cabo — acho que melhorei e vou
parar de pensar nisso. A vida continua certo?
Abro a geladeira e pego um pouco de aveia com leite desnatado. Em que
aquela mulher estava pensando quando resolveu fazer hora com a minha
cara? Esquece, não vou pensar nisso. Mas uma coisa dessas acontece na mi-
nha vida e eu vou pensar em que, droga? Vou tentar pensar nessa aveia com
leite desnatado. Os monges tibetanos aconselham isto: pensar no que se está
fazendo neste momento. Derramo a aveia no leite. Misturo até virar uma papa.
Levo a papa à minha boca. Droga, não adianta: em que aquela mulher estava
pensando quando resolveu fazer hora com a minha cara?
Se eu não estivesse tão consumida pelo ódio, eu gostaria de ouvir uma
explicação daquela estúpida. Quero dizer, ela sabia que, se a gente se encon-
trasse, eu descobriria que ela é uma mulher, certo? Então, como ela se en-
contra comigo com aquela cara lavada? O que ela esperava que eu dissesse
— "ei, você é uma mulher, que divertido. Sente-se comigo e vamos tomar um
drinque”? É CLARO que eu daria um empurrão nela e sairia correndo. Ela
esperava o quê, que eu me jogasse em seus braços ansiosa por viver um
relacionamento pós-moderno? Essa mulher é uma louca. Devia estar presa em
algum lugar.
Também poderia ser uma câmera escondida. Alguns desses programas
malucos de televisão pagaram uma atriz para me deixar apaixonada pela
internet e meu encontro ridículo foi transmitido pelos televisores de todo o país.
Ótimo, agora que pensei nessa hipótese, não quero mais sair de casa para
trabalhar.
Argh, não tem jeito, eu tenho que ir para a agencia. O que vou dizei para a
Lu? Com que cara vou olhar para quem perguntar como anda meu namoro?
Bem, o segredo é ser natural. Na hora, eu improviso. Essas coisas
improvisadas sempre dão certo.
Chego na agência e dou um "oi" animado e contagiante para Sônia. Ela
simplesmente não tem como desconfiar que alguma coisa está errada comigo.
Ou melhor, ela tem, sim. Afinal, meus "ois" para ela nunca são animados e
contagiantes. Droga, minha falsidade tem que ser menos falsa.

82
Entro na sala de criação e vejo que não tem ninguém. Deixo minha bolsa na
mesa e me espreguiço feliz. Se ninguém comenta a história, eu posso fingir
para mim mesma que a história não existiu e viver minha vida feliz. Viu,
Marina? Um dia normal de trabalho. Talvez a Lu nem se lembre de me
perguntar sobre o encontro e aí eu consigo viver feliz na minha ignorância.
—Má! Como é que foi o encontro, amiga? — berra a Lu, entrando na sala, junto
com o Gustavo e o Fabiano.
—Você teve algum encontro especial, Marina? — pergunta o Gustavo enxerido.
— Foi legal, Lu. — eu respondo, ignorando o Gustavo. — Foi ótimo.
— Ai, Marina, conta detalhes - diz a Lu curiosa. Vem, vem.
A Lu me puxa e vamos para o banheiro. O que ela pensa que nós duas
somos, adolescentes que vão ao banheiro para fofocar? Poupe-me.
— Vai, conta tudo, Má.
— Foi legal, Lu. Não tem mais nada para contar.
—Como assim? Você finalmente se encontra com o cara com quem estava
teclando há séculos e diz "foi legal"? Detalhes, querida, detalhes!!
—Bom, foi em um bar... — eu gaguejo um pouco. Droga, por que não ensaiei
em casa? Sou péssima para improvisos. — Eu cheguei e ele ja estava lá...
—E aí, e aí? -Aí ela...
—Ela quem? Ele levou uma amiga? Não acredito!
—Não, não é "ela", é "ele", eu troquei. Aí a gente conversou, e tal...
—E ele é bonito? Como ele é fisicamente? — ela pergunta.
—Ah, é loiro, com umas mechas no cabelo, alto...
—Mechas no cabelo? É gay. Desculpa Má, mas é gay.
—Será?
—Tadinha da minha amiga. Eu garanto: é gay.
Começo a chorar. Lembro-me do encontro e caio em lagrimas. Que
humilhação, meu Deus! Não agüento mais ficar me controlando, quando tudo o
que eu tenho vontade é chorar como uma louca!
—Por que eu não posso ser feliz, Lu? - eu pergunto, chorando. - Por quê?
—Calma... não chora, Má... o mundo está cheio de homens não-gays loucos
para conhecerem você...
—Não, Lu, sério - eu falo, tentando controlar o choro. - Eu não estou falando de
um homem para se divertir em uma noite! Estou falando de um companheiro. A
Ju vai se casar, todas as minhas amigas têm um namoro longo ou já estão
casadas...
—Mas e eu? Eu não quero um "companheiro"!
—Certo, mas você está feliz assim! Eu não consigo ser feliz assim. Eu
realmente queria alguém, e quando me apaixono, descubro que ele é...
—... gay. Eu sei que você deve estar sofrendo.
A Lu me abraça e eu faço um sinal para ficar sozinha. Ela sai e eu olho no
espelho para conferir minha cara de idiota: com os olhos inchados, olheiras e o
rosto molhado. Por que eu não mereço ser feliz? Por quê?
Alguém abre a porta do banheiro - é a Lu de novo.
— Má, melhor você voltar para a sala. O Alexandre está superbravo.
E essa, agora. Lavo o rosto, saio do banheiro e entro na sala. O Alexandre nem
me cumprimenta.
—Marina! Onde você estava no sábado?
—Eu saí. O dia inteiro.
—E deixou o celular desligado o dia inteiro, não foi? Todo mundo da criação se

83
reuniu no sábado, e onde estava você? Passeando por aí.
—Acredite Alexandre, se eu pudesse voltar no tempo, eu viria à agência.
—Ótimo. Você não sabe quanto me conforta saber disso. Agora me diga: você
não sabia que a gente estava de plantão?
Meus olhos se enchem d'água. É muita coisa na minha cabeça. Quase
começo a chorar, quando a Lu me olha, censurando. Seguro as lágrimas. Ela
está certa: não posso me mostrar tão frágil assim.
— Desculpe, Alexandre. Não vai mais acontecer.
Boa resposta. Não justifica meu erro, mas garante que não vai ocorrer de
novo - os chefes amam isso. Eu li uma vez em um site de uma empresa de
recolocação profissional. Ele me olha sério, suspira e sai da sala. Ninguém
comenta nada.
Como não tem serviço nenhum para fazer, resolvo dar uma navegada na
internet para relaxar. Relaxar: é tudo o que eu preciso. Eu queria uma sessão
de shiatsu em uma clinica, mas, como eu já gastei o que eu tinha e o que eu
não tinha naquela droga de saia e na mascara, acho que vou só navegar
mesmo.
Entro em um site de cartoon e lembro de uma coisa: o meu e-mail! Desde
sábado a tarde eu não olho meus e-mails. Será que aquela cara-de-pau teve
coragem de me mandar alguma coisa? Agora eu é que estou sem coragem de
ver meus e-mails. Ou seria melhor ver e apagar a mensagem dela, caso ela
tenha me mandado alguma? Bem, está decidido: abro meu e-mail, apago e
pronto. Aquela mulher não merece que eu fiquei nem um minuto aflita com
alguma dúvida que diga respeito a ela.
Abro minha caixa postal e dou de cara com o aviso: "Você tem 25 men-
sagens não recebidas". Como isso é possível? Não estou em nenhuma lista de
discussão e não posso ter recebido tudo isso de spam. Será que... bom, vamos
abrir para ver logo por que tem tanta mensagem assim. Abro e vejo que o
Rafael, ou melhor, a Rafaela, é que me mandou esse mundo de mensagens.
Era só o que faltava: além de destruir meu coração, ela quer destruir o espaço
da minha caixa postal. Não vou ler nenhuma mensagem. Vou jogar tudo na
lixeira, como eu havia decidido. Pensando bem, mais tarde eu jogo. Tenho que
trabalhar agora.
Pergunto para a Lu se tem algo para fazer e ela diz que não. Estão todos
esperando a resposta do cliente, para ver se ele aprovou a campanha
romântica-sem-amor do celular. Droga, nem quando eu quero trabalhar eu
posso.
Enrolo um pouco, ligo para Ju só para dar "oi", almoço e volto para a frente
do computador.Trinta e duas mensagens da Rafaela. Meu Deus, essa mulher
não tem o que fazer.
Há mensagens dos mais variados assuntos. "Desculpa", "Vamos nos en-
contrar de novo", "Rafaela mandou um cartão para você", "Deixe-me explicar".
Hora, este último parece razoável — acho que vou lê-lo. Afinal, não há dúvidas
de que eu mereço uma explicação daquela maluca. Claro que não tenho
nenhuma expectativa de que seja uma explicação válida, mas não posso negar
que estou levemente curiosa para saber o que leva alguém a agir do modo que
ela agiu.
Além do mais, eu não viro gay assim que ler, viro? Não que eu tenha
preconceito, acho até moderno ser gay e tudo mais, mas o caso é que eu NÃO
SOU gay. Porém, se eu ler um e-mail intitulado "Deixe-me explicar", parece que
ela é minha namorada, não pode me ver ontem porque ficou trabalhando até

84
tarde e nós brigamos. Ah, acho que eu deveria pensar de outra forma: eu
realmente tive um caso — virtual — com essa mulher, mas eu pensava que ela
era um homem; logo, a única lésbica da história é ela, que desde o começo
sabia que eu era mulher. Bom, vamos andar logo com isso, que eu já estou
ficando com dor de cabeça.

Marina,
Nem sei por onde começar.
É importante que você saiba que não fiz por mal. Isso não justifica de maneira
nenhuma o que fiz, nem sei se realmente faz alguma diferença que você saiba
disso, mas, por favor, saiba: não fiz por mal.
Quando entrei na sala de bate-papo aquele dia, não pretendia fingir nada para
ninguém. Comecei a conversar com você, nem sei direito por quê. Sei lá, eu
estava passando por uma fase complicada e precisava conversar com alguém,
esfriar a cabeça.
Várias vezes pensei em contar a verdade, mas não tinha coragem. Eu adorava
nossas conversas e não queria perder você. O encontro surgiu como uma
chance de esclarecer tudo. Desculpe se a machuquei. Sei que mereci aquele
empurrão. Mas queria que você soubesse que eu continuo gostando de você e
que espero que nós duas possamos, pelo menos, ser amigas.
Um beijo,
Rafaela

Muito conveniente. Ela é uma psicopata que esconde sua verdadeira


identidade e vem com esse papinho de "sou perdida da vida, não sei direito o
que faço, quem sou nem para onde vou"? Ah, me poupe.
Eu realmente acho que deveria processar essa mulher. Mas não vou ser
rancorosa. Já me dou por satisfeita se conseguir superar essa desilusão amo-
rosa. Desilusão amorosa, que fique claro, só porque eu pensava que ela era
ele. Agora vamos trabalhar.
Pensando bem, vou dar uma olhada nas outras mensagens. Quero ver o
que mais essa cara-de-pau falou, corno as desculpas dela são esfarrapadas!
Mas vamos lá, não tenho nada para fazer mesmo.
Leio todas as mensagens, uma a uma. Em uma, ela fala quanto eu signi-
fiquei para ela; em outra, ela implora para a gente se ver de novo; em outra,
ela manda as primeiras mensagens que nós trocamos no chat. Depois de ler
tudo, começo a apagar as mensagens, quando vejo que ela mandou mais
uma, intitulada "Ultima". Abro o e-mail. Ela escreveu que não vai mais me
importunar e deixa o número do celular dela, caso eu queira telefonar. Vai
sonhando. Ou melhor, talvez eu ligue mesmo, para xingá-la — não vou apagar
só essa mensagem. Apago todas as outras, saio para tomar um café e fico
pensando: o que eu fiz para merecer isso?

85
16

Eu adoro os homens. Adoro até demais, porque já tive um monte de


relacionamentos baseados apenas na parte física — e, se gosto da parte física,
não posso ser gay, certo? Gosto de ver os homens dormindo (eles parecem
anjinhos indefesos! Bem, só quando estão dormindo), de vê-los fazendo a
barba (sempre reclamando daquele pouquinho de pêlo, enquanto nós,
mulheres temos que depilar pernas, axilas...), de receber abraços apertados
que abraços masculinos são capazes de dar. Definitivamente, eu gosto de
homens. Então, por que já faz duas semanas desde meu encontro-bomba com
Rafael/Rafaela e não paro de pensar nessa mulher?
Raiva. Só pode ser raiva. E confusão, também. Como posso não ficar
confusa se descubro que a pessoa com a qual eu estava envolvida não
pertence exatamente ao gênero que eu esperava? Já sei: meus olhos viram
que ela é uma mulher, mas meu cérebro não aceita. Por algum lapso biológico,
ele não captou a mensagem de que Rafael era Rafaela. Logo, se meu cérebro
estava volvido, e não percebeu que ela era ele, ele continua envolvido pelo que
estava envolvido antes — ou seja, por um representante do sexo masculino.
Com esse raciocínio, concluo que não paro de pensar nela porque, para meu
cérebro, ela é ele — assim, sou heterossexual como sempre fui. Agora que já
recuperei a confiança em relação à minha sexualidade, pago e saio da
lanchonete, onde eu tinha ido para engordar um pouco e refletir e volto para a
agência, decidida a trabalhar. Não, não consigo. Primeiro porque até hoje estou
indignada com a situação. Esperei tanto um encontro pra nada! Segundo,
porque hoje não tem nada para fazer nessa agência. Eu definitivamente não
sei como ela não abre falência. Como esse povo arruma dinheiro para pagar
meu salário? E essas pessoas do departamento de atendimento, por que não
estão à caça de novos clientes? Mas não, eles preferem que eu fique sem
nada para fazer. Desse jeito, eu não tenho alternativa e fico pensando nos
meus problemas.
O Alexandre entra na sala de criação.
— Alexandre — eu digo —, não tem nada para a gente fazer?
— Hum? Você está passando bem, Marina?
— É sério. Não agüento mais ficar aqui parada.
— Talvez apareça alguma coisa mais tarde — ele explica. — Agora não tem
nada. Vai aproveitar seu ócio.
Como posso aproveitar meu ócio se minha mente não pára de pensar em
como meu encontro foi um fiasco e como minha vida amorosa é patética?
Será que tenho alguma decisão a tomar? Costumo ficar inquieta assim
quando tenho alguma coisa para decidir. Bem, talvez eu tenha. Fiquei muito
passiva nessa história toda. Quero dizer só um empurrão e mais nada? Essa
tal de Rafaela me engana desse jeito e eu nem estico meu dedo para dar um
peteleco nela? Amigos empurram-se quando se vêem (amigos homens claro).
Eu empurro a Ju quando ela diz alguma coisa engraçada, e complete falando
"nossa, Ju, essa foi boa". Pensando bem, não empurro a Ju, não. De qualquer
forma, acho que um empurrão é pouco para o estrago que ela me fez.

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Decepção, humilhação, falta de expectativa de uma relação afetiva nos
próximos 5 anos... É, ela merece mais do que um empurrão.
Talvez eu devesse ir até a casa dela dizer umas verdades. Ela não pode
fazer uma coisa tão errada e não escutar pelo menos uma bronca, não é? Se
eu mandar um e-mail, ela pode deletar e pronto. Sem contar que, se ela ler.
não é a mesma coisa do que ela receber uma bronca cara a cara, vendo nos
meus olhos todo o ódio que passei a nutrir por ela.
É, vou ligar para ela. Ela me deu o número do celular, certo? Ela estava
pedindo por isso. Inconscientemente, ela sabia que merecia ouvir algumas
coisas nada amigáveis e por isso me deu o número dela. Eu não quero saber
das desculpas furadas dela — já li seus e-mails demais. Agora, é ela quem vai
ouvir.
Abro meu e-mail. Vejo o número dela, tomo coragem e ligo do meu celular.
Primeira chamada. Segunda chamada. Covarde, não vai atender. Droga, ela
atendeu.
— Alô — uma voz feminina fala. Eu nunca diria que ela é uma lésbica que tem
uma seita para dar em cima de mulheres heterossexuais como eu.
— Alô — ela repete.
Desligo o celular. Que idéia, ligar para ela. Não vou dar a ela esse gostinho.
Ignorar é a melhor pedida.
Levanto para tomar outro café — o café está realmente bom, hoje — quan-
do meu celular toca. Olho o número antes de atender: é ela! O que essa mulher
tem, comprou o celular hoje? Ela não tinha nada que ligar para um número
desconhecido, só porque alguém desse número ligou para ela. É a maior gafe.
Quero dizer, pode até não ser gafe, mas a questão é que eu não vou atender.
Eu não tenho nada para falar com ela.
O celular pára de tocar. Aposto que ela vai ligar novamente. Não vai desistir
fácil assim. Fico parada na frente do meu celular. Como se eu não pudesse
carregar o aparelho para a cozinha, enquanto vou pegar o café, mas não sei
por que, toda vez que espero uma ligação no celular, espero parada. Acho
que meu cérebro ainda não se adaptou à tecnologia da telefonia móvel.
Já se passaram 15 minutos e ela não ligou de novo. Que mulher que
desiste fácil, nossa. Detesto pessoas que desistem das coisas desse jeito.
Bom, melhor assim. Não tenho que ficar esquentando a cabeça pensando no
que eu falaria com ela. Afinal, xingar por telefone não serve — ela pode muito
bem deixar o aparelho longe do ouvido e não escutar uma palavra do que eu
disser. Eu realmente deveria xingá-la cara a cara. Ou devo manter o plano de
ignorá-la? Nossa, vou parar de pensar nisso e ir à cozinha, não para pegar um
café, mas para pegar um comprimido para dor de cabeça.
O Alexandre aparece com um anúncio para fazer. Nunca pensei que eu
fosse falar isso um dia, mas estou mesmo precisando de trabalho para esfriar
um pouco a cabeça. Passo a tarde fazendo os anúncios com a maior dedi-
cação e o Alexandre até me elogia. Saio da agência uma hora mais tarde do
que de costume e vou direto para a academia. Essa hora, lá está sempre cheio
de caras bonitos. Ando por uma hora na esteira, não vejo nenhum cara bonito
e vou para casa.
É só a Ju tocar no assunto "Rafaela" que eu fico triste de novo. Como as
coisas mudam. Antes, era só a Ju puxar conversa sobre o Rafael que eu ficava
toda feliz. Agora, não consigo mais nem pensar nesse assunto, até porque o
Rafael não é mais aquele. Acaba que eu dou uma resposta seca e vou comer
alguma coisa.

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—Credo, Mari, eu só queria ajudar — ela diz.
—Pode ajudar mais falando sobre outro assunto.
—Ótimo, vamos falar sobre meu casamento, pode ser?
—É só isso que você tem? Opções A e B?
Ela ri e a gente acaba indo para a TV, assistir a um seriado. Por um mo-
mento, esqueço a minha vida e me concentro na vida dos personagens, que é
tão legal que tem risadas de fundo. Vou dormir mais tranqüila, mas é só deitar
a cabeça no travesseiro para ficar triste de novo e olhar para o infinito. O
Rafael podia tanto existir de verdade.

88
20
Amanhã faz um mês que aconteceu o encontro ridículo e até agora não
resolvi o que faço a respeito. Pensei que fosse esquecer o assunto em no
máximo uma semana, mas não; até agora, desde a hora em que abro meus
olhos até o momento em que dou boa-noite para a Ju, passando pelos meus
40 minutos na esteira ou no parque, eu penso em: 1- Como o encontro foi
patético; 2- Como eu me sinto uma pessoa patética depois daquele encontro
patético; 3- Como eu sou uma idiota de não fazer nada mesmo depois de
alguém me fazer de boba daquele jeito.
Acho que se eu esperar que sare depois de casar, não vai sarar nunca, já
que provavelmente passarei o resto dos meus dias sozinha e vivendo como
madrinha dos filhos que a Ju terá um dia (bem, espero que ela me convide
para ser madrinha, não é possível!). Talvez a Ju e o Bruno se mudem para uma
casa bem grande e eu possa morar em algum porão frio.
Bom, se não vai sarar, eu tenho que fazer alguma coisa. O problema de
esperar um mês para agir é que minha raiva não está fresquinha como estava
no dia do encontro. Digo, estou com raiva, claro, mas não com tanta raiva
como gostaria de estar. Mas indignada, ainda estou. Ainda amo o Rafael,
apesar de ele não existir. Eu acho que o mínimo que mereço é um ano de
terapia, devidamente bancada pela tal da Rafaela.
É, talvez exigir isso dela possa ser uma boa idéia. Ela não pode sair ilesa
dessa historia, pode? Não seria justo comigo mesma permitir que essa
palhaçada não tenha um preço. Uau, eu estou parecendo uma agente de
justiça. É isso mesmo. Ninguém brinca com o coração de Marina Monteiro.
Está decidido: vou ligar para ela.
Abro meu e-mail para ver o telefone dela. Essa mulher realmente vai ouvir
umas boas e, no mínimo, vai ter que pagar minha terapia. Tomara que ela seja
bem rica. Considerando que meu olha clínico diz que aquela saia que ela
estava usando no encontro é da ultima coleção de uma marca badalada, eu
tenho uma chance razoável de isso acontecer. Claro, ela pode ser uma
consumista voraz e perdulária e usar seu dinheiro para saldar dividas em todas
as lojas bacanas, mas eu não quero nem saber.
Abro minha caixa postal e vejo um novo e-mail dela. Coitada, acho que é ela
quem está precisando de terapia: não me esquece. Mas não quero saber, não
vou financiar a terapia de ninguém. O assunto do e-mail é bem sugestivo:
“Convite”. Será que ela não percebe que eu não sou gay? Se eu fosse, por que
daria um empurrão nela aquela noite? Meu deus, ela não desiste. Odeio
pessoas insistentes desse jeito. Bom, vamos ver logo que convite é esse.

