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ANAIS DO EVENTO

ISSN: 2236-6946
2

A EDUCAÇÃO NO TEMPO DO DOMÍNIO DA TÉCNICA


desdobramentos heideggerianos1

Marcelo J. Doro2

Resumo: O objetivo deste texto é explorar possíveis desdobramentos da compreensão


heideggeriana da técnica que possam ajudar a pensar o contexto atual da educação. Num
primeiro momento, são recuperados elementos centrais da reflexão que Heidegger desenvolve
em A questão da técnica, cujo ponto central é a constatação de que nos orientamos no mundo
a partir de uma perspectiva técnica que desencobre o real como dis-ponibilidade. Em seguida,
os elementos da reflexão de Heidegger sobre a técnica são retomados na perspectiva
educacional, para que se possa verificar o enredamento da educação na dis-ponibilidade e,
também, apontar alternativas para uma educação menos técnica e mais humana.

Palavras-chave: Educação. Heidegger. Técnica.

Introdução

A educação lida há tempo com questões sobre se e como introduzir recursos


tecnológicos nos processos de ensino-aprendizagem. Este texto, embora o título pudesse
sugerir o contrário, não se detém nesta discussão. A tecnologia é tratada, aqui, apenas
indiretamente, como consequência do acontecer essencial da técnica, desde onde também a
educação é considerada.
O entendimento sobre o acontecer essencial da técnica é buscando na filosofia de
Martin Heidegger, mais especificamente em sua conferência A questão da técnica. Isso é feito
na primeira parte do texto. Na segunda parte, são apresentados alguns desdobramentos
possíveis do pensamento de Heidegger sobre a técnica em relação à educação.

2 Heidegger e a questão da técnica

Na conferência A questão da técnica, pronunciada em 1953 e publicada na obra


Ensaios e conferências, Heidegger busca estabelecer uma relação mais livre com a técnica
mediante o questionamento de sua essência. Seu ponto de partida é a constatação de que a
essência da técnica não é, ela mesma, algo técnico e, por isso, não pode ser experimentada na

1
Tema vinculado ao Eixo 1 - Filosofia, racionalidade e amizade.
2
Professor da Área de Ética de Conhecimento e do Curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo. E-mail
para contato: <marcelodoro@upf.br>.
3

mera consideração do que é técnico. O modo como sentimos a presença da técnica, o modo
como a empregamos, se a empregamos ou não, nossa opinião sobre sua pertinência, nada
disso nos coloca numa relação verdadeiramente livre com ela. Porque livre é o
relacionamento que, alcançando a essência da técnica, pode experimentar os limites de tudo o
que é técnico.
A técnica é correntemente concebida como um meio estabelecido para alcançar um fim
desejado. Essa concepção é correta, contudo, segundo Heidegger (2006a, p. 23), “o
simplesmente correto ainda não é o verdadeiro”. Com essa concepção nada se diz sobre a
essência propriamente dita da técnica. Para chegar à essência é preciso procurar o verdadeiro
no e através do correto. O que mostra, afinal, a caracterização da técnica como um meio? A
que pertence meio e fim? A resposta de Heidegger (2006a, p. 13) direciona o questionamento
da técnica para causalidade: um meio é aquilo que viabiliza algo, um meio é uma causa; causa
também é o fim com que se determina o tipo de meio utilizado; onde se perseguem fins e
aplicam-se meios, aí também impera a causalidade. Desde Platão e Aristóteles, a causalidade
é compreendida como o deixar-viger o que ainda não vige. A isso chamou-se também pro-
dução. Enquanto um modo de conduzir algo à vigência, a pro-dução é um desencobrimento, a
pro-dução é alétheia.
Partindo da concepção corrente de técnica como meio para um fim, Heidegger chega a
determinação da técnica como pro-dução e, por fim, como desencobrimento (alétheia). Esse
movimento abre um novo âmbito para pensar a essência da técnica o “acontecer da verdade
para o homem”. Heidegger reconhece que a técnica moderna guarda diferenças significativas
em relação à técnica pensada como pro-dução pelos gregos, insiste, contudo, que nela ainda
opera um desencobrimento. Não mais no modo dominante da pro-dução, mas como
exploração. O desencobrimento que rege a técnica moderna ocorre mediante um apelo de
exploração que impõe à natureza a condição de fonte de energia, capaz de, como tal, ser
beneficiada e armazenada. A exploração descobre as coisas já a partir de seu potencial de uso
e possível serventia, como objetos para a manipulação técnica: o solo não é mais aquilo que o
camponês cuida, mas o objeto da indústria motorizada de alimentação; o rio é força
hidráulica, reivindicada pelas hidrelétricas; até a paisagem é descoberta como ponto turístico a
disposição das agências de viagem.
Dis-ponibilidade (Bestand) é o nome para indicar o caráter daquilo que é descoberto
pela técnica moderna regida pela exploração. A palavra “dis-ponibilidade” designa nada mais
nada menos do que “o modo em que vige e vigora tudo que o desencobrimento explorador
atingiu” (HEIDEGGER, 2006a, p. 21). Como disponibilidade, as coisas já não se mostram
4

