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Primeira edição brasileira: fevereiro de 1973 PREFACIO

Traduzido de:
Son a dupla influência do dinamismo das Edições Droz,
com suas publicações sociológicas, e da fidelidade de meu
ÉTUDES SOCIOLOGIQUES
colega e amigo R. Girod, 1 terminei por aceitar (como acon-
Copyright © 1965 by Librairie Droz tece geralmente em tais casos) reunir num volume três artigos
esparsos de sociologia, publicados nas Publications de la Fa-
culté des Sciences Économiques et Sociales de l'Université de
Geneve", assim como o capítulo "A explicação em sociologia"
de minha Introduction à l'Epistémologie Génétique (meus
agra decimentos à Presses Universitaires de France por ter au-
Tradução de:: torizado a reprodução deste capítulo do tomo IH, atualmente
REGINALD() DI PIERO esgotado).
Estes escritos datam de 1941 a 1950. Deve-se dizer que,
dura nt e as dü;cussões, muitos outros fatos e trabalhos serão
citados. As indic ações muito sumárias sobre as "regulações" no
dom íni o econômico poderiam ser amplamente completadas. A
passagem das re gulações às "operações " em seus "agrupamen-
Reservados os direitos de p ro pri edade tos" pode ri a ser justificada atualmente por considerações ciber -
de sta trad uçã o pela néticas que conduziriam melhor à convicç ão. A identidade pro-
funda das op era ções próprias ao trab alho intelectu al dos in-
COMPANHIA EDITORA FORENSE
divíduo s e as que interv êm numa troca interindividual (ou

Avenid a Er asmo Braga, 299, I. 0 e 2.º - Rio de Janeiro "cooperação" ) se fund am ent am na minh a perspectiva atual

Largo de São Francisco, 20 - Loj a - São Paulo sobre as leis da coord enaç ão-geral das ações (que é tanto cole-

Impr esso no Br asil ~ Que foi me u aluno em socio logia e me su ced eu em Gen ebra n esta
cadeira; as circ un stâ ncias n ão me pare cem d esculp ar int eiramente p or
Printed in Brazil ter dado esse cu rso. eu m esmo , du ra nt e a lgun s a nos.
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'
tiva como ligada às coordenações nervosas). As passagens con- volvimento genético ou histórico só condicionasse as consci-

cernentes a Lévy-Bruhl deveriam ser rediscutidas à luz da im- ências à medida que elas possuíssem o Erlebnis. Ora, o que
portante obra de Lévi-Strauss, mas que, sobre O problema em já nos parece impossível aceitar no ponto de vista epistemoló-
pauta, não substitui as experiências a serem feitas, podendo gico parece constituir um método ainda mais inadmissível em
somente nos informar sobre o nível operatório exato das crian- disciplinas que, como a psicologia e a sociologia, se referem
ças e adultos em diferentes sociedades de civilização tribal. ao homem real, em sua ontogênese e em suas filiações his-
Etc. tóricas. Em psicologia, somos levados a não falar do corpo
senão à medida que há consciência de "meu corpo": eu gos-
Mas , tais como são, as páginas que seguem parecem con-
taria muito de saber se meu cérebro não colabora com estas
servar alguma utilidade do ponto de vista das relações entre
linhas, a não ser na medida em que conheço seu mecanismo
a sociologia e a psicologia e, principalmente, quanto aos me-
e ainda por intuição direta, condição tão pouco preenchid1
canismos comuns aos diversos domínios abrangidos pelas ·múl-
que seria prudente eu me deter aqui. Em sociologia, a tentação
tiplas ciências do homem . As regras, os valores e os símbolos
é certamente muito maior, já que tudo o que ultrapassa o
que parecem caracterizar os fatos sociais são aliás O objeto de
indivíduo parece constituir um Erlebnis digno de consideração.
numerosas ciências particulares e a reflexão sobre os proble-
Mas, ao colocarmos tudo sobre um mesmo plano, como so-
mas epistemológicos que eles suscitam permanece tanto neces-
mos fatalmente conduzidos, e a tudo "compreender" sem mais
sária atualmente quanto há 15 ou 20 anos atrás .
nada "explicar", renunciamos simplesmente à missão essencial
Entre as reações suscitadas por esses ensaios, há uma a que da ciência que é ao mesmo tempo compreender e explicar.
gostaríamos de responder, posto que sua inspiração fenome- Que uma corrente filosófica, cuja finalidade inicial era com
nológica nos parece conduzir às mesmas dificuldades em so-
Husserl a de restaurar o normativo em contraposição à psi-
ciologia e em psicologia. A fenomenologia teve muitas razões cologia empirista de então, tenha chegado através de degene-
em assinalar a importância das significações e das intenções,
rescências sucessivas, do culto subjetivo da ambigüidade ou
assim com as diferenças entre a "explicação" causal e a "com-
do irracional que Merleau-Ponty ou Sartre queriam com certo
preensão" das ligações implicadoras. Mas não há necessidade carinho substituir à psicologia científica, é problema epis-
de aderir a tal doutrina filosófica para reconhecer a legitimi- temológico que não nos concerne aqui: sua solução, como
dade dessas noções e, com todo nosso "naturalismo", termi- procuramos mostrar em outra obra, 2 se deve ao caráter con-
namos, em psicologia como em sociologia, por evidenciar seu traditório da "intuição" fenomenológica cuja ambição é fundir
papel na análise dos fenômenos. Ver-se-á essa evidência preci- num só todo o fato e a norma, o que constitui um espantoso e
samente nesta obra. surpreendente exemplo deste "psicologismo" (ou passagem
Em compensação, a fenomenologia nos leva cada vez mais,
e é neste ponto que deixamos de segui-la, a substituir a "ex- 2 J. PIA CET , Sagesse et illusions de la philosophie, Paris, P.U.F.,
periência vivida" à estruturação do real, como se um desen- 1965.
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do fato à norma) que deveria ser combatido! 3 Mas que se A primeira é que, sem que nunca se peça ao sociólogo
queira generalizar o método à sociologia mesma este será o para se wbstituir pelo epistemólogo, ele tem entretanto à sua
triunfo de todos os sociocentrismos, idealistas ou mesmo po- disposição todos os meios de controle, desde que se coloque
líticos. num ponto de vista genético e não somente histórico ou prin-
Ora, um dos problemas principais da sociologia é expli- cipalmente sincrônico. Com efeito, não se deve esquecer de que
car-nos de que maneira a vida social pode ser simultaneamente a formação das novas gerações e sua integração na sociedade
fonte de estruturas racionais e das ideologias mais inconsis- é o fenômeno social capital e que toda a preocupação de qual-
tentes (esta será justamente uma das maiores preocupações quer movimento revolucionário (e ele tem muitas outras!) é
deste livro) e o problema não seria resolvido se se começasse agir sobre as gerações ascendentes e reorganizar o ensino. Feito
a colocar todos os produtos sociais num só e mesmo plano, isso, basta analisar os fatos, para constatar que a iniciação
como o faria um método que não visse neles senão variedades social às matemáticas não se efetua exatamente da mesma
maneira que, por exemplo, a iniciação da juventude hitleriana
do Erlebnis. Responder-se-á que um sociólogo não tem cri-
ao dogma da supremacia da "raça ariana", e que, sem opinar-
tério à sua disposição e que, por princípio, ele ignora o "ra-
mos sobre a racionalidade das doutrinas, já se podem distinguir
cional" para não conhecer senão as experiências vividas, sejam
a esse respeito estruturas A e B. Se continuarmos a aplicação
movimentos de massa ou da comunidade dos homens de ci- do método e encontrarmos com Lévi-Strauss traços da estrutura
ência. P:ira isso temos duas respostas. A (ou lógico-matemática) em níveis etnográficos muito dife-
rentes dos nossos, terminaremos por ser obrigados a introduzir
3 Num interessante artigo que acaba de ser publicado em Critique certa hierarquia nas estruturas observadas, do duplo ponto de
(~arço, 1965, págs. 249-261) e que se diz consagrado a nosso ponto de vista de sua generalidade e, principalmente, de sua profundi-
vista , G. ~- Gra~ger_ escreve: ."~ _fenomenologia não nos impõe a crer
que _esta_ s1stema_ttz~çao da objetividade - apesar de a Priori ("a de- dade ou de seu modo de construção genéticos.
termmaçao .ª prwn de nossas visões de objetos") - seja única e imu-
tável, nem impede de procurar se e como ela se constitui de fato durante Em segundo lugar e, principalmente, o sociólogo não está
uma _gê?ese. Seu caráter a priori significa simplesmente que 'uma vez só no mundo e forçosamente, cedo ou tarde, ele deverá levar
const1tu1da, ela se apresenta como quadro e como norma, não como
prod~to.... 1'."estas condições, nada impede irremediavelmente o ponto em consideração os resultados das disciplinas conexas. O gran-
de vista de Piaget ao da fenomenologia, mesmo se este for incompatível de problema das ciências humanas, sendo comparadas às
com o de algu_ns fenomenólogos" (págs. 251-252). Evidentemente, que se
a fenomenologia_ de Granger é a de Husserl, eu sou fenomenólogo, pois ciência s exatas e naturais, é a pobreza das relações interdis-
sempre sustentei que uma estrutura pode -se tornar normativa, desde ciplinares. É impossível, por exemplo, trabalhar hoje na bio-
que "necessáhia", e só se torna, ao término de seu desenvolvimento, uma
vez atingido o enclausuramento devido a seu equilíbrio final. Mas não logia, seriamente, sem uma cultura suficiente, não apenas
p ermanece menos, ainda que o valor da norma intemporal tenninal de química e de física (da microfísica quântica à termodi-
dependa de seu modo de constru ção. Só examinando-o, podemos com-
preender , por exemplo, por que a noção de número adquire uma neces- nâmica), mas também de cibernética (informação e regula-
sidade intrínseca (e ultrapassa assim o espaço-temporal) , enquanto a de ção) e na teoria das estruturas algébricas gerais. Nada im-
"causa final", nascida de uma confusão entre o subjetivo e o fisiológico,
é de emprego frágil. A evolução das "evidências" em matemática é elo- pede de fato, em compensação, o que é lamentável, a um
qüente quanto a esse papel do modo de construção .
lingüista de ignorar a economia e reciprocamente, ou mesmo
A~sinalemos, en passant, que o isoformismo entre a implicação e a
ca1;1sahdade, pela qual interpretamos o paralelismo psicofisiológico, é, a um sociólo go de ignorar a psicologia experimental e a psi-
pois, um pouco mais profundo do que julga Granger e explica, entre
outras coisas, a adequação do matemático ao real. Granger pretende cologia genética, sendo a psicologia genética tanto sociológica
reencontrá-lo em Merleau-Ponty: ele o teria tomado à Gestaltheorie, o quanto psicológica. Ora, existem fatos comuns encontrados em
que nos conduz à psicologia científica.
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PREFACIO . 'PREFACIO
J1 1}

todos os domínios das ciências humanas. E as regras, valo- losofia como uma outra e que pretende, como muitas outras,
res, símbolos que consideramos nesta obra como o essencial dirigir o pensamento científico e entrar no detalhe de pro-
dos fatos sociais supõem precisamente tais mecanismos, ope- blemas de fato e de formalização; ou, pelo contrário, a dia-
ratórios, regulatórios e semióticos, ao tratar-se dumas ou de lética - e é segundo nossa opinião o que determina sua força
outras <lestas categorias, ou de suas reuniões e interseções; e - é o resultado de uma tomada de consciência dos métodos
parece-nos impossível tratar sociologicamente de tais questões efetivamente utilizados par todas as disciplinas dirigidas para
sem uma informação suficiente em psicologia e em neurologia, um desenvolvimento genético ou histórico, e levadas conse-
em lingüfatica e em economia, etc., mas igualmente em lógica qüentemente a ver no seu encadeamento outra coisa que não
ou em seus ramos anexos contemporâneos, tais como a lógica do o resultado de uma programação preestabelecida ou de uma
direito (Perelmann e sua equipe), e principalmente sem co- continuação de acontecimentos aleatórios sem estruturações
nhecer as interferências tão essenciais entre a lógica, como nem equilibrações. Ora, se a dialética, neste segundo sentido
teoria pura das regras, e a cibernética, como teoria das regu- do termo, quer conservar o que determina sua razão de ser
lações. e seu sucesso, não é certamente acelerando ou forçando as
convergências que ela reforçará sua causa, mas, pelo contrário,
Ora, se tais conexões fossem estabelecidas, e elas o serão
tomando em consideração, com a paciência das pesquisas ci-
cada vez mais, entre a sociologia e o conjunto das disciplinas
entíficas, os mecanismos comuns descobertos em toda a indepen-
das quais depende a compreensão do homem, é evidente que
dência sobre os diversos terrenos da pesquisa.
as visões sumárias devidas a uma educação filosófica relati-
A esse respeito, dois fatos fundamentais nos parecem, em
vamente superficial (se for comparada à formação científica
todos os domínios biológicos e humanos, como também em
dos que marcaram as grandes etapas da história da filosofia)
sociologia, orientar a pesquisa numa direção · dialética. O pri-
não nos impedirão mais, em nome de uma subjetividade fe-
meiro é o resultado de qualquer explicação causal para for-
nomenológica, distinguir níveis hierárquicos nas estruturas dú
espírito, individual ou coletivo. mas de causalidade que deixam de ser lineares, onde o sen-
'tido único em proveito de interações e interdependências,
Um outro gênero de reflexões nos parece útil. Acabamos cujos "círculos" e as "espirais" são impossíveis de dominar
de responder a algumas observações que nos foram feitas do sem fazer intervir sistemas de regulações e de equilibrações.
lado fenomenológico, mas observações de tendência inversa Ora, a velha noção de equilíbrio só tem sentido nas ciências
nos foram apresentadas do lado dialético, pois são estas as biológicas e humanas numa perspectiva de auto-regulação, o
duas grandes tendências filosóficas do pensamento contempo- que evoca, de perto ou de longe, processos dialéticos, porque
râneo. Fomos criticados algumas vezes a esse respeito, obser- numa seqüência de desequilíbrios ou crises e de reequilíbrios
vando-se as convergências evidentes que existem entre o cons- em progresso nas precedentes, há intervenção necessariamente
trutivismo genético, no qual nos inspiramos, e as correntes dia- dos conflitos entre tendências a princípio antagonistas e final-
léticas, por não impulsionar mais avante as convergências na mente "ultrapassadas", não por um balanço físico de suas for-
direção, disseram-nos na ocasião, de nova ascensão a fontes ças, mas por uma reorganização que constitui a síntese equili-
mais diretas por oposição às correntes derivadas. Mas, ainda brada . Se pudéssemos reescrever atualmente as páginas que
aqui, é necessário estar de acordo. Ou bem a dialética é uma fi- seguem, teríamos insistido muito mais sobre o caráter de auto-
//
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if PREFÁCIO PREFÁCIO 15

regulação dos processos de equilibração, em particular sobre


todas as experiências vividas, de qualquer nível que seja, ~en_i
a passagem das regulações às estruturas operatórias de "agru-
para constrangê-lo a admitir estruturações ditadas a P~t~rz.
pamentos", de "redes", de "grupos", etc.
Acreditamos, pelo contrário, que a análise dos fatos espeohcos
O segundo fato fundamental é que, em todos os lugares à sociologia ou dos mecanismos comuns estudados por cada um
em que se apresentem as relações de sujeito a objeto, e é o é suficientemente enriquecedora para ser ao mesmo tempo
caso da sociologia como em outros campos, mesmo e princi- liberadora e condutora, mas com a condição de não esquecer
palmente se o sujeito é um "nós" e que o objeto é o de vá- o conjunto das ciências vizinhas. 4
rios ~tJjeitos ao mesmo tempo, o conhecimento não parte nem
Genebra, abril, 1965.
do sujeito nem do objeto, mas da interação indissociável en-
tre eles, para avançar daí na dupla direção de uma exteriori-
zação objetivante e de uma interiorização reflexiva. Dir-se-á J.P.
que esta solidariedade do sujeito e do objeto é a tese central
da fenomenologia: sim, mas a título estático de simples apre-
sentação ou intuição do "fenômeno". É também a tese central
da dialética , mas no sentido dinâmico e construtivista das ul-
trapassagens contínuas. Marx já insistia no papel funda-
mental da ação do sujeito sobre o objeto e se, na continua-
ção, a teoria do "reflexo" pôde fazer crer num esquecimento
deste papel central da ação, todos os partidários atuais do
"reflexo" se esforçam de todas as formas para nos fazer com-
preender que esse reflexo não é puro reflexo, e, falando-se
ingenuamente, que ele não é simples reflexo! Para nós, que
nos esforçamos em não ser filósofo e de só nos dobrarmos aos
fatos e algaritmos demonstrados, é-nos impossível não encon-
trar em todos os domínios estudados da vida biológica ou hu-
mana, em se tratando das relações entre o organismo e seu
meio, da inteligência da criança em sua dupla conquista dos
objetos exteriores e das estruturas lógico-matemáticas, ou na
passagem social das técnicas às ciências, a perpétua relação
4 Ao re ler esses estudos tive a impr essão inquietante de me repetir
dialética do sujeito e do objeto cuja análise nos libera simul- de u m capí tul o ao outro , p~is as p ágs. 15 a 99 constituem , d e fato, . a
taneamente do idealismo e do empirismo, em proveito de um síntese d os a rtigos seguint es, public ados anteriormente . Achar-se -á, pois,
q ue segui à ri sca os cons elhos d e um velho profes sor : pa_ra .se . fazer
construtivismo ao mesmo tempo objetivante e reflexivo. É compree nde r , é necessá rio p rim eirament e diz er o qu e se vai diz er, de-
por essa raz ão que não achamos necessário que o sociólogo pois, é necessário di zê-lo e, fin alm ent e, é necessário re diz ê-lo a título d~
resumo. Me u edi tor n ão comp a rtilh a est a inqui e taçã o. O leitor po ssui
adira a escolas, nem para levá-lo a situar num mesmo plano faci lmente o me io de pr eca ver-se contra qu alqu er p erig o, só ret~ndo o que
lhe convém (é a gra nd e va n ta gem d os livros sobre as conferências ) ,
A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA

CoMo a biologia e como a psicologia, a sociologia inte-


ressa à epistemologia sob dois pontos de vista distintos e com-
plementares: por um lado, ela constitui um modo de conhe-
cimento digno de ser estudado por si mesmo, notadamente em
suas relações (de diferença como de semelhança) com o co-
n hecimento psicológico; por outro lado , é em seu objeto ou
em seu conteúdo mesmo que o conhecimei;ito sociológico con-
diciona a epi stemologia, pois o conhecimento humano é es-
sencialm ente coletivo e a vida social constitui um dos fatores
essenciais da formação e do crescimento dos conhecimentos
pré-cie ntífi cos e científicos.