Marina.
Um mês sem nos falarmos! É estranho, isso. Antes, a gente se falava horas por
dia. Estou me sentindo muito mal com tudo isso. Contudo continuo convicta de
que ainda podemos ser amigas e gostaria muito que combinássemos um
segundo encontro. Ou um primeiro, se considerarmos que encontro com
empurrão não conta.
Beijo.
Rafaela.

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Que gracinha, ainda faz piadinha no final. E eu deveria lembrá-la de que nos
falávamos horas por dia só porque eu pensava que ela era um HOMEM. Mas,
enfim, vou aproveitar a chance de que eu ano tenho que telefonar para ela do
nada: agora posso recusar ou aceitar o convite. Obviamente, vou recusar, dar
um jeit de saber o endereço da casa dela e ir lá para dizer na cara dela tudo o
que ela merece. Acabo respondendo o e-mail dela em seguida.

Rafaela.
Podemos sair, sim, até hoje mesmo. Eu poderia passar na sua casa antes,
para pega-la e irmos juntas, porque eu adoro dirigir.
Abraço.
Marina.

Que mentira! Eu odeio dirigir. Se for preciso, chego meia hora adiantada no
trabalho para não ter que fazer baliza. Se, em vez dos vales-refeição e do
convênio médico que vêm com meu salário, eu tivesse direito a serviço de
motorista como beneficio, eu seria a primeira a pedir. Mas tenho que dar uma
desculpa, certo? Ou então ela vai ficar toda feliz, achando que estou sendo
cavalheira. Será que existe isso, cavalheira? Mando o e-mail, pego um café e
aguardo calmamente a resposta, que não demora nada:

Marina.
Que bom que você aceitou meu convite! Aí vai meu endereço. Espero você
hoje às 9, pode ser? Eu conheço um ótimo restaurante de comida japonesa, se
você topar.
Beijo.
Rafaela.

Consegui o endereço dela! Estou orgulhosa de mim. Sou praticamente uma


repórter investigativa. Respondo com um frio “ok”, só para confirmar, imprimo o
endereço e fico pensando o que faço agora com minha descoberta. Apareço lá
com uma torta de chocolate, jogo na cara dela e vou embora? Não, talvez eu
devesse tentar o diálogo. Eu realmente estou com uma necessidade absurda
de falar sobre como ela foi insensível ao brincar com meus sentimentos. Ah, e
tenho que lembrar da terapia, claro, de preferência em uma clinica perto da
minha casa – melhor anotar para não esquecer.
Bem, se eu sair da agencia às 7, dá tempo de passar em casa, tomar um
banho rápido, me aprontar e ir. Claro que vou vestida de qualquer jeito – até
parece que vou gastar algo como aquela saia para encontra-la, agora que eu já
sei toda a estranha e assustadora verdade.
Vejamos se já está na hora de sair... não, ainda são três e quinze da tarde.
Bem, pelo menos dá tempo de eu pesquisar alguns preços de terapia. Navego
pela internet, procurando um site interessante de algum psicólogo bem caro,
quando a Lu volta do almoço.

90
- Má, você não sabe o que aconteceu! – ela berra.
- O quê? Fala logo – a frase “você não sabe o que aconteceu” costuma ser
seguida por algum assunto relativamente interessante.
- Consegui dois convites para a estréia de “Amor em Pedaços” hoje à noite.
Que tal?
- Ai, Lu, não vai dar. Ninguém que tem a minha vida precisa ver uma peça
com esse nome.
- O que é isso, Má? Essa peça é superpremiada – ela diz. – Você TEM que ir.
- Na verdade, Lu... – eu gaguejo um pouco – eu tenho um encontro hoje. Não
vai rolar.
- UM ENCONTRO? Mas isso é muito mais interessante do que a peça! Com
quem, hein?
- Você não conhece. É um velho amigo – eu falo com convicção.
- Ah, muito bem. Velhos amigos são promissores. Aonde vocês vão, sua
danadinha?
- A um restaurante japonês... não sei ainda.
- Bom boa sorte para você.
Ela sorri, sai da sala e eu continuo minha pesquisa. Ufa, ainda bem que
consegui disfarçar.
Sete horas vai custar para chegar. Talvez eu devesse sair seis e meia. Não
tem nada para fazer mesmo. Nossa, eu não deveria ter falado isso. É só dizer
esse tipo de coisa que o Alexandre e aquela bundinha linda dele aparecem
com uma pilha de coisa para eu criar.
Passo a tarde navegando e, quando o relógio marca dez para as sete, saio
correndo. Finalmente vou me vingar da Rafaela hoje! Mal posso esperar para
encontrá-la e liberar toda a minha indignação.
Chego em casa e acabo tomando um banho demorado, já que estou cansada
e mereço relaxar um pouquinho antes desta noite, que vai ser meio tensa.
Afinal, a única pessoa com quem eu me lembro de ter brigado feio foi um
mecânico, e mesmo assim foi só ele abater 10 reais no preço que eu deixei
passar o fato de ter encontrado meu carro com 300 quilômetros rodados a
mais. Mas com a Rafaela não vou ser tão boazinha. Ela não foi nada boazinha
comigo e isso não vai ficar assim.
Entro no meu quarto e começo a vasculhar o armário procurando alguma
coisa simples. Acabo vestindo uma calça jeans desbotada, uma camisa branca
e um tênis velho. Nossa, mas se ela me encontrar assim. Vai pensar “credo,
com essa daí, não perdi nada”. O ideal mesmo é vestir um modelo provocante,
para fazer raiva nela. Afinal, se ela partiu meu coração fazendo com que eu me
apaixonasse por um ser inexistente, vou partir o dela também, mostrando um
corpo lindo em que ela nunca vai colocar a mão.
Escolho uma minissaia da Juliana, que ela nunca usou, mas aço que não vai
se importar de eu estrear. Ela não está em casa e não tem como eu pedir.
Claro que eu poderia ligar para o celular dela perguntando, mas aí corro o risco
de ouvir um não e, se eu simplesmente pegar a saia sem pedir, tudo o que ela
pode fazer é chiar um pouco depois.
Combino a minissaia com uma blusa que tem um decote discreto, mas que é
justa o suficiente para mostrar que minha barriga é malhada, capricho no salto,
faço uma maquiagem fatal e saio. Ah, a Rafaela vai sofrer, coitada. Pego o
endereço na minha bolsa e desço para a garagem.

91
Entro no carro, me olho no espelho e respiro fundo. Essa mulher vai se
arrepender de ter brincado comigo. Dou a partida e logo me sinto meio tensa.
Não, eu não posso desistir. Ela vai me ouvir. As coisas não vão ficar assim. Eu
tenho que ser firme!

Olho o endereço de novo e, depois de dirigir por uns dez minutos encontro a
rua dela. Apesar de ser em um bairro próximo ao meu, eu não conhecia bem
essa região. É uma rua calma, tem arvores e é bem iluminada. Ainda bem, já
estou nervosa, e só me faltava ser assaltada! Dirijo devagar, procurando o
número do prédio, e logo encontro. Estaciono na frente e saio do carro,
ajeitando minha saia.
O porteiro diz que Rafaela me pediu para subir. Saco, ela ainda não está
pronta. Como brigar com uma pessoa é complicado! Respiro fundo e vou até o
elevador.
É um prédio bonito. Tem alguns sofás no hall onde dá pra ver uma piscina.
Eu sempre quis morar em um prédio com piscina, mas minha mãe diz que
piscina é como aqueles eletrodomésticos que servem para tirar semente de
kiwi ou coisas do tipo: você só usa nos primeiros dias, e depois nunca mais.
Como não estou disposta a pagar um condomínio 70% mais caro para não
usar uma piscina, continuo morando em um prédio cuja atividade mais
interessante da área de lazer é se sentar em uma cadeira e ver o sol refletindo
no concreto.
Mais uma vez respiro fundo e penso em fumar um cigarro para relaxar, mas
lembro que não fumo. Talvez eu devesse chupar bala de menta ou estalar os
dedos para ficar mais calma, mas não tenho nenhum desses hábitos, então só
me resta continuar nervosa. É estranho estar aqui nesse prédio, prestes a
encontrar de novo a Rafaela. Naquele dia, no café, eu tinha certeza de que não
nos veríamos nunca mais, porque encontrá-la de novo era o que eu menos
queria na vida. Mas agora, estou aqui, e por iniciativa própria! Eu arranjo cada
uma. Talvez fosse melhor eu deixar quieto e não tirar satisfação nenhuma...
não, eu sempre faço isso. Dessa vez vai ser diferente. E já estou aqui, mesmo.
Tiro um lenço da bolsa e passo na testa. Como estou suando! Realmente,
brigar não é o tipo de coisa que faço todos os dias. Saco um espelhinho na
bolsa e vejo que o suor não melhorou nada. Tento contornar a situação com um
pouco de pó compacto, ajeito minha saia novamente e aperto o botão do
elevador.
Entro no elevador e vejo que, agora, são minhas mãos que estão suando.
Droga, se eu der um tapa nela, minha mão vai escorregar e não vai doer nada.
Talvez dê tempo de, assim que minha raiva subir à cabeça, enxugar
rapidamente a mão na minha blusa e dar um tapa bem dado.
Será que, assim que eu sair do elevador, ela vai estar me esperando na porta
do apartamento? Eu sempre tomo um susto quando as pessoas fazem isso. Eu
preferiria se ela estivesse esperando lá dentro, e eu tivesse que tocar a
campainha. Na verdade, o que eu preferiria mesmo é que ela não estivesse em
casa, mas acho que ela está, porque falou para o porteiro que eu poderia subir.
Claro, daria tempo de ela sair pela escada de incêndio e não estar em casa,
mas não sei por que ela faria isso.
Saio do elevador e dou de cara com ela parada na porta, sorrindo. Droga. Ela
está sorrindo, não tem clima para dar um tapa! Só alguém sem ética nenhuma
daria um tapa em alguém sorrindo. Bem, posso partir para a agressão física

92
depois, quando ela estiver séria. E, pensando bem, é até melhor não dar agora,
porque aí eu faço uma surpresa.
- Oi, Mari! – ela fala me abraçando.
- Oi. – respondo séria, na esperança de que ela fique séria também e eu
possa dar o tapa logo.
- Estou terminando de me arrumar. – ela diz, mantendo o sorriso. Ela sorri
muito. – Você quer entrar, enquanto me espera?
Entro no apartamento. Eu definitivamente não sei como xingar uma pessoa.
Qualquer pessoa, no meu lugar, soltaria um “Não quero entrar no apartamento
de quem me enganou como você. Você vai ver o que é bom, mocinha, tome
esse tapa!”. Mas eu não. Entro como se quisesse conhecer o CD que ela
acabou de comprar. Gostaria de saber qual é o problema comigo.
Já que não tenho capacidade para xingar uma pessoa, vou dialogar. Com
argumentos firmes e decididos, vou fazer ela se sentir uma péssima pessoa.
Isso eu posso fazer. Afinal, a faculdade de Comunicação deve ter servido para
alguma coisa. Vou conversar civilizadamente e mostrar que não foi legal ela
fazer aquilo. É, está decidido: eu falo isso e vou embora.
- Eu queria conversar com você – eu digo sentando-me no sofá.
- Claro. Podemos conversar no restaurante japonês que eu tinha falado. Você
espera só e colocar meus brincos?
Eu não sei o que dizer, faço um sinal de “sim” com a cabeça e ela sai da sala.
Eu tinha me esquecido desse negocio de restaurante. Eu não quero sair com
ela! Quero dizer, isso não é um encontro, é? Tudo o que eu tinha em mente era
chegar, falar o que eu tenho que falar e ir embora.
Estou perdida. Não sei o que fazer. Como uma pessoa demora tanto para
colocar um par de brincos? Aposto que ela não consegue colocar sem se olhar
no espelho. Eu era assim só até uns 16, 17 anos – agora coloco no carro, no
jardim, em qualquer lugar. Nossa, estou pensando coisas sem sentido. Acho
que estou nervosa. Não vou pensar em nada, só espera-la.
Olho para a sala: a decoração é realmente charmosa. Há dois sofás, um divã
branco, um quadro de arte abstrata, um lustre todo moderninho.
Ela volta, com brincos imensos e lindos. Estou reavaliando a possibilidade de
sermos amigas – por interessa, claro, já que eu só queria os brincos, as roupas
e algumas lições de decoração dela. Nadar na piscina do prédio dela também
não seria mau.
- Estou pronta. Vamos? – ela diz sorrindo. Eu não quero ir a um restaurante
japonês, árabe, tailandês ou de qualquer outro país com essa mulher, então
preciso inventar uma desculpa.
- Não sei. – eu digo – Acho que não estou muito a fim de sair.
- Hum... Então podemos pedir comida japonesa por telefone e comer aqui em
casa, o que você acha?
Definitivamente, não era isso em que eu estava pensando. Melhor ir direto ao
ponto, ou ela vai pedir comida japonesa, vinho, um filme romântico, e de bônus,
alguns acessórios de sex shop. Hoje em dia as pessoas entregam todo tipo de
coisa por telefone.
- Sabe o que é, Rafaela? – eu digo – Eu estava pensando em só conversar
mesmo. Há muita coisa para você explicar, não acha?
Bingo. Objetiva na dose certa. Não tem como dar errado. Estou orgulhosa de
mim.

93
- tudo bem, Marina... Mas é que eu estou com tanta fome, não podemos
mesmo pedir alguma coisinha?
- Certo – eu respondo.
Ah, o que é que tem comer alguma coisa com ela, não é? Sem contar que
não jantei ainda, porque saí correndo da agencia. Estou morrendo de fome. Vai
ser muito rápido: nós conversamos, ela me explica o que tem que me explicar,
eu como alguns sushis e vou embora.
Ela faz o pedido por telefone e traz um vinho. É um chileno de dois anos
atrás, de uma safra muito boa – ela realmente tem bom gosto. Mas isso não vai
fazer com que eu me sinta menos indignada, é bom que ela saiba disso.
Ficamos as duas no sofá e eu começo a tomar o vinho para quebrar o gelo.
Bebemos, conversamos sobre o trabalho dela e também sobre decoração e
arte, assuntos que ela adora e domina bem. Estou achando a conversa
razoável, até começo a me sentir ligeiramente zonza. Claro, que idéia a minha,
beber com o estomago vazio do jeito que está. Acho melhor cortar o clima
velhas amigas e começar a falar logo o que tenho para falar. Aí, vou embora e
pronto. Deixo para comer em casa mesmo.
- Rafaela – eu começo, enchendo outra taça de vinho para criar coragem. –
Eu realmente não gostei de você ter mentido para mim. Queria ouvir algumas
explicações, é o mínimo que eu mereço.
- Você recebeu meus e-mails? –ela pergunta.
Realmente, eu recebi os e-mails dela e não sei o que eu estou fazendo aqui.
Afinal, se ela já explicou por e-mail, eu vim aqui para quê? Para xinga-la, claro.
Mas não vou fazer isso, já que não tem mais clima, porque, afinal de contas,
ela está sendo até muito educada comigo. Bem, então o que eu respondo?
Acho que não estou raciocinando direito. Droga de vinho.
- Queria ouvir uma explicação pessoalmente – eu respondo – Não estou
muito feliz com o que aconteceu até agora.
Boa, Marina! Curta e grossa. Até já sinto meu ódio voltar, como no dia em
que vi que ela era ela! Vamos lá, Rafaela, o que você tem a declarar? Eu quero
ouvir, vamos lá.
Ela olha para mim por um minuto, me encarando, e aí se levanta de repente,
do sofá. Para o meu completo espanto ela começa a chorar.
- Desculpe, Marina! – ela berra, morrendo de chorar. – Eu não fiz por mal,
acredite em mim. Sou uma boa pessoa, ou ao menos tento ser...
- Calma, Rafaela, calma. Também não é assim...
- Eu sei que agi mal com você. Mas eu estava tão decepcionada com uma
amiga minha... eu só queria um ombro amigo, sabe? Eu ano queria brincar com
seus sentimentos.
- Mas brincou! – eu grito. Nossa, preciso aproveitar essa raiva que o álcool
me deixa liberar.
- Desculpe, Marina... eu realmente não queria causar o estrago que causei.
Você quer me dar um tapa? Vamos, me dá um tapa!
- Eu não quero dar tapa nenhum. Eu quero ir embora! –eu grito.
Levanto do sofá e pego minha bolsa. De repente, sinto uma mão que me
pega pela cintura e me viro. Rafaela me dá um beijo do nada, um beijo de
língua, um beijo... que não sei explicar.
- Tchau, Rafaela! – eu grito nervosa.
Quando chego na porta, ela me olho com um olhar tão perdido, tão desolado,
parecendo o olhar que eu fazia quando era pequena, abria o pacote de

94
figurinha e via que era repetida. Então me aproximo, passo a mão no rosto dela
e nos beijamos novamente. Meu Deus, o que estou fazendo? Largo minha
bolsa no chão e vamos nos beijando pela sala. Caímos no sofá, deitadas uma
sobre a outra.
Não consigo raciocinar direito. Só sei que, infelizmente, por algum motivo
bizarro encontrado em um universo paralelo, eu estou gostando.
Ela beija meu pescoço, minhas orelhas, minha barriga e levanta minha blusa.
Fecho os olhos e tento não pensar, até porque se eu for pensar eu fujo, e não
quero fugir... Não agora. Ela tira minha blusa com um só gesto, abre o zíper da
minha saia e expulsa a peça aos poucos. Quando vejo, estou apenas de
calcinha e sutiã. Ela acaricia meu cabelo e escorrega as mãos pelas minhas
costas até alcançar o fecho do sutiã e o abre sem dificuldades. Agora meus
seios, livres, estão em suas mãos. Meu Deus, que sensação gostosa, quero
fugir, vou fugir, mas não agora... daqui a pouco eu saio daqui...
Ela tira minha calcinha e fica em cima de mim, fazendo coisas com as mãos
que definitivamente não são comer comida japonesa nem tomar vinho, aliás,
onde está nossa comida japonesa? Não, foda-se, não quero parar, não agora,
ela está me tirando do sério. Ela se despe enquanto me beija na boca e no
pescoço, e fica apenas de calcinha, simples e sem apelações – branca, de
algodão, gostosa de ver. Ela passa as mãos nos meus seios de um jeito leve,
mas firme, e beija e lambe e chupa meus mamilos. Eu não resisto e acabo
acariciando-a também, e sinto uma pele quente e extremamente macia. Ela é
uma mulher cheirosa, mas de um cheiro natural, de quem acaba de sair do
banho. Tem os cabelos macios, levemente ondulados, de um tom loiro escuro
muito bonito, com reflexos. Seu corpo é definido, gostoso de tocar.
Ela desliza as mãos pelo meu corpo e delicadamente coloca um dedo em
minha vagina. Um ou dois? Hmmm, já não sei bem o que ela está fazendo,
mas está muito bom. Estou me sentindo tão lubrificada, eu não deveria estar
tão lubrificada, alguma coisa está errada, já, já eu saio daqui... Então ela
suavemente me senta no sofá, agacha-se no chão e, antes que eu diga
qualquer coisa, começa a me lamber. Nossa. Estou a ponto de voa. Ela
realmente sabe como fazer isso. Sem pressa, ela suga e lambe meu clitóris.
Tudo à minha volta parece rodar. Sinto que meu orgasmo vem vindo e tento
segura-lo de modo que eu aproveite o máximo possível esse momento, mas
desisto. Deixo que ele se aproxime e ele vem com toda intensidade.
Fecho os olhos e ela volta para o sofá me abraçando. Ficamos em silêncio.
Não consigo pensar direito.
Estamos abraçadas e caladas, quando a campainha toca.
- Deve ser a comida japonesa – ela diz, de maneira natural. – Vou pegar para
a gente.
Estou tão relaxada que chego a dormir por alguns minutos. De repente,
acordo e tenho um estalo. Acho que o efeito do vinho passou, o prazer passou
e só me resta uma pergunta básica: o que eu estou fazendo, meu Deus? O que
aconteceu comigo, eu acordei lésbica? Eu transei com uma mulher e agora
vamos comer comida japonesa em cima do sofá, vestidas só com camiseta,
talvez rindo e dando beijinhos uma na outra quando ela deixa cair um sushi no
molho [i]shoyu[/i]? eu pirei, é isso. Só pode ser isso.
Enquanto ela ajeita a comida na mesa, eu visto minhas roupas rapidamente,
pego minha bolsa e vou embora andando rápido demais (na verdade, nem um

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leopardo faminto me alcançaria, mas talvez ela não perceba nada de mais
nisso).
- Marina? Aonde você vai desse jeito? – ela pergunta. Merda, ela percebeu.
- Isso definitivamente não deveria ter acontecido, Rafaela – eu digo
apertando mil vezes o botão do elevador, como se isso fizesse ele vir mais
rápido. – Depois você me conta o que tinha nesse vinho. Tchau.
A porta do elevador se abre e eu entro. Ela põe a mão na porta e o segura.
- Você não fez nada que não quisesse – ela diz, soltando a porta. Droga,
ainda tenho que escutar isso?
- Fiz, sim – eu digo, um milésimo de segundo antes de a porta se fechar
totalmente.
Entro no carro e dou a partida. Espero profundamente que eu não pergunte
nada para mim mesma até chegar em casa, porque realmente não estou
disposta a falar sobre esse assunto.