como meras coisas, meros objetos, mas como objetos disponíveis para a transformação, para a
estocagem, para a distribuição, para reciclagem etc.
Quem realiza a exploração pela qual o real é desencoberto como disponibilidade é o
próprio homem. Isso não significa que o homem tem em seu poder o desencobrimento em que
o real a cada vez se mostra ou se esconde. O homem não explora a natureza a partir de algum
impulso arbitrário, senão que o faz como resposta a um apelo que chegou até ele e o atingiu.
“Somente à medida que o homem já foi desafiado a explorar as energias da natureza é que se
pode dar e acontecer o desencobrimento da disposição” (HEIDEGGER, 2006a, p. 21). Como
aquele que responde ao desafio, o homem pertence também à disponibilidade. O fato de o
homem ser tomado como mão de obra para a indústria, como material para a pesquisa, como
número para as estatísticas, como alvo para a propaganda, dá testemunho de sua pertença à
disponibilidade. Pertencer à disponibilidade, não é para o homem um mero reduzir-se ao dis-
ponível. Realizando a técnica, o homem participa da disposição. Sua participação acontece
como resposta ao apelo que já sempre reivindica o homem de maneira tão decisiva, que,
somente neste apelo ele pode vir a ser homem (HEIDEGGER, 2006a, p. 22). Em tudo o que
faz, na lida com as coisas e consigo mesmo, o homem não está senão respondendo ao apelo de
desencobrimento que já previamente o inseriu em um contexto de relações delineadas.
Quando, portanto, nas pesquisas e investigações, o homem corre atrás da natureza para forçá-
la a fornecer recursos ou informações, ele já se encontra comprometido com uma forma de
desencobrimento. “Trata-se da forma de desencobrimento da técnica que o desafia a explorar
a natureza, tomando-a por objeto de pesquisa até que o objeto desapareça no não-objeto da
disponibilidade” (HEIDEGGER, 2006a, p. 22). A técnica é assim mais que um mero fazer do
homem, mais que um meio para um fim. A técnica é uma força que constrange o homem a
dis-por do real como disponibilidade. Sua essência é a com-posição (Ge-stell, armação,
esqueleto). Com o termo com-posição, Heidegger (2006a, p. 23) indica precisamente “o
apelo de exploração que reúne o homem a dis-por do que se desencobre como
disponibilidade”. Reconhecendo que toma uma palavra de uso corrente em um sentido
inteiramente novo, o filósofo acrescenta uma explicação adicional:

O verbo “por” (stellen), inscrito no termo com-posição, “Gestell”, não indica apenas
a exploração. Deve também fazer ressoar o eco de um outro “pôr” de onde ele
provém, a saber, daquele pro-por e ex-por que [...] faz o real vigente emergir para o
desencobrimento. Este pro-por produtivo (por exemplo, a posição de uma imagem
no interior de um templo) e o dis-por explorador, na acepção aqui pensada, são, sem
dúvida, fundamentalmente diferentes e, não obstante, preservam, de fato, um
parentesco de essência. Ambos são modos de desencobrimento, modos de alétheia.
Na com-posição, dá-se com propriedade aquele desencobrimento em cuja
5

consonância o trabalho da técnica moderna des-encobre o real, como dis-


ponibilidade. (HEIDEGGER, 2006a, p. 24)

O que assim fica indicado como a essência da técnica moderna deve ser reconhecido
também como fundamento do próprio desenvolvimento científico. Não é, como comumente
se entende, a técnica que se desenvolve apoiando-se na ciência; ao contrário, é a ciência que
se apoia e se desenvolve a partir da afirmação da essência da técnica. A aparência de que se
passa o contrário nasce do fato de a ciência moderna se valer de ferramentas técnicas em suas
pesquisas e descobertas, em relação ao que se deve reconhecer anteriormente que a própria
necessidade da ciência em contar com instrumentos é algo que se impõe na medida em que a
natureza se apresenta no modo da disponibilidade. É a própria essência da técnica que
condiciona as ciências à dis-porem da natureza como fonte de dados, que possam ser
calculados e disponibilizados.
Respondendo ao desafio da com-posição, o homem experimenta a essência da técnica
como um destino, isto é, como uma força que o põe a caminho de um desencobrimento. Todo
desencobrimento é sempre e apenas possível a partir de um “caminho” de desencobrimento e
assim é em decorrência da própria condição histórica do homem (faticidade). Mas o que para
o homem é um destino não tem a força de uma fatalidade. “Pois o homem só se torna livre
num envio, fazendo-se ouvinte e não escravo do destino” (HEIDEGGER, 2006a, p. 28). Posto
nesses termos, o que se mostra em jogo na relação do homem com a técnica é a própria
essência da liberdade humana, que pensada originariamente não pertence à vontade nem se
reduz à causalidade do querer. Para Heidegger (2006a, p. 28), a liberdade é aquilo que rege o
aberto, no sentido do aclarado, isto é, do desencoberto. Liberdade é para Heidegger a essência
humana que se decide na relação com o ser, enquanto abertura, clareira3. Pensado como
clareira, o ser constitui aquele evento fundamental (Ereignis) que dá ao homem o horizonte
para a condução de sua existência. Na clareira do ser, e apenas nela, o homem torna-se livre
para a relação com os entes que aí são desencobertos. Nisso decide-se o destino do homem:
estar destinado é habitar a clareira, é constituir-se na relação com aquilo que nela se
descortina em cada época. Destino é, assim, destino do ser.
Na conferência E para que poetas?, de 1946, Heidegger apresenta a técnica como o
desdobramento final do destino do ser como metafísica. A técnica é o ponto alto de uma
época de manifestação do ser em que o próprio ser se retrai na afirmação do ente. E Nietzsche
é o pensador que, segundo Heidegger, dá o passo decisivo para o esquecimento da diferença