§ J.O l N'IRODUÇÃO. A EXPLICAÇÃO SOCIOLÓGICA , A EXPLI·


CAÇÁO BIO LÓGIC A E A EXPLICAÇÃO PSICOLÓGICA. - De acordo
com o primeiro desses pontos de vista, o conhecimento soci0-
lógico tem um interesse evidente , e a epistemolo gia genética
ou compar ada deve particul armente analisar suas rela ções com
o conhec ime nto biológico e, principalmente , com o conheci-
mento psicológico.

As re lações da sociologia com a biologi a já anunciam a


complexidade das que ela m antém com a psicologia. Primei-
ramente, há um a sociolo gia anim al como um a psicologia ani-
mal (as duas d isciplin as estando, ~liás, estreitamente lig ada s,
or ue as funções m entais dos anim ais que vivem em socie-
dade são natura lme nte condicion adas por esta vida social), e
suas pesquisas são de natureza a mostrar a estr eita intera ção
r niza ão viva e da s or _an iza ões sociais elementares: cada
uma sabe, com efei to, que n ão se consegue , entre alguns or-
ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇAO EM SOCIOLOGIA 19

ganismos inferiores (Celenterados, etc.), distinguir por crité- menos nesta parte da demografia que se refere a aspectos bio-
rios precisos os indivíduos, as "colônias" (ou reunião de ele- lógicos da população. Contudo, mais ainda do que a sociologia
mentos semi-indiv .iduais interdependentes) e as sociedades pro- animal, as relações entre a sociologia humana e a antropologia
priamente ditas. Mas, desde a sociologia animal, o modo de ou a demografia evidenciam a diferença entre a explicação
explicação propriamente sociológico começa a se distinguir sociológica e a explicação biológica. Enquanto a biológica se
da análise biológica, o que significa dizer que o fato social já refere a transmissões internas (hereditariedade) e às caracte-
se diferencia do fato orgânico e requer, por conseguinte, um rísticas determinadas por ela, a explicação sociológica se refere
modo de interpretação especial. Ao lado das condutas pro- a transmissões exteriores ou às interações entre indivíduos, e
priamente instintivas (quer dizer, montagem hereditária ligada constrói um conjunto de noções destinadas a prestar contas
às estruturas orgânicas) que constituem o essencial dos com- deste modo sui generis de transmissão . É assim que ela expli-
portamentos animais, há, com efeito, já nos animais sociais cará por que a mentalidade de um povo depende muito menos
interações "exteriores" (em relação às montagens inatas) en- de sua raça do que de sua história econômica, do desenvolvi-
tre indivíduos do mesmo grupo familiar ou gregário, e que mento histórico de suas técnicas e de suas representações cole-
modificam mais ou menos profundamente sua conduta: a tivas, esta "história" não sendo mais a' de um patrimônio here-
linguagem por gestos (danças) das abelhas, descoberta por ditário, mas a de um patrimônio cultural, quer dizer, de um
V. Frisch, a linguagem por gritos dos vertebrados superiores conjunto de condutas se transmitindo de geração a geração,
(chimpanzés, etc.), a educação à base de imitação (cantos dos do exterior e com modificações dependentes do conjunto do
pássaros) e de adestramento (condutas predatórias dos gatos, grupo social. É assim, por outro lado, que os aspectos biológicos
estudada por Kuo), etc. Esses fatos propriamente sociais cons- do fenômeno demográfico (número de nascimentos e de mor-
tituídos por transmissões externas e interações que modificam o tes, longevidade, mortalidade em função dos tipos de doen-
comportamento individual, supõem então um método de aná- ças, etc.) estão estreitamente subordinados a sistemas de val o-
lise novo, dirigido ao conjunto do grupo considerado como res (principalmente econômicos) e regras, que resultam da
sistema de interdependências construtivas, e não somente uma in tera ção externa dos indivíduos .
expl icação biológica das estruturas orgânicas ou instintivas . ·um terceiro ponto de junção entre a biologia e a socio-
Em segundo lugar , a sociologia humana mesma sustenta logia é a an álise das relações entre a maturação nervosa e as
relações com este ramo da biologia que é a antropologia ou coações da educação na socialização do indivíduo. O desen-
estudo do homem físico em seus genótipos (raças) e suas po- volvimento da criança oferece a esse respeito campo de expe-
pulações fenotípicas. Se bem que o conceito de raça tenha riênc ias do maior interesse quanto à zona de sutura entre as
sido utilizado por certas ideologias políticas nos sentidos mais tra nsmi ssões internas ou hereditárias e as transmissões exte-
afastados de sua significação biológica, e que tenha assim se riores , quer dizer, sociais ou educativas. É assim que a aqui-
tornado um simples símbolo afetivo mais do que uma no- sição da lin gu agem supõe , além da assimilação de uma língua
ção objetiva, a questão subsiste em conhecer as relações entre já orga nizada, ou sistema de símbolos coletivos se transmitindo
os genótipos humanos e as mentalidades coletivas, mesmo se de geração a geraç ão por meio da educação, uma condição
as sociedades mais ativas são as que correspondem à miscige- bio lógica preliminar (e própria à espécie humana, até algum
naç::ío mais completa dos genes. Por outro lado, a antropologia inform e m ais amplo), que é a capacidade de aprender uma
estatística se prolonga naturalmente na demografia, ou pelo lin gu agem arti culada. Ora, esta capacidade está ligada a cer-
A EXPLICAÇÂO EM SOCIOLOGIA 21
20 ESTUDOS SOCIOLóGICOS

ria uma hipótese embaraçadora e principalmente inútil. A


to nível de desenvolvimento do sistema nervoso, mais ou me- sucessão dessas fases de aquisição é então regulada pelas inte-
nos precoce ou tardio, segundo os indivíduos, e determinado rações sociais mesmas? Isto é tão pouco verossímil, porque, se
por um jogo de maturações hereditárias. Assim também a escola inculca na criança o conteúdo das representações co-
ocorre com a aquisição das operações intelectuais, que supõem letivas segundo certo programa cronológico, a linguagem e
os modos usuais de raciocínio lhe são impostos em bloco pelo
todas ao mesmo tempo certas interações coletivas e certa ma- meio que a cerca: se ela escolha em cada estágio certos ele-
turação orgânica necessária a seu desenvolvimento. Em tais mentos e os assimila em certa ordem na sua mentalidade, é
domínios, a ligação, por um lado, e a diferença, por outro porque a criança não sofre mais passivamente a coação da
lado, entre a explicação biológica e a explicação sociológica, "vida social" que da "realidade física" consideradas em sua
tot alidade, mas opera uma segregação ativa no que lhe é ofe-
são tão evidentes que muitos outros autores renunciam a toda
recido e reconstrói à sua maneira, assimilando -o.
explicação psicológica e reabsorvem completamente a psicolo-
gia no neurológico e no social reunidos e distintos. Entre o biológico e o social, há, pois, o mental, e deve-
mos agora destacar, de forma preliminar e simplesmente in-
Mas quando eles são sificientemente analisados, e não trodutória, as relações entre a explicação sociológica e a ex-
tratados de forma global e teórica, tais fatos suscitam ao con-
plicação psicológica. Ora, a grande diferença que existe entre
trário, de forma particularmente aguda, o problema das rela-
ções entre a explicação sociológica e a explicação psicológica. as r elações da sociologia com a biologia e da sociologia com
Com efeito, a característica notável de todos esses processos a p sicologia é que as segundas dessas relações não constituem
que dependem ao mesmo tempo da maturação e da transmis- laços de superposição ou de sucessão hierárquica como as pri-
são externa ou educativa, é que eles obedecem a uma ordem me ira s, mas laços de coordenação ou mesmo de interpenetra-
constante de desenvolvimento (qualquer que seja a velocidade
cão. Dito de outra forma, não existe uma série de três termos
deste). É por isso que a linguagem não é aprendida em bloco,
mas segundo uma sucessão muitas vezes estudada: a compreen- ~ucessivos: biologia ~ psicologia ~ sociologia, mas uma pas-
são dos substantivos (palavras-frases) precede a dos verbos, e sagem simultânea da biologia à psicologia e à sociologia reu-
a dos verbos precede de muito a dos advérbios e conjunções, n id as, estas duas últimas disciplinas tratando do mesmo objeto,
marcando as ligações, as idéias, etc. A aquisição de um sistema mas com dois pontos de vista distintos e complementares. Sua
de operações não se efetua também de uma só vez, mas su-
P?e sempre fa~es de organização bem regulares. Que os clí- razão é que não há três naturezas humanas, o homem físico,
n_icos º':1os psicólogos preocupados com a aplicação negligen- o hom em mental e o homem social, se superpondo ou se su-
ciem tais fatos em prol do rendimento, e do estágio marcante cedendo como as características do feto, da criança e do adul-
do térmi?o destas aquisições, é bem natural. Mas tais proces- to, mas h á, por um lado, o organismo, determinado pelas ca-
sos genéticos são em contraposição altamente instrutivos quan-
to à ligação da maturação e das transmissões sociais. A suces- racteríst icas herdadas, assim como pelos mecanismos ontoge-
são das fases de aprendizagem é com efeito regulada pelas néticos e, por outro lado, o conjunto das condutas humanas,
etapas . ~a matura~ão mesma? Não integralmente, pois as ca- da qua l um a comporta, desde o nascimento e em graus diver-
ractensticas próprias a estas fases são r elativas às realidades sos, um aspecto mental e um aspecto social. A psicolo ·a e a
c?letivas "exteriores" ao indivíduo: são as categorias semân- sociol~a são, is, comparáveis, em sua interdependência,
ticas o_u sintáti~as ~a linguagem, ou são os sistemas de repre-
ao que re presenta uma em relação às outras_ ciências bioló-
se?ta~oes conceituais ou de pré-operações que constituem seus
cn~énos; ~~ tal sucessão era devida à maturação, dever-se-ia gicas conexas, tais como a embriologia descritiva e a anato-
po1.s admitir uma preformação ou uma antecipação heredi- mia comparada , ou a embriologia causal e a teoria da here-
tária dos quadros sociais no sistema nervoso, o que constitui-
A EXPLI CAÇÃ O EM SOCIOLOGIA
23
ESTUDOS SOCIOLóGICOS

Assim, as diversas questões de que trataremos em relação à


ditariedade (inclusive a teoria das variações ou da evoluç ão),
ex plicaç ão socioló gica corre spond em tod as às que acab amos
e n ão ao que eram a física e a química antes de sua fus ão
de an alisar em r elação à psicologia. Particularmente a noção
progre ssiva. E sua imagem é ainda enganadora, porque a on-
centr al por m eio da qual os sociólogos durkheimianos preten-
togênese e a filo gên ese são mais fáceis de ser dissociadas
deram suprimir todos os vínculos entre a sociologia e a psico-
que o aspecto individual e o aspecto social da conduta hu -
lo gia: a no ção de totalidade. Uma sociedade é um todo irre-
mana: quase seria necessário comparar as relações da psico-
dutível à soma de suas partes, dizia Durkheim, ~resentando
logia e da sociologia às do número e do espaço, a intervenção
por cons eguinte qu alidades novas em rela ~ão às partes, ~o
de uma relação de vizinhança suficiente para tornar espacial
modo pelo ®ªl a molécula possui, a título de síntese, proprie-
todo o "conjunto", ou toda relação algébrica e analítica. da des ignoradas dos átomos que a compõem. Ora, ~u:na pas-
Cada um dos problemas que suscita a explicaç ão psicoló- sagem muito curiosa (uma das únicas onde expnmm uma
gica se encontra, pois , sobre a explicação sociológica, com a opinião em psicologia), D_urkheim c~~p~ra, se~undo uma ~s-
única diferença que na sociológica o "eu" é substituído pelo pécie de proporç ão analógica, : co:1sciencia coletiva em relaça~
"nós" e que as ações e "operações" se tornam, uma vez comple- a seus elementos individuais ao que é um estado de consci-
tadas pela adjunção da dimensão coletiva, interações, quer di- ên cia individual (visto ele também como um todo) em rela-
zer, condutas se modificando umas às outras (segundo todas ção aos elementos orgânicos sobre os quais se apóia: ~ sim
as escalas intercaladas entre a luta e a sinergia) ou formas de como uma representação individual (~rceEção, imagem, etc.)
"cooperação", quer dizer operações efetuadas em comum ou não é O produto de uma simples associação entre elementos
em correspondência recíproca. É verdade que este aparecimen- orgâ ni cos considerados isoladamente, m~ stitui de uma só
to do "nós" constitui um problema epistemológico novo: en- vez um a unidade caracterizada por suas propriedades de con-
quanto em psicolo gia o observador estuda simplesmente a con- junto, assim como as representações coletivas são irredutíveis
duta dos outros sem ser ele mesmo necessariamente afetado às re present ações individuais da qual constituem a síntese. Ora,
(exceto em algumas situações particulares como a que é pró- esta com paraç ão de Durkheim vai muito além do que ele
pria do método psicanalítico), em sociologia o observador faz poder ia imag in ar em 1898: 1 não só é perfeitamente correto
geralmente parte da totalidade que ele estuda ou de uma to- que a noçã o de totalidade é comum à sociologia e à psicologia,
talidade análo ga ou adversa. Resulta que um conjunto con- mas ainda esta noç ão é suscetível de diversas interpretações
siderável de "prenoções", de sentimentos, de postulados im- cujo quadro é semelhante nas duas disciplinas . À totalidade
plícitos (morais, jurídicos , políticos) e de preconceitos de clas- por "emergê ncia", tal como a concebe Durkheim, corresponde
se, se int er põem entre o sujeito e o objeto de sua pesquisa, a noção de forma total ou de ge::ialt em psicologia, mas as
e que a descentralizaç ão do primeiro, condiç ão de toda obje- objeções refere ntes a essa última concepç ão são também váli-
tividade, é muito mais difícil. Mas se o "nós" é uma noção das para a totalidade durkheimi ana e concepções mais rela-
própria da sociologia, as dificuldad es que ela provoca do tivistas do conceito de tot alid ade pad em ser desenvolvidas nos
ponto de vista da imparcialidade e da coragem intelectual ne- dois campos .
cessárias à pesquisa intervêm parci almente na psicolo gia, pois
precis amente o homem é um e todas as suas funções menta - . 1 E. Du1tR H EIM, "R epr ésent a tions individu ell es et r eprés entations col -
lizadas são igualmente socializadas. lectiv es, na revis ta R evue de M étap hysique et de Mora/e de 1898.
25
24 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA

Por outro lado, assim como na psicologia pode-se distin- causalidade das condutas e as implicações da representação,
guir explicações genéticas, referentes aos mecanismos do de- que essas implicações sejam pré-lógicas ou mesmo quase sim·
senvolvimento, e a análise dos estados de equilíbrio como tais, bólicas como nas ideologias variadas , ou que se coordenem
assim também existem tipos de explicação próprias à sociolo- logicamente como nas representações coletivas racionais, cujo
gia diacrônica ou dinâmica (evolução histórica das socieda- pensamento científico constitui o produto mais autêntico.
des) e outros tipos que caracterizam a sociologia sincrônica ou Isto nos conduz ao segundo interesse essencial que apre-
estática (equilíbrio social). Em ambos os campos, psicológico senta O conhecimento sociológico do ponto de vista da episte-
e sociológico, pode-se encontrar igualmente três grandes tipos mologia genética. Não é somente como forma particular de
de estruturas, denominadas de maneiras diversas por esses au- conhecimento, para analisar como um outro, que o pensa-
tores e que podem ser reduzidas às noções de ritmo, de re- mento sociológico se torna epistemológico: é também porque
gulações e de "agrupamentos". Em ambos os campos, pode-se 0
objeto da pesquisa sociológica engloba o desenvolvi~en~o
também recorrer, ao lado das explicações reais ou concretas, dos conhecimentos coletivos e em particular toda a história
a esquemas axiomatizados, e o emprego de tais esquemas evi- do pensamento científico. A esse respeito a episte:11ologia ge-
dencia notadamente a dualidade das relações de implicação nética, que estuda o desenvolvimento dos conhecimentos sob
(próprias aos sistemas de normas, por exemplo, a união das 0
duplo aspecto de sua formação psicológica e de sua evolu-
normas jurídicas) e as relações de causalidade propriamente ção histórica, depende tanto da sociologia quanto da psicolo-
dita. gia, a sociogênese dos diversos modos do conhecimento ~ão
Esta dualidade das implica ções inerentes às representa- se revelando nem mais, nem menos importante que sua psico-
ções coletivas e da causalidade intervindo nas condutas so- gênese, pois são estes dois aspectos indissolúveis de toda for-
riais, enquanto condutas, suscita em particular um problema mação real. Sob esse ponto de vista, duas questõe: devem ser
fondamental de explicação, que foi exposto pela sociologia especialmente discutidas, posto que de su_a soluçao depen_de
marxista e retomado sob outras formas por autores de ten- em definitivo toda a epistemologia genética: a das relaçoes
dência bem diferente, tal como V. Pareto: a questão das rela- entre a sociogênese e a psicogênese na formação das noções na
ções entre "infra-estrutura" e "superestrutura". Assim como a criança no processo de socialização e a das mesmas noções na
psicologia foi levada a compreender que os dados da ccmsci- elaboração das noções científicas e filosóficas que se sucederam
ência não explicam nada de maneira causal , e que a ún~ca na história.
explicação causal deve remontar da consciência às condutas,
A interdependência da sociogênese e da psicogênese se
quer dizer da ação, assim como a sociologia descobrindo a
faz sentir de forma particularmente marcante no terreno da
relatividade das superestruturas em relação às infra-estruturas psicologia da criança, à qual fizemos numerosos apelos para
apela para explicações ideológica3 em vez de explicações pela ex plicar a construção das noç?es. Ora, tal :ecurso ao desen-
ação: ações executadas em comum para assegurar a vida do volvimento intelectual da cnança, concebido a título de
grupo social em funç ão de certo meio material; ações concre- embriogênese mental, e um recurso do qual proibi_mos .º
pri ncípio apelando para os serviços prestados pe:a embnolo..?1a
tas e técnicas, e que se prolongam em representaçôes coletivas, bio lógica à anatomia comparada (ver lntroduçao , § 2~, pode
em vez de derivar delas, a título de aplicações. O proble'lla deixar certo mal -estar no espírito de mais de um leitor. A
das relações entre a infra-estrutura e a superestru tura, por con - psicologia da criança explicaria sem dúvida ~ modo de f~rma-
seguinte, está estreitamente ligado ao das relações entre a ção das noções ou das operações, deve-se dizer, se a criança
26 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 27

pudesse ser estudada em si mesma, independentemente de para a epistemologia comparada ou genética, pois o desen-
qualquer influ ência adulta, e se ela construísse assim seu pensa- volvimento individual é em parte condicionado pelo meio
mento sem se servir dos elementos essenciais no meio social. social, e a psicogênese é parcialmente uma sociogênese, pois a
Mas o que é a criança em si mesma e não existem crianças a embriologia orgânica não perde seu interesse para a anato-
não ser em relação a certos meios coletivos bem determinados? mia comparada, pois a embriogênese é em grande parte de-
Isso é evidente, e, se se chama "psicologia da criança" ao estudo
do desenvolvimento mental individual, é simplesmente em re- terminada pelos genes ou fatores hereditários: assim como o
ferência aos métodos experimentais utilizados nesta disciplina: desenvolvimento orgânico individual depende, por um lado,
na verdade , e tanto no que concerne às noções explicativas da transmissão hereditária, assim também o desenvolvimento
da qual se serve, quanto relativamente a seu objeto de inves- mental individual é condicionado em parte (e além dos fa.
tigação, a psicologia da criança constitui setor da sociologia, tores de maturação orgânica e de formação mental stricto
cons agrado ao estudo da socialização do indivíduo, ao mesmo
tempo em que constitui setor da psicologia mesma. Mas an- sensu) pelas transmissões sociais ou educativas. Um processo é
tes de insistir a esse respeito, observemos primeiramente que, particularmente interessante a esse respeito, tanto pela epis-
longe de constituir uma objeção ao emprego dos resultados temologia genética mesmo, quanto do ponto de vista das
psicogenéticos em epistemologia comparada, tal interdependên- relações entre a sociologia e a psicologia: é a existência do
cia entre os fatores sociais, mentais e orgânicos, na gênese in-
que G. Bachelard e A. Koyré chamaram por metáfora das
dividual das noções, reforça , pelo contrário, o interesse dest.1
formação individual e a acrescenta à significação de seus es- "mutações intelectuais". A história das idéias científicas, diz
tágios regulares: é extremamente marcante, com efeito, que, A . Koyré, "nos mostra o espírito humano às voltas com a
para se conseguir construir suas operações lógicas e numéricas, realidade; nos revela seus fracassos, suas vitórias; nos mostra
sua representação do espaço euclidiano, do tempo, da veloci- qual esforço sobre-humano lhe custou cada passo sobre o cami-
dade, etc. etc., a criança tenha necessidade, apesar das coações
sociais de todas as espécies que lhe impõem estas noções ao nho da intelecção do real, esforço que alcança, às vezes, ver-
estado acabado e comunicável, de repassar por todas as etapas dadeira 'mutação' do intelecto humano; transformação graças
de uma reconstrução intuitiva, depois operatória. A construção à qual noções, penosamente "inventadas" pelos grandes gênios,
das operações de adição lógica e de seriação, etc., necessárias à se tornam não somente acessíveis, mas ainda fáceis, evidentes,
constituição de uma lógica concreta: a das operações de cor-
respondência bi-unívoca com conservação dos conjuntos , ne- para escolares". 2 Isto quer dizer que uma criança de sete anos,
cessárias à gênese do número; a das intuições topológicas e de nove anos ou de doze anos, etc., terá no século XX outns
das operações de ordem , etc., necessárias à constituição do id éias sobre o movimento, a velocidade, o tempo, o espaço, etc.,
espaço; a seriação dos acontecimentos, a união das durações qu e não tinham crianças da mesma idade no século XVI
e a intuição dos avanços, constitutivos do tempo e da veloci-
dade, etc ., etc. adquirem assim um sentido epistemológico (quer dizer, antes de Galileu e Descartes), no século X antes
tanto mais profundo quanto a criança se encontre num meio de nossa era, etc. Isto é evidente, e tal fato evidencia o pa-
coletivo onde pudesse esgotar essas diversas noções de forma pel das transmissões sociais ou educativas; mas seu interesse
totalmente pronta. Ora, em vez de receber essas noções já aind a aumenta muito quando percebemos como o espírito da
prontas, ela só escolhe (vimos no começo desse § 1) nas repre-
crian ça é pouco passivo: se o escolar de doze anos, vivendo
sentações ambientais os elementos que consiga assimilar se-
gundo leis precisas de sucessão operatória! no século XX, chega a pensar no movimento de forma carte-

A esse respeito, e sem querer abusar de certo número de 2 A. KovRÉ, A l'aube de la science classique, Paris , Herman , 1939,
comparações, a embriologia mental não perde sua significação Pág. 15.
28 ESTUDOS SOCIOLÓGICOS
A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 29

siana, ele não o conseguirá certamente da primeira vez e passa


por uma série de etapas preliminares, durante as quais ele neamente em mental e em social, e é a interdependência des-
consegue ressuscitar, sem duvidar, a analogique peripatética, 3 ses dois últimos fatores que pode explicar as acelerações ou
cuja& representações coletivas atuais não contêm entretanto os atrasos do desenvolvimento segundo os diversos meios co-
l,etivos.
mais vestígio! Em outras palavras (e sem que seja necessário
evocar um paralelismo termo a termo entre a ontogênese, a Mas, se a sociogênese das noções intervém, pois, na psi-
filogênese e a sociogênese histórica), a "mutação intelectual" cogênese, desde os estágios elementares do desenvolvimento
não se manifesta sob a forma pura e simples de substituição é lógico que sua influência cresce em progressão geométric~
das idéias antigas pelas novas: ela intervém ao contrário sob em relação à sucessão dos estágios ulteriores. O social intervém
a forma de uma aceleração do processo psicogenético cujas antes da linguagem, por intermédio dos adestramentos sensó-
etapas permanecem relativamente constantes em sua ordem rio-motores, da imitação, etc., mas sem modificação essencial
de sucessão, mas que se sucedem mais ou menos rapidamente da inteligência pré-verbal; com a linguagem, seu papel au-
segundo os meios sociais. Nada é mais próprio, aliás, para menta consideravelmente, pois ele ocasiona mudanças de
verificar a necessidade de um apelo a fatores especificamente pensamento, desde a formação mesma desta. A construção
mentais que a existência dessas acelerações ou desses atrasos progressiva das operações intelectuais supõe uma interdepen-
do desenvolvimento, em função dos meios coletivos: "mutação dência crescente entre os fatores mentais e as interações interin-
intelectual" como fator de aceleração não poderia, com efeito, dividuais, como veremos no § 7. Uma vez as operações cons-
se explicar somente pela maturação nervosa sem recorrer à tituídas, um equilíbrio se estabelece entre o mental e o social ,
hereditariedade da aquisição ou a uma preformação antecip:t· no sentido em que o indivíduo tornado membro adulto da
dora), nem somente pela transmissão social (pois ela é acele- sociedade não poderia mais pensar fora desta socialização aca-
ração e não substituição), nem pela união desses dois proces- bada. Isto nos conduz à segunda questão essencial que a episte-
sos (pois um dentre eles é invariante e somente o outro varia); mologia genética coloca à sociologia: a do papel da sociedade
se a transmissão social acelera o desenvolvimento mental in- na elaboração das noções históricas próprias à filosofia e aos
dividual, é (como já vimos acima) porque entre uma matu- diversos tipos de conhecimento científico.
ração orgânica que fornece potencialidades mentais, mas sem Ora, a análise sociológica desempenha neste ponto papel
estruturação psicológica feita, e uma transmissão social que crítico , do qual não poderíamos subestimar a importância.
fornece os elementos e o modelo de uma construção possível, Unindo da forma mais restrita o pensamento à ação, como a
mas sem impor esta última num bloco acabado, há uma cons- psicologia e quase somente com esta única diferença que se
trução operatória que traduz em estruturas mentais as poten- trata então das relações entre representações coletivas e con-
cialidades oferecidas pelo sistema nervoso ; mas ela só efetua dutas executadas em comum, a sociologia introduz, cedo ou
esta tradução em função de interações entre os indivíduos e tarde, nas formas de pensamento comum ou diferenciadas que
por conseguinte sob a influência aceleradora ou inibidora dos procura explicar, uma distinção análoga à que podemos fa.
diferentes modos reais destas interações sociais. Assim, o bio- zer, no domínio individual, entre o pensamento egocêntrico
lógico invariante (enqu anto hereditário) se prolonga simulta- ou subjetivo e o pensamento descentralizado ou objetivo: ela
reconhecerá em certas formas de pensamento o reflexo das
pr eocupações do grupo restrito ao qual pertence o indivíduo,
3 Ver PIACET, La causalité physique chez. l'enfant, Paris , Alc an, 1936.
tr ate-se deste sociomorfismo descrito nas representações cole-
A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 31
ESTUDOS SOCIOLÓGICOS
30

sempre. Primeiro postulado: existe uma "natureza humana ··


tivas das sociedades primitivas ou deste sociocentrismo nacio-
-ªnteri às interações sociais, inata no indivíduo, e contendo
nal ou de classe, cada vez mais refinado e disfarçado, que se
antecipadamente todas as faculdades intelectuais, morais, ju-
encontra nas ideologias e nas metafísicas; ela discernirá, em
rídi~as, econômicas, etc., que a sociologia considera, pelo con-
contraposição, em outras formas de pensamento, a possibili-
tráno, como os produtos mais autênticos da vida em comum.
dade de universalização verdadeira das operações em jogo,
~gundo postulado, correlativo do primeiro: as instituições
como é o caso do pensamento científico.
sociais constituem o resultado derivado, intencional e por con-
No que concerne à análise sociológica do pensamento fi- seguinte artificial, das vontades inspiradas por esta natureza ·
losófico, um passo decisivo foi dado com as análises de G. Lu- humana, estando somente o indivíduo de posse das qualidades
kacs s9,bre os símbolos literários e as de L. Goldmann sobre propriamente "naturais" (cf. o direito "natural", etc.).
os sistemas da importância dos de Kant ou de Pascal. Pode-se
A transposição das perspectivas que marcou a descoberta
pois, desde agora, conceber uma interpretação da história da
do problema sociológico conduz, pelo contrário, a tir da
filosofia em função dos diversos tipos de diferenciação sociais
realidade concreta oferecendo-se à observação e à experiên- -
segundo as nações e as classes da sociedade . Retornaremos a
eia, quer dizer a sociedade em seu conjunto, e a considerar
esse ponto, a propósito das relações entre a infra-estrutura e
o indivíduo com suas condutas e seu comportamento mental
da superestrutura (§ 6). Quanto à análise sociológica das ope-
como função desta totalidade, e não como elemento preexis-
rações intelectuais mesmas, cujo papel é evidente na história
tente ao estado isolável e provido antecipadamente das qua-
das técnicas e das ciências, retornaremos a esse ponto na con-
lidades indispensáveis para se perceber o todo social. "Deve-se
clusão deste capítulo (§ 7).
explicar o homem pela humanidade, e não a humanidade pelo
homem", dizia Augusto Comte, mas sua lei dos três estados.
§ 2.0 As DIVERSAS SIGNIFICAÇÕES DO CONCEITO DE TOTALI-
destinada a fornecer de antemão o esquema geral desta expli-
DADE socIAL. Nada é mais próprio para fazer perceber o alcance
cação, colocou toda importância sobre as "representações co-
da transposição das perspectivas, realizada pela sociologia dos
letivas" em oposição aos diversos tipos de condutas e inaugu-
séculos XIX e XX, do que analisar as filosofias sociais impor-
rou assim uma tradição sociológica abstrata que encontrou em
tantes nos séculos XVII e XVIII. Como Rousseau começa, p0r
Durkheim seu mais completo desenvolvimento. "Não é a cons-
exemplo, a substituir pelas explicações teológicas do Discurso
ciência do homem que determina sua maneira de ser; é sua
sfibre a história universal uma interpretação da sociedade fun-
maneira de ser social que determina sua consciência", disse,
damentada sobre a natureza e sobre as aptidões naturais do
pelo contrário, K. Marx, inaugurando assim uma sociologia
homem? Ele imagina um bom selvagem, dotado antecipada-
do comportamento, cuja concordância, antecipadamente, é mais
mente de todas as virtudes morais e de uma capacidade de
fácil com a futura psicologia das condutas.
representação intelectual tal que este indivíduo isolado, não
. O problema exposto para explicação sociológica se deve
tf'ndo jamais conhecido a sociedade, possa antecipar em seu
~ois, desde seu começo, ao emprego da noção de totalidade . O
espírito todas as vantagens jurídicas e econômicas de um "con-
indivíduo constituindo o elemento, e a sociedade o todo, como
trato social" unindo-o a semelhantes. Tal tese repousa assim
conceber uma totalidade que modifica os elementos pelos quais
sob dois postulados fundamentais, que ilustram da forma mais
é formada sem entretanto utilizar nada mais que os matena1s
clara os preconceitos permanentes do senso comum contra os
emprestados a esses elementos mesmos? O enunciado de 1.al
quais a sociologia científica teve de lutar e ainda deve combater
\ ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA JJ