VI

Que noite!
Termino de comer a comida japonesa, pego uma taça de vinho, procuro um
cigarro apesar de saber que fumei o último há algum tempo e me sento no
sofá. Acaricio a almofada, relembrando o que aconteceu ali há menos de uma
hora. Que delicia foi ficar com ela! Muito melhor do que todas as vezes que eu
tinha imaginado, e já era perfeito na minha imaginação. Até agora não estou
acreditando.
Quando a chamei para sair, estava pensando apenas em me explicar
pessoalmente e manter uma boa relação com ela, mais para não me sentir tão
culpada do que qualquer coisa. Aquela esperança de ficar com ela já tinha
desaparecido. Tanto é que a convidei para um restaurante, e não para vir aqui
em casa.
Mas assim que ela entrou no meu apartamento com aquela roupa
provocante... a vontade de me redimir perante ela e a mim mesma pelo resto
da vida ficou invisível diante da vontade de tê-la por alguns instantes.
Lembro-me de que talvez tenha um ou dois cigarros em um maço esquecido
na cômoda do meu quarto. Abro a gaveta e a caixa está lá – vazia. Suspiro e
me deito na cama decidindo se sairei para comprar, embora eu saiba que não
se trata de uma opção e que daqui a no máximo duas horas eu realmente
sairei para comprar um novo maço.
A noite estava tão agradável. Tomar vinho, conversar com ela sobre assuntos
variados.
Quando ela se levantou para ir embora, fiquei desesperada. Estávamos nos
dando tão bem, bem demais para parar. Geralmente não tenho tanta iniciativa,
mas não resisti e a beijei.
Que beijo.
Que pele.
Evito comparações entre as mulheres que tive, porque cada uma delas foi
importante à sua maneira, com cada uma delas o sexo foi diferente e especial.
Mas não resisto à conclusão: não me lembro da última vez que tive tanta
química com alguém como tive com ela.

96
Não quero acreditar que foi a última vez, mesmo depois de ela ter saído
correndo.
Não faz sentido ter sido a primeira e última vez.

97
18
Acordo, lavo o rosto e me olho no espelho. Certo, vamos encarar os fatos:
eu transei com uma mulher ontem, apesar de eu sempre ter achado que isso
era anatomicamente bizarro e nunca ter entendido muito bem a logística da
coisa, mas ontem eu vi que não é tão complicado assim - é até bem simples.
Como eu desmaiei na cama assim que cheguei, sobrou para mim agora o
temível dia seguinte. Sim, porque, se eu tivesse refletido ontem, talvez
acordasse feliz e até mesmo cantarolando, mas não: a princesa aqui fez o que
quis e foi dormir tranqüila. Agora, sobrou para mim. Não é justo: tinha que ter
sobrado para a Marina de ontem, porque ela é que liberou geral. Bom, já que
não tem mais jeito, vamos lá.
Explicações plausíveis são tudo o que eu preciso agora. Elas sempre fun-
cionam bem nessas horas. E o que não faltam são explicações plausíveis que
posso dar. Então, vamos à lista.
1-O vinho. Claro, o vinho. Fazia horas que eu não comia e dias que eu não
bebia, então, era natural que eu agisse como não agiria normalmente. Eu
nunca mais tomo vinho quando me encontro com uma mulher e pronto, volto à
minha condição sexual de sempre.
2-A solidariedade. Logicamente, tudo o que Rafaela queria, ontem à noite, era
ficar comigo. E, quando eu estava na porta e a vi desolada daquele jeito, tudo o
que poderia fazer para ajudar era agarrá-la como agarrei. Não tenho culpa se
tenho um bom coração.
3-A confusão mental estabelecida anteriormente. Afinal, lembremos que, para o
meu cérebro de tartaruga, Rafaela ainda é Rafael e habita as profundezas do
meu incauto coração. Logo, quando eu beijava Rafaela, estava no fundo
beijando Rafael, exatamente como naquele filme Ghost, do outro lado da vida.
Pronto, já me sinto melhor. Realmente, não foi culpa minha nem preciso dizer
que não vai mais acontecer. Na verdade, acho que falar isso me faria um bem
enorme, então vamos lá: isso não vai mais acontecer. Tudo bem, eu já estou
ótima e já vi que há muitas explicações para o ocorrido, mas uma dúvida não
sai da minha cabeça e ela não pode ser ignorada, já que hoje é o temível dia
seguinte e, para ser temível, ele coloca dúvidas temíveis dentro de mim: por
que, afinal de contas, eu senti tanto prazer ontem?!
Afinal, isso é um paradoxo, certo? O normal seria eu ter odiado a expe-
riência, mas até que gostei. Bem, para ser sincera, eu amei, pirei e vi estrelas,
mas também eu não preciso ser tão sincera assim, droga. Ai, estou começando
a me sentir confusa. O que eu faço para me sentir bem de novo? O que eu
faço? Explicações plausíveis. E isso. Se há explicações plausíveis para o que
eu fiz ontem, também deve haver para o que eu senti ontem. Criatividade,
Marina, vamos lá.
1- Fazia décadas que um ser humano não tocava em mim, se desprezarmos a
mão do caixa da padaria na minha, na hora de dar o troco, a mão da Ju tirando
um papelzinho que caiu no meu cabelo e cumprimentos em geral. Em outras
palavras, eu estava na seca e, em decorrência da seca, minha pele estava
extremamente sensível ao toque alheio.
2-Já ouvi dizer que comida japonesa é afrodisíaca. Ainda mais o prato que a
gente pediu que vinha com amendoim. Certo, acabei de me lembrar que nós
não chegamos a comer a comida japonesa, mas, como eu sou muito
sugestionável, o fato de saber que eu ia comer comida japonesa dentro de

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instantes fez com que o efeito afrodisíaco se instalasse em meu corpo e me
fizesse sentir prazer até mesmo com um tomate.
3- Mais uma vez, meu cérebro. Como eu passei o maior tempo das carícias de
olhos fechados, meu cérebro, coitado, foi tomado pela dúvida sobre o gênero
de quem estava me tocando, afinal, para o meu cérebro, Rafaela ainda era
Rafael e qualquer toque dela era processado como um toque dele.
Ufa! há três ótimas e viáveis explicações. Eu sabia que não tinha por que eu
me sentir daquele jeito. Agora, vejo mais do que nunca que não foi culpa
minha, foi uma coisa circunstancial, passageira e, principalmente, perfeita-
mente explicável.
Vou para a cozinha feliz da vida e me encontro com a Ju.
—Oi, Mari! Chegou tarde ontem, hein?
—Ju, eu já disse para você não ficar me controlando.
—O quê? Você nunca disse isso.
—Mas estou dizendo agora. Não me controle! Você está insinuando que eu fiz
alguma coisa errada, ontem? Está?
—Eu?! Imagine - ela responde. - O que você tem Mari? Ainda está chateada
com a história do namoro na internet, é isso?
—Romance? Internet? Nossa, nem me lembrava disso.
Pego uma maçã, dou um tchauzinho com a mão e saio para trabalhar. Fui
bem natural, o que significa que eu realmente já superei tudo. Parabéns.
Marina. Agora, mais um dia de trabalho feliz na sua agência feliz. Vamos lá.
Chego na agência e a Sônia olha para mim:
— Esqueceu de pentear o cabelo, Marina? — ela pergunta.
-Ahn?
Morro de vergonha e vou ao banheiro dar um jeito no meu cabelo. Eu tenho
culpa, se vim dirigindo com o vidro aberto e fiquei ligeiramente descabelada?
Se essa droga de agência tivesse um espelho no elevador, eu já teria
arrumado o cabelo, mas não. Espere um pouco, agora está me ocorrendo uma
coisa: será que a Sônia quis dizer que eu sou pouco vaidosa? É isso? Será
que ela está insinuando que não sou feminina e que nem me lembro de
pentear o cabelo? Ela vai ver uma coisa. Vou agora mesmo tirar satisfação e
mostrar que eu sou muito feminina.
Chego na recepção e percebo que armar um barraco com a secretária não
é exatamente uma atitude feminina. Afinal, ficar xingando e criando caso à toa
é um comportamento tipicamente masculino, não? Vou tirar satisfação, sim,
mas de um jeito bem feminino.
— Soninha - eu digo, bem delicadamente —, quando você comentou
que meu cabelo estava despenteado, você quis dizer que eu não sou muito
vaidosinha, é isso?
Ela me olha de cima a baixo e franze a sobrancelha.
— Na verdade, Marina - ela responde -, quando eu disse que seu cabelo
estava despenteado, eu quis dizer que seu cabelo estava despenteado.
Eu olho para ela, suspiro, percebo o papel ridículo que fiz e vou para a sala
de criação. Acho que estou ficando paranóica. Droga, eu tenho que parar com
isso. Afinal, não dá para perceber, só de olhar para a minha cara, que eu fiquei
com uma mulher ontem, dá?
—Marina, você está diferente, hoje! — a Lu comenta, assim que entro na sala.
—Não estou não - eu respondo. - Estou exatamente igual ao que eu estava
ontem e todos os demais dias da minha vida.
—Não adianta, você está diferente mesmo — ela continua. -Acho que é sua
pele. Você passou alguma coisa diferente?

99
— Ah, é isso? Não passei, não, mas obrigada assim mesmo.
Ufa. Ufa. Ufa.
—Já sei! — ela berra. — Foi seu encontro ontem! Ele que te deixou com essa
pele. Deve ter sido ótimo, hein?
—Não teve encontro nenhum ontem — digo grosseiramente, sentando-me. -
Assunto encerrado.
—Nossa, Marina, o que você tem?
—Eu não tenho NADA. Estou avisando a você e a todo mundo dessa sala: eu
não tenho NADA.
O Gustavo, o Alexandre, o Fabiano e o Sérgio me olham, estranhando. O
que há com essas pessoas? Eu estou normalíssima. Meu cabelo está normal,
minha roupa está normal, minha expressão está normal e minha sobrancelha
só não está normal porque era para eu ter feito ontem, mas não deu tempo de
ir ao salão. Eu só quero trabalhar droga! Trabalhar nor-mal-men-te. Afinal, hoje
é um dia comum na minha vida e não aconteceu nada de diferente para me
deixar diferente. O telefone toca. É a Ju.
—Oi, Ju. Estou trabalhando, o que você quer? — eu pergunto.
—Só queria saber se você já está normal. É que, quando você saiu daqui...
Digo que estou normal e desligo. Um, dois, três, quatro... não, acho que
contar até dez não resolve. Vou trabalhar para esfriar a cabeça e tratar de fa-
zer uma cara mais amigável, porque não está muito agradável a criação toda
me olhando como seu fosse um crocodilo esperando para dar uma dentada na
primeira pessoa que trocar uma palavra comigo.
Não adianta muito. Passo o resto do dia mal-humorada. O Gustavo aparece
com mais umas daquelas piadinhas velhas e sem graça, de loira e de pa-
pagaio, mas meu estado não melhora nem piora por causa disso. Acho que o
Gustavo não tem mais o poder de me irritar como antes. Claro, antes o meu
problema era trabalhar com um ex-namorado escroto que tinha me traído;
agora o meu problema é que eu me encontrei com uma mulher pensando que
ela era homem, transei com essa mulher e não sei mais o que fazer da vida —
é, acho que não foi exatamente uma boa troca.
Estou começando a achar que não adianta muito fingir que nada aconteceu
e que minha vida começou hoje: ontem eu fiquei com uma mulher, me sinto
estranha por causa disso e não pretendo mais ignorar esse fato para mim
mesma.
Pronto. Já admiti. Por que é que eu não me sinto melhor, então? Na
análise, falam que isso funciona. Mas, na verdade, eu ter admitido o fato para
mim mesma só piorou o meu estado. Eu não devia ter admitido. Eu deveria ter
continuado na minha doce ignorância, fingindo para mim mesma que nada
aconteceu. Droga.
Dou uma navegada para relaxar e resolvo checar meus e-mails. Não
acredito no que vejo: a Rafaela me mandou uma mensagem. O que acontece
com essa mulher? Ela não vê que o que aconteceu ontem foi um lapso na
minha vida? O que ela pensa que eu virei lésbica? Ela é muito cara-de-pau.
Aposto que ela não consegue me tirar da cabeça, aquela louca. Não está
tranqüila como eu, trabalhando normalmente. Será que ela não sossega? Bom,
vou ler logo isso.

100
Mari,
Ontem a noite foi inesquecível, mesmo com você saindo correndo. Espero que
você não tenha se arrependido e que queira outra dose.
(Eu toparia neste segundo).
Beijo,
Rafaela

OUTRA DOSE? Ou essa Rafaela é completamente pirada ou é absurdamente


otimista. Ela realmente acha que vai ter repeteco? Será que eu vou ter que
mandar minha lista dos motivos que me levaram a ficar com ela? Aí ela vai
entender que foi um equívoco, uma perda momentânea de sanidade da minha
parte e que não vai se repetir.
Fico muito irritada e respondo o e-mail dela:

Rafaela, querida, Vai se foder! Marina

Hum... melhor tirar o "querida". Ela pode não captar a ironia e pensar que eu
estou sendo carinhosa, o que logo é desmentido pela segunda linha do e-mail,
mas, como não sei exatamente o grau de esperteza dela, melhor afastar
qualquer ambigüidade.Tiro o "querida", clico em "enviar" e pronto, acabou, não
vou pensar mais nisso.
Saio para tomar um café e comer uma coxinha em uma lanchonete do lado
da agência. Será que fui muito rude com ela? Afinal, ela não tem culpa de ter
gostado de ficar comigo. E não foi mal-educada nem nada, não é? Apenas
disse que está com saudades. Bom, mas agora já foi já mandei o e-mail. E, se
eu fui rude, azar o dela. É bom que assim ela vê que acabou o que nem era
para ter começado e some da minha vida. É eu devia mesmo ter respondido
daquele jeito.
Volto para a agência e verifico meus e-mails para ver se ela respondeu.
Nada, ainda. Vou ao banheiro, converso um pouco com a Lu e olho meus e-
mails novamente. Ela ainda não mandou nada, mas aposto que já leu o que eu
mandei. Bom, então ela deve ter entendido a mensagem. Afinal, eu queria que
ela me esquecesse, o que quer dizer que não quero mais nenhum contato com
ela, inclusive por e-mail.

Passo a tarde checando meus e-mails entre um trabalho e outro que apa-
rece para fazer. Realmente, ela acatou meu pedido e nem deu sinal de vida.
Tudo bem que eu queria que ela me esquecesse, mas ela poderia pelo menos
ter respondido, né? Podia ter mandado um "tudo bem, adeus", ou um "até
qualquer dia", sei lá. É até uma questão de educação. Alguém diz "me
esquece" e a outra pessoa deve responder com um "então, tá" ou um "não
esqueço, não", não é? Que gafe a dela.
São 7 horas da noite e verifico meus e-mails pela última vez. Ela não
mandou nada, mesmo. Pego minha bolsa e me preparo para ir embora. Ah, foi
melhor assim. Ela leu, entendeu que eu não quero mais nada e se mancou. Na
verdade, foi até educada — se ela me perseguisse, é que seria chato, certo?
Bem, então, a novela "eu com Rafael/Rafaela" acaba aqui. Eu deveria me sentir
aliviada, então vou dar um suspiro de alívio. Pronto. De volta à minha vida
amorosa de sempre. Ou seja: vou para casa, assistir à TV e lembrar que eu

101
não tenho ninguém que me ame a não ser minha mãe. Pensando bem, por
onde anda a minha mãe? Faz uma semana que a gente não se fala.
Que vida a minha.

102
19
Sete horas da noite e eu estou quase saindo da agência. Já se passaram duas
semanas que eu mandei aquele e-mail para a Rafaela e nenhuma notícia dela.
Sinto muita falta do meu namoro virtual, de teclar com o Rafael, e acho que o
melhor seria eu não ter descoberto a verdade nunca. Eu poderia ficar teclando
a vida toda, feliz com meu namoro, como eu estava antes. Mas eu descobri e
agora tudo o que me resta é lamentar.
Não agüento mais esse meu estado caótico de acordar, trabalhar, fazer
ginástica, ver a novela das 8 e dormir. Isso no meio da semana, porque no fim
de semana é ainda pior: acordar, fazer ginástica e passar o resto do dia
fazendo uma dessas duas coisas: 1- Ajudar a Ju a arrumar alguma coisa para o
casamento, seja o aluguel do salão de festas, seja decidir se vai ter cereja ou
ameixa em cima do doce-de-coco; 2- Ficar no relaxante, porém autodestrutivo
trajeto geladeira — sofá — geladeira.
Essas duas semanas absolutamente monótonas me deram a certeza
inabalável de que nasci para morrer sozinha. Daqui a pouco vou sair da
agência, chegar em casa, ver minha novela e tratar de me conformar com
minha sina.
O Alexandre se despede de mim. Vejo que ele está só de camiseta, sendo que
hoje deve ser o dia mais frio do ano.
— Alexandre, está frio lá fora. Melhor você vestir seu casaco.
Espera um pouco, o que foi que eu acabei de dizer? "Melhor você vestir seu
casaco"? Que espécie de frase-mãe é essa? Nossa, em que nível eu cheguei.
Definitivamente, não posso continuar assim. Quantos anos eu tenho, 112? Não,
eu não posso me entregar à solidão. Ok, minha última tentativa de
relacionamento foi uma frustração completa, mas não posso me resignar e
morrer sozinha. Sabe do que eu preciso agora? Sair. Sair para uma balada
ótima, dançar até esquecer do mundo, beijar o primeiro cara bonito que
aparecer e, de preferência, levá-lo para a minha cama. Em outras palavras, eu
preciso de um HOMEM. Nem que seja só por algumas horas, como nos velhos
tempos. É, é isso aí. Eu preciso de alguém forte, que me dê um abraço quente
e apertado como se fosse um urso. Não é tão ruim assim uma ficada
passageira. Ou é isso ou é nada mesmo. E já está mais do que na hora de eu
ser tocada de novo, de me sentir desejada novamente.
Levanto da cadeira, completamente animada, e chamo minha parceira
inseparável das baladas: a Lu.
— Não estou a fim, Marina — ela responde.
— Como assim? Você ama sair. A gente vai dançar, se divertir... o que me diz,
hein?
— Ai, Mari, não vai dar mesmo... estou cansada. Outro dia, eu vou.
Eu estou quase apelando para as lágrimas quando ela se levanta, abre um
sorriso e fala, toda animada:
— Ahaha, falei isso só para você ver como eu me sinto quando eu chamo você
para alguma coisa e você não topa! Claro que eu quero sair, vamos, vamos!
Fico superfeliz. Finalmente, um pouco de agitação na minha vida de novo. Eu
mereço, depois de ter dado tudo errado! Vou sair, dançar e esquecer —
devidamente acompanhada por um representante da classe mas-cu-li-na. Se a
vida não quer um amor de verdade para mim, então é porque não era para ser

103
mesmo. Vou voltar a ser a velha Marina, habitué das baladas e dos caras mais
lindos dos lugares! Se eu passar o resto da minha vida com relacionamentos
sem compromisso, dane-se! Se eu não me casar e não tiver filhos, dane-se! Se
eu nunca tiver alguém para falar que me ama e perguntar se eu estou com frio,
dane-se!
Deixo meu carro na casa da Lu e vamos no dela.
— Nossa, Má! Fazia tempo que eu não via você tão animada!
— Pois é! Hoje eu quero curtir! Você já pensou em algum lugar legal? —
pergunto.
—Você está brincando, né? — ela responde. — Hoje vai ter uma festa
superbadalada no PoP. É para lá que a gente vai!
— E você tem convite?
— Tenho dois! Eu tinha chamado uma prima, mas vou furar com ela para ir
com você. Está vendo como sou sua amiga? — ela ri. — Mas tem uma coisa,
lá abre só mais tarde. Então a gente podia ir para um restaurante primeiro,
fazer hora...
— Restaurante?! Não, vamos para um bar, para já ir esquentando.
— Que animação, hein!
— Hoje a noite vai ser boa! — digo, empolgada.
— Vai ser ótima!
Chegamos ao Groovy, uma espécie de bar-pub-boate-café que abriu agora e
costuma ser bacana e ter gente legal. Na verdade, quem me passa essa
informação é a Lu, já que eu ando bastante desinformada sobre os points
atuais. Estou bem animada. Vai ser bom sentir o cheiro de um homem
novamente. Hoje eu não fico sozinha, de jeito nenhum.
Chegamos ao lugar e tem uma fila imensa na porta, Depois de meia hora,
conseguimos entrar. Eu e a Lu escolhemos uma mesa perto de onde tem uma
mulher completamente bêbada dançando com uma saia curtíssima —
provavelmente os homens devem estar olhando para cá. Peço uma cuba-libre
e a Lu me reprime.
— Cuba-libre, Má? Em que ano você acha que a gente está? 1984?
— Eu gosto, ué.
— Não tem nada mais fora de moda.
— Lu, não enche. Cuba-libre é tão gostosinha.
— É breguinha.
Vestir-se na moda, tudo bem, mas só beber o que está na moda? Já pensou se
a moda invade a geladeira também? "Ah, hoje eu não vou comer uma maçã,
vou comer uma pêra, que está muito mais na moda". Argh. Mas vou tentar
manter o bom humor, não quero estragar a noite.
Depois de menos de meia hora, dois caras lindos se apresentam para nós. Um
moreno e um loiro. De cara, quero o moreno. Não gosto muito de homem loiro.
Espero que loiros estejam na moda, para a Lu escolhê-lo.
Conversamos um pouco e parece que o loiro-periquito gostou da Lu. E o
moreno definitivamente está olhando mais para mim. É, eu posso ter passado
um tempo fora do mercado, mas continuo com o charme de sempre.
— Oi. Como você se chama? - o moreno pergunta para mim. Bingo.
— Marina. E você?
— Marcelo.
Silêncio.
— Está cheio, aqui, né, Marina?

