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José bebeu, cheirou, fumou, beijou mulheres e travestis. Se deu ao luxo dos
governantes que cheiravam pó no cu das trans finíssimas e foi abençoado por
marques de Sade esquecendo que tinha mulher e filhos o esperando em casa.
Aqueles dias eram seus dias de redenção desde de que quando foi morar com
Carolina depois do nascimento da primeira filha.
Apesar de reclamar muito no twitter, Carolina sabia que ele precisava dessa
folga para não enlouquecer no calor e na poeira de todos os dias vendendo
coca, água e guaravita nos ônibus da cidade. Ela sabia que ele seria sempre
seu de qualquer forma no fim da noite. Também sabia que essa atitude não era
a melhor. Tinha consciência de que estava só no mundo e que suas filhas só
contavam com ela e com José. No mesmo momento em que via comentários
emponderadores nas redes sociais também se encontrava de frente com toda
a complexidade do que é se relacionar num mundo cão em que todos estão
sozinhos desde o momento do nascimento até o último suspiro no corredor de
um dos poucos hospitais que sobraram do SUS depois da privatização do Pau
no Guedes.
José parou por um segundo de frente com aquele bonecão de Olinda que
governava a cidade maravilhosa. Tirou o pau pra fora e mijou nele só de raiva.
Escreveu seu nome completo e cpf descarregando toda raiva e cerveja que
bebeu durante a noite. Teve uma petite mort ao terminar e sua perna deu uma
tremidinha orgástica. Seus olhos viraram de prazer e vingança. Um guarda ao
lado também mijava sorrindo. Não balançou muito o negócio, sabia que a
última gota é sempre da cueca. Saiu fora antes que o guarda o multasse.
Chovia forte quando ele desceu no seu ponto em Caxias. Era quase de manhã
mas ainda estava escuro como se a noite não quisesse acabar. As pessoas se
abrigavam debaixo das marquises dos comércios enquanto esperavam os
micro-ônibus que os levariam para mais um dia de trabalho em algum lugar
muito longe de casa. Embaixo da passarela viu um bêbado deitado no chão
usando um papelão molhado como colchão. Ele sorria perversamente agarrado
a sua caninha da roça.
Ao chegar em casa, Carolina já tinha colocado a maioria das coisas para cima.
Ajudou então a colocar o berço da filha, ou o que restou dela depois da última
enchente, em cima da caminha de criança da filha maior. O guarda roupa mole
já sem as gavetas de baixo não aguentaria a mais essa aguarada imunda
entrando pelas suas pelas fibras de madeira prensada. Todo ano a mesma
coisa. Volta a Casas Bahia comprar um novo móvel que se perdera na chuva.
— Amor, vamo ter que jogar fora esse guarda roupa. — Disse Carolina.
José coçou a cabeça. Agora com o nome mais sujo que a lama ameaçando
entrar pelo ralo do banheiro, não podia se dar esse luxo de repor o mínimo
necessário para chamar o barraco de casa.
A chuva ainda caía. A mureta em frente ao portão impedia que a água entrasse
na casa mas no banheiro as baratas subiam pelo ralo como cena de horror
coreano. Não tinha mais o que fazer. Ficaram os quatro, o casal mais a duas
filhas pequenas, em cima da fina cama box esperando a água entrar a
qualquer momento.
A ressaca batia forte em José que tentava cochilar sentado com a filha no colo.
Mas toda hora um grito de Carolina o acordava quando uma barata ameaçava
subir na cama. José levantou da cama e deu uma chinelada na barata que se
espatifou soltando milhares de ovos pelo chão enquanto debatia suas
perninhas para o alto morrendo lentamente ao lado de outros corpos já
devidamente chinelados.
Com a garganta seca e o corpo sem um pingo de glicose, José foi até a
geladeira beber água. Pegou a garrafa pet de dois litros e bebeu no gargalo
mesmo. Sentiu um gosto estranho meio barrento. Parecia até que umas
pedrinhas entranharam na sua garganta mas e a sede. E a sede? Aquela água
tinha gosto de que? Gosto de que? Era sabor de veneno com cheiro de cu sujo
e detergente minuano.
Enquanto José se debatia na água suja, um ralo enorme começou a sugar todo
o rio num vortex de sonhos escalafobéticos, fúria e dor silenciosa na boca do
seu estomago. Tentava gritar em vão. Em vão tentava gritar. Em vão chamar
por Carolina, pela mãe, por Deus.
Acordou com a mão no estomago e correu direto para o banheiro, suando que
nem um porco. As baratas ainda estavam paradinhas na parede igual aqueles
muros antigos dos anos 90. Que nervoso sentiu ao olhar aquela imagem
Salvadoramente Dalí. Seu estomago doía. Sua cabeça doía. Tudo doía. Suas
mãos tremiam. Com certeza era a água podre que tinha bebido. Ouh porra,
pensou quando o liquido que saiu do seu fiofó caia igual cachoeira na água da
privada. Cagando igual pato e suando igual um animal aquilo parecia que não
tinha mais fim.
Entrou em gnose em fim de tanta força que fizera. Quando o estomago cessou
de colocar para fora tudo que tinha direito, José abriu os olhos e levantou para
ligar a luz que parecia tão mais forte tão mais forte que quase o cegou. Se
olhou no espelho e o que viu foi apenas um amontoado de liquido marrom
avermelhado da mesma cor que o rio ficava quando as empresas de alimento
jogavam resíduo de peixe podre nesse rio que passava atrás de seu barraco.