gem espontaneamente da reunião dos elementos e são irredu-


questão já mostra sua estreita analogia com t~os ~s problemas
tíveis a toda compüsição aditiva, porque consistem essencial-
de construção genética, cuja explicação sociológica encontra
mente ~m formas de organização ou de equilíbrio. É porque
assim um simples caso particular, mas de uma impartância
Durkheim se recusa a toda explicação psicogenética das carac-
excepcional e que é por conseguinte indispensável à episte-
terísticas sociais, a explicação genética em sociologia só paden-
mologia saber como o pensamento sociológico procurou do-
do estar fundamentada na história do todo social mesmo
miná-lo. vista através de cada uma de suas fases a título de totalidad~
Ora, neste caso, assim como em todos semelhantes, a his- indecoro ponível.
tória das idéias mostra que nos encontramos face não a duas,
Mas se a explicação atomística do todo social leva a atri-
mas a três soluções possíveis pelo menos, e que a terceira é ela
buir à consciência individual um conjunto de faculdades aca-
mesma suscetível de apresentar nuanças diversas. Existe pri-
badas, sob a forma de um espírito humano dado e escapando
meiramente O esquema atomístico consistindo em reconstruir o
ª. toda sociogênese, a transferência pura e simples deste espí-
todo pela compüsição aditiva das propriedades dos eleme~tos.
rito humano ao âmago da "consciência coletiva" constitui so-
Na verdade, nenhum sociólogo sustenta este ponto de vista:
luç~~ igualmente pouco fácil; e isto apesar de suas vantagens
ele se deve ao senso comum e às filosofias sociais pré-socioló-
pos1t1vas, a saber, a passibilidade de reconstituir a história
gicas, que explicavam as características do todo coletivo pelos
desta nova realidade, que deixa de ser inata e imutável para
atributos da natureza humana inata nos indivíduos, sem ver
se transformar durante os séculos. A consciência coletiva her-
que elas transporiam assim a ordem das causas e dos efe~to.s e
deira de püderes até então inatos ou a priori do espírito, 'apre-
prestariam contas da sociedade pelos resultados da sociahza-
senta, com efeito, este inconveniente de permanecer uma cons-
cão dos indivíduos. A infeliz discussão que opôs Tarde e Durk-
ciência'. ou um foco inconsciente de emanações conscientes,
heim na solução de um problema essencialmente mal colo-
quer dizer, de herdar deste substancialismo e desta causalidade
cado levou a crer que Tarde analisava assim a sociedade pelo
espiritu~is, dos quais a sociologia só exime a psicologia, para
indivíduo: Recorrendo à imitação, à oposição, etc., Tarde evo-
transferir todo o seu peso para si: a transposição das posições
cava na realidade as relações entre indivíduos, mas sem ver
só é então aparente e consiste num simples deslocamento dos
que tais relações mesmas modificam os indivíduos em sua es-
problemas genéticos, sem renovamento real.
trutura mental, enquanto Durkheim, recorrendo à coação exl!r-
Donde a terceira solução, que é a do relativismo e da
cida pelo todo social, insistia, com razão, nas transformações
sociologia concreta: o todo social não é nem uma reunião de
i:,roduzidas por esta coação no âmago das consciências indi-
elementos anteriores, nem uma entidade nova, mas um sistema
viduais , mas sem compreender a necessidade de iniciar a aná-
de relações onde cada uma engendra, enquanto relação mes-
lise deste processo de conjunto pelo estudo das relações con-
ma , uma transformação dos termos que une. Evocar um con-
cretas entre os indivíduos. junto de interações não consiste, com efeito, em apelar para
A segunda solução é, pois, a de Durkheim, que se Pode
ª .s características individuais como tais, e a nuan.ça individua-
caracterizar pela noção de "emergência" tal como foi desenvol-
lista de numerosas sociologias da interação decorre de uma
vida em biologia e em psicologia de Gestalt; o todo não é o
psicolo gia insuficiente muito mais do que das lacunas da no-
resultado da composição de elementos "estruturantes", mas
ção de interaç ão deixada incompletamente explorada. Quando
acrescenta um conjunto de propriedades novas aos elementos
T arde ou Pareto explicam a vida social pela imitação ou par
"estruturados" por ele. Quanto a essas propriedades, elas emer-
A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 35
ESTUDOS SOCIOLóGICOS

da outra: a interação entre o suJei · ºto e os obºJetos e a intera-


composiçoes de "resíduos", contentam-se assim com uma psi-
ç~o entre o suJeito e os outros sujeitos. É assim que a rela-
cologia rudimentar, atribuindo ao indivíduo uma lógica já
çao e_ntre o sujeito e o objeto material modifica O sujeito e
feita ou uma coleção de instintos permanentes, sem duvidar
o ObJeto ao mesmo tempo pela assimilação deste àquele, e
que as entidades consideradas por eles como dados dependem
pela acomodação do sujeito ao objeto. Ocorre assim também
elas também de interações mais profundas. Baldwin, que era
com todo trabalho coletivo do homem sobre a natureza: "O
sociólogo e psicólogo, percebeu, pelo contrário, muito bem a
trabalho é antes de tudo um processo entre o homem e a na-
conexão estreita existente entre a consciência mesma do "eu"
t~reza, um processo no qual o homem, por sua atividade, rea-
e as interações de imitação, e colocou em primeiro lugar o hz~, regula, e controla suas trocas com a natureza. Ele aparece
problema fundamental da "lógica genética". Mas o defeito assim como uma força natural em face da natureza material
comum da maior parte das explicações sociológicas é de ter Ele movimenta as forças naturais que pertencem à naturez~
querido de antemão constituir uma sociologia da consciência corporal, braços e pernas, cabeça e mãos, para se apropriar
ou mesmo do discurso, enquanto na vida social, como na vida da~ s~bstânc~as naturais sob forma utilizável para sua pró-
individual, o pensamento procede da ação e uma sociedade pria vida. Agmdo por seus movimentos sobre a natureza exterior
é essencialmente um sistema de atividades, cujas interações e ~ransforman~o-a, ele trans~orma ao mesmo tempo sua pró-
elementares consistem, no sentido próprio, em ações se modi- ~na naturez_ª: 4 Mas, se a interação entre o sujeito e O ob-
ficando umas às outras, segundo certas leis de organização ou 3eto o~ ~od~fic~, _é a _tortiori evidente que cada interação en-
de equilíbrio: ações técnicas de fabricação e de utilização, tre suJeitos md1v1dua1s modificará os sujeitos uns em relação
ações econômicas de produção e de repartição, ações morais aos ~utros. Cada relação social constitui, por conseguinte, uma
e jurídicas de colaboração ou de coação e opressão, ações inte- totalidade nela mesma, produtiva de características novas e
lectuais de comunicação, de pesquisa em comum, ou de crítica transformando o indivíduo em sua estrutura mental. Da in-
mútua, brevemente de construção coletiva e de correspondência ~eração entre d~is indivíduos à totalidade constituída pelo con-
das operações. É da análise dessas interações no comportamento Junto das relaçoes entre indivíduos de uma mesma sociedade
mesmo que procede então a explicação das representações co- há ~ois continuidade e, deÜnitivamente, a totalidade assim con~
letivas, ou interações modificando a consciência dos indiví- cebida aparece como consistindo não de uma soma de indiví-
duos , _nem de uma realidade superposta aos indivíduos, mas de
duos .
Ora, está claro que, deste terceiro ponto de vista, não po- um sistema de interações modificando estes últimos em sua
estrutura própria.
deriam subsistir conflitos entre a explicação sociológica e a
explicação psicológica: elas contribuem, pelo contrário, uma e Assim definidos pelas interações entre indivíduos com 1

outra para esclarecer os dois aspectos complementares, inrli- t~an~missão e_xt~ri~r das características adquiridas (em oposi-
ç~~ a transm1ssao interna dos mecanismos inatos), os fatos so-
vidual e interindividual, de cada uma das condutas do ho-
cia1 - exatamente paralelos aos fatos mentais, com a única
. s sao
mem em sociedade, trate-se de luta, de cooperação, ou de qual-
dif erenç a q ue o ..n ó s" se encontra constantemente substituído
quer variedade intermediária de comportamento comum. Além
dos fatores orgânicos, que condicionam do interior os meca-
nismos da ação, toda conduta supõe com efeito duas espécies MAN!, ~MMA~, Le Capital, ~d. Kautsky, pág . 133, cit ado por L. GoLo-
arxisme et Psycholog1e", em Critique, junh o-julho, pág. 119.
de interações que a modificam de fora e são indissociáveis uma
ESTUDOS SOCIOLóGICOS d EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA. J7
J6

eia e a seu .equilíbrio adaptativo. Mas nada obriga um indiví-


pelo "eu" e a cooperação, pelas operações simples. Ora, os fa-
duo a ter exito ?º que fa~,. e nem a eficácia de suas ações,
tos mentais podem ser divididos segundo três aspectos distin- nem sua regularidade eqmhbrada constituem ainda normas
tos, mas indissociáveis, de qualquer conduta: a estrutura da obrigatórias. O estudo dos fatos mentais na criança mostra,
conduta, que constitui seu aspecto cognitivo (operações ou por ~utro lado, . q~e ~ consciência da obrigação supõe uma
relaçao entre dois m?ivídu~ pelo menos, aquele que obriga
pré-operações), seu energético ou economia, que constitui seu
po~ suas ordens ou mstruçoes e o que é obrigado (respeito
aspecto afetivo (valores) e os sistemas de índices ou de símbo- un,ilateral),_ ou ambos s: ob~igando reciprocamente (respeito
los servindo de significantes a estas estruturas operatórias ou mutuo). Nao é necessário. dizer que o indivíduo que obriga
a estes valores. Também os fatos sociais se reduzem todos a pode ser ele m~smo º?rigado por regras providas pouco a
três tipos de interações interindividuais ou, mais precisamente, po~co da_s geraço~s m~is longínquas, da qual ele é herdeiro
social. Amda mais, tais regras se aplicam a tudo e estrutu-
a três aspectos, sempre presentes em graus diversos, das inte- ram tanto os símbolos mesmos (regras gramaticais, etc.) e os
rações interindividuais possíveis. Sua estruturação, primeira- valores (regras morais e jurídicas, etc.) quanto os conceitos e
mente, acrescenta à simples regularidade própria das estrutu- as representações coletivas em geral (lógica). No que concerne
rações mentais um elemento de obrigação imanente do caráter às regras do_ pensamento, elas apresentam dupla natureza: for-
interindividual das interações em jogo: ela se traduz assim mas de eqmlíbrio das ações individuais, enquanto estas alcan-
5am um estado de composição reversível, são, por outro lado,
pela existência das regras. Os valores coletivos, em segundo
i~I?osta~ enquanto normas pelo sistema das interações interin-
lugar, diferem dos valores atribuídos à simples relação entre dividuais (vere~os. porquê no § 7). Isto quer dizer concreta-
sujeito e objeto no que elas implicam um elemento de tro - mente que se o indivíduo é levado a introduzir certa coerência
ca interindividual. Enfim, os significantes próprios às intera- em_ suas a_ções quando quer torná-las eficazes, é, em compen-
ções coletivas são constituídos por sinais convencionais, em saçao, obrigado a esta coerência quando colabora com o outro:
oposição aos índices puros ou símbolos acessíveis ao indivíduo,
? imper.ativo hipo~ético da ação individual corresponde a um
imperativo categórico para a ação coletiva; deve-se acrescentar
independentemente da vida social. Regras, valores de troca que histórica e geneticamente esses dois imperativos não são
e sinais constituem assim os três aspectos constitutivos dos senão um, o imperativo hipotético só se diferenciando secun-
fatos sociais, püis toda conduta executada em comum se tra- dariamente, porque a ação individualizada não se diferencia
duz necessariamente pela constituição de normas, de valores senão pouco da ação comum (ou sentida como tal).
ou de significantes convencionais. E há assim condutas de Em segundo lugar, o fato social se apresenta sob a forma de
luta ou de opressão, como diversas formas de colaboração, por- valores de troca. O indivíduo por ele mesmo conhece certos
que mesmo em toda guerra ou em toda luta de classes de- valores, determinados por seus interesses, seus prazeres ou seus
esforços e s_ua afe~ividade em geral: . tais valores são espünta-
fendem-se certos valores, evocam-se certas regras e utilizam-se ~eamente sistematizados graças aos sistemas de regulações afe•
determinados símbolos, quaisquer que sejam o alcance objetivo uvas e estas regulações tendem para o equilíbrio reversível
ou subjetivo destes diversos elementos e seu nível em relação à car~cterizando a vontade (paralelamente às operações intelec-
superestrutura ou à infra-estrutura dos comportamentos em tuais). Sua atividade própria basta, aliás, para introduzir certa
quantificação de valores, o que, veremos em breve, lhes en-
jogo. gaja _no sen~ido do valor econômico: a "lei do menor esforço"
exprime assim a relação entre um trabalho mínimo e um re-
A existência das regras, que são encontradas , de início, sultado mdximo; o trabalho mesmo e as forças despendidas a
em toda sociedade, suscita um problema interessante quanto s:u respeito constituem então valores para o indivíduo, que
à natureza das normas em geral. A ação individual compür-
sao pesados juntamente com os do objeto que ele utiliza, e
ta, num sentido, um aspecto normativo, ligado à sua eficá-
A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA ;9
;a ESTUDOS SOCIOLÓGICOS

aliás elásticas, que proscrevem certas forma de roubos (o roubo


que as condicionam; o papel da raridade no mecanismo das
q_1;1econduz entretanto ao máximo de proveito contra um mí-
escolhas conduz igualmente a uma quantificação individual
nzm_o de per~as, c~mo muito bem assinalou Sageret); os valo-
do valor. Mas esses valores, qualitativos ou em parte quan-
res mtelectua1s estao enquadrados por regras lógicas, e quando
tificados, permanecem variáveis e fluidos enquanto não dão
o conju~to. de um sistema é formalizado, estas regras se tor-
vez a trocas. O valor de troca constitui assim o fato novo que
nam a unica fonte dos valores de verdade e falsidade, etc.
consolida socialmente os valores e os transforma, tornando-os
Mas acontece que os va_l~res podem ser mais ou menos regu-
dependentes, não somente da relação entre um sujeito e os
lados, o que atesta suficientemente a dualidade destas duas
objetos, mas ainda do sistema total das relações entre dois
espécies de fatos sociais . Em seu limite, um valor pode mesmo
ou. vários sujeitos, por um lado, e os objetos, por outro.
escapar momentaneamente a qualquer regra , como uma idéia
Os valores de trocas compreendem por definição tudo o que sed_uz um espírito independe~temente de qualquer regula-
que pode dar vez a uma troca, desde os objetos utilizados mentaçao. No outro extremo, existe em compensação valores
pela ação prática até às idéias e representações que ocasio- que podemos chamar normativos, porque valem somente em
nam uma troca intelectual e até os valores afetivos interin- função de regras, tais como valores morais, jurídicos ou lógicos.
dividuais. Esses diversos valores permanecem qualitativos (quer É que a função essencial da regra é a de conservar os valores
dizer, com quantificação puramente intensiva), enquanto re- e que só o único meio social para conservá-los é torná-los obri-
sultem de uma troca não calculada, mas simplesmente subordi- gados ou obrigatórios. Todo valor tendente a se conservar no
nada a regulações afetivas quaisquer da ação (tanto interesses tempo se torna pois normativo: uma troca a crédito dá vez
altruístas, quanto egoístas); eles são em compensação denomi- ~ \l~ saldo e uma dívida que são valores regulamentados
nados econômicos, 5 desde que ocasionem uma quantificação 1undicamente; uma hipótese científica dá vez a uma conser -
extensiva ou métrica, esta última se fundamentando na medida vação lógica obrigada durante raciocínios dirigidos a ela, etc.
dos objetos ou serviços trocados. Por exemplo, uma troca de Enfim, o terceiro aspecto do fato social é o sinal, ou meio
idéias entre um estudante de física e um estudante de filosofia
de _ex~r~ssão que serve à transmissão das regras e dos valores.
não constitui troca econômica enquanto se trate de uma li-
O mdiv1duo consegue por ele mesmo, quer dizer, independente-
vre conversa (mesmo se esta troca "interessa" a um lado ou ao
mente de qualquer interação com outrem, constituir "sím-
outro), mas a troca de uma hora de física para uma hora de
bolo_s", P?r semelhança entre o significante e o significado
filosofia se torna uma troca econômica, mesmo que as idéias
(as5:m a imagem mental, ? símbolo lúdico dos jogos de imagi-
trocadas sejam as mesmas do exemplo anterior: é porque a
naçao, o sonho, etc.). O smal, em compensação, é arbitrário e
ttoca foi intencionalmente "calculada" e o tempo da conversa
supõe, por conseguinte, uma convenç ão, explícita e livre como
foi medido (em falta de número ou importância das idéias).
no caso dos sinais matemáticos (chamados símbolos pelo uso,
A quantificação do valor econômico pode ser simplesmente
extensiva como uma barganha com avaliação ao julgado, ou mas que são na realidade sinais), ou tácita e obrigada (lin-
tornar-se métrica (com construção de medidas comuns sob a guagem corrente, etc.). Os sistemas dos sinais são numerosos
forma das diversas variedades de moeda). e esse.nc!ais à v_ida social; ~s sinais verbais, a escrita, os gestos
da mimica afetiva e da delicadeza, as maneiras de vestir (sím-
A relação entre as regras e os valores é complexa. Os
durkheimianos identificam estes dois termos, admitindo que bol_o~ ele classes sociais, de profissão, etc.), os ritos (mágicos,
toda coação social constitui uma obrigação em sua forma (logo rel:g10sos e políticos, etc.) e assim sucessivamente. Em compen-
uma regra), e um valor em seu conteúdo. É exato que não se saçao, grande número de sinais se duplicam de simbolismo
observa nunca um "campo" de valores sociais sem que este (no sentido definido mais elevado) e o fato é tanto mais fre-
campo esteja enquadrado em regras: os valores econômicos têm qüente quanto as sociedades são mais "primitivas", e que as
assim por fronteiras um conjunto de regras morais e jurídicas, representações coletivas são menos abstratas, quer dizer, menos
profundamente socializadas. Os sistemas de sinais englobam
me~mo ~ertos símbolos coletivos mais complexos e semiconcei-
5 Ver artigo "Ensaio sobre a teoria dos valores qualitativos em tua1s, tais como os mitos e narrações legendárias, que consti-
sociologia estática", reproduzido neste volume.
ESTUDOS SOCIOLÓGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 41