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Hum, começamos mal. Mas tudo bem, vamos dar uma chance ao rapaz.
— É, está bem cheio. Esse Grovy é muito bom.
— Não é "Grovy" que se fala. Ê "Grooovy".
Vai se danar!
— Seu cabelo é tão bonito, Mariana!
— MARINA.
Desisto. Eu sabia que não ia dar certo. A Lu, pelo menos, parece que se
entendeu com o loirinho. Os dois já estão aos beijos em um canto. Dou uma
desculpa para o Marcelo e saio de fininho. Aproveito para ir ao balcão e peço
outra cuba-libre. Tomo a bebida na minha, pensando na vida, quando um cara
não pára de me olhar. Nossa, nem ficar sozinha eu posso mais. Pelo menos,
ele é bem bonito — mais moreno do que o anterior, mais alto do que
o anterior e aparentemente mais esperto do que o anterior.
— Também adoro cuba-libre - ele diz, sentando se ao meu lado.
— É mesmo? Pensei que só eu gostasse, hoje em dia.
— Bebida boa é boa sempre.
Simpático. Esperto. Tem respostas prontas. Aprovado na primeira etapa.
— Qual é o seu nome?
— Marina. Não Mariana, mas Marina.
— Ah. O meu é Marcos. Não João Marcos. Marcos.
Que engraçadinho! Fazendo piadinhas com o que eu falo, parece o Rafael! Eu
disse Rafael? Vamos esquecer o Rafael. Eu nem conheço nenhum Rafael
pessoalmente. Só conheço uma Rafaela que, por sinal, eu odeio.
—Você é muito bonita, Marina.
— Obrigada. Você também não deixa a desejar.
— Na verdade, você está me deixando louco. Você é linda.
— Hum, você está chegando perto demais... acho melhor a gente se conhecer
melhor primeiro...
— Para quê? Para beijar mais gostoso?
Ele me agarra e damos um superbeijo. Eu tentei me controlar. Esse homem
não vai dar em nada, mas não agüento mais não ficar com ninguém. Ele me
beija com vontade e vamos para um canto. Mesmo com várias pessoas
passando, a gente se empolga e começa a se agarrar. Ele pega no meu
cabelo, beija o meu pescoço, passa a mão sobre meu vestido. Quando já estou
sem nada na cabeça, só aproveitando como nos velhos tempos, reparo uma
aliança caindo no dedo esquerdo dele.
Ele beija minha boca novamente. Já fiquei várias vezes com homens casados.
Não que eu ache lindo fazer isso, mas, geralmente, considero que o problema
é muito mais do cara e da mulher dele do que meu, que não tenho nada a ver
com as crises matrimoniais de ninguém. Mas sei lá. Hoje não estou a fim disso.
Pular do degrau "estou à procura de um relacionamento sério" diretamente
para "vou dar para um cara casado hoje" é uma mudança muito brusca. Eu
preciso de um degrau intermediário primeiro — algo como "vou dar para um
cara que... bom, que provavelmente vai sumir depois de uma noite, mas que
pelo menos não está casado e com alguma sorte pode até se interessar um
pouco por mim".
— Vamos parar por aqui - eu digo, ajeitando minha roupa.
— O QUÊ? Você não está falando sério, está? Eu já ia chamar você para
sairmos daqui!

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Saio sem olhar para trás. CHEGA. Será que eu não mereço ter um
relacionamento sério? Alguém que ponha um termômetro em mim quando
estou doente, alguém que me ligue no meio do dia para perguntar como está o
trabalho? Será que eu vou morrer sozinha? Definitivamente, eu não sei o que
estou fazendo aqui nessa boate pub bar sei lá mais o quê. Não estou a rim de
caçar, como antigamente. Será que eu não posso conhecer alguém no dia-a-
dia, casualmente, igual à quase todo mundo que namora a mesma pessoa há
anos? A Ju e o Bruno se conheceram quando ele, que é advogado, foi defender
uma causa trabalhista para ela; minha mãe e meu pai se conheceram quando
estavam no colégio e o Alexandre já contou que conheceu a esposa dele
quando a irmã dele, que era amiga dela, a levou para a casa dele para estudar!
Por que esse tipo de coisa nunca acontece comigo? Eu deveria ter aproveitado
para conhecer alguém na faculdade. Namoros de faculdade sempre duram
anos e muitas vezes acabam no altar. Sempre tem aquele casal chato que fica
falando nas festas: "Ai, amor, lembra quando a gente se conheceu... você era
minha caloura","nossa, a gente odiava aquele professor do segundo período,
não era?". ARGH!
Nossa, eu estou no fundo do poço. Tudo o que tenho é um cara que eu não
conheço pessoalmente e um bar-boate-blá blá blá cheio de caras que olham
para o meu decote. Decido pedir mais uma bebida para gastar minha
consumação e ir embora. Chega disso aqui.Vou ao balcão com os olhos meio
molhados.
O barman se vira para mim.
— Já foi atendida?
— Não. Eu queria uma cuba-livre.
— Acabou o rum, pode ser outra coisa?
"Acabou o rum"? Que droga de lugar é este?
— Tá, me dá uma bebida qualquer — peço, depois de respirar fundo.
— Mas qual bebida, querida?
— Qualquer bebida. Aproveita e me dá um relacionamento também, pode ser?
É só isso que eu quero: uma bebida e um amor sem gelo, por favor.
O cara me olha com uma expressão de "mais uma louca na noite" e se vira.
É isso mesmo que pareço: mais uma louca na noite. Ou então a personagem
de algum filme infeliz, que fica se embebedando enquanto fala coisas sem
sentido. A Lu me olha de longe, abandona o bonitinho que estava com ela e
senta-se ao meu lado.
— Que desânimo é esse, Má? A noite está só começando! — ela diz.
— Não se preocupe comigo, Lu. Pode voltar para o carinha com quem você
estava ficando, numa boa.
— Ah, não, já enjoei dele. No PoP é que vai estar bom, vamos para lá.
— Nem pensar. Chega de sair por hoje.
— Ah, não, Má, nem começa Deixei de sair com minha prima, que é
superanimada, para sair com você e você me deixa na mão? Vamos, vamos.
Ela me puxa pela mão, pagamos e entramos no carro. Eu, completamente
desanimada. Ela, animadíssima, coloca no som a música "Dancing Queens",
que tem o poder de me animar mesmo quando eu estou péssima.
— Olha só, coloquei essa música antiguinha em sua homenagem — a Lu fala.
Ela começa a dançar e a mexer com os motoristas toda vez que o carro pára, e
eu acabo me animando um pouquinho. Bem, já que comecei com isso, não vou
desanimar justo agora. E pode ser que no PoP esteja mais legal. Afinal, não é

106
porque fiquei com um cara comprometido que significa que todos os caras são
comprometidos, certo? Bem, espero que não.
Chegamos ao PoP e está lo-ta-do. A pouca animação que consegui acumular
nos 20 minutos de trajeto Groovy-PoP já começa a diminuir, mas decido insistir
e entrar logo — mesmo porque, se eu for embora, a Lu me mata. Entramos e
vejo uma multidão assustadora, uma música ensurdecedora e uma cortina de
fumaça — enfim, um ambiente perfeito para quem quer um pouco de agitação.
Bem, de volta aos velhos tempos. Homens que não me amam, não sabem que
roupa estou usando e não telefonam na manhã seguinte, aqui vou eu! Não
muito empolgada, mas aqui vou eu.
Peço uma cuba-libre e vou para a pista com a Lu. Os homens não param de
olhar para mim e me sinto um pouco mais feliz e confiante. Começo a dançar
de um jeito bem sexy quando um cara engraçadinho, de uns 30 anos, sorri
para mim. Ele é alto, tem cabelo castanho e um sorriso encantador. A noite está
ficando boa.
— Oi, como você se chama?
— Marina.
— Marina, você é linda e eu sou o Rodrigo.
"Você é linda e eu sou o Rodrigo" ? Certo, não foi muito intelectual da parte
dele, mas vou parar de analisar o QI das pessoas e aproveitar a chance de
conhecer esse cara bonitinho. Afinal, tenho que estar receptiva e me lembrar
de que isso aqui é uma boate, não um museu de arte. Acabo de lançar
mentalmente a campanha "vamos dar uma chance ao Rodrigo" e engato uma
conversa com ele. Vamos para o bar, ele pede uma cerveja, eu peço outra
cuba e a conversa vai esquentando. Quando vejo, ele passa a mão no meu
cabelo e me dá um beijo. Nota 6, eu diria — "não está mau, mas você pode
melhorar".
— Por que é que a gente não sai daqui, hein? — ele pergunta, depois de algum
tempo que a gente está ficando.
— Será? — eu me faço de boba.
— Ah, acho que sim... a gente podia ira para um lugar mais reservado.
Rápida reflexão. Rodrigo = simpático e charmoso. Lugar mais reservado =
motel, apartamento dele ou meu apartamento. Hum, acho que as duas coisas
combinam, assim como arroz com feijão e kiwi com leite condensado (eu gosto
de kiwi com leite condensado). Então, por que é que eu não quero ir? Se eu
continuar transando com caras que eu não conheço, minha vida amorosa ficará
nula para sempre. Mas, se eu não transar com ele minha vida amorosa vai
continuar como está, ou seja, nula. A vantagem de transar com ele é que minha
vida amorosa vai continuar nula, porém mais divertida. É, acho que eu topo.
— É, acho que eu topo — eu respondo.
— Legal, vou pedir a conta.
Levantamos e eu vou toda feliz. Quero me sentir desejada, me sentir mulher,
me sentir... O que é aquilo? Olho para trás e vejo a Rafael no bar, conversando
com uma mulher. Ela está me perseguindo! Não é possível! Não vou nem
cumprimentá-la.
—Vamos?—o Rodrigo diz.
— Hã?
— Vamos ficar sozinhos, fofinha... você topou e depois parou no meio do
caminho.
Eu parei no meio do caminho? Nossa, é mesmo. Acabo de notai que estou em

107
pé, parada, olhando para a Rafaela. Ainda bem que ela não me viu. Olho para
o outro lado rapidamente, dou a mão para o Rodrigo e começo a andar rápido.
— Era um ex-namorado? — ele pergunta.
— Ex-namo... não, não. Eu só viajei um pouco, costumo viajar às vezes.
Vamos.
Entramos na fila para pagar a conta e ele começa a passar a mão no meu
cabelo e a sussurrar no meu ouvido. Será que aquela mulher é namorada da
Rafaela ou é só alguém que ela acabou de conhecer? Como ela é galinha!
Bem, vou esquecer isso.
Preciso me concentrar nos sussurros do Rodrigo, porque até agora não
consegui entender bem o que ele está dizendo. Que roupa é aquela que a
Rafaela está usando? Uma saia supercurta. Ela não tem pudor mesmo. Sai à
noite e joga seu papo para a primeira que aparecer. Aposto que, enquanto ela
conversa com a mulher, ela está pensando "droga, não posso fingir que sou
vim homem e enganar essa mulher". Afinal, ela é obcecada por enganar os
outros. Fingida!
— Você está prestando atenção? — o Rodrigo pergunta.
— Desculpe. O que você tinha falado?
— Eu estou sussurrando há horas no seu ouvido, perguntando se você prefere
ir para a minha casa, para a sua, para outro lugar...
— Prefiro nenhum. Tchau!
Largo a mão dele e vou ao encontro da Rafaela. Pode até parecer que isso não
tenha nenhum sentido, mas é que eu acabo de me lembrar daquele e-mail
grosseiro que mandei para ela e quero saber se ela lidou bem com aquilo, se
não ficou ofendida nem nada. Afinal, eu não quero abalar completamente a
auto-estima dela, certo? Eu não gosto de ofender ninguém.
Chego no bar e ela ainda está com a mesma mulher, conversando
animadamente. Bem, espero que ela se lembre de mim e me trate bem. Pior do
que interromper uma conversa é interromper uma conversa e todos ignorarem
o fato de você ter interrompido.
— Desculpe... Rafaela? — eu me aproximo.
— Marina! Como vai você? — ela pergunta, sorrindo. — Essa aqui é a Juçara,
minha irmã. Juçara, essa é a Marina, uma amiga minha.
Ah, então era a irmã dela. Que coisa.
— Você está sozinha? — a Rafaela pergunta.
— Vim com uma amiga.
— E aquele rapaz simpático com quem você estava na fila? Você desistiu
dele?
— Aquele rapaz? Ah, era um amigo.
— Quantos amigos, hein? — a Juçara comenta. — Você e aquele rapaz, você
e a Rafaela...
— Pois é — respondo. Detesto esses papos sem graça de pessoas que não se
conhecem, mas, para evitar aqueles silêncios constrangedores, obrigam-se a
conversar. "Quantos amigos, hein?". Que espécie de comentário é esse?
Uma mulher aparece e acena para a Juçara, que se desculpa e sai.
— Minha irmã está pegando algumas notas aqui na festa — Rafaela explica. —
Ela é colunista social.
— Ah, você tinha me falado.
Ela se vira para o garçom.
— Duas cubas-livres, por favor.

108
Hum, isso foi gentil da parte dela. Não gosto que peçam bebidas para mim,
porque, afinal de contas, desde que larguei o leite materno, eu costumo
escolher o que bebo. Mas ela se lembrou que eu adoro cuba-libre e pediu para
mim. Simpática. Uma boa amiga, eu diria.
— Não costumo escolher bebidas para ninguém, mas imaginei que você
quisesse isso — ela diz.
— Acertou — eu digo. — Rafaela, mudando de assunto... desculpe por ter
mandado aquele e-mail grosseiro a você. Eu estava com raiva.
— Você tem direito de ter raiva de mim ainda. Tudo bem.
— De verdade? Podemos ser amigas?
— Claro que podemos — ela responde.
Ótimo. Estou me sentindo muito mais leve agora. Ela não me odeia e não ficou
deprimida com meu e-mail. Isso é muito bom. Mas eu confesso que estaria
bem feliz e satisfeita com esse clima de paz, com a receptividade dela e com
essa idéia de sermos amigas, se... eu não parasse de olhar para as pernas
dela. Droga, por que estou fazendo isso? São pernas, Marina. Pernas como as
suas, as da Ju e as da Lu, que não sinto a mínima vontade de olhar, Então, por
que eu estou olhando? Isso não faz sentido.
Ela cruza as pernas. Depois descruza. Depois cruza novamente, enquanto
comenta como a cuba-libre está boa. Bom, é claro que eu não consigo parar de
olhar para as pernas dela: elas não param de se mexer, parecem um cata-
vento em dia de furacão. Hum, cata-vento em dia de furacão foi uma boa idéia.
Vou reservar para alguma propaganda. Bem, o fato é que não estou olhando
para as pernas dela pelo fato de serem bronzeadas e malhadas. mas porque
não param de se mexer e isso desvia minha atenção. Apesar de as pernas
serem realmente bronzeadas e malhadas, mas isso não está ajudando.
Ela pára de falar, sorri e coloca uma mão suavemente em cima da minha.
— O que você acha de a gente ir para o meu apartamento, Marina?
Faço cara de que estou pensando. Que estranho, todos me querem em seus
respectivos apartamentos hoje. Mas é claro que eu não vou, eu sei muito bem
onde isso vai dar. E o pior é que, se eu fizer alguma coisa, nem posso alegar
pra mim mesma que estava bêbada: as cubas-livres que tomei hoje estavam
absolutamente fracas. Também não quero ser grossa com ela novamente. Não
faz nem dez minutos que eu pedi desculpas a ela por ter sido grossa aquela
vez. Então, a saída é devolver a pergunta com outra pergunta:
— Para quê, Rafaela?
Nossa, essa foi urna pergunta realmente estúpida. Espero que ela entenda que
responder uma pergunta dela com outra pergunta foi apenas uma estratégia
para dizer um "não" sem ser rude. Bem, é claro que ela não vai entender isso
— não faz o menor sentido.
— Ah, a gente pode pedir uma pizza. Este lugar só tem bebida e eu estou com
fome, você não está?
Novamente, ela vem com a estratégia alimentícia. Primeiro, era a comida
japonesa; agora, é a vez da pizza. O que ela pensa, que na minha casa não
tem comida? Bem, na verdade, não há nem um macarrão instantâneo no
armário da cozinha, mas nem por isso vou me dar por vencida.
— Estou com um pouco de fome — respondo. — Mas acho que prefiro passar
em algum restaurante.
— Tudo bem.
Pegamos nossas bolsas, pagamos a conta e vamos embora. É, acho que

109
restaurante foi uma boa idéia — eu mato minha fome, ela mata a dela, nós não
fazemos nada de que eu venha a me arrepender depois e pronto. E, afinal, ela
é uma ótima companhia. É culta, inteligente, já viajou para muitos lugares... só
não sei se ela tem uma vida amorosa tão horrível como a minha. Espero que
tenha, porque eu não agüento mais ter inveja dessa mulher perfeita.
Chegamos a uma simpática cantina italiana. Peço uma massa com um molho
absurdamente calórico — afinal, ela não se cansa de falar que eu não preciso
de dieta e a minha experiência diz que, quando uma pessoa diz que você não
precisa dieta, o melhor jeito de deixá-la mais admirada ainda é comer uma
comida bastante gordurosa e em muita quantidade, ao mesmo tempo que você
faz uma cara de "é a quinta vez que eu consumo esse prato calórico nesta
semana". Ela também faz seu pedido e o garçom chega com o vinho dela e a
minha água - vinho de novo não, muito obrigada. Um homem lindo passa. Nós
duas olhamos para ele.
— Gato, né? — ela pergunta.
— Ué? Você, olhando para um homem?
Nossa, que gafe! Quer dizer, não sei por que foi gafe, mas pela cara que ela
fez ao ouvir meu comentário, deve ter sido, e dessas bem feias.
— Que idéia, Marina. Eu também acho homens bonitos, claro! Aliás, eu já fiquei
com muitos homens também.
— Não! Você, ficando com homens?! — e aqui estou eu, continuando na minha
versão máquina de fabricar gafes quentinhas.
— Já fiquei com homens, sim — ela confirma —, e até já namorei. Mas prefiro
ficar com mulheres.
— Ah. Por quê, hein?
— Porque prefiro. Por que você gosta de melão e não de abacaxi?
Quem ela pensa que é para ficar especulando sobre meus gostos frugais?
Além disso, eu prefiro abacaxi.
— Então você é bissexual — concluo.
— Não! Que palavra horrorosa. Eu sou o que eu sou, sem rótulos.
Profundo, isso.
— Mas você se apaixona por mulheres e por homens, é isso? — eu pergunto.
— Eu me apaixono por pessoas, Marina.
Ainda bem. Se ela falasse coelhos ou flores, aí sim eu não entenderia mais
nada.
— E você? — ela pergunta.
— Eu? Eu me apaixono por homens, eu acho. Acho, não: eu me apaixono por
homens.
— Ah.
Não gostei desse "ah" dela.
— Olha. Rafaela, se você pensa que só porque aconteceu... aquilo, na sua
casa, eu sou lésbica, é melhor eu avisar uma coisa: eu não sou, não. Não sou
meeesmo.
— E você não gostou daquele dia? — ela pergunta, sorrindo.
— Não. Quer dizer, mais ou menos.Tudo bem, eu gostei, mas tem vários
motivos que me fizeram ter gostado. Gostar de ficar com mulheres não é um
desses motivos.
— Ah, não? E eu posso saber alguns desses motivos misteriosos, então? —
ela olha para mim, desafiadora, mantendo o sorriso.
— Pode, sim - respondo — Eu fiz até uma lista. O primeiro motivo foi o vinho.