3
A esse respeito, ver O fim da filosofia e a tarefa do pensamento (HEIDEGGER, 1999).
6

ontológica entre ser e ente, pois, como vontade de poder, o ser já não se distingue do próprio
ente. Vontade de poder é o nome para a autoafirmação do ente a partir de si mesmo. Como
vontade de poder, o ente quer a constante elevação, que como não pode ser infinita tem de
retornar eternamente ao mesmo num processo circular que elimina qualquer remissão a uma
instância aquém ou além do ente, que na filosofia até então ainda preservava essa
característica como um aceno para a diferença ontológica. Por afastar de tal forma a questão,
Nietzsche é, para Heidegger, o filósofo da consumação da metafísica. Com sua filosofia da
vontade de poder, abre-se a possibilidade de a essência da técnica mostrar-se no modo pleno
da representação do ente como objeto disponível. A isso está destinado o homem desde a
origem do pensamento metafísico no ocidente.
O domínio da técnica é o destino para o qual o homem foi encaminhado há tempo.
Mas só agora isso se torna para o homem uma preocupação, porque só agora o homem
experimenta o risco de não mais dominar a técnica. O homem desperta agora para a urgência
de recuperar as rédeas de seu destino, de fazer-se livre em relação a ele. Para isso, é preciso
tornar-se ouvinte do destino. “Tornar-se ouvinte” é metáfora que remete à linguagem. E, para
Heidegger, “a linguagem é casa do ser”4. O homem torna-se ouvinte do ser ao atentar para a
linguagem, para o seu modo de desencobrimento e, especialmente, para aquilo que nesse
desencobrimento permanece escondido. Que a linguagem seja insuficiente para expressar o
pensamento do ser, mostra apenas sua pertinência a uma época que esqueceu o ser. A
linguagem que dispomos é a linguagem do ente, uma linguagem já em muito convertida em
mero instrumento. Fala-se muito em linguagem técnica para designar terminologias
específicas a cada âmbito de consideração dos entes. Celebra-se essa linguagem pela sua
clareza e precisão. Mas ela é mais propriamente uma não-linguagem, porque já não pode ser
para o homem o espaço da articulação do sentido, o espaço para o acontecer essencial de sua
liberdade. Essa linguagem não convém ao pensar, apenas ao cálculo; ela é a linguagem da
racionalidade instrumental que serve muito bem aos propósitos do fazer técnico-científico5.
Ao pensamento convém uma linguagem mais livre, como livre também deve ser o
pensamento para atingir a essência do que é digno de ser pensado e que se mostra na relação
mais originária do homem com o acontecer do ser. A linguagem da arte, a linguagem poética,
na medida em que não se limita à mera representação do real que se mostra na

4
Esta é uma afirmação famosa de Heidegger que aparece na Carta sobre o Humanismo (1985, p. 33), mas
também em outros escritos.
5
Na filosofia, o positivismo lógico é a expressão da extensão máxima do acontecer técnico na linguagem. A
ironia é que, tal como a filosofia de Nietzsche, o positivismo lógico leva ao extremo o projeto metafísico de
esquecimento do ser, na medida exata em que se apresenta como uma proposta antimetafísica.
7

disponibilidade, pode, na proximidade com o pensar meditativo, conduzir mais facilmente o


homem até a proximidade do ser, que poderá então ser experimentado como o destino que
governa o homem em suas realizações. Só neste momento, fazendo-se ouvinte do destino do
ser, o homem se torna livre para decidir algo em relação a esse destino que lhe pertence.
Na consideração da relação do homem com o destino reside a crítica principal de
Heidegger em relação ao domínio da técnica como com-posição. Há nessa relação um grande
perigo, que consiste na possibilidade de o homem seguir e favorecer apenas o que se
desencobre como disponibilidade, tirando daí todos os parâmetros e as medidas. A com-
posiçao ameaça trancar o homem na dis-posição, como pretensamente o único modo de
desencobrimento. Trancado nessa possibilidade de desencobrimento o homem se afasta de sua
própria essência, como aquilo que se constitui no espaço aberto de sua relação com o ser. A
essência humana resolve-se na liberdade em relação ao seu destino. Fechar-se ao modo de
desvelamento da técnica como o único possível é assim o maior dos perigos porque torna o
homem alienado em relação a sua própria essência de homem livre.
O perigo torna-se ainda maior na medida em que, alheio à própria essência, o homem
se prende à aparência de que tudo o que lhe vem encontro só existe na medida em que é uma
realização sua e, assim, pensa encontrar-se consigo mesmo por toda parte. De tal forma
iludido, o homem não percebe que, na verdade, hoje em dia, ele já não se encontra consigo
mesmo em parte alguma (HEIDEGGER, 2006a, p. 30). Prezo ao apelo da técnica, o homem
que já não se compreende senão como disponibilidade, tampouco pode pressentir a
possibilidade de uma compreensão mais originária de sua condição. Nesse ponto, perceber a
prevalência da disponibilidade naquilo que é, ou seja, como uma forma de desencobrimento,
já não é mais para o homem uma possibilidade e nisso ele se torna alheio ao próprio destino.
Tal é o perigo extremo que advém da essência da técnica.
Deve estar claro, que o perigo em questão pouco tem a ver com a técnica enquanto
atividade humana, ou com a técnica enquanto conjunto dos artefatos, instrumentos e
tecnologias resultantes da atividade humana tecnicamente conduzida. Não é a atividade
técnica do homem, nem os produtos dessa atividade técnica, nem a forma como o homem lida
com isso que constitui propriamente o perigo da técnica. Em tudo isso, o que constitui o
perigo já está dado de antemão.