tuem significantes mais que significados (apesar de serem sig- de regras. Trate-se, com efeito, das diferentes formas de es-
nificados em relação às palavras que os exprimem): são, com tado, das revoluções, das guerras, da luta de classes e de to-
efeito, portadores de uma significação mística e afetiva que dos os fenômenos que se deve estudar numa sociologia con-
ultrapassa ~ própria narração e da qual é o significante. Os creta, os antagonismos assim como as formas de equilíbrio
mitos religiosos se prolongam eles mesmos em mitos políti-
cos: toda ideologia social, inclusive as metafísicas, participa relativo se reduzem sempre a questões de normas, de valores
a esse respeito do sistema dos sinais mais do que das repre- (qualitativos ou econômicos) e sinais (inclusive as ideologias),
sentações coletivas racionais, e constitui desse ponto de vista porque o conflito da harmonia das ações e das forças está
uma espécie de pensamento simbólico, cuja significação in- necessariamente polarizado segundo estes três aspectos do fato
consciente ultrapassa largamente os conceitos racionalizados social. Mas o restabelecimento do equilíbrio só se poderia
que lhe servem de significados. Com efeito, numa representa-
ção coletiva objetiva, o valor decorre do conceito mesmo, do efetuar de forma idêntica, se se tratasse de um ou de outro
qual ela exprime a utilização adequada, enquanto numa ideo- destes mesmos aspectos, porque a obrigação em que nos en-
logia o conceito só é um símbolo dos valores que lhe são contramos de distinguir indica somente uma diversidade nos
atribuídos do exterior. funcionamentos respectivos, e é o que importa mostrar para
caracterizar a noção de uma totalidade social, por mais ideal
Toda interação social aparece assim como se manifestando que ela seja. O problema pode ser enunciado a esse respeito da
sob a forma de regras, de valores, de símbolos. A sociedade seguinte forma: os sinais, os valores e as regras são todos os
mesma constitui, por outro lado, um sistema de interações, três redutíveis a composições lógicas? É sob esta questão de
começando com as relações dos indivíduos dois a dois e se estrutura que o problema sociológico da totalidade toma toda
estendendo até às interações entre cada um deles e o conjunto a sua significação epistemológica.
dos outros, e até às ações de todos os indivíduos anteriores,
quer dizer de todas as interações históricas, sobre os indivíduos Em relação às normas ou às regras, primeiramente, perce-
atuais. A questão se torna fácil de compreender em relação be-se que se, em certos campos excepcionais, as regras consti-
a que sentido o pensamento sociológico emprega a noção de tuem efetivamente sistemas com composição racional ou lógi-
"totalidade". Estando excluído que uma totalidade se reduz ca, há numerosos domínios sobre os quais as regras não con-
a uma soma de indivíduos, pois estes são modificados pelas seguiram alcançar este estado de equilíbrio coerente, porque
interações mesmas, e estando afastada a solução de uma to- constituem uma mistura de elementos heterogêneos, herda-
talidade "emergente" sem mais interações , restam duas solu- dos de períodos diversos da história ou da pré-história social.
ções, aliás aceitáveis, simultaneamente , tanto uma quanto a Seria interessante comparar a esse respeito um sistema de nor-
outra. A totalidade social poderia ser constituída por uma com- mas intelectuais regendo o pensamento científico de uma época
posição aditiva de todas as interações em jogo. Ela poderia, e o sistema das normas morais em vigor num dado momento
pelo contrário, consistir numa "associação", no sentido pro- da história de uma sociedade. As primeiras como as segundas
babilista do termo, entre as interações, com interferências com- dessas normas podem prover de períodos históricos bem dife-
plexas, a resultados mais ou menos prováveis. A totalidade rentes e fazer parte de contextos que seriam atualmente in-
social poderia , finalmente, ser em parte composta, e permane- conciliáveis em seus conjuntos respectivos. Mas a sistematiza-
cer em parte no estado de associação estatística . ção das normas racionais é atualmente ao mesmo tempo mó-
Ora, a escolha entre essas diversas soluções supõe precisa- vel e restrita, quer dizer, ela sacrifica sem hesitações os an-
mente o exame separado dos sistemas de sinais, de valores e tigos princípios quando estes são contraditos por outros mais
42
ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 4)

recentes. Pelo contrário, a moral de uma sociedade é compa- a cada instante transtornadas pelo jogo dos valores inerentes
rável a um terreno heteróclito cuja estratigrafia revela restos à linguagem afetiva. Uma linguagem só poderia chegar à cons-
de épocas sucessivas, simplesmente superpostos ou justapostos; tituição de uma totalidade lógica com a dupla condição de
alguns espíritos ou algumas partes da sociedade alcançam uma uma adequação completa dos significantes aos significados, e
unificação relativa, comparável à sistematização lógica reali- de uma subordinação completa dos valores às normas: este
zada pela elite intelectual, mas esta elite moral encontra re- não é o caso, com efeito, das linguagens exclusivamente con-
sistências maiores em seus esforços inovadores, devido ao res- vencionais exprimindo um jogo de conceitos eles mesmos to-
peito pelas tradições estabelecidas. Qu~nto ao direito,. sua talmente rigorosos, quer dizer, do simbolismo logístico e ma-
situação é intermediária: do ponto de vista formal, a h1~rar:- temático. Fora de tal estado-limite, todo sistema de símbolos
quia das normas jurídicas, se prolongando entre a constitm-
oscila entre a totalidade por composição lógica e a totalidade-
ção de um estado e as "normas individualizadas", constitui
associação: é o caso, entre outros, do simbolismo dos mitos
um todo coerente; mas, em seu conteúdo, as leis podem-se
e das ideologias, quaisquer que sejam suas racionalizações apa-
contradizer parcialmente ou pelo menos constituir um mosaico
rentes.
de elementos de origem heterogênea e de intenções contrá-
rias. Em suma, os sistemas de regras mesmas oscilam entre os Concluindo, as totalidades sociais oscilam entre dois tipos:
dois aspectos possíveis das totalidades coletivas: composição ló- num dos extremos, as interações em jo go são relativamente
g~ca ou associação, o que provoca as duas questões da influ- regulares, polarizadas por normas ou obrigações permanentes,
ência do desenvolvimento histórico das normas sobre sua es- e constituem sistemas compostos dos quais pressentimos a ana-
trutura atual e de sua forma de equilíbrio próprio. l_ogia com os agrupamentos operatórios no caso em que estes
Em relação aos valores, o problema é muito mais com- se aplicariam às trocas e às ações hierarquizadas interindivi-
plexo. Desde que não se trate de valores normativos, quer di- duais como às operações intra-individuais. No outro extremo,
zer, regulados por normas compostas logicamente, mas de tro- a totalidade constitui uma associação de interações interferin-
cas relativamente livres, é evidente que um sistema de valores do entre elas e cujas formas de composição lembram as regu-
espontâneos está nitidamente orientado na direção das totali- lações ou os ritmos da ação individual: o todo social não
dades de caráter estatístico, ou associações caracterizadas por representa mais a soma algébrica destas interações, mas uma
interferências fortuitas. Os valores econômicos, numa econo- estrutura de conjunto análoga às gestalt psicológicas ou físicas,
mia não-dirigida, assim como os valores qualitativos em curso quer dizer, nos sistemas onde forças novas são acrescentadas
numa vida política submetida ao jogo dos partidos ou nas flu- às componentes, devido ao caráter probabilista da composi-
tuações dos modos literários e filosóficos, constituem modelos ção. A "sociedade", no sentido corrente do termo, é um com-
de composições aleatórias e não-aditivas. Somente uma subor- promisso entre estas duas espécies de totalidades . Para expli-
dinação dos valores às normas pode assegurar sua sistematiza- car os fatos sociais relativos a tais totalidades, a sociologia
ção sob a forma de totalidades lógicas. enco ntra -se em face a duas espécies de problemas, cujo inte-
Quanto aos sinais, sabemos muito pelos trabalhos dos resse epistemológico se deve em particular à sua correspon-
lingüistas, como seus sistemas resultantes da interferência dos dência com as duas questões centrais da explicação psicoló-
fatores históricos e dos fatores de equilíbrio e, principalmente, gica: o problema das relações entre a história e o equilíbrio
como as regularidades inerentes à linguagem intelectual são (entre os pontos de vista diacrônico e sincrônico) e o dos
44 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICA.ÇílO EM SOCIOLOGIA.

mecanismos mesmos do equilíbrio (ritmos, regulações e agru- das e de desequilíbrio mais ou menos profundos? Num ou
pamentos). noutro desses diversos casos, podemos aplicar as mesmas for-
mas de explicação ao devenir social e às interdependências
§ 3. A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA. A. Ü SINCRÔNICO E O entre fenômenos simultâneos?
DIACRÔNICO. - As dificuldades relativas ao problema da to-
Desde os primórdios da sociologia, Augusto Comte opu-
talidade social se devem, como acabamos de observar ao exa•
nha a sociologia estática ou teoria da "ordem", quer dizer,
minar do ponto de vista das regras, dos valores e dos sinais,
do equilíbrio social, à sociologia dinâmica, ou teoria do "pro-
à questão essencial das relações entre a história dos fatos
sociais e o equilíbrio de uma sociedade considerada num mo- gresso", isto é, da evolução, e esta distinção se conservou
mento particular de seu desenvolvimento: esse equilíbrio de- classicamente sob formas diversas. A sociologia de Karl Marx
pende da sucessão histórica das interações, ou somente da comporta ela também uma teoria evolutiva, ligada à história
interdependência das relações contemporâneas uma com as econômica e política, e uma teoria do equilíbrio ligada ao
outras? É imediatamente notado que este problema se coloca advento do socialismo final, as características desse equilíbrio
em termos diferentes para as regras, cuja função é antes de diferindo profundamente dos mecanismos em jogo na evolu-
tudo assegurar a permanência no tempo, para os valores não- ção anterior (reabsorção do direito na moral, desaparecimen-
normativos que exprimem essencialmente um estado momentâ- to do Estado sob o efeito da estatização geral, etc.). Mesmo
neo do equilíbrio das trocas, e para os sinais que participam autores como Durkheim e Pareto, que têm tendência a sa-
destas duas naturezas. crificar um destes aspectos ao outro (o primeiro insistindo
Esta questão das relações entre a história e o equilíbrio principalmente nos processos genéticos ou históricos e o segun-
já existe na biologia e na psicologia (de forma geral em toda do, no mecanismo do equilíbrio), são obrigados a distinguir
parte em que ocorre um encadeamento histórico), mas ela duas formas de relação: Durkheim estabelece por regras, entre
é muito mais delicada ainda em sociologia do que em psico- outras, que a história de uma estrutura social não explica
logia. Numa evolução individual, que começa com o nasci- sua função atual (regra que ele nem sempre aplicou, como
mento e termina com o estado adulto ou a morte, o equi- veremos logo) e Pareto distingue a permanência das "classes"
líbrio intelectual e afetivo aparece como o término do desen- de resíduos na história e a desigual repartição das mesmas
volvimento mesmo, de tal forma que este equilíbrio final deve "classes" de resíduos, segundo as classes sociais de uma sociedade
ser concebido como assegurado por mecanismos aparentados vista estaticamente. Mas não é senão com a lingüística, quer
aos que determinam a sucessão dos estágios evolutivos. Numa dizer, com a mais precisa sem dúvida das disciplinas sociais,
sociedade, cuja morte não é geralmente senão metafórica e que a distinção se impôs sistematicamente entre os dois pontos
cujos estados de apogeu só poderiam ser comparados verbal- dt vista. Como mostrou F. de Saussure, pode-se estudar a língua,
mente com a idade adulta da vida, as questões de equilíbrio não somente do ponto de vista "diacrônico", quer dizer, em
e de desenvolvimento se colocam diferentemente e sua relação sua evolução histórica, mas ainda do ponto de vista "sincrô.
provoca um conjunto de problemas essenciais: deve-se consi- nico", isto é, como um sistema de elementos interdependentes
derar a evolução social como tendendo igualmente a um equi- e em equilíbrio num momento dado da história: ora, os dois
líbrio terminal, com ou sem revoluções preliminares, ou con- pontos de vista não se correspondem sem mais, pois a etimo-
siste ela numa alternância de fases mais ou menos equilibra- logia de uma palavra não basta para determinar sua signifi-
46 ESTUDOS SOCIOLÓGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA

cação no sistema atual da língua. Esta significação depende mente o ponto de vista sincrônico, ligado ao equilíbrio, e o
também das necessidades de comunicação e de expressão, expe- ponto de vista diacrônico ou do desenvolvimento. Donde a
rimentadas num momento dado, e o sistema sincrônico dessas existência de duas espécies de explicações diferentes em socio-
necessidades é de natureza a modificar os valores semânticos, logia, cuja conciliação não pode ser assegurada de uma só vez:
independentemente em parte da história das palavras e de suas a explicação genética ou histórica e a explicação funcional
significações anteriores. 6 Ora, percebemos imediatamente o relativa às formas de equilíbrio. Dois exemplos farão com que
caráter geral desse problema suscitado pela lingüística de Saus- se perceba a necessidade de tal distinção : um, tomado de
sure. Já em biologia, um órgão pode trocar de função e uma Durkheim, que centrou toda a sua doutrina no método histó-
mesma função ser preenchida sucessivamente por órgãos dife- rico às custas dos problemas sincrônicos; e o outro, tomado de
rentes: é assim que a vesícula natatória de certos dipneustas Pareto, que sacrificou o desenvolvimento à análise do equilí-
desempenha o papel de pulmão, etc. Em psicologia, a evolução brio.
dos interesses (ou valores intra-individuais) pode dar vez a
certas recomposições completas: o que era simples conduta de Sabemos quão profundamente Durkheim sentiu a conti-
compensação pode tornar-se o interesse dominante de um in- nuidade espiritual que une as sociedades contemporâneas a seu
divíduo, etc. Em sociologia, a história dos ritos e dos mitos, passado, e isto até os estágios mais elementares que ele se es-
em relação aos sistemas de sinais, é pródiga em transforma- forçava em encontrar nas sociedades ditas primitivas no sen-
ções nas significações, como quando uma religião nova absorve tido etnográfico (e não pré-histórico) do termo. É P?rq~e, .P~º'
curando explicar nossa lógica, nossa moral, _nossas ?nst1tmçoes
pouco a pouco as tradições autóctones das regiões onde foi in- jurídicas e religiosas, etc., ele ~-emont~v~ .s1stemat~;ª~~nt~ }
troduzida. análise das representações coletivas pnm1t1vas ou ongma1s .
Podemos perguntar-nos até que pon;to o dualismo do Ora, este método sociogenético, independentemente dos pro-
blemas que suscita quanto à reconstituição exata dos fenô-
sincrônico e do diacrônico domina os diferentes aspectos da
menos sociais elementares e das filiações que asseguram sua
vida social. Se conseguíssemos abarcar numa única visão sin- continuidade com os fenômenos atuais, alcança resultados de
tética o conjunto dos fatos sociais a um momento considerado uma importância muito diferente segundo os tipos de relações
de sua história, poderíamos dizer seguramente que cada es- estudadas. Quando se trata de explicar a estrutura das n?ções,
tado depende do precedente numa sucessão evolutiva contí- racionais, morais, jurídicas, etc., o método é de fecundidade
incontestável. Não importa em que proposição enunciamos,
nua. Mas perceberíamos então a interferência de certas inte-
não são somente as palavras empregadas que derivam de lín-
rações, esta associação alcançando precisamente modificações guas anteriores e são também solidárias, cada vez mais, dos
na função (quer dizer, nos valores e nas significações) de cer- idiomas mais antigos e mais primitivos da Humanidade, são
tas estruturas, independentemente de sua história anterior. os conceitos mesmos, veiculados pela linguagem, que mergu-
Ora, como as necessidades da análise impõem um estudo pri- lham sua raiz num passado indefinidamente afastado ou que
meiramente separado dos diferentes aspectos da sociedade, não resultam de diferenciações a partir de conceitos elementares.
Mas, quando se trata de passar da história ao valor atual das
podemos conhecer antecipadamente a importância dessas in-
noções, surge uma dificuldade geral, que Durkheim perce-
terferências, e forçosamente devemos distinguir sistematica- beu bem, mas não soube evitá-la sempre: a sociogênese da:.
estruturas não explica suas funções ulteriores, porque, inte-
6 Por ex., sans doute terminou por significar avec doute; Puis-
grando-se em totalidades novas, estas estruturas podem mu-
que derivado de puis (sucessão temporal) exprime uma relação intemporal dar de significação. Em outras palavras, se a estrutura de um
de razão com conseqüência lógica, etc. conceito depende de sua história anterior, seu valor depende
48 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 49