110
Eu não estou acostumada a beber vinho e estava de estômago vazio aquele
dia. O segundo motivo foi à solidariedade...
— Solidariedade?
— Eu tenho um bom coração, Rafaela — explico. — Eu vi que você estava
triste e queria ficar comigo. E sou péssima para dizer não!
O garçom chega com os pratos, a Rafaela me fulmina com os olhos e pega a
bolsa dela.
— Quando você superar esse seu preconceito e conseguir encarar com
naturalidade o fato de duas mulheres se relacionarem, Marina, você me
procura - ela fala, ríspida, levantando-se da mesa e me deixando sozinha com
o garçom.
Certo, uma de nós duas está errada e uma de nós duas é uma pessoa bem
ridícula. Só tenho medo de pensar qual de nós duas é essa pessoa, então
tento não pensar. Quando não é vinho, é cuba-libre: o fato é que eu sempre me
arrependo de alguma coisa.
O garçom permanece parado, na minha frente, com cara de "não presenciei
discussão nenhuma". Todos os garçons sempre fazem essa cara, mesmo
tendo prestado atenção a cada segundo da discussão alheia. Não como nada,
pago a conta, pego minha bolsa e vou embora.
Chego em casa e desmaio na cama. Acordo tentando não pensar mais no
assunto, mas é claro que, assim que eu penso "não vou mais pensar nesse
assunto", já estou pensando nesse assunto e, por mais que eu tente. não
consigo desviar minha mente para outra coisa. Afinal, eu posso pensar em
todos os temas do mundo, menos nesse e, para não pensar nesse, tenho que
pensar nesse. Nossa, não é à toa que tantas pessoas resolveram praticar
meditação ultimamente. Eu devia tentar também.
Vou para o banheiro com raiva. Sabe de uma coisa? Acho que é a Rafaela que
estava errada. Afinal, quem foi mal educada a ponto de se levantar da mesa e
ir embora? Sem contar que ela tinha pedido o vinho mais caro do lugar e quem
pagou a conta? Eu, que nem tomei uma gota do vinho. Eu so-zi-nha. Aposto
que ela premeditou isso.
Bem, a vida continua. Quantas vezes pensei nisso este ano? O Gustavo me
trai, a vida continua. A Rafaela me deixa falando sozinha, a vida continua.
Estou começando a achar que o fato de a vida continuar não significa grande
coisa. Nossa, agora que estou vendo: primeiro falei de mim com o Gustavo, e
agora estou falando de mim com a Rafaela. Fica parecendo que nós somos um
casal. Meu cérebro está processando tudo errado. Nós não somos um casal,
viu, cérebro? Seu lerdo (acho que ainda estou com sono — estou falando
coisas sem muito sentido).
Tomo um banho rápido. Coitada, ela foi mal-educada, mas é que eu a irritei um
pouco. Claro, ela pensando que eu tinha amado loucamente aquela noite e eu
lá, listando motivos que me levaram a cometer aquele equívoco. Nossa, espero
que eu não tenha dito a palavra "equívoco" no restaurante. Algo me diz que ela
não gostaria de ouvir essa minha classificação.
O fato é que dormi com a consciência limpa: não estou sendo preconceituosa,
ao contrário do que ela disse ontem. Encaro com a mais absoluta naturalidade
o fato de mulheres namorarem, fazerem sexo e até terem filhos umas com as
outras — neste último caso, quem não encara com naturalidade é a própria
natureza, mas eu não tenho nada com isso. O que não encaro com
naturalidade é EU ficar com outra mulher. Afinal, se eu sempre me relacionei

111
com homens, por que essa Rafaela chegaria na minha vida e mudaria tudo,
hein? Quem ela pensa que é, uma máquina de transformar orientações
sexuais? Pretensiosa.
Bom, se ela não consegue encarar com naturalidade o fato de eu encarar com
naturalidade o fato de duas mulheres ficarem e mesmo assim eu não querer
ficar com ela, o problema é dela. Aposto que ela foi uma daquelas crianças
mimadas, que nunca recebiam um "não" c que se achavam a rainha do
universo. Posso até imaginar um dia comum da infância dela: "Mãe, quero
aquela boneca!", "Toma, minha filha", "Mãe, quem é a menina mais linda do
mundo?", "Você, minha filha", "Mãe, quando eu crescer vou ter pernas
bronzeadas e saradas?", "Vai, minha fil...". Droga, lá estou eu pensando de
novo naquelas malditas pernas.
Saio do banho e vou para a cozinha comer alguma coisa. Afinal, não comi nada
no restaurante. Abro a geladeira e vejo que a Ju fez compras. Vasculho o
freezer quando ela chega na cozinha, comendo uma maçã.
— Ju, me responde uma coisa — digo, batendo sorvete com leite no
liquidificador.
— Pode falar, Mari.
Eu ia falar "uma amiga minha está ficando com outra mulher, você acha que
ela é louca?", mas achei que ia dar na cara. Ninguém com mais de 7 anos cai
nessa história de amiga.
— É que... — eu gaguejo. — Como estão os preparativos para o casamento?
— Você perguntando sobre o meu casamento? O que deu em você?
Ótimo. Agora é que deu na cara que tem alguma coisa errada comigo. Melhor
eu disfarçar.
— Eu adoro saber como vai seu casamento, Ju. Não é porque eu sou
encalhada e infeliz que não quero saber da felicidade da minha amiga feliz e
bem-sucedida no amor.
— Bem, sua amiga feliz e bem-sucedida no amor não está feliz no sexo — ela
diz —, mas foi uma escolha minha, então, paciência.
— Do que você está falando, Ju? - eu pergunto. Por que as pessoas falam
coisas estranhas e esperam você perguntar "do que você está falando" para
continuar falando?
— Nós resolvemos não fazer sexo até o casamento. Quer dizer, eu resolvi. Ele
teve que aceitar.
— Mas por que você fez uma coisa dessas? Seu casamento é daqui a tanto
tempo!
— Então. — ela diz. — Não é emocionante? Vou ficar cerca de um ano sem
sexo e, quando a gente se casar, eu vou me sentir virgem na noite de núpcias!
Não é legal?
Confesso que depois dessa conversa meu humor melhorou. Afinal, as pessoas
têm problemas mais estranhos do que o meu — algumas, como no caso da Ju,
fazem questão de arrumar seus próprios problemas. Pelo menos, eu não sou
mais a única pessoa desta casa a não fazer sexo. Quer dizer, aquilo que eu fiz
com a Rafaela não é sexo, é? Bem, talvez seja. Mas é passado. Vou contar a
partir de hoje.

VII

Eu devia ter imaginado que tudo acabaria assim.

112
Devia. Mas não imaginei. Ou imaginei, mas ignorei o que imaginei. O que gera
a mesma conseqüência de se eu não tivesse imaginado. Ou não: gera uma
conseqüência ainda pior, porque, se eu não tivesse imaginado, pelo menos
poderia me esconder sob a culpa da ingenuidade. Mas como imaginei e
mesmo assim me deixei envolver, além de sofrer com os fatos, sofro com
minha responsabilidade diante dos fatos.
O que torna tudo ainda pior.
Recuso-me a continuar perdendo tempo pensando em uma pessoa tão mal
resolvida e preconceituosa.
E pensar que eu estava tão envolvida. Dificilmente me senti ligada a alguém
em tão pouco tempo como me senti com a Marina. E dificilmente me senti tão
mal como me senti no restaurante. Com a Marina.
Pego o telefone e ligo para o Davi, desanimada.
— Oi, linda.
— Estou mal, Davi.
— Aposto que tem a ver com a Marina.
— Acertou — confirmo — Acredita que ela disse que ficou comigo por
solidariedade? Ela disse que não queria me deixar triste. Ficou com pena de
mim.
— Rafaela, vai passar. Daqui a pouco você nem se lembra disso.
— Davi, se você continuar me dando conselhos úteis assim, tchau. Pode deixar
que eu me viro sozinha.
— Pô, Rafa, o que você queria? Ela é hétero, não é?
— É, e daí?
— Daí que gay ficar com hétero é arrumar problema. Não funciona.Você não
aprendeu com o caso da Fê?
Eu tinha me esquecido daquilo.A Fê é uma conhecida nossa que se apaixonou
pela Cris, que nunca tinha ficado com outra garota. Depois que elas ficaram, a
Fê, que era toda feliz e animada, começou a ficar triste constantemente,
porque a Cris não admitia o relacionamento para ninguém.
Como se fosse errado elas namorarem.
— É, talvez você tenha razão — concordo.
— Claro que eu tenho. Lésbica fica com lésbica, Rafa. Vê se aprende isso.
Agora, que tal melhorar essa cara e me encontrar no bar de sempre?
Concordo e desligo, resignada.
Preciso esquecer a Marina.
Não é a primeira vez que digo isso, mas preciso esquecer a Marina.
(E mesmo não sendo a primeira vez que digo isso, e mesmo estando com raiva
dela, já vi que essa não vai ser uma tarefa das mais fáceis.)

113
20
Já vai fazer umas cinco semanas desde aquele dia em que eu não jantei
com a Rafaela. Na verdade, faz exatamente três semanas e quatro dias — não
que eu esteja contando, claro. A impressão que dá é que passei essas
semanas pensando na Rafaela e conferindo meus e-mails de meia em meia
hora para ver se ela tinha mandado alguma coisa, mas não é nada disso.
Certo, é isso — a verdade é que estou com saudades dela.
Quer dizer, não saudades dela, mas saudades de conversar com ela e do
jeito dela. Isso não é saudade dela, é? É saudade das coisas dela. Tudo bem,
talvez seja saudade dela. Mas saudade como AMIGA. Sim, porque a Rafaela é
uma pessoa muito legal. Claro que, se eu pensar em uma cama macia com nós
duas rolando nela, acariciando uma a outra e comendo morangos, eu tenho
vontade de fazer isso. Mas é normal, né? Afinal, rolar em uma cama macia e
comer morangos é divertido com qualquer companhia. A parte das carícias é
que me preocupa. Mas, sei lá, cama macia e morangos dão vontade de fazer
carícias até em um abajur, certo? Vou pensar em um lugar menos perfeito para
ver se nele eu teria vontade de rolar com ela, sem o bônus do morango.
Vejamos... qual lugar não daria vontade em alguém de acariciar outro alguém?
Talvez um jardim. Odeio grama. Se bem que jardim é sexy. Filmes pornôs
costumam ter cenas da praia e em jardins floridos — estou falando de filmes
pornôs caros, obviamente. Bom, jardim não deu certo: continuo com vontade
de rolar com ela. Vejamos outro lugar, então. Já sei: a jaula de um leão em um
zoológico à meia-noite sem seguranças por perto. COM o leão lá dentro, claro,
porque sem o leão vira fetiche. Bem, nessa situação eu definitivamente não
sentiria vontade de rolar com a Rafaela, porque estaria mais preocupada com
meu amigo carnívoro. Se eu não tenho vontade de rolar com a Rafaela na jaula
do leão, eu não gosto dela. Ufa, como estou aliviada.
O problema que estou pensando agora é que estar em uma jaula fechada com
o leão não me daria vontade de fazer NADA com NINGUÉM. Isso é um
problema. Para ficar realmente aliviada, tenho que pensar em uma situação em
que eu não ficaria com a Rafaela. mas ficaria com um cara bem bonito.
Vamos pensar em um ex. Os ex costumam funcionar nesses casos. Uma vez,
fiquei com um cara bem bonito chamado Flávio. Em que circunstância eu
ficaria com o Flávio e desprezaria a Rafaela? Já sei: eu faria isso se estivesse
com fome. Claro! Com fome eu ficaria com o Flávio, como já fiquei uma vez. O
problema é que... bem, eu também estava com fome quando fiquei com a
Rafaela. Droga, qual é o problema com o' meu estômago? Eu não deveria
transar quando estou faminta.
Não importa a situação, sempre tenho vontade de rolar com a Rafaela —
mesmo no caso do leão, caso ele esteja dormindo, claro. Quando eu virei
lésbica? QUANDO? Que pergunta, foi quando fiquei com a Rafaela. Afinal, até
aquele dia, eu nunca tinha me interessado em ficar com uma mulher. Como eu
sou volúvel. Chega a ser ridículo. Nunca pensei em comer peixe com banana
verde, alguém me mostra e eu como, feliz, como se peixe com banana verde
fizesse parte do meu café da manhã diário. É patético, mas essa sou eu.
Bem, não importa se estou com saudade dela e se eu rolaria com ela em
qualquer lugar ou situação: não vou procurá-la. Sim, porque uma coisa é
admitir para mim mesma que estou a fim dela; outra coisa é ficar com ela
novamente. E como aquele cruzeiro caríssimo para a Grécia, na cabine mais

114
chique do navio e com uma companhia espetacular, que nunca vai se tornar
verdade, mas que todo mundo continua pensando, sabe? Um sonho. A Rafaela
é meu cruzeiro. É isso. Eu penso no cruzeiro e ninguém sabe; eu penso na
Rafaela e ninguém me julga. Simples assim.
A questão é que eu realmente não posso ter o cruzeiro, mas posso ter a
Rafaela. Então, teoricamente, estou sendo burra ao querer o sonho,já que ele
pode virar realidade, certo? Afinal, se eu ganhasse um cruzeiro agora em uma
promoção, o que eu faria: ficaria aqui, sonhando com o cruzeiro, ou largaria
tudo e iria para o cruzeiro de verdade? Ficaria aqui, sonhando com o cruzeiro
(ok, eu sei que essa não é a resposta, mas aí minha analogia dá certo e eu fico
mais tranqüila).
De qualquer modo, nem sei por que estou pensando nisso, porque pode ser
que a Rafaela ainda esteja brava comigo e não se comova nem um pouco se
eu, digamos, mandar um buquê de flores para ela (isso nunca vai acontecer).
Ou seja: estou formulando hipóteses à toa, porque não tenho a opção "ir para o
cruzeiro". O cruzeiro não está lá me esperando. Logo, só me resta sonhar com
o cruzeiro.
Claro, eu poderia tentar reaver o cruzeiro. Mas isso já é muito para a minha
cabeça. Eu estava satisfeita com a opção "continuar sonhando".
Bem, está decidido: não quero mais pensar nisso. O que faço para não pensar
nisso? Já sei: compras. Tudo bem que estou no meio do meu expediente, meu
armário está abarrotado de roupas e se eu gastar um real vou entrar no cheque
especial, mas o que importa? Estou confusa. Preciso espairecer. Há dois bons
motivos que levam uma mulher a fazer compras como uma louca: 1- Tristeza.
2- Alegria. Menção honrosa para confusão mental que é o que estou sentindo
agora e que cria em mim uma necessidade de fazer compras. O Alexandre tem
que deixar. Na verdade, "confusão mental" parece nome de doença e eu
poderia muito bem arranjar um atestado médico e ainda pedir férias
remuneradas para a agência, mas tudo bem, eu me contento em sair agora e
voltar só amanhã.
— Alexandre, tudo bem se eu for embora agora? — eu pergunto, assim que ele
entra na sala.
— Como assim? Faltam quatro horas para você começar a pensar em ir
embora.
— Estou doente. Preciso ir para casa descansar.
—Você parece ótima, Marina.
O que estou fazendo? Eu tenho que dar um nome para minha doença senão
ele não vai cair nessa. E minha doença tem, sim, um nome.
— Estou confusa mentalmente, Alexandre.
— Eu também estou — ele responde.
— É sério, Alexandre. Não estou bem.
— Marina, eu não sei o que você tem, mas pode ir embora. Volta amanhã, de
preferência em um estado normal. Não temos muita coisa para fazer hoje
mesmo.
O Alexandre é um anjo. Ele e aquela bundinha linda dele.
Pego minha bolsa e dirijo cantarolando. Chego ao shopping e dou uma volta no
primeiro piso. Vejo roupas lindas, mas meu quadro de confusão mental não
melhora. Bem, é claro: eu não posso apenas ver, eu preciso comprar algo para
notar mudanças significativas no meu estado. Vejo um vestido maravilhoso,
experimento e peço à vendedora que embrulhe, sem pergunta o preço. Ufa,

115
ainda bem que não era tão caro. Mas continuo me sentindo mal. Passo a tarde
fazendo compras e, para minha surpresa, não adianta nada Na verdade,
adiantou para uma coisa: passei na frente de uma vitrine que tinha uma saia
igual à que a Rafaela estava usando no dia que eu a vi pela primeira vez e me
lembrei dela.
Sento em uma cadeira na praça de alimentação no shopping e peço um milk-
shake — se fazer compras não adiantou, vamos ver se comer adianta Assim
que o milk-shake acaba, peço um sanduíche, um refrigerante tamanho gigante
e batata frita. A comida acaba e toda a mudança psicológica que eu percebo é
minha barriga mais inchada do que de costume (bem, acho que isso não é uma
mudança psicológica). Desisto e vou para casa.
A Ju não está. Odeio quando estou cheia de coisas para pensar e vejo que ela
não está em casa, porque aí não tenho outra opção a não ser pensar nas
minhas coisas logo. Eu poderia ouvir música, pedir uma pizza ou ligar para
alguma amiga, mas, como sei que em qualquer uma dessas situações vou
continuar pensando nas minhas coisas, é melhor simplesmente deitar no sofá e
pensar, sem ter que ficar procurando CDs que eu não sei onde estão engordar
ou ouvir assuntos de pessoas felizes no amor.
E se eu ligasse para a Rafaela só para bater um papo? Uma conversa de
amigas, talvez? Bem, isso não adiantaria nada. Se eu telefonar para algo que
não seja me desculpar pela minha indelicadeza no restaurante, muito
provavelmente ela nem vai querer falar comigo. E eu não vou me desculpar
pela indelicadeza no restaurante porque eu não estava errada. Mesmo se eu
estivesse errada, o que não é o caso, não pediria desculpas porque ela
certamente pensaria que estou gostando dela. Ela tem cara de quem acharia
isso. É só me lembrar daquela infância mimada.
Ah, se ela achar que eu gosto dela, problema dela. É até bom ela pensar isso,
porque aí vou achá-la uma convencida e talvez pare de gostar dela — não que
eu goste dela. Ou melhor, eu gosto dela, acho que já tinha admitido isso. É por
isso que fico tão confusa, não posso ficar mudando e desmudando toda hora
de opinião. Gosto dela e pronto. Estou me sentindo menos confusa depois que
defini isso? Na verdade, não estou, não. Mas vou ligar para ela de qualquer
jeito.
Ligo para o celular e dá fora de área. Ligo de novo e dá fora de área de novo.
Uma atitude típica de um homem-cachorro. Odeio isso. Celular é para ficar
LIGADO. O mundo seria tão mais simples se as pessoas entendessem isso.
Pego o catálogo telefônico e procuro o telefone da casa dela, aproveitando que
eu sei o endereço. Eu não estava louca para falar com ela, mas agora estou.
Ela deve estar feliz por ter conseguido me deixar morrendo de vontade de falar
com ela. Acho que é para isso que as pessoas deixam o celular desligado. O
meu está sempre ligado, a não ser quando quero fugir da agência. Eu sou tão
encontrável. Chega a ser patético.
Encontro o número e ligo.
— Alô — uma voz feminina que não é a da Rafaela atende.Voz de gente muito
nova para ser da mãe dela, muito informal para ser da empregada e muito
velha para ser a filha dela (ainda bem, porque que eu saiba ela não tem filha).
— Por favor, a Rafaela está?
— Quem gostaria? — ela pergunta. Odeio essas pessoas que perguntam
"quem gostaria?". Se eu responder "Júlia" ela passa a ligação, mas, se eu
responder "Fátima", ela não passa? Ela nem me conhece. O que a casa dela é,

116
um escritório?
— É a Marina — eu respondo educadamente. — Sou amiga dela.
— Oi, Marina, aqui é a prima dela. Ela saiu com a namorada, acho que foram
ao Santana. Você quer deixar recado?
Namorada?! Essa Rafaela não vale nada mesmo. Respondo que não precisa e
desligo, emburrada. E eu que pensava que ela estava louca por mim! De nada
adiantou minha decisão de largar tudo e ir para o Caribe com ela. Certo, eu
nunca tomei essa decisão, mas poderia tomar, por que não? Agora eu nunca
vou saber, porque ela estragou tudo. Argh, como eu odeio a Rafaela. Ela é
volúvel, cínica e nem se importa comigo. Não que ela tenha me prometido
alguma coisa, mas, sei lá, nem uma satisfação? Ela poderia ter me telefonado
e falado "Olha só, Mari, estou namorando, tá? Desencana". Afinal, estava
rolando alguma coisa entre a gente e dar um sinal de vida seria educado da
parte dela. Quer dizer, estava rolando alguma coisa, não estava? Ou ela acha
que foi só uma vez e nem estava esperando repeteco?Tudo bem, eu disse a
ela que seria só uma vez. Mas ela precisava acreditar tão cegamente? Ela não
vê que eu posso ser uma pessoa indecisa? Não pode me esperar?
Como será essa tal de namorada dela? Aposto que é decidida e não tem o
menor problema em beijar uma mulher. Só pode ser por isso que a Rafaela me
trocou. Ela estava cansada da minha indecisão e da minha inexperiência. Mas
será que ela não acha nem um pouco sexy eu ficar nesse vai-não-vai? Afinal,
eu posso estar fazendo um jogo menina ingênua... e, se ela não gosta disso,
deveria saber que muitas pessoas gostam! Nossa, do que eu estou falando?
Não estou fazendo tipo de mulher boba, eu sou boba mesmo. E é por causa
dessa bobeira que vou acabar perdendo a Rafaela de vez, se é que já não
perdi!
Está decidido — vou para o Santana agora.Vou aparecer lá e me mostrar
totalmente mudada para ela: madura, determinada e mais mulher do que
nunca. Se ela está no Santana, é para o Santana que eu vou. Nem vou trocar
de roupa; tudo o que eu preciso é pegar minha bolsa. E descobrir onde fica
esse Santana, claro.
Depois de procurar nas páginas amarelas e não encontrar, porque a Ju
continua com a mania inexplicável de arrancar a página quando ela acha o que
estava querendo e na letra S só tinha a folha do "saco plástico", ligo para uma
prima minha descolada que sabe tudo sobre os melhores lugares para sair. Ela
não sabe onde fica o Santana (quando isso acontece, ela dá a desculpa de que
não é um bom lugar para ir). Ligo para a telefonista e ela não tem o número, e
começo a desconfiar que esse tal de Santana não existe e que deve ter sido
uma desculpa que a prima da Rafaela deu para dizer que ela estava no motel,
em uma casa de strippers ou coisa parecida. Droga.
Não posso aparecer lá e desmascarar a bandida. Saco. Não posso mostrar a
ela quanto amadureci e quanto quero ficar com ela de novo. Saco, saco.
A Ju chega em casa e me vê repetindo saco no sofá. Saco.
— Credo, Mari, o que foi?
— Nada — uma resposta inútil invariavelmente seguida de insistência.
— Ah, fala, Mari! — não disse?
— Eu estava a fim de ir a um lugar hoje chamado Santana e não sei onde fica.
Satisfeita?
— Nossa, eu sempre vou ao Santana com o Marcos.
Pergunto "onde fica?" quatro vezes em um espaço de dois segundos, ela ri e