A técnica não é perigosa. Não há uma demonia da técnica. O que há é o mistério de


sua essência. [...] A ameaça, que pesa sobre o homem, não vem, em primeiro lugar,
das máquinas e equipamentos técnicos, cuja ação pode ser eventualmente mortífera.
A ameaça, propriamente dita, já atingiu a essência do homem. (HEIDEGGER,
2006a, p. 30)
8

A ameaça que a técnica representa atinge o homem de forma essencial na medida em


que conduz o desencobrimento do real que guia o homem em seu ser e estar no mundo. Nesse
sentido, diante do perigo que advém da técnica, pouco importa se rejeitamos radicalmente
tudo o que é técnico em favor de uma vida mais “primitiva” ou se acolhemos
apaixonadamente todas as possibilidades e produtos da técnica. Em ambos os casos
estaríamos dis-pondo do que é técnico, sem ainda alcançar a essência da própria técnica desde
onde procedemos mesmo sem saber.
Aproximar-se da essência da técnica é a única possibilidade para o homem
experimentar uma relação mais livre com a técnica e com tudo o que é técnico. Porque “onde
mora o perigo é lá que também cresce o que salva”, ensina o poeta Hölderlin (apud
HEIDEGGER, 2006a, p. 31). A salvação acontece na medida em que, ao questionar a
essência da técnica, o homem aceita o desafiado de pensar de uma forma não técnica, que lhe
permite experimentar uma verdade mais originária que a verdade da técnica (disponibilidade).
Desde a essência da técnica emerge, assim, como salvação, a possibilidade para o não-técnico.

Por isso tudo depende de pensarmos esta emergência e a protegermos com a dádiva
do pensamento. E como é que isto se dá? Sobretudo, percebendo o que vige na
técnica, ao invés de ficar estarrecido diante do que é técnico. Enquanto
representarmos a técnica, como um instrumento, ficaremos presos à vontade de
querer dominá-la. Todo nosso empenho passará por fora da essência da técnica.
(HEIDEGGER, 2006a, p. 35)

Tudo depende, portanto, da suposição de que comecemos a pensar, com cuidado, a


essência da técnica. A possibilidade que o questionamento da técnica oferece para o
florescimento de um pensar que não seja meramente técnico-representativo, que não seja um
pensamento calculador, é o que pode salvar o homem da ameaça que a própria essência da
técnica representa ao homem – trancá-lo em uma forma única de compreensão de si e do
mundo: a disponibilidade.
O que pode, enfim, salvar o homem do perigo de aprisionamento no modo de
desencobrimento da técnica é a sua disponibilidade para um tipo de pensar não-técnico. Esse
pensamento, embora rigoroso, não deve ser limitado por regras, pois somente livre pode
propiciar o salto em direção ao diferente, em direção ao absolutamente novo. Na conferência
O que significa pensar? Heidegger tenta apontar para esse pensamento que é diferente
daquele que se fez dominante como racionalidade representativa e que serve com sucesso aos
propósitos da ciência e da técnica. Aquele é um tipo de pensamento absorvido na com-posição
e convertido em objeto para a lógica e em instrumento para os comandos da técnica. O
9

pensamento que pode salvar o homem do domínio da técnica é o pensamento ao modo dos
pensadores. É o pensamento que ouve e acolhe a manifestação mais íntima do ser em sua
época.