de sua pos1çao funcional na totalidade da qual faz parte em ria, porque cada uma de suas "classes" se acha singularmente
dado momento, e é somente no caso em que a história con- heterogênea, como se tivesse posto todos os elementos indis-
siste numa sucessão de totalidades orientadas para um equilí- pensáveis para manter a constância do conjunto, apesar das
brio crescente , que a gênese determina o valor atual das no- variações do detalhe. A única forma de evitar tal defeito seria
ções. 7 Bom exemplo é o da proibição do incesto que Durk - procurar, o que Pareto não fez, os parentescos genéticos reais
heim remonta à exogamia totêmica: tal interpretação, que entre as tendências afetivas ou intelectuais, reunidas numa
aceitamos a título de hipótese, suscita imediatamente a ques- mesma categoria, o que suporia todo um trabalho histórico,
tão de saber por que, entre os inumeráveis tabus totêmicos, como o do método durkheimiano, em relação às normas, e
somente este é conservado ao contrário de muitos outros , in- às representações coletivas, ou do método marxista, em rela-
teiramente negligenciados pelas sociedades saídas do clã pri- ção às necessidades elementares e técnicas.
mitivo ; é, evidentemente, que os outros tabus perderam toda
significação funcional, enquanto a proibição do incesto guar- Percebemos assim que a dificuldade essencial inerente a
da um valor em nossas sociedades devido a fatores atuais (ou toda teoria sociológica consiste em conciliar a explicação dia-
ainda atuais), tais como os que são evidenciados pela psicolo- crônica dos fenômenos, quer dizer, a de sua gênese e seu
gia freudiana.
desenvolvimento, com a explicação sincrônica, quer dizer, a
É este aspecto sincrônico das interações sociais que Pa-
do equilíbrio. As duas espécies de explicações são necessárias
reto estudou particularmente. Toda sua teoria do equilíbrio
social repousa sobre a noção da interdependência dos fatores -umas às outras, pois uma não basta para perceber os meca-
num momento dado da história de uma sociedade, e sobre nismos próprios ao campo da outra, mas tudo parece indicar
a constância das leis de equilíbrio independentemente da his - que mesmo sua unificação depois permanece penosa; é o que
tória das sociedades particulares. A sociedade seria assim com- constitui o interesse geral do problema, independentemente
parável a um sistema de forças em interação mecânica, estas das teorias particulares examinadas até aqui. Trata-se, pois,
forças sendo constituídas não por normas, pelas representações
coletivas, etc., mas por uma realidade subjacente (hipótese ins- de procurar compreender as razões deste dualismo entre as
pirada pela de superestrutura marxista): os "resíduos" ou in- explicações da gênese e a do equilíbrio, sem nos imiscuirmos,
teresses constantes, análogos aos instintos que estão no ponto bem entendido, nos debates da própria sociologia, e permane-
de saída das organizações sociais animais. Ora, tendo repar- cendo no terreno exclusivo das estruturas de conhecimento
tido os resíduos em seis grandes "classes", e cada classe em como tais , utilizadas pelos sociólogos.
"gêneros" particulares, Pareto se sujeita a mostrar que, se os
gêneros variam durante as etapas do desenvolvimento social, Ora, estas razões são em número de duas. A primeira se
estas variações se compensam de tal forma, que "as classes" refere ao conteúdo mesmo do pensamento sociológico, quer
permanecem elas mesmas constantes (exceto de um nível ou dizer, à natureza dessa totalidade social não integralmente
de uma classe a outra da pirâmide social, em cada etapa composta (porque participante do fortuito e da desordem) à
considerada da história). Mas é evidente que esta lei da cons-
tância dos resíduos no tempo é inteiramente relativa à classi- qual a explicação sociológica deve-se adaptar. A segunda se
ficação adotada: podemos sempre nos arranjarmos para cons- refere à estrutura formal deste mesmo pensamento: enquanto
truir uma classificação tal que os "gêneros" se compensem a explicação da gênese é tanto mais causal quanto se refere
deix ando invariantes as "classes", com a condição de escolher às ações efetivas de onde proc edem os fatos sociais, as rela-
arbitrariamente os elementos destas últimas, de maneira a ções entre a história e o equilíbrio supõem uma análise dis-
estarem asseguradas das compensações necessárias. Ora, a clas-
sificação de Pareto permanece precis amente bastante arbitrá- tinta das regras, dos valores e dos sinais, que dependem do
campo das implic ações; um equilíbrio acabado acarretaria mes-
mo sua unificação sob a forma de subordinação do conjunto
7 O que é o caso na psicogênese individual.
50 ESTUDOS SOCIOLóGlCOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 51

dos sinais e dos valores à necessidade normativa, o que con- Comte ou Spencer, foram consideradas como abarcando a tota,
duziria, pois, a uma explicação essencialmente implicadora des- !idade dos fatos sociais. Mas tais tentativas foram consideradas
te equilíbrio. É esta passagem do caudal ao implicativo que muito inconsistentes, por um lado devido à indefinição das
constitui, assim, a segunda razão das dificuldades inerentes às noções empregadas (os três estados, a passagem do homogêneo
explicações sociológicas. Examinemos agora estas duas razões ao heterogêneo, a integração crescente, etc.), por outro lado,
uma a uma. em razão de seu otimismo um pouco desconcertante. A con-
Se a totalidade social constituía um sistema integralmente cepção marxista de um encadeamento dos fatos econômicos
composto, por composição lógica das interações em jogo, sem orientado para um estado estável de equilíbrio final evidencia
intervenção da associação fortuita ou da desordem, é evidente em compensação a existência das lutas e das oposições con-
que seu desenvolvimento histórico explicaria o conjunto de tínuas, e volta então a conceber a história como uma sucessão
suas ligações presentes, isto é as relações diacrônicas determi- de desequilíbrios mais ou menos profundos, precedendo uma
nariam todas as relações sincrônicas de seus elementos. Entre- equilibração ulterior: neste caso há previsão de conjunto, mas
tanto, pelo contrário, em vez de intervir uma associação nas imprevisibilidade do detalhe devido à desordem mesma que
interações, a história de uma totalidade não determina a si- as interações componentes testemunham, o que significa afir-
tuação dos elementos em relação ao equilíbrio atual: cada mar a heterogeneidade atual do sincrônico e do diacrônico.
estado particular constitui uma totalidade estatística nova, Mas o problema do diacrônico ou do sincrônico deve-se
não podendo ser deduzida no detalhe das totalidades esta- principalmente à estrutura mesma da explicação sociológica,
tísticas presentes. Não é que se trate de prever a forma de segundo sua oscilação, como a explicação sociológica, entre a
equilíbrio do conjunto do sistema, independentemente do de- causalidade e a implicação. Regras, valores e sinais procedem,
talhe das relações entre elementos, e ainda no caso de uma com efeito, todos os três da ação mesma, executada em co-
evolução extremamente provável (como a evolução da en- mum e dirigida sobre a natureza, mas todos os três ocasionam
tropia em física), que a história de um sistema estatístico (as- relações que ultrapassam esta causalidade e constituem im-
sociação) determina as formas ulteriores de equilíbrio, a uma plicações. Ora, é evidente que uma relação de causalidade é
reserva próxima, aliás, quanto às flutuações sempre possíveis. diacrônica, pois está ligada a uma sucessão no tempo, enquan-
Mas num sistema que não consiste nem numa composição adi- to um laço de implicação é sincrônico, já que consiste numa
tiva ou lógica, nem numa pura associação e oscilando simples- relação necessária e extemporânea. A síntese do diacrônico e
mente entre esses dois tipos (como a história da língua) o do sincrônico dependerá então da correspondência entre os
fortuito exclui a passagem unívoca do diacrônico ao sincrô- elementos de causalidade e de implicação em jogo na expli-
nico no que concerne ao detalhe das relações. cação dos diferentes tipos de regras, de valores e de sinais
Baseada neste primeiro ponto de vista, a condição neces- intervindo no âmago da vida social.
sária de uma síntese do diacrônico e do sincrônico seria que Ora, está claro que estas três espécies de interações
o conjunto dos fatos sociais estivesse submetido às leis de uma apresentam precisamente significações muito diferentes neste
evolução dirigida, isto é, que consistam numa equilibração ponto de vista. A característica das regras é acarretar uma
gradual, como na sucessão dos estágios do desenvolvimento conservação no tempo, e, em caso de modificações, uma regu-
individual. Foi o que os construtores dessas grandes "leis de lação obrigatória da transformação ela mesma. Uma regra
evoluções" quiseram atingir, sendo que, assim como as de comporta, pois, um aspecto causal, ligado às ações das quais
. ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA .H

procede e à coação que exerce, assim como um aspecto implica- pode ser atribuída à totalidade social como tal, concebida como
tivo, ligado à obrigação consciente que a caracteriza . A evo- causa única ou como centro criador de todas essas normas,
lução de um sistema de puras regras tende, pois, por si mes- valores e expressões simbólicas, ao indivíduo mesmo ou ainda
mo, para um estado de equilíbrio, e à medida que as trans- às interações possíveis entre os indivíduos.
formações são elas mesmas reguladas, o equilíbrio só pode
aumentar durante esta evolução: há pois convergência entre Três exemplos nos mostrarão esta necessidade, para a ex-
os fatores diacrônicos e sincrônicos. A situação dos valores não- plicação sociológica, de ligar as conecções causais aos sistemas
normativos é, em compensação, muito diferente. Procedendo de implicações, recorrendo às totalidades mesmas, aos indiví -
igualmente da ação (necessidades, trabalho realizado, etc.), duos e às interações: nós os tomaremos emprestado a Durk-
os valores, quando não são regulados, dependem do sistema das heim, Pareto e a Marx, isto é, a três tipos de pensamento
científico tão diferentes quanto é possível de encontrar.
trocas e de suas flutuações: eles exprimem assim, de maneira
O modelo durkheimiano de explicaç ão está ao mesmo tem -
particular, os processos de equilíbrio e marcam ao máximo po centrado sobre as normas e sobre a totalidade mesma. Por
a disjunção entre o sincrônico e o diacrônico, como testemu- um lado, toda causalidade social se reduz à "coação", que é
nham as desvalorizações ou revalorizações bruscas, cujos exem- a pressão da totalidade do grupo sobre os indivíduos que a
plos são abundantes na vida econômica e na vida política. É compõem. Por outro lado, todas as implicações inerentes à
porque a história de um valor não-normativo não poderia de- "consciência coletiva" (ou conjunto das representações engen-
dradas pela vida social) se reduzem a relações entre normas,
terminar sua situação atual, enquanto a história de uma nor- os valores mesmos não constituindo senão o conteúdo ou o
ma determina muito melhor seu caráter obrigatório atual complemento indissociável destas normas (como o bem moral
quando ela faz parte de um sistema mais regulado. Final- em relação ao dever, ou o valor econômico em relação à pres-
mente, o sistema dos sinais requer ao mesmo tempo as expli- são das instituições de troca, etc.). Enfim, a causalidade ine-
cações diacrônicas e sincrônicas, ambos sendo necessárias e se rente ao todo social e o sistema das implicações da consciên-
cia coletiva não formam senão um todo, pois a coação social
completando, neste domínio, mas sem poder fundir-se entre si é uma força ou uma causa vista objetivamente na sua mate-
como no domínio das normas ou das regras. rialidade, e é simultaneamente obrigação e atração, isto é, nor-
Se o que procede é exato, compreende-se então que a di- ma e valor, visto subjetivamente em sua repercussão sobre as
versidade das explicações sociológicas seja maior ainda que a consciências. Assim, a explicação durkheimiana é ao mesmo
tempo causal e implicadora (duplo caráter, comum a todas
das explicações psicológicas. É bom lembrar que estas últimas as explicações sociológicas), mas sua originalidade consiste
oscilam entre a causalidade e a implicação, segundo se apro- em que tudo é dado de um bloco, sem gradação entre etapas
ximem do tipo organicista ou do tipo lógico, a explicação inferiores, onde a causalidade venceria sobre a implicação, e
operatória procurando assegurar a passagem entre a ação e a etapas superiores onde a relação seria invertida; ela consiste,
necessidade consciente. Ora, acontece o mesmo com as ex- ademais, em que este bloco está atribuído à totalidade social
mesma, sem análise das interações particulares e concretas. Se
plicações sociológicas, que oscilam entre o recurso aos fatores entrarmos no detalhe, um exemplo escolhido entre cem é
materiais (população, meio geográfico e produção econômica) particularmente marcante em relação a esses diversos pontos
e o recurso à "consciência coletiva" com, entre outras, a ex- de vista: é o da explicação por meio da qual Durkheim per-
plicação operatória ligando as interações implicadoras às ações cebe a divisão do trabalho pelo aumento do volume e de den-
mesmas em sua causalidade; mas acrescenta -se a esta compli- sid ade das sociedades segmentárias, cujas separações seriam
rompidas devido a esse fato em proveito de unidades mais
cação, em relação à psicologia, que cada uma destas variedades
vastas; a diferenciação individual e a concorrência acarreta -
ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 55

riam então a divisão do trabalho econômico e a solidariedade reduzidas a espécies de tendências instintivas que se manifestam
"orgânica". Constata-se então que esta explicação, exclusiva- na consciência dos indivíduos sob a forma de sentimentos e
mente causal em aparência, pois recorrente a um fator demo- mesmo de idéias (as "derivações"), quer dizer de implicações
gráfico, faz na realidade intervir relações de implicações tan- de todo gênero. É verdade que as formas superiores de im-
to quanto causalidade: se a ruptura das separações entre clãs plicações, isto é, as normas morais e jurídicas e as represen-
e a concentração social alcançassem a liberação dos indivíduos, tações coletivas de todos os gêneros, não desempenham nenhum
etc., seria, com efeito, parque certas formas de obrigação e papel, segundo Pareto, no equilíbrio social, a não ser a título
certos valores (ligados ao respeito dos antigos, às tradições, de veículos dos sentimentos elementares assim reforçados por
etc.) são modificados sob a influência do volume das novas elas: em analogia com a distinção marxista da infra-estrutura
trocas interpsíquicas, isto é, são diferenciados em outros va- e da superestrutura , Pareto considera, com efeito , as ideologias
lores e outras obrigações: por outro lado, o papel destas nor- (nas quais coloca todo o normativo), como simples reflexo
mas e dos valores, quer dizer, das relações implicativas mes- dos interesses reais, reflexo constituindo em seu sistema as
mas, é essencial desde o começo, segundo a hipótese durkhei- "derivações" por oposição aos "resíduos", que seriam a infra-
miana, pais emanariam todas em definitivo (com ou sem estrutura. Somente, mesmo adotando as hipóteses de Pareto ,
difer~~ci~ção) d~ sentimento do sagrado ligado à exaltação da esses resíduos só agem como tendências afetivas ou de interesses
consc1encia coletiva. É mesmo este papel exagerado atribuído permanentes , isto é, que representam não somente causas mas
à c~nsciência col_eti~a, às custas dos fatore_s econômicos de pro- ainda e essencialmente valores, o que nos leva a um sistema
duçao, que constitui o panto fraco da explicação durkheimiana: de implicações. Ainda mais, a fraqueza do esqu ema de Par eto
se os efeitos da densidade social sobre a liberação dos indi- resulta do que ele considera esses resíduos como const ant es,
v~duos são evidentes em certas situações (p. ex., nas grandes a título de tendências instintivas próprias aos indivíduos: tanto
cidades comparadas com as pequenas cidades ou nas cidades a lógica (da qual não se duvida que possa constituir um
de um mesmo país), não basta que eles percebam somente a produto social), quanto os resíduos são assim dados antecipa-
dife~encia~ão m_ental. e, econômica, como mostraram os gran- damente , enquanto uma análise psicológica e principalm ente
des impérios orientais a papulação ao mesmo tempo tão den- socioló gica m ais avançada teria convencido de que se tr ata
sa. e tão pouco diferenciada; o papel da causalidade econô- aí de normas e valores resultantes das interações mesm as e
':ruca ~ã~ P?derá, poi~, ser negligenciado. De forma geral, a n ão se limitam a condicioná-las. Assim, em P areto como em
mcons1stencia das explicações durkheimianas reside just amente Durkheim, mesmo que sejam antípodas um em relaç ão ao
em que ela situa desde o começo as normas, os valores e as outro, as dificuldad es do sistema provêm do fato de que as
causas materiais num mesmo plano, fundament ando -os numa causas e as implica ções são dadas desd e a partida numa pro-
po rção constante , uma no todo social (a opress ão), e a outra
única totalidade indiferenciada de natureza estatística, em vez nos indivíduos , a análise das interações sendo por isso mesmo
de proceder a uma análise de diversos tipos de intera ções, que
falsa, de uma parte e de outr a, por falta de lh e atribuir uma
podem ser hetero gên eas e apresent ar rel ações vari áveis entre
re alidade construtiva.
seus elementos de causalidade e seus elementos de implicação.
Um segundo exemplo de explica ção sociológica é o do Com o modelo explicativo de Karl M ar x, encontramos
esquema de Par eto, que apela precisamente para as interações, em compensaç ão o exemplo de uma análise diri gida sobre as
mas com uma tendência a considerar como inato no indivíduo int eraçõ es como tais, e do sando de maneira distinta os elemen-
o que poderia ser concebido como o resultado mesmo destas tos de causalidade e de implicação segundo seus diferentes ti-
interações; a lógica, por um lado, e as constânci as afetivas ou pos. O ponto de partida da explicaç ão marxista é causal : são
"resíduos", por outro lado (do qual seria necessário, aliás, os fa tores de produção enqu anto intera ção estreita entre o
que se provasse a constância). A primeira abordagem, a expli- tra balho humano e a naturez a, que determinam as primeiras
caçã o de Pareto parece essencialmente causal: o equilíbrio form as do grupo social. Mas , desde este ponto de partid a, um
social está assimilado nela a um equilíbrio mecânico, isto é, elemento de implicação aparece, pois valores elementares são
a uma composição de forças. Mas estas forças mesmas são ligados ao trabalho e um sistema de valores é um sistema
56 ESTUDOS SOCIOLÓGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 57