117
anota o endereço para mim. Que ótimo! Rafaela, aí vou eu!
Pego minha bolsa e vou para o lugar, que é um bar e não fica muito longe da
minha casa. Agora é que estou pensando em uma coisa: será que é um bar
gay? A Ju de vez em quando vem com essa mania de querer ser moderninha.
Tomara que não seja. Homem beijar homem é até fofinho, mas não sei se vou
me sentir à vontade de ficar rodeada de mulheres se beijando. Não, Marina,
você tem que ser madura. Ma-du-ra. Manter uma postura cool. Além do mais,
não posso achar estranho um lugar que tem mulheres se beijando se estou
indo a esse lugar querendo beijar uma mulher. Acho que pensar isso ajuda. Ou
talvez não.
Estaciono o carro e ando até o bar. Estou supernervosa, nossa. Nem parece
que já beijei uma mulher antes.Vou parar de pensar nisso: estou até
conseguindo manter uma postura cool em relação a mulheres se beijando, mas
não quando uma dessas mulheres sou eu. Acho que o beijo de olhos fechados
foi inventado por mulheres que gostam de ficar com outras mulheres, mas não
querem ver o que estão fazendo, como eu.
Chega de pensar nisso. Tenho que parecer madura, avançada e cabeça
aberta, senão ela não vai querer nada comigo. Mulher ficar com mulher é a
coisa mais normal do mundo, Mari. Só não é mais normal do que mulher ficar
com homem, mas tudo bem. Droga, isso não está ajudando.
Entro no bar e está relativamente cheio. Não tem ninguém se beijando, pelo
menos não nos dois segundos desde que entrei. Não dá para ver se é um bar
gay ou hétero. Se bem que héteros vão a bares gays e gays podem se beijar
em bares héteros, então isso não faz a menor diferença. Tenho que me
concentrar em outros pontos. Meu andar, por exemplo. A Rafaela pode ter me
visto, eu aqui pensando banalidades e não me preocupando em andar com
uma postura que revele quão moderna e cabeça aberta eu sou agora. Acho
que se eu realmente fosse moderna e cabeça aberta seria mais fácil achar
essa droga de postura.
Finalmente, vejo a Rafaela de longe. Ela não me vê e continua conversando
com a chata da namorada dela, ignorando completamente o fato de eu ter
chegado. E uma falsa mesmo. Já se esqueceu de tudo o que a gente viveu.
Olho para a namoradinha dela e vejo que é feia e masculinizada. Certo, ela é
linda e superfeminina, mas eu deturpo a verdade quando eu bem entendo.
O que faço para que a Rafaela me note e veja como eu mudei, sem dar muita
bandeira? O que uma mulher madura faria para ser notada? Já sei: vou circular
pelo ambiente fingindo que não a vi. Não, pensando bem, uma adolescente de
13 anos faria isso. E melhor eu me dirigir à mesa das pombinhas e me
apresentar. Afinal, ela é namorada da Rafaela, mas eu também fiquei com ela,
certo? Eu tenho o poder. Vou repetir isso três vezes para ver se funciona.Vi
isso em uma revista. Eu tenho o poder. Eu tenho o poder. Eu tenho o poder.
Droga, afinal, eu tenho que poder? Isso a revista não disse. Se eu tivesse uma
capa de invisibilidade ou algo do gênero, ok, mas tudo o que eu consigo
repetindo essa frase sem ter poder de fato é me sentir idiota. Chega, eu vou lá
e pronto.
A questão é: eu vou lá e falo O QUÊ? Cumprimento a Rafaela, me apresento
para a fulana e fico parada, esperando alguma reação das duas? Já sei:
diálogos hipotéticos. Tudo o que eu preciso é pensar em diálogos hipotéticos
para ficar calma na hora. Vamos lá.
Diálogo hipotético 1:

118
Eu — Oi, Rafaela. Você é...
Fulana — Sou a fulana.
Eu — Ótimo. Rafaela, por que você desistiu de mim?

Tentativa de diálogo fracassada. Muito suplicante. Vamos ao diálogo hipotético


2.
Diálogo hipotético 2:
Eu — Oi, Rafaela. Você é...
Fulana — Sou a fulana.
Eu — Ótimo. Rafaela, vocês estão namorando? É verdade?

Tentativa de diálogo novamente fracassada. Dá a impressão que eu li sobre o


casal na última edição de uma revista de fofocas e fui conferir para fazer uma
entrevista e tirar algumas fotos.
Diálogo hipotético 3:
Eu — Oi, Rafaela. Você é...
Fulana — Sou a fulana.
Eu — Ótimo. Fulana, você se importa se eu conversar a sós com a Rafaela um
minutinho?

Ótimo. Um diálogo objetivo, educado e sem súplicas. Ponto para mim.


Estou me sentindo absurdamente preparada e me dirijo à mesa delas bem
decidida. Definitivamente, é o que uma mulher madura faria. Aproximo-me da
mesa das duas e a Rafaela não me vê. Aproximo-me mais ainda e ela nem se
toca da minha presença — o que ela quer, que eu suba em cima da mesa dela
e dance? Essa mulher não tem visão periférica? Tudo bem, eu posso chegar
de surpresa, interromper a conversa das duas e começar o diálogo que
combinei comigo mesma. Eu preferiria que ela notasse minha presença, as
duas se calassem e eu dispusesse de um maravilhoso espaço em branco para
recitar meu texto, mas como não dá, vamos assim mesmo.
Estou quase em cima da mesa das duas quando o garçom passa e eu tenho
uma idéia brilhante.
— Uma cuba-livre, por favor — peço a ele.
A Rafaela finalmente olha para mim. Que entrada triunfal, hein? Ela não me via,
mas eu fiz com que ela me ouvisse pedindo a bebida de sempre. Muito melhor
do que simplesmente interromper as duas. Uma cena digna de Hollywood, eu
diria.
— Ué, Marina, você aqui? — a Rafaela pergunta.
— Sim!
— Você não tinha me visto? — ela continua.
— Vi agora, por quê?
— Porque é estranho, você está em frente à minha mesa, não me cumprimenta
e ainda pede uma bebida. Eu, hein.
Bem, ela não pegou minha tática.Vamos passar o diálogo desde o começo,
antes que eu faça outra besteira, já a cumprimentei, então vamos para a parte
do "você é".
—Você é... — eu falo, olhando para a fulana.
— Sou a Taís — ela responde, seca. Oba, deve estar me odiando.
— Legal. Taís, você se importa se eu conversar a sós com a Rafaela um
minutinho?

119
— Conversar o quê? — pergunta Rafaela.
— Isso você vai saber quando conversarmos — eu respondo, sorrindo e
lançando meu maravilhoso olhar fatal.
Ela suspira, levanta-se e a pobre da Taís fica sozinha na mesa. Bem-feito! Eu
aponto uma mesa; mas ela faz sinal de que quer ficar em pé.
— Não deve demorar muito — ela diz.
Tudo bem, não vou me intimidar por isso: minha auto-estima está nas alturas
desde que arrasei com meu olhar fatal que eu não usava há tempos. Fiz com
que ela trocasse a namorada por mim e agora vou falar o que tenho para falar
(tudo bem, ela não trocou a namorada dela por mim, apenas deixou-a na mesa
por alguns instantes, mas falar que ela a trocou por mim faz parte do projeto
"levanta, auto-estima" de que eu preciso agora).
— Por que você está tão na defensiva, Rafaela?
— Ainda estou com raiva de você por aquele dia, no restaurante.
— Como você é rancorosa. Já faz um mês! Isso faz mal ao coração, sabia?
Ela me olha com uma cara de "vai se ferrar". Acho que não é bom avisar as
pessoas dos defeitos delas quando se quer fazer com que ela termine um
namoro para ficar com você. Melhor lançar meu olhar de cachorrinho molhado
e perdido em uma rua escura. Funciona com homens, deve funcionar com ela.
— Bem, Rafaela — eu continuo, com meu olhar de cachorrinho molhado e
perdido em uma rua escura —, a verdade é que eu estava com saudades. Por
isso vim aqui.
— Eu gostava de você, Mari — ela fala, com cara de cachorrinho também.
Bingo. — Gostava mesmo. Só que essa coisa de você não levar na boa o fato
de ficar comigo me chateia.
— Eu não sou mais assim.
—Tem certeza? — ela pergunta.
—Tenho.
A gente fica se olhando e ela começa a falar que eu a deixei chateada de
verdade, que fiz com que ela se sentisse anormal, etc. A-pos-to que ela está
fazendo charminho, então vou fazer também. Aí, no final, nós duas pedimos
desculpas e nos abraçamos, vai ser lindo!
—Você também me chateou com essa história de arrumar uma namorada,
Rafaela. Parece que o que a gente viveu não significou nada — eu digo,
sempre mantendo o padrão cachorrinho.
De repente, ela pára de fazer cara de cachorrinho e faz cara de cachorro bravo,
bem bravo. Ué, não era a hora do abraço? O que aconteceu?
— Não adianta, Marina! — ela fala alto —, você nunca vai achar que ficar com
uma mulher é normal!
— Por que você está falando isso? E o meu abraço?
— Que abraço?! Você não pode me ver com uma mulher que pensa que ela é
minha namorada. É daquelas heterossexuais que pensam que tem que rolar
alguma coisa com toda mulher com quem eu converso! Não tem jeito, você
nunca vai entender que sou uma mulher como as outras, que posso ter amigas
como as outras, enfim.
— Mas eu liguei para a sua casa e...
Ela vai saindo e volta para a mesa dela, sem me ouvir. Ela me deixou falando
SOZINHA outra vez. Que inferno, isso! Tudo bem que dessa vez ela não deixou
nenhuma conta astronômica para eu pagar, mas tenho certeza de que foi
novamente premeditado! Argh, eu odeio a Rafaela!

120
Saio do bar, entro no meu carro e começo a chorar. A gente nunca ia dar
certo. Mesmo se a chata da prima dela não tivesse me falado que ela saiu com
a namorada, e sim que tinha saído com uma amiga, eu ia pensar que eram
namoradas. Sou um monstro por pensar assim? Eu só não estou acostumada,
droga. E parece que ela não tem nem. um pouco de paciência para fazer com
que eu me acostume. Acho que reduzo minha idade em 20 anos se eu falar
isso, mas eu não queria mesmo, tá? Eu nem deveria ter ido lá! Ela que fique
com as mulheres dela e eu que fique com meus homens de novo. Ela já
atrapalhou minha vida demais, eu já me acostumei com a idéia de que vou
morrer sozinha e pronto. Chega!
Droga, é claro que estou a fim dela. Só alguém que está bem a fim de outra
pessoa pode sentir tanta raiva dessa pessoa. Por que tenho que refletir tanto?
Se eu tivesse refletido menos, pararia minha compreensão no primeiro nível e
entenderia que o fato de eu sentir ódio dela significa que eu a odeio. Mas tenho
esse meu lado psicóloga, que adora refletir, e concluo que o fato de eu sentir
ódio dela significa que eu gosto dela. Bem, de qualquer forma, não ia dar certo.
Tenho que pôr isso na minha cabeça: não ia dar certo.
Eu queria fazer como naqueles filmes em que a personagem principal,
depois de uma briga homérica com a namorada — costuma ser namorado,
mas tudo bem, vamos adaptar —, começa a dirigir como uma louca, bate na
árvore com uma batida que destrói o carro completamente, mas nem faz um
galo na sua cabeça, e aí ela pára em uma mata linda e é resgatada pela
namorada arrependida. Mas acontece que: 1- Meu seguro é uma porcaria e
dificilmente me daria um carro decente se eu batesse o meu, então é melhor
não arriscar; 2- É sempre a irmã da personagem principal que liga para o
namorado dela e avisa, mas, como no meu caso ninguém conhece a Rafaela, é
mais provável que ela não saiba nunca do acidente e que, depois de uma
semana na mata sem ser resgatada, eu morra por falta de comida.
Com essas tristes condições, meu destino é dirigir com uma velocidade
dentro do limite para o restaurante mais próximo. Não tem mata, mas tem
salada e eu estou com fome. Como uma salada, devoro uma fatia imensa de
torta de chocolate, sinto-me confortada estando com dezenas de pessoas à
minha volta, mesmo que eu não conheça nenhuma, e volto para casa com
sono suficiente para me deitar e esquecer minha vida amorosa frustrante nem
que seja só até amanhã de manhã.
Tudo ocorre como o planejado: eu como minha salada e uma fatia imensa
de torta de chocolate e passo alguns momentos não me sentindo sozinha
apesar de estar completamente sozinha. Só não me esqueci da minha vida
amorosa frustrante, mas pelos meus planos isso vai acontecer na parte da
cama e por isso vou para casa agora.
Chego em casa, abro a porta e, por algum motivo estranho que eu
desconheço completamente, vejo a Rafaela sentada no sofá da sala. Eu sabia:
glicose demais nunca faz bem. Melhor ir direto para a cama. Fecho a porta e
largo minha bolsa na poltrona.
— Não me conhece mais, Mari?
É a Rafaela. Minhas alucinações de ex-namorados não costumam falar, só
mexer.
— Rafaela? O que... como você veio parar aqui?
Ela ri.

121
— Eu liguei para cá, falei para a mulher que atendeu que eu era sua amiga e
pedi o endereço. Quando eu cheguei, ela disse que tinha que sair para ver a
empresa que vai filmar o casamento dela e me deixou aqui sozinha, esperando
você.
Não sei se fico absurdamente feliz por ela estar aqui ou se fico chocada com a
falta de senso de segurança da Ju. Bem, foda-se a Ju: hora de ficar
absurdamente feliz.
— Minha prima, que estava lá em casa, me contou que tinha falado para você
que eu saí com minha namorada. Essa minha prima é impressionante! Ela não
entende nada e pensa que toda mulher é minha namorada.
Hora de eu fazer cara de cachorro perdido para enfatizar a magia do momento.
—Você me chateou... — eu falo.
— Eu sei, desculpa! Não sei o que me deu para apelar daquele jeito. Acho que
gosto demais de você... Só alguém que está bem a fim de outra pessoa para
sentir tanta raiva.
Eu queria falar que a frase é minha e que ela não podia se apropriar dela
porque eu gostaria de usá-la em alguma propaganda, mas ela é mais rápida e
me beija. Eu beijo de volta e a gente vai para o meu quarto. Fecho a porta, sem
interromper o beijo por nenhum momento, e ela me joga na cama, com força,
mas sem deixar de ser carinhosa. Droga, eu devia ter aproveitado aquela
promoção da cama king size que eu vi no shopping. Segunda-feira sem falta eu
vou lá. Começamos a tirar a roupa uma da outra. Nossa, eu não sabia que tirar
um sutiã é tão difícil. Na outra vez, na casa dela, ela tinha feito tudo sozinha.
Ela ri das minhas tentativas frustradas, me ajuda e continuamos a nos abraçar,
a nos beijar, a nos acariciar... Eu realmente estava com saudades dessa pele
macia e com cheiro de banho.
Toco nos seios dela da forma que eu gosto de ser tocada e faço o mesmo com
sua bunda, suas coxas, suas costas... Sinto tanto desejo que nem sei direito
onde quero pegar, mas já não estou tão desengonçada como antes: parece
que já conheço o corpo dela há tempos (pensando bem, pode ser um reflexo
do fato de eu conviver com o corpo de uma mulher há tempos, o meu). Ela
acaricia minha vagina e decido fazer o mesmo com ela. Aliás, que estranho
falar essa palavra, vagina. Mas o que eu falo, boceta? Aí já é muito para a
minha cabeça. Nossa, é melhor parar de pensar nisso e só curtir. Enfio um
dedo na vagina/boceta dela e resolvo passear um pouco por lá. Uau, isso está
bem gostoso. E está uma delícia ver a cara de tesão dela.
Fazemos amor como nunca. Quer dizer, como a gente já fez uma vez, mas
agora sem a desculpa do vinho e sem me sentir culpada: vou é aproveitar!
Desse jeito, é bem melhor.
Ficamos mais de uma hora nos acariciando. Depois de uma noite maravilhosa,
ficamos abraçadinhas até a Rafaela adormecer. Fico olhando para ela e
passando a mão nos seus cabelos: é, acho que estou apaixonada.

Acordo de repente e percebo que já é de manhã. Levo um susto quando vejo


que tem uma pessoa pelada deitada ao meu lado. É o hábito, ou melhor, a falta
de hábito. O fato de essa pessoa ter o cabelo comprido e a pele mais macia do
que a minha agravam a falta de hábito, mas é só afastar o cabelo e olhar um
pouco para o rosto da Rafaela que eu já me sinto mais confortável. Não é
qualquer mulher, é a Rafaela. É a Rafaela que eu adoro, por quem estou
apaixonada, que...

122
— Aaahhh, acorda — eu berro para a Rafaela, assim que me lembro que a Ju
também habita esta casa.
Ela abre os olhos e eu corro para ver se a porta do quarto está trancada. Não
está. Droga, a Ju pode ter entrado aqui à noite para me espionar e ter levado
um susto. Pensando bem, para que ela entraria no quarto para me espionar?
— Que pressa é essa, Mari? — ela pergunta, com voz de sono.
— Pressa, eu? Não estou com pressa. Só acho que a gente devia vestir
alguma coisa — eu falo jogando as roupas dela em cima da cama.
— Por quê, hein?
— Porque eu gripo à toa. E você pode gripar também! Não é bom dormir
pelada.
Ela franze a sobrancelha e se veste. Acho que ela não desconfiou de nada, que
bom. Bem, há duas alternativas: ou a Ju está dormindo ainda, ou já saiu para
trabalhar. E muito raro eu me encontrar com a Ju antes de ir para a agência,
porque nossos horários não costumam bater. Então, o jeito é sair do quarto
antes da Rafaela e ver o paradeiro da Ju. Se ela estiver dormindo, eu falo para
a Rafaela que não tem nada decente na geladeira e a convido para
romanticamente tomarmos café da manha na padaria da esquina. Mas, se a Ju
já tiver saído, eu ponho a mesa e faço um café da manha de hotel. Pensando
bem, para isso eu vou ter que ir à padaria antes, porque realmente não tem
nada decente na geladeira.
Abro a porta do quarto.
— Aonde você vai? — Rafaela pergunta, terminando de se vestir.
—Vou ao banheiro. Já volto.
— Mas para quê, se o seu quarto é suíte?
O que ela é, DETETIVE?
— Aqui não tem pasta de dente. Já volto, querida.
"Querida" foi forçado? Eu queria ser carinhosa com ela, mas "querida" é tão de
marido se despedindo da esposa depois de comer pão com manteiga e sair
para o trabalho. Mas eu chamo de quê, então? Melhor continuar chamando de
Rafaela.
Ando sem fazer barulho e vou ao quarto da Ju. A porta está aberta e a cama
está feita; 99,9% de chance de ela ter ido trabalhar. Chego na cozinha aliviada
quando escuto um "Mari, já acordou?" vindo da sala. Considerando que a
Rafaela está no quarto e que nunca fui muito boa em estatística, é, parece que
a Ju está em casa.
— Oi, Ju.
— Oi, Mari! Bom dia! Que cara é essa?
—Você não vai trabalhar, não?
— Ah, hoje eu vou mais tarde — ela responde. Ótimo.
A Rafaela aparece na sala. Ainda bem que ela está vestida e não está com
cara de "transei". Ela deve ter feito como eu e ter treinado na adolescência. Eu
poderia ter visto estrelas, eu poderia ter usado toda a minha energia juvenil em
uma sessão de três horas de sexo selvagem, mas era só chegar na sala onde
estava toda a minha família para mudar minha cara de "transei" e fazer uma
cara de "que tempo estranho, parece que vai chover" ou algo parecido.
A Ju olha para a Rafaela esperando que ela fale alguma coisa. A Rafaela olha
para mim esperando que eu fale alguma coisa. Eu não falo nada.
— Você é aquela mulher de ontem, não é? — a Ju pergunta, depois de as duas
terem visto que eu não sou boa para começar a falar.