3 A educação no tempo do domínio da técnica

Com base nas reflexões heideggerianas, agora também podemos ver a educação como
uma técnica. Pois educar, grosso modo, envolve meio e fim. Pensada como preparação para o
trabalho ou pensada de forma mais ampla como formação integral para o mundo, a educação
visa fins e define meios para conduzir até eles. Compreendida como técnica, a educação é
então uma forma de desencobrimento. O que na educação é desencoberto são as
potencialidades intelectuais e práticas do homem. Conduzindo o desdobrar das
potencialidades humanas, a educação é também uma forma de acontecer da verdade, é
alétheia.
Com a indicação da educação como técnica, ainda não se alcança qualquer
profundidade na reflexão sobre o sentido da educação. Cabe pensar melhor, a partir dessa
indicação, o como do desencobrimento promovido pela educação. Está a educação, enquanto
técnica, inserida no modelo dominante da com-posição? Há indicativos de que a educação se
movimenta também na lógica da disponibilidade?
A reflexão promovida por Heidegger a partir da essência da técnica revela que,
realizando a exploração, o homem também encontra a si mesmo como mera disponibilidade.
No tempo do domínio planetário da técnica, o homem converte-se em material de pesquisa,
em objeto de manipulação midiática, em capital humano para o mercado de trabalho. Por toda
parte o homem se vê convertido em número, em estatística; posto em padrões e regulações. A
educação está incluída nesse contexto de resposta ao apelo da com-posição e também toma o
humano como material a ser transformado segundo interesses que, na maior parte das vezes,
são postos pelo mercado. Mesmo nas universidades, já pouco se faz para além de treinamento
rápido para o exercício de uma profissão. As próprias instituições, não raro, tiram sua razão
de ser dessa demanda, compreendendo-se a partir da pertinência à lógica mercantil.
O domínio da essência moderna da técnica na educação mostra-se de forma ainda mais
contundente na consideração instrumental do conhecimento, compreendido como conjunto de
informações úteis para a realização de fins pretendidos. E quando se pensa para além deste
conhecimento informativo e se considera o desenvolvimento de habilidades intelectuais, aí
também se pensa de forma instrumental, concebendo o desenvolvimento de habilidades em
10

consonância a um perfil previamente estabelecido de profissional técnico ou de cidadão


competente. É sensível, neste sentido, a crescente desvalorização de áreas do saber menos
pertinentes aos propósitos dessa educação quase instrumental – as artes, a filosofia, a religião.
O pensamento característico deste modelo de educação técnica é o pensamento representativo
da racionalidade técnico-científica. Este é o tipo de pensamento adequado para o cálculo
manipulador e organizador da disponibilidade; é o tipo de pensamento certo para a
administração de meios em vista de determinados fins.
A organização do processo de ensino-aprendizagem e as relações que perpassam a
educação no tempo do domínio da técnica também refletem a perspectiva da com-posição. Os
estudantes são dispostos em grupos padronizados, avaliados a partir de notas e classificados a
partir do rendimento. O professor é antes de tudo profissional disponível, desde onde é
ordenado (a partir de sua especialidade) e classificado (a partir de sua titulação). Para a
instituição e para o estudante, o professor está disponível como reserva de conhecimento ou
como guia até ele. Assim, nota-se que a mesma força exploradora que faz o homem do tempo
da técnica descobrir a natureza como reserva de energia disponível aos projetos humanos,
também direciona um entendimento dos estudantes como material humano a ser formado para
interesses específicos e dos professores como recurso disponível às demandas operacionais da
educação. Como consequência desse processo, as relações “humanas” típicas do ambiente
educacional convertem-se em relações objetivadas, mediadas por aspectos e interesses
externos em relação aos quais o outro aparece sobretudo como instrumento, como meio, como
recurso.
Todas essas constatações referentes à educação no tempo do domínio da técnica são
generalizações que, embora não representem a totalidade da educação, são há muito
pressentidas e denunciadas nos debate do meio educacional. Pela perspectiva adotada para a
interpretação, esta realidade mostra-se agora vinculada ao espírito da época moderna que
Heidegger definiu como com-posição. A educação está reproduzindo, nessa perspectiva, o
paradigma dominante da técnica que desencobre o real como disponibilidade. Devemos,
quanto a isso, então, seguir Heidegger e afirmar os consequentes perigos de uma educação
conduzida nesses moldes?
Tanto quanto não convém demonizar e afastar tudo o que é técnico como forma de
reação ao perigo da essência da técnica, também não convém recusar prontamente o modelo
de educação que opera a partir dela. A educação predominante no tempo do domínio da
técnica também opera um acontecer da verdade. Nela o homem é conduzido a existir em um
de seus modos possíveis, como trabalhador qualificado, como intelecto calculador, como
11