implicativo; e já que o trabalho é uma ação e que a eficá- implicação nos diversos tipos de interação que ela distingue . O
cia das ações cumpridas em comum determina um elemento problema epistemológico é então apreender como a causalidade
normativo. Desde o princípio, o modelo marxista se coloca, e a implicação se reúnem uma à outra, segundo as estruturas
pois, sobre um terreno da explicação operatória, a conduta do
homem em sociedade determinando sua representação e não características dos níveis de interações sociais. A questão im-
o inverso , e a implicação se desenvolvendo pouco a pouco de porta, tanto do ponto de vista da análise da explicação so-
um sistema causal preliminar que ela duplica em parte, mas ciológica, quanto do ponto de vista das aplicações da sociolo-
não substitui. Com a diferenciação da sociedade em classes e gia à epistemologia genética. No desenvolvimento mental in-
com as diversas relações de cooperação (no interior de uma dividual, que é uma equilibração progressiva e não acarreta,
classe) ou de luta e coação, as normas, valores e sinais (inclu-
pois, dualidade essencial entre os fatores diacrônicos e sincrô-
sive as ideologias) dão lugar a superestruturas diversas. Ora,
poder-se-ia estar tentado a interpretar o modelo marxista como nicos, a passagem da causalidade para a implicação se efetua
uma desvalorização de todos estes elementos de implicações, segundo três etapas fundamentais marcadas por proporções dis-
por oposição à causalidade que caracteriza a infra-estrutura. tintas, entre as duas espécies de relações: os ritmos, as regu-
Mas basta considerar a maneira pela qual Marx interpreta o lações e os agrupamentos. Acontece o mesmo em sociologia?
equilíbrio social, atingido segundo ele quando se instaurará o
o socialismo, para constatar o papel que ele faz desempenha-
rem as normas morais (absorvendo então as regras jurídicas § 4. A EXPLICAÇÃO EM B. RITMOS, REGULA-
SOCIOLOGIA.
e o Estado mesmo) e racionais (a ciência absorvendo por sua ÇÕES E AGRUPAMENTOS. - Encontra-se, de fato, na análise das
vez as ideologias metafísicas), assim como os valores cultu-
formas de equilíbrio social estas três estruturas. A diferença
rais em geral, e para apreender o papel crescente que atribui
às implicações conscientes nas interações: tornadas possíveis com o desenvolvimento individual é entretanto a seguinte: a
por um mecanismo causal e econômico subordinado a tais fins, evolução social não consistindo numa equilibração regular, a
as normas e os valores constituiriam, num estado de equilí - sucessão dessas estruturas não aparece como necessária, exceto
brio, um sistema de implicações liberado da causalidade eco- precisamente no único domínio onde uma evolução dirigida
nômica e não mais falsificado por ela.
é possível: o das normas racionais.
Assim como o ritmo marca, em psicologia, a fronteira do
Constata-se, assim, que três modelos explicativos tão mental e do fisiológico, também os campos-limites entre os
diferentes quanto os de Durkheim, de Pareto e de Marx al- fatos materiais que interessam à sociedade e as condutas so-
cançam uns como os outros, simultaneamente, uma parte da ciais são a sede e a ocasião da constituição de ritmos sociais
causalidade e da implicação na explicação sociológica. O pro-
elementares (em oposição às regulações a alternâncias mais
blema epistemológico que suscita tal fato é essencial e vai de
ou menos regulares, cuja periodicidade caracteriza espécies de
encontro ao que dizíamos, acima, do diacrônico e do sincrônico.
Se a explicação diacrônica é principalmente causal e a expli- ritmos, mas secundárias). É assim que a atividade econômica
cação sincrônica principalmente implicativa, não é surpreen- sob a forma mais simples (caça e pesca, depois agricultura)
dente que Durkheim e Pareto, cujas doutrinas absorvem o está ligada aos ritmos naturais das estações e do crescimento
sincrônico no diacrônico ou inversamente, fundam num só todo dos animais e vegetais. Estes ritmos naturais incorporados ao
a causalidade, por um lado, e as implicações normativas ou ritmo de produção, em virtude da interação do trabalho e da
axiológicas, por outro lado; a explicação marxista, pelo contrá- natureza, estão assim no ponto de partida de uma multidão
rio, que dissocia muito mais o sincrônico do diacrônico, dife- de ritmos propriamente sociais: alternância dos trabalhos, mi-
rencia igualmente as partes respectivas da causalidade e da grações de estações, festas fixadas pelo calendário, etc. Saídos
58 ESTUDOS SOCIOLOGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 59

do plano técnico, estes ritmos afetam até as representações co- da troca pode ser representado da seguinte maneira: cada
letivas originais, no seio das quais M. Mauss e M. Granet ação de x sobre x' constitui um "serviço", isto é, um valor
em particular as analisaram sagazmente. r (x) sacrificado por x (tempo, trabalho, objetos ou idéias, etc.)
que alcança uma satisfação (positiva ou negativa) de x' seja
Um ritmo sociológico particularmente importante, perpe- s (x'); inversamente x' sacrifica os valores r (x') agindo sobre
tuando.se nos confins do biológico e do social é o constituído
x, que experimenta a satisfação s (x). Mas estes valores reais
pela sucessão das gerações. Cada geração nova dá lugar por
sua vez ao mesmo processo educativo, imanente das pressões que consistem em serviços ou satisfações atuais não são os únicos
da geração precedente e criadora das normas e valores para a em jogo numa troca qualquer, porque a ação r (x) de x so-
geração seguinte; esta sucessão periódica constitui, pois, ao mes- bre x' pode não ser (ou não imediatamente) seguida de uma
mo tempo um perpétuo recomeço e um instrumento essencial ação de volta r (x). Resulta daí a intervenção de duas espécies
de transmissão reunindo por recorrência as sociedades mais
de valores virtuais: x' tendo experimentado a satisfação s (x')
evoluídas às mais primitivas. A importância de tal ritmo res-
sªlta entre outras das seguintes considerações: pode.se estar contrai uma dívida t (x') em favor de x, enquanto esta mesma
seguro de que se tal ritmo estava modificado suficientemente, dívida constitui um crédito v (x) para x (ou inversamente há
no sentido em que as gerações se sucedem muito mais rapi· uma dívida t (x) de x, em relação a x' e crédito v (x' ) em favor
damente ou muito mais lentamente, a sociedade inteira estaria de x') . Estes valores virtuais são de uma importância total-
profund amente transform ad a ; basta assim imaginar uma socie-
mente geral: os valores t (x) ou t (x') podem tomar a forma
dade onde quase todos os indivíduos seriam contemporâneos ,
tendo sofrido pouco as coações familiares e escolares da ge- da gratidão e do reconhecimento (em todos os sentidos do
ração precedente e só exercendo-as pouco sobre a geração termo), que obrigam, em graus diversos, o indivíduo (no sen-
seguinte para entr ever o que poderiam ser estas transforma- tido em que nos dizemos o "agrad ecido" d e algu ém), assim
ções, notadamente do ponto de vista da diminuição de influ. como o da dívida econômica; por outro lado, os valores v (x)
ência das tradições "sagradas" , etc.
ou v (x') exprimem o sucesso, a autoridade, o crédito moral,
Mas desde qu e se saia d as zonas de junção entre a
natureza física ou biológica e o fato social para seguir os adquiridos graças às açõ es (r), assim como o crédito econô-
processos próprios a este último, o ritmo dá lugar a regulações mico. Mesmo em caso de troca imediatamente re al, r (x) con-
nascidas da interferência de diversas espécies de ritmos e, con- tra r (x') e s (x') contra s (x), os serviços ou satisfa ções atu ais
seqüentemente, de sua transforma ção em estruturas mais com-
podem-se prolongar em valores virtuais de reconhecimento de
plexas . São estas regul ações, em oposição aos agrupam entos
de que falaremos mais tarde, que estruturam a maior parte das forma t e v, ou dat1. vez sob a mesma forma t ou v, à antecipa-
intera ções de troca assim como a maior parte das coações do ção de futuros valores reais, isto é, de novos serviços ou sa-
pa ssado sobre o pres ente. Elas intervêm pois , por um lado tisfações. O equilíbrio da troca é determin ado pel as condições
preponderante, nas totalidades estatísticas, à base de associa-
ção, da qu al fal amos no § 2. Convém assim, para discernir os de igualdade r (x) = s (x') = t (x') = v (x) = r (x') = s (x) =
diversos tipos de re gulações , examinar à parte o mecanismo t (x) = v (x'). Mas está claro que tal equilíbrio é raramente
de troca e o de coação. atingido: todas as desigualdades r (x) :2:: s (x'); :2:: t (x');
t (x') :ê: v (x), etc. , são pelo contrário possív eis s segundo des-
Uma troca qualquer, entre dois indivíduos x e x', já é valorizarmos ou sup erestimarmos os serviços prestados, segun -
por si só (e independentemente da questão de saber se tal
troca é genericamente primitiva ou não), fonte de regula-
8 Ver artigo citado acima sobre a "Teoria dos valor es qualitativos
ções fáceis de discernir. Sob a forma mais geral, o esquema
em sociologia estática".
60 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 61

do esquecermos ou exagerarmos ao alcance da memória, se- tecipados, e isto mostra bem o papel das regulações no que
gundo traduzirmos estas lembranças numa estimação mais ou pode parecer a simples leitura de uma necessidade ou de um
menos ampla do parceiro, etc. Ora, enquanto não há conser- interesse imediato. A importância dos valores virtuais é par-
vação obrigada de tais valores de troca (obrigada por regras ticularmente clara no mecanismo das crises devidas à super-
produção. Enquanto os fracos desvios entre a produção e o
morais ou jurídicas), elas só são objeto de simples regulações, consumo dão vez a fracas oscilações em torno do ponto de
isto é, de avaliações intuitivas oscilando em torno do equi- equilíbrio entre estes dois processos, os grandes desvios que oca-
líbrio sem atingi-lo, e só conhecendo uma conservação apro- sionam as crises periódicas provocam, pelo contrário, um des-
ximativa. Ainda mais cada novo contexto alcançará um des- locamento de equilíbrio: ora, estas pequenas oscilações são
locamento do equilíbrio momentaneamente atingido, dando devidas às correções espontâneas da coletividade econômica
reagindo contra seus próprios erros de previsão, o que cons-
lugar, não a composições lógicas dos valores novos com os titui, pois, um jogo completo de regulações (com antecipação,
antigos, mas a compensações aproximadas, de natureza nova- depois correção); as grandes oscilações mostram, pelo contrá-
mente reguladora. Se passarmos, agora, de uma relação entre rio, o fracasso destas regulações de detalhe, donde a crise e
dois indivíduos a um sistema de relações interferindo entre o deslocamento de equilíbrio, mas também a reconstituição
eles, tais como o sistema das inumeráveis avaliações da qual de um novo equilíbrio momentâneo por reações compensado-
ras, isto é, de novo por regulação (mas de conjunto). Cons-
resulta o sucesso ou a reputação de um indivíduo no grupo tata-se, assim, no caso de crises periódicas, como um jogo em-
social, constata-se imediatamente que a relação entre um indi- baralhado de regulações pode retomar a marcha de um ritmo,
víduo x e uma coletividade B ou X, etc. nada tem de uma porém mais complexo e menos regular que os ritmos elementa-
composição aditiva, mas constitui uma associação; e que esta res de que se tratou acima. 9
associação de interações, donde cada uma já está por si mesmo
submetida a regulações (e não a operações reversíveis) constitui O caráter geral das regulações, intervindo nas interações
um sistema de conjunto do tipo das totalidades estatísticas, de troca tanto entre dois quanto entre um número crescente
isto é, tais que o todo não é a soma algébrica das relações de indivíduos, até à coletividade inteira, é pois alcançar
isoladas, mas simples composto provável. compensações parciais, mas sem reversibilidade inteira e,
conseqüentemente, com deslocamentos lentos ou bruscos de
equilíbrio. É somente no caso dos valores tornados normativos
São estas regulações de conjunto que encontramos nas flu-
por um sistema de regras e no caso destas normas mesmas,
tuações dos valores econômicos num regime liberal, indepen -
dentemente mesmo dos fatores objetivos referentes à produ- que a composição ultrapassa o nível das simples regulações
ção, à abundância ou à raridade das matérias-primas e à cir- e atinge a reversibilidade completa e o equilíbrio permanente
culação; quando elas não são submetidas a um sistema de nor- próprios aos agrupamentos operatórios. Mas todo sistema de
mas dos valores econômicos, tais como os preços que resultam normas não alcança, devido a seu caráter normativo, este ní-
de um equilíbrio estatístico entre oferta e procura, só são a
vel do agrupamento reversível, porque existem sistemas de
expressão de um jogo de regulações análogas às que o me-
canismo espontâneo dos interesses testemunha em qualquer interações seminormativas que permanecem no ponto de re-
interação de troca não-econômica. É fácil mostrar que a troca gulações: mais precisamente, as compensações parciais que de-
econômica elementar constitui um caso particular da forma finem a regulação se estendendo até o limite inferior das es-
geral descrita agora: aquele onde só intervêm os valores reais
(r e_ s no simbolismo adotado); mas tanto a avaliação dos
serviços quanto a das satisfações (ophélimité de Pareto, etc.), 9 Ver, para as regulações econômicas , os trabalhos de Eo. e G. GuIL·
dependem elas mesmas dos valores virtuais anteriores ou an- LAUME sobre "economia racional".
62
ESTUDOS SOCIOLóGICOS A. EXPUCA.ÇÃO EM SOCIOLOGIA. 6)

truturas com reversibilidade inteira, e somente os sistemas de


ticularmente simples, o mecanismo das regras morais ou inte-
regras acabadas, compostas logicamente, atingem a qualidade lectuais, permanecendo a meio caminho da regulação e da
de agrupamentos operatórios. Tal fato implica, pois, a existên- composição inteiramente normativa. Com efeito, na medida
cia de uma série de intermediários entre as duas estruturas. em que as verdades éticas ou racionais, mesmo quando con-
vergem em seu conteúdo com as normas admitidas pela elite
. ~- assi~, . em particular, que as pressões exercidas pela
moral ou científica da sociedade considerada neste momento
opmiao publica ou que as coações políticas alcançam a for-
de sua história, @ impQstas ~or uma coa ão educativa fami-
mação de imperativos que ultrapassam a simples valorização
espontânea e atingem caráter normativo em diversos graus: liar ou escolar:.em vez de serem revividas ou redescobertas
sob o efeito de livre colaboração, elas mudam ipso facto
elas ressaltam em parte interesses que intervêm nas trocas, mas
de característica, subordinando-se a um fator de obediência
impõem, por outr? lado, todas as espécies de regras se espa-
ou de autoridade que depende da regulação e não mais da
lhando entre os simples usos e as coações de caráter moral
composição lógica: a obediência moral, tal como é observada
e intelectual; mas só se trata então de uma moral exterior
numa família patriarcal, ou numa família conjugal mo.
e legalista e de uma racionalidade mais próxima daquela da
derna, durante os primeiros anos de vida das crianças, e a
razão de Estado do que a da razão somente. A opinião pú-
blica, da qual Durkheim disse sempre estar em atraso sobre autoridade intelectual da tradição ou do mestre, tal como se
as correntes profundas que atravessam a sociedade, constitui, perpetuou sem descontinuidade da "iniciação" praticada nas
pois, modelo de totalidade ao mesmo tempo estatística, como tribos "primitivas", até a vida escolar contemporânea (pelo
laço de interferências múltiplas e desordenadas, e entretanto menos nas escolas não ainda transformadas pelos métodos dito
em parte normativa enquanto domina os indivíduos de di- "ativos"), apelam efetivamente para um fator comum de trans-
versas maneiras: está, pois, claro, observando-se seu caráter missão, que é o respeito unilateral. Ora, tal sentimento, subor-
simp:esmente probabilista e relativamente pouco ordenado (por dinando o bem e o verdadeiro à obrigação de seguir um mo-
oposição aos sistemas intelectuais, morais e jurídicos bem estru- delo, não alcança senão um sistema de regulações e não de
turados), que ela depende de simples regulações e não de um operações. A questão de obediência se reduz, com efeito, sem-
agrupamento operatório. Quanto à coação política, acontece pre, em última análise, a esta alternativa; raciocinamos por
o mesmo na medida em que os interesses e o cálculo interfe- obediência ou obedecemos pela razão? No primeiro caso, a obe-
r~m com as normas, e onde estas são impostas por pressões diência prevalece sobre a razão e só constitui então norma
~1versas, em vez de conquistar os espíritos por sua necessidade
1~terna somente: donde a existência de compromissos, que cons-
incompleta, de natureza reguladora e não:~pe~·atória. ~º. S;·
gundo caso, a razão prevalece sobre a obed1encia, até ehmma-
tituem a forma consciente ou intencional da regulação, por
oposição à operação lógica ou moral. la sob sua forma de submissão espiritual, e o sistema é en-
tão inteiramente normativo, a norma de subordinação unila-
teral resultante de uma delegação da norma racional.
Deve-se dizer exatamente o mesmo de um conjunto de
Tal conflito é particularmente claro no problema das
outras variedades de coações, das quais não se poderia exa-
normas jurídicas. Problema muito curioso, porque, se é evi-
gerar a importância histórica ou atual, sobre a formação das
dente que, em sua forma, um sistema de regras jurídicas cons-
normas coletivas, mas cujo funcionamento não ultrapassa em
titui o modelo de um conjunto de interações sociais, adqui-
geral o nível da regulação, apesar das aparências de composi-
rindo a estrutura do agrupamento operatório, é não menos
ção racional. São as coações imanentes das subcoletividades
evidente que em seu conteúdo, um sistema de leis pode jus-
que dispõem cada uma de seus meios específicos de pressão: tificar tudo e legitimar até os piores abusos, conferindo-lhes
classes sociais, igrejas, família e escola. Retornaremos no § 5
forma legal: em seu conteúdo, conseqüentemente, o agrupa-
às ideologias de classes, que provocam todo o problema das
mento das normas jurídicas poderá indiferentemente validar,
relações entre a infra-estrutura e a superestrutura. As coações
seja um conjunto de comportamentos mesmo normativos, aliás
familiares e escolares ilustram, em compensação, de forma par-
(morais, racionais, etc.), seja as interações que acabamos de
64 ESTUDOS SOCIOLóGICOS ..i EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 65