123
— É minha amiga Rafaela — eu respondo, antes que Rafaela fale alguma
coisa. — Ela teve que dormir aqui porque o carro quebrou.
"Porque o carro quebrou"? Onde eu penso que estou, em um filme de terror? A
Rafaela balança a cabeça, concordando, e a Ju diz um "ah". A Ju conversa um
pouco com a gente, pega as coisas dela e vai trabalhar. Acho que ela não
percebeu. Ufa.
— Eu devia saber. Então você vai ficar me escondendo! — a Rafaela fala,
assim que a Ju sai.
— Eeeeu? — respondo, logo depois de conferir que a Ju tinha saído mesmo.
— Sabe, Marina. Eu pensava que, agora que a gente se acertou, poderíamos
namorar de verdade, em público! Afinal, você começou a levar as coisas numa
boa ou não?
Vejo que ela está ficando com raiva de mim. É melhor pensar rápido, de
preferência alguma coisa melhor do que um filme de terror.
— Sabe o que é, Rafaela? A Ju é muito careta. Ela tem amigas lésbicas e vive
tentando arranjar homens para elas.
— Nossa, mas isso é muita caretice.
— Pois é.
Certo, eu menti, mas talvez a Ju seja preconceituosa mesmo. Como é que eu
vou saber? Eu nunca cheguei para ela e disse "Oi, Ju, até ontem você achava
que eu era heterossexual, mas agora eu sou gay. Hoje está quente. né?". Acho
melhor não contar. E, além disso, vai que essa relação não vai para frente. Vai
que ela me abandona, como todos os namorados que já tive, e me deixe
sozinha, com o coração partido, neste mundo cruel. E que, depois disso, eu
nunca mais me apaixone por outra mulher novamente. Aí eu vou ter contado
para as pessoas à toa. E eu não quero confundir a cabeça das pessoas por
minha causa, não é? Ia ser muito egoísta da minha parte. Na verdade, eu estou
fazendo um serviço de caridade aqui.
— Mari, posso perguntar uma coisa? — a Rafaela diz, mais calma, enquanto
eu preparo um café para a gente.
— Pode - a resposta básica para esse tipo de pergunta, mas que apesar disso
as pessoas continuam perguntando.
— Isso de eu e você... não é só um caso passageiro, é? Digo, a gente vai para
frente, certo?
Acho a pergunta mais fofa do universo. Então a ultra-segura Rafaela também
tem seus momentos de insegurança, como a banana aqui. Paro de fazer o café
e a beijo com carinho.
— Se depender de mim, não tem nada de passageiro — falo com segurança.
Ela sorri e nos beijamos. Tudo bem, não é um caso passageiro e vamos para
frente, mas mesmo assim eu não vou contar nada para ninguém.

VIII

Eu sou a pessoa mais feliz do mundo!


Nunca pensei que eu fosse gostar tanto de alguém. A Mari tem qualidades
raras: é bem-humorada, de bem com a vida; até um pouco descompromissada,
mas um descompromisso leve e saudável, e não irresponsável. Ela é
inteligente, esperta... Passamos horas conversando. E é linda. Linda.
Tenho medo, não quero me iludir, não quero me perder em idealizações e era

124
planos que talvez não saiam da esfera dos planos, e por isso me esforço para
não perder tempo especulando sobre nosso amanhã.
(Mas o que faço com esses pensamentos romanticamente juvenis que têm me
acometido com freqüência? Como agir quando me pego pensando que não
vivo mais sem essa mulher e que vamos ficar juntas para sempre?).
No trabalho, todos já sabem que estou namorando. Na verdade, eles não só
sabem como devem estar cansados de me ouvir falar sobre como estou feliz,
sobre como minha namorada é linda, sobre o jantar que ela fez lá em casa
para a gente. Aqui no escritório, todos sabem que sou gay, o que me deixa
totalmente à vontade para suspirar pela Marina pelos corredores e discorrer
sobre as qualidades dela.
É só isso que tem me chateado no nosso namoro: o fato de a Marina não ver
como é muito melhor não ter que esconder nada de ninguém. E tudo mais
tranqüilo e sem hipocrisia. Simplesmente não vejo motivos para esconder de
ninguém o meu amor. Seria como se eu escondesse uma parte grande demais
de mim.
Eu queria que a Marina experimentasse essa sensação de liberdade, também.
E, claro, eu queria ser apresentada aos amigos dela como namorada, beijá-la
em público. Esses pequenos, simples e aparentemente banais, mas
imensamente significativos atos.
Mas sou paciente.
Eu estou paciente, porque a amo demais para ser/estar de outra maneira.

125
21

Certo, estou namorando uma mulher. Não só namorando, mas pensando nela
o tempo inteiro, não querendo ficar com outra pessoa e ainda fazendo mil
planos para o futuro. Ou seja, tudo o que eu queria, mas de um jeito que eu
nunca imaginei. A questão é: será que eu posso namorar, pensar nela, não
querer ficar cora outra pessoa e ainda fazer planos para o futuro, tudo isso sem
que ninguém fique sabendo? Eu acho que sim. Ela insiste que não Um ponto
que ela costuma levantar é como vai ser quando tivermos filhos. Eu continuo
firme: é tão trabalhoso assim eu passar um tempo fora do país e voltar com
uma criança no colo, explicando que eu fiquei grávida de um pai estrangeiro
que não quis assumir o filho porque estava fugindo de sua terra natal por
questões políticas? Mas não, ela tem que achar complicado!
Por quê, droga? Por que ter um namoro longo é tão bom e ao mesmo tempo
tão complicado? Tudo bem, estamos namorando há apenas cinco meses.
Credo, agora que eu estou vendo: parece que conversamos sobre esse
problema há anos. O chato de namorar outra mulher é que estamos sempre
discutindo o relacionamento.
Eu estava decidida a mudar com ela para o Caribe, mas ouvi dizer que não há
muitas agências de publicidade por lá. Então, vou ter que me virar aqui mesmo.
Vou esconder do resto da humanidade o tempo que eu puder. Não que eu ache
estranho namorar uma mulher, claro.
O problema é que esconder a felicidade é ainda mais difícil do que esconder a
infelicidade — afinal, o tempo todo a gente tem que esconder a tristeza para os
outros não ficarem perguntando "o que você tem?", "o que você tem?", mas
quem esconde que está feliz, além de uma herdeira de 300 milhões de dólares
que tem medo de se expor para não correr o risco de ser seqüestrada?
Ninguém. Ai, chega de pensar nisso. Eu não estou namorando uma mulher,
estou? Quem aqui está namorando uma mulher? Ninguém. Vou pensar nisso
só quando estiver com ela. Meu celular toca.
— Alô.
— Oi, Mari! Sou eu.
— Oooooiiiii — eu respondo. Droga. E difícil esquecer que estou namorando
uma mulher quando eu me derreto toda com a voz feminina do outro lado da
linha.
Bem, foda-se. Vou continuar me comportando como me comporto desde o
início: ninguém sabe, ninguém viu. Não é difícil, é? Eu não assumir
publicamente meu namoro não muda nada. Só não posso apresentar minha
namorada para minha família e meus amigos, beijá-la e trocar carinho em
locais públicos, além de ter que dar uma desculpa para a enorme caixa em
cima da minha cama no dia dos namorados, agüentar os homens dando em
cima dela quando a gente sair e não ficar derretida quando a Sônia me passar
a ligação de uma mulher que supostamente é minha amiga. Mas, tirando isso,
não tem diferença.
Chego na agência decidida a continuar levando minha vida secreta. O FBI não
está atrás de mim, está? Ninguém vai desconfiar de nada. Aliás, as pessoas
estão muito preocupadas com as próprias vidas. Ninguém tem muito tempo

126
para pensar na minha vida amorosa. Posso fazer 80 anos solteira que ninguém
vai perceber. Só não vou cair nessa de falar que estou namorando um homem,
senão vou me confundir toda na hora de trocar os pronomes.
— Mari, novidades! — a Lu grita assim que entra na sala de criação.
— O que aconteceu?
— Eu estou namorando. Na-mo-ran-do.
— Sério, Lu? Que bom pra você!
— Tá vendo, Mari? Eu nem queria namorar e estou namorando. Você queria
namorar mais do que qualquer coisa na vida e está aí, encalhada. Triste, né?
A sensibilidade da Luciana me comove. Se eu realmente estivesse sozinha,
ficaria extremamente chateada de ouvir isso — mas como eu também estou
namorando não vou ligar. Droga, o que adianta estar namorando se ninguém
sabe? Cinqüenta por cento da felicidade de um namoro vem do próprio
namoro, e os outros 50% vêm da inveja despertada nas outras pessoas pelo
seu relacionamento feliz.
— Não estou encalhada.Também estou namorando, sua chata.— falo, com a
boca cheia. Ahaha, que legal falar isso.
— Jura, Mari? O que ele faz da vida?
— Ele é arquiteto.
— Legal. Vamos nos encontrar nós quatro?
— Encontrar? Nós quatro? — eu pergunto, com a boca vazia. Eu devia ter
ficado quieta.
— E, ué. Em um restaurante japonês, que tal?
— Eu prefiro chinês — como se gordura fizesse a Rafaela virar um homem.
Mas eu preciso de tempo,
— Ok, em um chinês. Este sábado? Que tal?
— Este sábado não vai dar, Lu. Eu tenho que trabalhar.
— Como assim, trabalhar? Não vai ter nada aqui na agência.
O ruim de mentir para colegas de trabalho é que você não pode falar que tem
que trabalhar. O que eu digo, então? Que eu tenho que ir ao cinema e passear
no parque? Droga.
— Este sábado ela vai trabalhar — eu falo. Desculpa perfeita, não?
— Ela quem, sua louca?
Bem, quase perfeita. Eu sabia que essa troca de pronomes não daria certo.
— Eu disse "ela"? Eu quis dizer a pessoa que eu estou namorando vai
trabalhar — eu respondo, rapidamente.
— Ah. Então a gente vai no outro sábado.
— Combinadíssimo.
Ótimo, agora eu vou passar uma semana amargurada pensando no que eu vou
dizer a ela quando chegar a semana que vem. Eu devia ter esclarecido desde o
começo que meu namorado é antropólogo e passa os dias viajando para as
tribos indígenas do Norte do Brasil, mas agora não dá mais.
Tento me concentrar em uma campanha que preciso criar quando o Gustavo
chega.
— Estou namorando, Gustavo, olha que legal — a Lu fala. Meu Deus, ela tem o
quê? Quinze anos? Certo, estou com inveja, eu também queria falar sobre o
meu namoro.
— Que legal, Lu. Quem sabe, isso atrai sorte para a Marina — o Gustavo
responde, com uma risadinha típica dele. Como ele é engraçado.
— É, quem sabe — eu repito.

127
— Ué, Má, mas você não está namorando? — a Lu pergunta.
Eu tinha falado que estava namorando, mas me arrependi e agora quero falar
que não estou namorando. E tão estranho assim? Bem, acho que é. Como é
triste a vida não ter uma tecla delete.
— Estou namorando, sim. Só não gosto de ficar comentando.
— Corno assim, Ma? — ela fala.
— Mas eu não quero comentar a respeito. Não quero comentar! — eu berro.
Vou começar a responder isso sempre e o problema está resolvido.
Todos ficam calados e o telefone toca. É a minha mãe, perguntando o telefone
de uma médica minha. Dou o telefone, mas pensa que ela se despede? Claro
que não, ela quer saber sobre a minha vida amorosa.
— Não quero comentar a respeito, mãe.
— Como assim, você não quer comentar a respeito?
Não adianta. Ou você é famosa, ou não levam essa frase a sério.
— É a minha vida e eu não quero falar a respeito — eu insisto.
— Nem para a sua própria mãe?
— Nem para a minha própria mãe — eu falo, meio comovida, mas tenho que
ser firme. Não é o aniversário dela nem nada.
Desligamos e eu fico aqui pensando. Talvez eu devesse contar para todo
mundo e pronto. Ou talvez não. A vida também deveria ter uma tecla "o que
fazer". Pensando bem, nem o computador tem uma tecla "o que fazer" (mas os
programas têm sempre a opção ajuda, pelo menos).
Bem, é hora de usar o velho método de pesar os prós e os contras de cada
lado e escolher um deles — na verdade, eu sempre achei que tudo o que essa
técnica consegue é deixar a pessoa mais confusa e indecisa, mas como eu não
disponho de nenhuma tática brilhante, vamos lá.
O que eu ganho se contar para todo mundo? Uma dor de cabeça. Certo, não
estou sendo imparcial: vou ficar discorrendo sobre o ruim de contar e o bom de
não contar e não vou chegar a lugar nenhum. Essa é a parte ruim de discutir
com a gente mesma. Vamos lá, Marina, se a Rafaela quer tanto que eu conte
deve ter alguma vantagem em contar, senão ela seria uma louca. Pense,
pense... Não tem jeito: a Rafaela é louca.
Vou tentar pelo outro lado: o que eu ganho se não contar? Uma vida tranqüila.
Nossa, o que será que eu prefiro, uma dor de cabeça ou uma vida tranqüila?
Não sei por que, mas acho que uma vida tranqüila é melhor. Pronto, está
decidido. A Rafaela nem pode reclamar que eu não pensei.
A Lu vira-se para mim.
— E aí, Má, mais calma?
— Calmíssima. Pode falar.
— Vamos almoçar juntas hoje? Eu queria mostrar para você um restaurante
chique que eu conheci semana passada.
O que é isso, a Lu acordou hoje pensando "Vou tentar sabotar o namoro da
Marina para ver como ela se sai"? Que droga.
— Não dá, Lu. Hoje eu vou almoçar com uma amiga.
— Quem, a Ju?
— Não, outra amiga, a Rafaela.
— Ah. E por que eu não posso ir junto? Ela por acaso é sua namorada?
Olho para ela assustada e ela cai na gargalhada. Ah, era brincadeira. Que
engraçado. Estou explodindo de rir.
— Estou brincando, né, Má! Que idéia. E aí, vamos nós três?

128
Não, ela não vai estragar meu almoço romântico. Eu tenho que firme. Eu quero
que ela vá? Não. Então eu vou dizer isso a ela? Vamos lá, Marina. Força.
— Vamos, sim. Nós três — eu respondo.
Eu já disse que eu deveria deixar de ser pão-duro e abrir mão de uma parte do
meu salário para pagar uma terapia? Se eu estivesse na terapia, garanto que
responderia para ela calmamente que não queria que ela fosse e que
almoçaríamos juntas outro dia. Depois, eu contaria toda orgulhosa para o meu
terapeuta.
— Legal. Eu tenho que dar uma saída agora. Quando você for almoçar, liga no
meu celular, anota o endereço e a gente se encontra no restaurante — ela diz,
saindo da sala.
Prontinho, ela mesma deu a solução para o meu problema: eu não ligo. para
ela e almoço normalmente com a Rafaela (eu sei, é péssimo da minha parte,
mas eu não disse que era uma solução perfeita). Claro que eu tenho que
arranjar uma desculpa para explicar por que não liguei para ela. Mas nem vou
me preocupar com isso, porque arranjar desculpa é a coisa mais fácil que
existe. Vejamos as possibilidades.
1- Eu digo a ela que minha mãe apareceu de surpresa na agência pedindo que
eu desse um pouco de atenção a ela, almoçando no seu restaurante preferido.
2- Eu explico que a minha amiga Rafaela me telefonou contando que está com
um problema extremamente complicado e pediu que eu fosse ao almoço
sozinha, para ela desabafar.
3- Eu não digo nada: só levanto minhas mãos na altura dos ombros e exclamo
"Meu Deus, onde eu estou com a cabeça?", de modo que ela sinta dó de mim
por eu ser tão distraída e se arrependa de não ter me ligado, em vez de exigir o
esforço de eu ligar para ela.
Pronto. É uma verdadeira caixa de bombons sortidos.
Espero chegar a hora do almoço e saio da agência sossegada. Chego ao
restaurante e a Rafaela já está lá, me esperando, linda como sempre, usando
uma saia jeans com barra desfiada. Ela sabe como eu gosto daquela saia —
não sei se gosto porque ela deixa o corpo dela atraente ou porque eu queria ter
uma igual. Esse é o problema de namorar uma mulher.
Conversamos um pouco e eu não paro de olhar para o peito dela. Nossa, eu
estou cada dia mais lésbica. Agora eu entendo aqueles vizinhos chatos que
não param de olhar para o nosso peito enquanto nós pedimos a eles que
parem de fazer barulho depois da meia-noite.
— Vamos conversar sobre aquele assunto? — ela pergunta e eu volto a olhar
para o peito dela. Eu realmente entendo o vizinho, agora. Peitos são mais
legais do que assuntos sobre barulho depois da meia-noite ou sobre
relacionamentos.
— Ah... vamos comer primeiro... — eu respondo.
Ela concorda e fazemos nosso pedido ao garçom. Esperamos nossa comida
fazendo carinhos uma na outra por baixo da mesa e confessamos que estamos
sem calcinha — mentira, não fizemos isso. Isso era o que eu achava que as
lésbicas faziam antes de eu virar lésbica. Não que eu fosse achar ruim, claro.
Almoçamos e mesmo antes da sobremesa ela toca no assunto novamente.
— Que droga, Rafa, será que a gente não pode se encontrar sem falar de
problemas? — eu desabafo.
Ela faz uma cara horrível. Nossa, estou me comportando igualzinho àqueles
homens que perdem a paciência quando as namoradas querem discutir o

129
relacionamento.
— Nossa, Mari, você está falando sabe como?
— Como?
— Como os homens que perdem a paciência quando as namoradas querem
discutir o relacionamento.
— Imagina! Não estou, não.
Não sei de onde ela tira essas coisas.
— Você nem pensou, Mari. E eu tinha pedido para você pensar — ela diz.
— Não tem o que pensar, Rafaela. Eu simplesmente não vejo sentido em expor
minha vida desse jeito.
— Como, expor? Quando você namorava algum cara, você escondia dos
outros?
Nada a ver uma coisa com a outra.
— Você me ama? — ela pergunta.
— Amo! Claro que amo!
— Então por que você fica escondendo nosso namoro?
— Rafa, seja racional. O que a gente ganha se contar?
— A gente poderia dar um beijo agora, neste restaurante, por exemplo.
Inclino minha cabeça e dou um beijo nela. Se ela faz tanta questão de um beijo
em público, eu dou. Sem o menor problema. A não ser que o público seja
composto de minha mãe, da Ju e do pessoal do trabalho, claro.
Abro os olhos antes de o beijo acabar e vejo, atrás de mim, a Luciana. E me
olhando. Não estou acreditando. O que é que ela está fazendo aqui? Ela não ia
na droga do restaurante novo dela?
— O que foi? — a Rafaela pergunta.
Se tivesse sido pelo menos a Rafaela que tivesse inclinado o pescoço, eu
poderia empurrá-la, falando "me solta, nós somos só amigas". Depois eu me
explicava para ela e pronto. Mas não, EU tive que inclinar minha cabeçona e
me levantar um pouco da mesa, para não deixar dúvidas de que a iniciativa do
beijo foi minha.
— O que você tem, Mari?
— A Luciana da agência. Ela viu tudo.
A Lu, que não parou de olhar para mim nem por um segundo, vem em minha
direção. De longe. Está em qualquer manual de etiqueta: se encontrar
conhecidos em restaurante, cumprimente-os de longe, para não interrompê-los.
Mas ela lê manuais de etiqueta? Não.
— Oi, Má.
— Oi, Lu, essa é a minha namorada, Rafaela.
A Lu olha para a Rafaela e a Rafaela faz uma cara de felicidade suprema. Se
eu fosse uma péssima namorada, eu diria a ela depois: "Está vendo, você não
precisava se preocupar, meu bem? Mais cedo ou mais tarde, eu contaria tudo".
Mas, como não sou, vou dizer a ela a verdade: "O que você queria? Que eu
gritasse 'não é o que você está pensando, Lu?'".
As duas se cumprimentam, a Lu se despede e vai para a mesa dela, e eu vou
atrás.
— O que você está fazendo aqui, Lu?Você não ia para o seu restaurante novo,
maravilhoso, e tal?
— Esse é o restaurante de que eu estava falando. E você me deu o cano.
— Desculpe. Eu não queria falar a verdade, sabe?
— Que bobagem, Má. Eu não vejo problema nenhum de você namorar uma