agente explorador. A crítica que precisa ser feita, partindo da reflexão heideggeriana sobre a
técnica, diz respeito à pretensão de limitar a educação a esta forma de consideração do
humano.
A questão que precisa ser posta, então, é: como promover uma educação mais
independente em relação ao destino da técnica que nos desafia a promover apenas um tipo
específico de homem (como disponibilidade), um tipo específico de pensamento (como
cálculo) e que viabiliza um tipo específico de relações (como objetivação)? Se pensarmos no
que está em jogo na educação, no que é promovido, transformado e potencializado por ela,
estaremos sempre e a cada vez pensando no homem. A educação é, enquanto entendida
largamente como técnica, um modo privilegiado de desencobrimento do humano. Pela
educação o humano é desdobrado a partir de sua essência.
Mas, qual é a essência do homem? No tempo do domínio da técnica a essência
humana é previamente desafiada a se mostrar a partir dos traços da disponibilidade (para o
trabalho, para o consumo etc.), da racionalidade (pensamento representativo calculador) e da
exploração (atividade ordenadora, produtora, transformadora). Para Heidegger, desde Ser e
Tempo, a essência humana é pensada em relação à possibilidade, como abertura, como
liberdade. Na Carta sobre o humanismo, Heidegger reforça uma vez mais a necessidade de
pensar o homem desde sua relação com o ser, enquanto abertura para livre constituição do
humano na relação consciente com seu destino. Assim, para não prender o homem em apenas
uma possibilidade de existir (aquela aberta desde a essência da técnica), a educação precisa
cuidar da relação do homem com sua essência; isto é, precisa cuidar do homem em sua
relação com o ser. Fazendo isso a educação fica em condições de promover o cuidado com o
humano, preservando-o em sua liberdade essencial – a salvo da ameaça de trancamento na
forma de desencobrimento destinada pela técnica moderna.
O caminho que Heidegger aponta para que o homem conquiste uma relação mais livre
com a técnica, também é o caminho que podemos pensar para a promoção de uma educação
mais humana e menos instrumental: o caminho do pensamento reflexivo. Tanto quanto a arte,
o pensamento reflexivo oferece a possibilidade de experimentar outras formas de relação com
o real, superando os limites da mera racionalidade representativa que prende o homem a uma
realidade objetivada. Através do pensamento reflexivo o homem poderá enfim alcançar o
acontecimento do ser e compreender de forma mais originária sua pertença ao mundo.
Por fim, pela promoção do pensamento reflexivo (e também através das artes) a
educação pode promover uma relação essencialmente humana, pautada pelo respeito e pela
solidariedade. Nesta nova perspectiva as relações de ensino-aprendizagem se alteram. Ensinar
12

e aprender não são mais definidos pelo repasse e pela aquisição de conhecimentos úteis.
Aprender é aprender a pensar. Ensinar é deixar aprender6. O autêntico professor é aquele que
convida a aprender, não lhe cabendo ensinar nada além do próprio aprender. Aquele que
convida já não é nenhuma autoridade, nenhum superior; aquele que convida é um cúmplice
para o pensar, é um amigo. Mediada pelo compromisso comum de promover o pensamento
reflexivo, a amizade entre quem ensina e quem aprende pode, enfim, acontecer de forma
sincera.