José agora já não tinha mais forma humana. Era só um amontoado de água
suja com cheiro de cu suado. Se olhava no espelho sem conseguir falar
quando Carolina bateu na porta do banheiro.
O que faria? O que faria? Antes que pudesse responder a sua própria pergunta
Carolina abriu a porta sanfonada.
— Aaaahhh! Que merda é essa? — Carolina gritou alto enquanto José tentava
murmurar alguma palavra balançando e chocalhando água barrenta para todos
os lados. Quando tentou chegar perto da própria mulher, Carolina pegou a
vassoura que estava no banheiro e começou a bater no ser estranho e fedido
que estava à sua frente. Tome e tome e a vassoura passava por dentro homem
liquidifedorento. José caiu na privada novamente e Carolina deu descarga no
mesmo instante fazendo o homem descer pelo ralo num vortex de vergonha e
medo.
José era só ódio por dentro e então uma explosão de água suja nele
manifestou. Queria matar o prefeito, o governador, o presidente! Todo mundo
que tinha água limpa e não ligava para suas filhas que nem podiam tomar
banho naquela merda de lugar esquecido por deus.
— Eu sei o que você está sentindo meu parceiro. E se você se concentrar você
pode tomar a forma que você quiser. Acumule sua raiva e pense na forma que
você quer ter.
José pensou em tudo de ruim que passara na sua vida. Na mãe, humilhada
todos os anos trabalhando em casa de família como empregada doméstica. No
seu pai alcoólatra que abandonou ele e seus irmãos deixando a mãe à deus
dará. Podia sentir o DNA seboso da classe média que descia pelos esgotos e
tomou a forma finalmente de algo parecido com um ser humano. Braços,
pernas, dedos e cabeça. Pelo menos agora poderia sair dali e tentar voltar para
casa. Mas nem sem antes se vingar de quem deveria cuidar da população.
— Isso meu parceiro! Isso! — Eu sei que você quer vingança e eu vou te ajudar
hahaha vamos na casa do prefeito dá uma zuada com a cara dele kkk. Mas
antes de qualquer coisa: prazer, meu nome é Clara Crocodilo. — O réptil meio
humano depois que disse seu nome saiu em disparada enquanto José voltava
a forma liquida e lhe acompanhava por entre a escuridão marrom que se
tornara aquela Baía de águas pluviais.
José ainda bafejava de raiva com os olhos marrons arregalados quando ouviu
um gemido do lado de fora do banheiro. Saiu para ver o barulho e encontrou a
primeira dama de quatro na cama box feita de molas especiais e Clara
Crocodilo lhe enfiando a rola grande e verde enquanto falava com cara de
louco:
— No cu não, você não vai comer meu cu! — Dizia a primeira dama.
— Aí...
José viu aquela cena incrédulo mas Clara Crocodilo não parou de meter no cu
da primeira dama até que ouviu os passos dos homens da Bope subindo pela
escada da casa.
Mas não deu tempo e a polícia entrou no suíte atirando, o que não adiantou
muito pois nem o tempo mataria Clara Crocodilo que saiu como uma flecha
pela janelona caindo do segundo andar e entrando pelo mato afora. Clara
Crocodilo escapuliu.
A polícia ainda tentou em vão atirar em José que transformou suas duas mãos
em laminas de água podre e todos os policiais que ali se encontravam
experimentaram toda ira sem fim do homem que bebeu água da CEDAE.
Esquartejou membro a membro cada um daqueles assassinos do Estado
deixando um rastro de sangue, merda, vísceras e botas pretas por toda a casa.
Do lado de fora o caos já estava instalado quando José saiu pela porta da
frente. O exército já o esperava apontando para ele os mesmos fuzis que
matavam crianças a caminho da escola e trabalhadores nos seus carros indo
para a igreja.
Vocês acham que podem parar José? Não podem não! José fez de sua mão
uma AK-47 de água e começou a disparar jatos de água mortais contra o
exército que revidou com todo o seu poder. O que não adiantava nada pois
José agora era só liquido, merda e ódio.
Com o pouco de sujeira que ainda restava em seu corpo, José saiu em
disparada para o bueiro mais próximo sumindo pelos esgotos da cidade
maravilhosa.
José voltou para o seu bairro e passou muito tempo no rio que passava atrás
do seu barraco na baixada fluminense. Agora o que faria? De longe via suas
filhas abandonadas pelo estado e Carolina sendo escravizada
terceirizadamente numa fábrica qualquer que pagava cada vez menos e
lucrava cada vez mais.
José não poderia mais voltar para casa. Imóvel no fundo do raso rio, pensava
em como sua existência colocava em risco a saúde de sua família. Mas agora
que sabia seus pontos fortes e seus pontos fracos poderia fazer muito mais
pelas pessoas que não tinham nem água limpa para beber.
Já sabia o que iria fazer dali para frente. Transformaria em merda toda a vida
dos empresários e políticos que sujavam os rios e privatizavam o país. Ainda
viveria muito se dependesse dos políticos para limparem a água que saía da
torneira e adoecia a população desse país. A sua próxima vítima seria o dono
do frigorifico que despejava resíduos de peixe e frango no rio em que ele
estava vivendo. Comeria o cu dele igual Clara Crocodilo fez e depois o
desmembraria sem dó nem piedade dando seus restos mortais para os peixes
da Chernobyl carioca comerem. E por falar em cu onde estaria aquele jacaré
estranho e sádico que rodava num LP cult dos anos 80 sem saber porque
também teria se transformado em monstro? Devia de estar em algum labirinto
nostálgico gritando na vanguarda das periferias que estão levando a cultura
desse país nas costas.