130
mulher.
— Sério mesmo?
— Claro! É tão moderno!
Não sei qual foi o momento mais feliz da minha vida até hoje: quando eu tinha
14 anos e o dentista falou que eu não precisaria mais usar o aparelho ou
agora.
— Obrigada, Lu. Eu pensei que você não fosse me entender, que, aliás,
ninguém fosse me entender.
— Má, querida. Não há nada de mais nisso. Deixa de ser careta, vai! Hoje em
dia é a coisa mais normal do mundo.
— É mesmo, né? A gente até poderia sair juntos, você, seu namorado, eu e a
minha namorada!
— Claro!
Fico superfeliz e volto para a minha mesa.
— Ela achou a coisa mais normal do mundo, Rafa!
— Não falei? Aproveite o embalo e conte para todo mundo!
Como se uma coisa tivesse a ver com a outra! Mas talvez tenha mesmo. Se a
Lu não achou nada de mais, por que as outras pessoas achariam? Claro que
as pessoas são diferentes uma das outras, e que, enquanto uma freira cuida de
famintos em uma parte do mundo, um assassino tortura suas vítimas antes de
acabar com elas, mas isso é um detalhe, certo? Se eu já enfiei o pé na jaca,
enfiemos a perna. — Vou contar, então — eu respondo.
— Sério? Eu te amo, sabia?
Hum... gostoso ouvir isso. E mais gostoso ainda vê-la feliz. Realmente, a jaca
já deve estar lá na cabeça.
— Eu também te amo, Rafa.
Saímos do restaurante e ela está tão empolgada que me dá a mão e andamos
de mãos dadas até eu fingir que quero pegar alguma coisa no meu bolso. Onde
ela pensa que nós estamos, na Holanda? Assumir é uma coisa, andar
chamando mais atenção do que se eu estivesse com um moletom no verão do
Rio de Janeiro é outra. De qualquer forma, estou feliz de assumir. Eu mesma já
estava cansada de trocar pronomes a toda hora.
Volto para a agência feliz. A vida é mesmo muito estranha. Eu me lembro
perfeitamente do dia em que eu cheguei à agência feliz porque eu poderia ser
lésbica sem que ninguém percebesse, assim como uma mulher que desfila
com os cabelos lisérrimos tem a certeza de que, se ela não sair correndo
gritando "Acuda! Acuda" quando começar a chover, ninguém desconfiará que
seus cabelos são efeito da chapinha. No entanto, agora, eu entro na agência
feliz porque sou lésbica e não preciso esconder mais isso de ninguém.
Acho que o que está me confortando foi o comentário da Lu: "E tão
moderno!".Tudo bem que a cultura geral da Luciana não engloba o período da
Grécia Antiga, mas estou feliz do mesmo jeito. Agora, além de não ter que
esconder mais nada de ninguém, eu sou uma mulher dinâmica e moderna.
Entro na sala de criação e não tem ninguém. Resolvo telefonar para a minha
mãe. Afinal, eu não disse que ia contar para todos? Vou começar pela minha
mãe, que teoricamente me ama acima de todas as coisas e sempre me
apoiará, mesmo se eu atirasse pela janela um animal inocente. Eu sei,
telefones não são um bom meio para se dar notícias-bomba, mas eu quero
aproveitar à minha animação para contar para ela agora. E, afinal, quem foi
que inventou essa frescura de não poder falar coisas importantes pelo

131
telefone? A vida anda, ainda mais para uma publicitária moderna e dinâmica
como eu. Funciona assim: quando inventaram o telefone, era feio dar notícias-
bomba pelo telefone. Agora temos a internet, e podemos dar as notícias por
telefone — só por e-mail é que fica feio. Pensando bem já dei notícias-bomba
por e-mail. Aliás, eu conheci minha namorada pela internet. Bem, esqueça.
Ligo para minha mãe. Não sei por que, mas à medida que o telefone dela vai
chamando, eu vou perdendo o embalo. No primeiro toque, eu penso "Acho que
devo contar mesmo". No segundo, já estou mais para o "Será? Será? Tenho
que pensar logo ou desligar". E no terceiro já estou me conformando: "Oba, ela
não está lá". Até que atende.
— Alô.
Merda, ela sempre está lá. Não adianta falar para ela fazer cursos, cuidar de
plantas e esquecer o papai: ela sempre está lá.
— Oi, mãe, sou eu.
— Oi, querida! Que milagre você me ligar a essa hora. Aconteceu alguma
coisa?
Nada desencoraja mais alguém a contar alguma coisa do que perguntarem
para esse alguém: aconteceu alguma coisa?
— Não aconteceu, não. Está tudo normal — respondo.
— Tem certeza? Você não me parece muito normal.
Ótimo. Há dois minutos, eu estava me sentindo moderna; agora, estou me
achando anormal, louca e pirada.
— Não é nada. Só queria contar a você uma novidade — eu falo.
— Qual?
Pronto, acabei de elaborar uma armadilha para mim mesma. Quando alguém
fala "só queria contar a você uma novidade", a outra pessoa necessariamente
espera uma novidade. Ou seja: agora eu não tenho como desistir, eu
decididamente TENHO que contar uma droga de uma novidade.
— É o seguinte... — eu gaguejo, — é meio complexo.
— Conta, minha filha. Aconteceu alguma coisa?
Ela continua insistindo nessa maldita frase.
— Nossa, mãe, meu chefe está me chamando. Vou ver o que ele quer e daqui
a pouco eu te ligo — eu me desculpo, desligando o telefone. Tudo bem. eu
menti para a minha mãe. Mas ela também mentiu para mim quando disse que
ia me dar um urso de pelúcia do tamanho do da minha prima quando eu fizesse
10 anos. Deu? Não.
Resolvo tomar um café. É só tomar o café, ficar mais calma e ligar para ela de
novo. E tudo o que eu preciso: um pouco de fôlego. Afinal, não se conta para a
própria mãe que você agora tem uma namorada da mesma forma que você
fala que decidiu ir à festa de Natal com o vestido rosa, e não o amarelo.
Chego na cozinha e ouço a voz do Gustavo. Que droga, ele está lá. Melhor
esperar que ele saia ou mais uma vez vou trocar os pronomes. Além disso, não
quero que ele corte minha animação. Já me preparo para voltar para a sala de
criação e fingir que estou trabalhando quando o escuto falando:
— Sério mesmo? Uma mulher?!
— Sério mesmo! A Marina é louca — a Luciana diz.
— O que será que deu nela?
— Não sei, só sei que estou morrendo de nojo até agora — ela continua. —
Não acho nada normal uma mulher ficar com outra mulher.
Eu me controlo para não chorar e vou ao banheiro. Falsa! E eu me sentindo o

132
último lançamento da coleção primavera/verão! Não posso dizer que confiava
na Luciana acima de todas as coisas, mas nunca poderia imaginar que ela
conseguisse ser falsa dessa forma.
O pior é que, agora, minha auto-estima foi a zero. Será que a minha mãe vai
agir do mesmo jeito? Vai achar que eu não estou fazendo uma coisa normal?
Aliás, o que eu estou fazendo é normal?
Eu não devia ter contado para ninguém, nunca. Pensando bem, eu não contei.
Não tenho culpa se a Luciana me viu beijando uma mulher. Ela é que viu, então
o problema é dela, certo? Bem, a quem eu estou enganando? Não sou
psicanalista: para mim, ela me viu, se divertiu e o problema é todo meu,
obrigada.
Minha vontade é entrar no primeiro bar da esquina e pedir uma cuba-libre. Mas
não vou fazer isso por dois motivos básicos. O primeiro é que beber uma cuba-
libre não vai resolver os meus problemas. E o segundo é que, se eu entrar em
um bar para beber sozinha às 2 horas da tarde de uma terça-feira, as pessoas
vão ter sérios motivos para pensar que eu estou fugindo de uma sessão dos
Alcoólicos Anônimos.

133
Epílogo

Eu tinha certeza de que as empadas recheadas com azeitonas verdes eram


melhores. Mas a Ju não quis me ouvir e aqui estou eu, insatisfeita com minha
empada e observando os outros convidados olharem para o salgado com cara
de quem está pensando: "O que diabos é essa bola preta dentre da empada?".
Já se passou um ano do dia em que fiquei pela primeira vez com a Rafaela, o
que não justifica que eu esteja sozinha na festa do casamento da Ju — eu
poderia muito bem aproveitar meu histórico de namoro longo e procurar outra
pessoa para ver se dessa vez dá certo. Se bem que eu nunca gostei muito
dessa história de "dar certo". Afinal, deu errado só porque acabou? Prefiro
pensar que deu certo enquanto durou.
Ando um pouco pelo salão e me sento no degrau de uma escada em um
canto vazio. Sim, eu sei que degraus de escadas em cantos vazios são para
fracassados no amor, mas não é assim que me sinto: pelo contrário, vivi uma
linda história de amor... Que contei para todo mundo. Sim, eu contei! (eu
poderia falar que fiz isso porque, se terminasse com a Rafaela, como real-
mente terminei, ela nunca poderia se referir a mim para as novas namorada
dela como "aquela vaca infantil que escondeu nosso relacionamento", mas
prefiro dizer que fiz isso porque fui corajosa).
Mas, pensando bem, até que foi divertido contar para todo mundo. Dar
notícias bombásticas tem essa vantagem: por um lado, você pode até ficar
com medo da reação da pessoa, mas, por outro lado, a pessoa pode ficar tão
pasma que você acha a situação curiosa e pára de ter medo da reação da
pessoa. Sem contar que você se sente poderosa, porque já sabia da notícia
surpreendente que a pessoa, tadinha, não sabia. E aí ela olha com aquela
cara de "Oh!" e você pode manter seu ar blasé de quem já conhecia a
novidade mesmo se você ficou sabendo delas há cinco minutos.
Depois de ouvir a Luciana e o Gustavo na cozinha e de ter ficado deprimida
por não beber uma cuba-libre, mas de ter ido à padaria e comprado um
chocolate, decidi ligar para a Ju. Ela, sim, era a melhor pessoa para contar a
novidade: provavelmente não daria a menor importância para o meu caso, já
que estaria mais preocupada com a dúvida do momento: vestido perolado ou
branco-neve? (Ela acabou optando por um branco-glacê, um tom que eu nem
sabia que existia, mas que ela jurou que faz parte da carteia de tons de branco
que só os esquimós reconhecem). Telefonei para ela, completamente nervosa.
- Alô — ela disse, como geralmente fazem as pessoas quando atendem
ao telefone.
Ju, eu tenho uma coisa para contar para você. Não vou enrolar nem nada, vou
falar e pronto. Você está sentada?
-Mari, se você desistiu de ser madrinha, eu não converso mais com você.
-Eu estou namorando uma mulher.
-O quê?
Passaram-se cinco segundos de silêncio.
-Fale alguma coisa, Ju. O que você está pensando?
-Mari — ela respondeu - Lembre-se de falar com ela que eu não quero
ninguém de preto no casamento, tá? Não se esqueça!

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Desliguei o telefone sem saber se ficava feliz porque ela só sabia falar do
casamento ou se ficava triste porque ela só sabia falar do casamento. Ela não
se importou nem um pouco de a Rafaela passar a dormir lá na nossa casa de
vez em quando e, quando via a gente se beijando, perguntava quantos
segundos de duração deveria ter o beijo dela na hora que o padre falasse "Eu
vos declaro marido e mulher".
No outro dia, telefonei para minha mãe dizendo que eu tinha algo im-
portante para contar — afinal, notícias-bomba não podem ser dadas por tele-
fone. Quando cheguei lá, ela estava preparando um bolo de chocolate e até
tinha se esquecido do motivo da minha visita. Depois que dei a notícia, ela
fingiu que não se importou e falou que o que interessava era que eu fosse feliz,
mas eu vi quando ela chegou com o bolo queimado e até hoje não acho que as
lágrimas que saíram dos olhos dela foram por causa disso.
-Marina — ela me falou mais tarde, pelo telefone — o seu tio tem um amigo
solteiro, que é advogado especializado em divórcio. Ele acabou de se separar
da mulher.
-Mãe - eu falei, me contendo para não magoá-la com um "eu estou apaixonada
pela Rafaela” —, você sabe que eu nunca gostei de advogados.
Aproveitei para marcar um almoço de família para contar a meu pai e todos
os parentes. Não que eu ache que minha prima, que eu só vejo no Natal, e
mesmo assim, só quando ela não está de regime e não decide faltar à ceia
para não cair em tentação, ou que o meu tio, que está morando na Europa e
só voltou para falar que tem direito à partilha dos bens da se importem muito
com minha vida sexual. Mas, se era para contar a todo mundo, que eu
contasse direito. Além disso, bagunçar um almoço seria a típica prova de amor
que a Rafaela precisava — eu sei, as mulheres são estranhas. Bônus extra:
parar de ouvir "e os namorados?" a cada vez que vejo minha família, já que
provavelmente eles não estarão muito interessados em saber minhas
peripécias afetivas com uma pessoa do mesmo sexo.
No final, não foi tão ruim assim. Excluindo, claro, o fato de meu avo, que
sempre discordou veementemente das acusações de que estar surdo ter
reagido à notícia com um "Não estou ouvindo nada, e voltado a almoçar. Além
do fato memorável de depois de a minha tia ter gritado "Então você é lésbica!",
a minha priminha de 4 anos ter perguntado "O que é lésbica?"— prontamente
respondida pelo meu avo: "É um inseto parente da borboleta".
Quanto à Lu e ao Gustavo, eu gostaria de falar que fiz um escândalo e que
eles morreram de vergonha, mas não fiz isso, até porque nem precisei, saí da
agência no dia seguinte e muito provavelmente não vou encontrar os dois
andando na mesma calçada que eu (não que eles estejam com medo de mim
nem nada, mas porque moramos longe). Não, não pedi demissão: naquele
mesmo dia, fui convidada por uma antiga amiga da faculdade a abrir uma
agência com ela. Ela já tinha alguns clientes e eu pensei "Por que não?".
Agora, meses depois, eu percebo por que não: o menor espírito empreendedor
e não consigo trabalhar sem ter ninguém para me dar ordens. Claro, minha
relação com ela não está das melhores e há muito tempo ela deixou de incluir
meu adoçante preferido no orçamento mensal da empresa, mas já comecei a
marcar algumas entrevistas etc... em umas agências interessantes — dei
preferência para as que não tem contas referentes a namorados, claro, porque
não sei o dia de amanha. Vou aproveitar e telefonar para a Rafaela, porque a
irmã dela pode ter alguns contatos na área e me ajudar.

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Ah, a Rafaela... Não vou dizer que não tenho saudades, porque tenho,
mas também não vou chamá-la de "a idiota que me abandonou" ela não me
abandonou: terminamos de comum acordo. Sem brigas, sem gritos, sem
escândalos. Simplesmente as coisas começaram a esfriar entre a gente.
Claro que, antes do desgaste, estava tudo muito bom. A gente se encontrava
quase todo dia, eu reclamava do trabalho, ela reclamava que a minha mãe não
a convidava para almoçarmos com ela, eu reclamava que ela ainda tinha
amizade com ex-namoradas, ela reclamava que eu queria fazer menos sexo do
que ela. Bem, pensando melhor, a gente reclamava bastante. Mas eu não
posso me esquecer dos momentos bons. Era comum ela me pegar em casa e
a gente sair para comer em restaurantes franceses - mas quando eles estavam
lotados ou coisa parecida, sempre acabávamos na culinária italiana. Ela
justificava a troca falando que os dois países ficam próximos e têm uma
relação amigável.
Ela também sempre me emprestava uma das roupas maravilhosas do
closet dela. Aliás, essa é uma ótima vantagem de namorar uma mulher: se
você está na casa dela e suja sua blusa com catchup ou coisa parecida, ela
sempre tem roupas no armário que não vão ficar largas e masculinas a ponto
de você se esquecer que tem seios. Sem contar que, se a gente ia sair depois
de jantar na casa dela, eu não precisava nem levar meu nécessaire: do rimel à
prova d'água ao blush líquido, ela tinha tudo. Nada mais prático.
Claro que também convivi com as desvantagens de uma relação com uma
pessoa do mesmo sexo. Afinal, como quase todas as mulheres, ela demorava
horas para se arrumar e, como eu também não sou exatamente dinâmica
quando vou me produzir, nós sempre chegávamos atrasadas ao cinema e às
festas. Sem contar que ela reparava em mim coisas que meus namorados
nunca reparariam: seja estava na hora de retocar a tintura, se a minha pele
estava áspera porque eu tinha me depilado com lâmina ou se meu cabelo
estava meio ressecado. Ela também sempre reparava quando eu repetia roupa
e sim, aquele um quilo que eu ganhava que homem nenhum notaria e ainda
falaria "você está louca"... bem, ela reparava em mim. Eu só não ficava mais
sem graça porque todos esses detalhes, eu também reparava nela.
Bem, mas o que aconteceu foi que, sem que nem eu nem ela
entendêssemos por que, nossa relação foi esfriando, sem que nenhuma de nós
fosse culpada (na verdade, eu ponho a culpa nela, porque ela já havia
namorado sério e sabia dessas coisas, enquanto eu não fazia idéia de nada,
mas ok, sem ressentimentos). A gente estava se encontrando cada vez menos
— em parte porque já não tínhamos aquela vontade de antes, em parte porque
ela voltou a sair mais com as amigas dela ao mesmo tempo que eu me
empolguei com o casamento da Ju, que estava chegando, e comecei a
acompanhá-la sem reclamar (tanto) nas provas de vestido e nos outros
compromissos "casamentísticos" dela.

Acho que foi por isso que a Rafa aceitou uma proposta de emprego no
Canadá da mesma forma que alguém aceita trocar o milk-shake de morango
pelo de chocolate na lanchonete, quando o balconista diz que o sorvete de
morango acabou. Ela até me chamou para ir, mas 1 - Eu já não estava tão
apaixonada por ela a ponto de largar tudo e ir para o Caribe, ops, para o
Canadá e 2 - O Canadá? Frio daquele jeito? Sem contar que eu ouvi dizer que
lá as pessoas não trancam as portas quando saem de casa, e eu nunca me
adaptaria a isso. E aí eu teria problemas, porque, se eu entrasse esquema e

136
deixasse a porta aberta, passaria o dia inteiro me perguntando se esta tudo
bem em casa, ficaria distraída e perderia meu emprego, e aí ia ser sustentada
pela Rafaela; e se eu resolvesse ir contra a etiqueta local e deixar minha porta
fechada, aos poucos à vizinhança se afastaria de mim e eu ficaria sozinha,
sem amigos, deprimida em casa, pensando o que é que custa aos canadenses
fecharem à droga das suas portas.
Claro que eu não expliquei isso para a Rafaela, porque essa é uma
daquelas coisas que guardamos para nós mesmas se queremos continuar
convivendo em sociedade — assim como ninguém precisa saber que a colega
trabalho tem mania de falar "três" quando um gato passa na sua frente (não, eu
nunca tive uma colega de trabalho assim, infelizmente. Deve ser divertido.
Melhor do que ter colega de trabalho que fica com você e atrai com a
estagiária, ou colega de trabalho que finge ser sua amiga para acabar com sua
vida enquanto toma um café na cozinha, deve ser).
Bem, chega de rancores. Até porque, desde que cheguei à festa que tem
três caras que parecem ser interessantes e, mesmo que eu não a intenção de
me ver de branco um dia, como a Ju (branco – glacê, desculpe), quem sabe eu
possa engatar mais um namoro - nada mal para continuar aumentando minha
marca. Aposto como logo, logo, vou ser uma mulheres que dizem "com licença,
o telefone está tocando e deve ser meu namorado, com quem estou há sete
anos" (pensando bem, não conheço nenhuma mulher que fale assim).
Pego uma cuba-libre e dou uma volta pelo salão. Cara interessante numero
1 na mira. Opa, o que é isso? Menininha interessante de cerca 3 anos se
aproxima dele com baba no pescoço, pedindo mais um brigadeiro. Que
cândido: ele tem uma filhinha. Deve ser casado. Droga.
Ando mais um pouco, tentando recuperar a esperança — dizem que
sentimentos positivos deixam a pele mais bonita e reluzente. Aproximo-me da
mesa de frios, vou para o lado do palco onde tem uma banda tocando e o vejo:
tarde demais. Ele está beijando uma garota naquele estilo que não parar nem
se alguém perguntar as horas.

Penso em voltar para o degrau da escada, quando resolvo dar uma volta na
rua. Já são 11 horas da noite e não tem absolutamente nada aberto. Lembro-
me de que tem uma praça aqui perto e continuo andando. Talvez seja
agradável sentar na praça e ficar pensando se viajo ou não para o Canadá em
um feriado que vai ter na semana que vem — a Rafaela me convidou e eu não
tenho nenhum dinheiro sobrando, nem vontade de ir ao Canadá, nem de ficar
com ela novamente, mas não sei, por algum motivo, acho chique quando uma
pessoa se senta em uma praça às 11 da noite e pensa se viaja ou não para o
Canadá.
Vejo a praça de longe e estou quase chegando nela quando olho para o
lado e vejo um lugar luminoso. Olho para a placa: é um cybercafé. Hum,
deixemos os pensamentos canadenses para depois. Tomar um cappuccino en-
quanto navego por sites de astrologia me parece uma boa idéia.
Pego minha bebida no balcão e me sento de frente para o computador.
Nossa como eu adoro conexão rápida. Semana passada eu dei uma olhada
nos preços, e depois de amanhã vou instalar lá em casa. O ruim é que não vou
dividir a despesa com ninguém, já que estou morando sozinha. Clico na barra
de endereços e vou checar meu horóscopo, mas clico no site errado e vou
parar em uma sala de bate-papo. Bem, o que custa, não é mesmo? Não estou
fazendo nada e ainda não corro o perigo de descobrir que estou no meu

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inferno astral. Mal entro na sala e aparece um tal de Atraente/31 que me
cumprimenta no reservado.

Atraente/31: Oi. Quer teclar?

Penso um pouco (se bem que é melhor não pensar muito, porque isso aqui vai
me custar uma fortuna por hora).

Sozinha/25: De que sexo você é?

Tomo um gole da minha bebida e não dou tempo de a pessoa responder.

Sozinha/25: Deixa para lá. Quero teclar, sim.

Créditos e Agradecimentos

Renata Sara

G.B

Mi

Jéssica

Comunidades

Traduções e Digitalizações

http://www.orkut.com.br/Community.aspx?cmm=20985974

Ebooks de A a Z

http://www.orkut.com.br/Community.aspx?cmm=47749604

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