Conclusão

O exposto até aqui teve dois momentos centrais que podem ser sintetizados, agora, da
seguinte forma:
(1) O advento da técnica moderna lançou o homem em um paradigma interpretativo
que faz surgir o real como disponibilidade (como objeto disponível aos propósitos humanos).
Heidegger reconhece um perigo inerente a esta forma de interpretação, que consiste
precisamente no fato de ela tornar-se absoluta, impedindo que o homem experimente formas
mais originárias de compreensão, não tomando a si mesmo senão como mera disponibilidade.
(2) A educação compartilha do paradigma interpretativo da técnica moderna,
conforme pode ser verificado não apenas na consideração geral do humano em função de sua
disponibilidade (pertinência) ao mercado, mas também pela valorização da racionalidade
instrumental, pela hipervalorização do conhecimento informativo e pela objetivação das
relações de ensino-aprendizagem. Esse modo de acontecer da educação conserva o perigo
inerente à técnica moderna e colabora para sua absolutização. Não se segue, contudo, que
devemos rejeitá-la de pronto e por inteiro. Basta não torná-la a única forma de promover a
educação. Isso pode-se conseguir, principalmente pela afirmação do que Heidegger chamou
de pensamento reflexivo. A promoção do pensamento reflexivo pode manter o homem numa
compreensão mais originária de si e do mundo, viabilizando uma relação mais livre com a
técnica e as tecnologias. Além disso, pela promoção do pensamento reflexivo pode-se, enfim,
alcançar uma resignificação das relações de ensino-aprendizagem, menos instrumental e mais
solidária.

6
Heidegger apresenta essa concepção de ensinar com deixar aprender nos últimos seminários ministrados em
Freiburg, entre 1950 e 1952, posteriormente publicados sob o título O que significa pensar? (HEIDEGGER,
1954). “Deixar aprender” é tradução para lernen lassen, que, considerando a plurissignificação do verbo lassen,
também poderia ser traduzido por “convidar a aprender”, tal como prefere Lyra (2008, p. 51).
13

Os desdobramentos sintetizados em (2) carecem ainda de maior desenvolvimento, a


partir de uma consideração mais ampla da obra de Heidegger e de um diálogo com as diversas
concepções da educação. Tais desdobramentos poderão, então, contribuir de forma mais
significativa para pensar uma educação essencialmente mais humana e menos técnica.

REFERÊNCIAS

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DALBOSCO, Claudio. O cuidado como conceito articulador de uma nova relação entre
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2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v27n97/a03v2797.pdf>. Acesso em: 23
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HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: _____. Ensaios e conferências. 3. ed.


Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006a, p. 11-38.

_____. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In: _____. Conferências e escritos


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_____. O que quer dizer pensar? In: _____. Ensaios e conferências. 3. ed. Petrópolis: Vozes;
Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006b, p. 111-124.

_____. Ser e tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

_____. Was heisst Denken? Tübingen: Niemeyer, 1954.

_____. ¿Y para que poetas? In: _____. Caminos de bosque. Madrid: Alianza, 1996, p. 241-
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_____. Carta sobre o humanismo. Trad. Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães, 1985.

LYRA, Edgar. Heidegger e a educação. Apreender – Caderno de Filosofia e Psicologia da


Educação, Vitória da Conquista, ano 6, n. 10, p. 33-55, jan./jun. 2008. Disponível em:
<http://www.uesb.br/editora/publicacoes/aprender/edicoes/aprender10.pdf>. Acesso em: 23
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