constatar que permaneciam no nível da regulação. Mas este reciprocidade direta das ações, em oposição às coações enu-
problema n ão é especial ao direito e parece resultar da dis- meradas acima. 10
tinção mesma entre as formas e seu conteúdo, a qual marca
a chegada da estrutura operatória, em oposição às estruturas Voltando ao problema suscitado pelo agrupamento das re-
regulador as cuj a forma e conteúdo permanecem indissociáveis: gras jurídicas, compreende-se então o paradoxo do dualismo
no domínio das regra~ lógicas, igualmente, pode -se encontrar entre suas formas e seus conteúdos. Em sua forma, um siste-
em pr esen ça de um sistema de proposições formalmente cor- ma de leis constitui seguramente o modelo de um conjunto
reto , mas falso em seu conteúdo, porque repousando sobre de interações sociais agrupadas entre si por composição adi-
pr emi ssas errôneas. Para classificar as normas jurídicas no qua- tiva e lógica. Um conjunto de regras de direito constitui, com
dro d as formas de equilíbrio escalonadas entre o ritmo a efeito, uma estrutura tal que cada indivíduo pertencente ao
grupo social visto se encontra reunido a cada um dos outros
regulação e o agrupamento, importa situar preliminarme~te
por um sistema bem definido de obrigações e de direitos, sem
os sistemas de regras lógicas e morais. que intervenha nada mais, no seio deste sistema , senão a soma
As interações intelectuais constituem sem dúvida, com efei- lógica de tais relações encaixadas. Isto não significa, como
to, o exemplo mais instrutivo do ponto de vista da passagem insistimos no § 2, que tal totalidade consiste na simples reunião
?ªs r:gulações para_ os agr1:1pamentos operatórios. Enquanto dos indivíduos que a compõem, como se esses indivíduos pos-
mtervem na construçao dos sistemas de representações coletivas, suíssem de antemão os direitos, ou estivessem unidos anteci-
os elementos de opressão devidos à tradição, à opinião, ao po- padamente pelas obrigações intervindo no sistema anterior-
der, à classe social, etc., o pensamento está submetido a um mente à construção deste (como pensam os teóricos cio direito
jogo de valores e de obrigações que ele mesmo não engen- natural). Isto também não significa que uma relação dada,
dra, o que significa que ele não consiste então num sistema extraída do sistema , poderia existir assim, fora deste sistema,
?e ~ormas autôno~as:. sua heteronomia lhe basta, pois, para mas isto significa que o sistema das relações, sendo dado como
md1car sua dependenc1a em relação a regulações precedente- totalidade, esse todo pode ser decomposto em relações elemen-
mente examinadas. Mais precisamente, um modo coletivo de tares, subordinadas ou coordenadas umas às outras , cuja com-
pe~sament~ sujeito a justificar o ponto de vista de um grupo posição aditiva a reconstituiria integralmente. Há, neste sen-
soCial consiste ele mesmo em sistemas de regulações intelec- tido, agrupam ento operatório, as relações conferindo direitos
tuais cujas leis não são as da opera ção pura, e que atingem e impondo simultaneamente obrigações, sendo engendradas
somente formas de equilíbrio instáveis, graças a um jogo por operações construtivas da realidade jurídica : tais opera-
de compensações momentâne as. Como veremos novamente nos ções são assim decretos do soberano, as ordens dos superiores
§§ 6 e 7, a condição de equilíbrio das regras racionais é que hierárquicos, os votos de uma câmara de r epresentantes, o voto
~las exprime~ o mecanismo autônomo de pura cooperação, do povo inteiro, etc., e estas operações têm elas mesmas sua
ist~ é, d~ um sistema de operações executadas em comum ou por validad e das regras de sua composição (definidas por uma cons-
reCiprocidade entre as de seus parceiros: em vez de traduzir tituição , etc.).
um sistema de tradições obrigatórias, a cooperação que é a Somente se tal sistema constitui um agrupamento em sua
foI.1te dos "~grup~mentos" de op erações racionais, prolonga, forma, duas questões são expostas em relação a seu conteúdo,
pois, sem mais, o sistema das ações mesmas e das técnicas. que são solidárias uma com a outra e cuja soluç ão leva a dis-
É essa mesma passagem da autoridade para a reciprocidade tinguir a coerência aparente de certas estruturas jurídicas e
ou da .coação para a cooperação que marca a transição entr e a coerência real de algumas outras: a questão do equilíbrio
? semmormat1vo normal, depend endo ainda das regul ações jurídico e a das relações entre a norma jurídica e as normas
merentes ao respeito unilateral, e os agrupamentos de regras intelectuais ou morais.
autônomas. de condutas fundamentadas no respeito mútuo.
No -~o~ímo mora~, c~mo no terreno das normas lógicas, 0
equihbno está, pois, ligado a uma cooperação, resultante da 10 Cf. nos sa obra L e ju.gem ent moral de l'enfant, Paris, Alcan,
1927.
66 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 67

Do ponto de vista do equilíbrio, é evidente que nada as- poderia, com efeito, haver contradição no seio das P:imei_ras,
segura a um sistema jurídico, por mais coerente que ele seja nos diversos degraus de sua elaboração, sob pena de invalida-
do ponto de vista de sua forma, um poder de coação ou de ção das normas inf eriores contrári!s ~s superiores; esta estru-
conserv ação, se suas contradições com os outros valores e as tura lógica necessária da construçao 1urídi~a b_asta para ates-
outras norm as em jogo numa sociedade levam a conflitos e à tar sua correspondência com as normas rac10nais_ em c~rs~ na
revoluç ão. Pareceria, pois, que o equilíbrio do sistema das nor- sociedade considerada . Quanto às normas morais, os 1unstas
mas jurídicas não se deve à sua forma, mas a seu conteúdo, forneceram uma série de critérios destinados a distingui-las das
isto é, ao papel representado pelas regras jurídicas enquanto normas jurídicas, mas como procuramos mostrar _alhures? 1 ~ a
in strum entos ou obstáculos na distribuição dos valores. Há aí, análise de cada uma delas evidencia pelo contráno a existen-
certamente, o equivalente do que se produz num sistema de cia de mecanismos comuns bem mais importantes, do ponto
representações coletivas cujo equilíbrio intelectual não é as- de vista sociológico, que suas diferenças. A única diferença es-
segurado somente pela coerência formal mas também pela sencial, parece, que as separa, é que o direito não se dirige
adequaç ão com o real. Mas esta analo gia entre as normas ju- às relações entre pessoas, mas só considera nos in_divíduos ~u-as
rídicas mostra precisamente que a quest ão é mais complexa funções (posiç ão no grupo social) e seus s~rvrços (posiçao
do ponto de vista da forma mesma, porque as regras, assegu- nas trocas interindividuais), estabelecendo assim regras trans-
rando a coerência lógica, implicam a adequação possível a pessoais, isto é, cujas relações permitem a su?stituição dos in-
qualquer conteúdo e não são abaladas pelo simples fato de divíduos pela identidade de função o~ de s~rviço; a n_ior~l,,pelo
um conteúdo errôneo ser substituído pelo verdadeiro; o cor- contrário, só conhece relações pessoais, tais que os md1v1duo_s
reto de uma estrutura formal em equilíbrio é assim, no não sejam nunca inteiramente substituíveis . É porque a codi-
domínio intelectual, assegurar a possibilidade de uma trans- ficação das regras jurídicas é sempre possível ~m detalhe, en-
formação dos princípios mesmos, sem romper a continuidade quanto a elas regras morais permanece essen~ialmente geral:
do sistema. Ora, comparando os sistemas jurídicos em equilí- ela só atinge formas puras como as da lógica formal, sem
brio aos que não estão, percebe-se que o equilíbrio depende regular, como os códigos jurídicos, as modalidade~ de sua p~ó-
da adequação da estrutura formal a seu conteúdo real, pode pria aplicação. Compreende-se _en~ão como, relauva_mente. m-
ser assegurado pela forma mesma, no sentido que, no domí- diferenciados em sua fonte, o direito e a moral se diferenoam
nio jurídico, como em todos os domínios operatórios, a esta- à medida que existem desequilíbrios e conflitos sociais para
bilidade do equilíbrio é função da mobilidade: uma forma em reajustar sua correspondê?cia qu_a?do de cada equi~ibração . No
equilíbrio é, em direito, como alhures, a que assegura a regu-
lagem de suas próprias transform ações (p. ex., uma consti-
limite, uma forma jurídica suficientemente_ plástica ex- ~ª:ª
primir as interações reais em jogo numa sooedade eqmhbrada
tuição regulando suas próprias modificações, etc.), enqu anto
uma forma fechada estaticamente está em equilíbrio instável convergiria para o sistema das normas morais. 12
e não testemunha assim, apesar das aparências, senão um agru-
pamento operatório incompleto, porque não comporta trans- Em suma, constata-se assim que as grandes estruturas aces-
formações possíveis quanto às normas superiores. síveis à explicação sociológica, como à explicação psicológica,
Isto nos conduz à relação das regras jurídicas com as re- são os ritmos, as regulações, e os agrupamentos; o ritmo marca
gras lógicas e morais: se o equilíbrio das primeiras está ligado a fronteira entre o material e o espiritual; a regulação ca-
a sua capacidade de transformação e de adaptação , está, de racteriza as totalidades estatísticas, com interferência dos fa-
fato, claro que elas convergirão, devido a sua equilibração tores de interação (valores e certas regras) e o "agrupamento"
mesmo, para estas duas outras espécies de normas, sem o que
haverá ou desadaptação do conteúdo das normas jurídicas em
relação aos outros aspectos da vida social, ou contradi ção en- 11 "As rela ções entre a moral e o direiLo", mais adiante, neste volume.
tre a forma e o conteúdo . A converg ência entre as re gras ju- 12 É sem dúvida neste sentido que KARL MARX concebia a absorção
rídicas e as normas lógicas é, a esse respeito, bem clara: não do direito n a moral numa sociedade economicamente regulada.
, 1

68 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 69

exprime a estrutura das operações reversíveis intervindo nas tricos em psicologia) que falseiam as perspectivas, quando não
construções jurídicas, morais e racionais, isto é, nas totalida- se dissociam deste simbolismo sociocêntrico os mecanismos pro-
des de composição aditiva. priamente operatórios. Ora, em paralelismo completo com o
?ra, esta suce~são é de importância essencial do ponto que se produz no terreno da explicação psicológica, parece
de vista do mecanismo das explicações sociológicas mesmas: que estes últimos podem ser estudados por dois métodos, dos
ela leva a conceber a relação dos fatores de causalidade e de quais um e outro conduzem precisamente a desenvolvê-los dos
implicações, sobre o qual insistimos no fim do § 3, como uma elementos ideológicos que os acompanham quase sempre e al-
relação genética chamando uma explicação operatória, e não teram sua tomada de consciência. Um desses métodos é a
como uma simples ligação estática dada desde a partida. Os explicação real que coloca os aspectos operatórios do pensa-
"agrupamentos" normativos somente constituem, com efeito, mento ou da moral coletivos em relação com o trabalho efe-
puros sistemas de implicações, tais que as regras coordenadas tivo, as técnicas e os modos de colaboração em jogo nas ações
entre elas se encaixam umas nas outras e conduzem umas às causais, enquanto os outros aspectos da consciência coletiva
outras segundo relações inteiramente expressas em termos de aparecem então como ligados a uma interpretação simbólica
conexão necessária. Pelo contrário, as regulações compor- que a sociedade se dá de seus próprios conflitos . O utro des-
tam uma dosagem variável de implicações, anunciando a re- ses métodos é a reconstru ão formal ou mesmo axiomática das
versi.bilidade operatória, e de causalidade efetiva (coações, etc.); im licações ue intervê nos mecanismos operatórios. Ora, este
os ritmos caem então em total causalidade material e engl0- método, que parece na primeira abordagem não apresentar ne -
bam neste contexto causal as primeiras ligações implicativas nhuma relação com a explicação sociológica (não mais do
(sinais e valores elementares, com um mínimo de elemento que não se percebe à primeira vista as relações entre a logís-
normativo). Ora, os agrupamentos são somente o estado-limite tica e a explicação psicológica), lhe é, na realidade, de uma
de regulações anteriores e estas repousam num jogo complexo utilidade certa no que, ela também, atinge uma dissociação
de ritmos. A explicação sociológica como a explicação psico- rigorosa do que é ideológico ~o que é operatório nos "a u-
lógica não poderia, pois, ser eficaz, senão com a condição de pamentos" de~ ras·_ muito mais, uma correspondência termo
proceder da ação material e causal, para atingir finalmente só a termo pode ser estabelecida entre as questões que coloca e
o sistema das implicações da consciência coletiva. É com esta os problemas que intervêm na explicação real, o que enriquece
condição, exclusivamente, que se atingirá na superestrutura esta última.
o que prolonga efetivamente as ações causais em jogo na in- É de incontestável interesse epistemológico encontrar, a
fra-estrutura, em oposição às ideologias simplesmente simbó- esse respeito, no terreno sociológico como no terreno psico-
licas, que a refletem, deformando-a. lógico, o problema geral das relações entre os axiomáticos e
as ciências reais correspondentes. E isto é tanto mais instru-
§ 5. A EXPLICAÇÃO EM
SOCIOLOGIA. C. EXPLICAÇÃO REAL tivo quanto, nas ciências sociais, se pode distinguir duas es-
E RECONSTRUÇÃO FORMAL (ou AXIOMÁTICA). - xistem ~ pécies de tentativas de axiomatização, umas se dirigindo às
trê~ e o~ dois sistemas..de...noçõ.es a distingu.ÍJ.:...na..explicação regulações e que se vêem então obrigadas a simplificar, sem
so,.gológ1ca (co.mo__naexplicação psicológica): as ações causais, dúvida excessivamente, os dados reais em causa, as outras se
a operaçõe q as terminam sistematizando -as, e os fatores dirigindo aos agrupamentos normativos, e que são neste caso
icle.ruógicos (comparáveis aos dados introspectivos ou egocên- perfeitamente adequadas aos mecanismos operatórios em jogo.
A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 71
70 ESTUDOS SOCIOLóGTCOS

No domínio das regu lações, cada um sabe como a "eco- mercadorias possuídas depois da troca, igualdade (para cada
nomia pura" d e L. Walras e Pareto procurou expressar, por permutador) das receitas e das despes~s expressas ~m nu~e -
meio da dedução matemática, .uilib.rio e a clinâm.ica___das rário, e igualdade (para cada mercadona) da quanu~lade e~1~-
trocas e onômicas à maneira pela <lllªl a mecânica racional tente antes e depois da troca. 13 Qra..__jJma_ troca assim e mh-
traduz as C01!1 )Osições je forças. Para atingir esta finalidade, .brada não 011stitui mús urn istema de substituições com
est_es a~tores fora~1 naturalr~cnte. condu zidos a simplificar e J;Onservação inteir dos valores (ophélimités) e dos objet?~·
a 1deahz ar os fenomenos reais, ss1 mo a substituir a aná - Representa, cons eqüentemente, um "W_upo": a troca _eqmh.-
lise i~dutiva dos_ fatos mesmo_s por um raciocínio hipotético- brada AB composto com a troca <:_quilibr~d~ BC equivale a
dedutivo, conduzindo a conceitos definidos formalmente. Eles troca equilibrada AC; estas troc as sao associativas. A troca AB
se engajaram, dito de maneira diversa, sobre a via de axio- comporta um inverso BA e o composto AB X BA dá tro_ca
matização, _§em constituir u axiomátic propriamente dita, idêntica ou nula, existe pois "grupo" como se as trocas assim
mas fornecendo os elementos ue ermitiriam construí-la. Ain- definidas consistissem em operações propriamente ditas, e é
da mais, como o valor econômico quantificável, esta constru- porque a teoria do equilíbrio é facilmente axiomatizada. Mas
ção semi-axiomática encontrou-se de antemão matemática, e o que acontece com a dinâmica mesma?
ultrapas~ando o nível logístico ou qualitativo, com os modelos É aqui que uma segu~d~ lacun_a vem-se co_m~inar ~om
d_osquais nos ocuparemos em relação ao direito qu('.! não pode- a primeira, mesmo no don_un10_~stáuco e. a fortion na dinâ-
riam ultrapassar. mica, a "economia pura" Sllllplihca exc.essLvamen1e_ o_processo
~a~ qual é o alcance de tal método aplicado aos fatos mesmo das regu lações. O equilíbrio da troca é dehmdo como
economicos (es!ando naturalmente entendido que não prejul- 0 ponto onde esta termina_, mas ~upo1:1do que uma troe~ r.e~l
ga_ em nada leis expressas e não é solidária às doutrinas riró- não termina nunca por igualaçao rigorosa das ophélzrmtes__
pnas a Pareto)? Ele é muito útil a título de instrumento de (conceito substituído ao de "_valor" por pur_o med_o das pala-
análise, 1:ª disse~ação ~o real mesmo, e fornece belo exemplo vras!), as necessidades, os dese1os e as _avahaçoes, CUJ_ascompen-
de deduçao precisa aph_cad~ ao d?mínio social. Somente, apre- sações momentâneas constituem esta igualdade frágil, se trans-
sent~ duas lacunas mmto mstruuvas, porque se baseiam, sem formam sem cessar em fato, de tal forma que o equilíbrio
?úvida, não na insuficiência dos esquemas elaborados, mas na não é nunca atingido de forma durável. O verdadeiro ~roble-
madequa_ç~o ela dedução axiomática às regulações como tais, ma é...pois, .dinâmica das trocas, d~ que se d~vena ex-
por opos1çao aos agrupamentos operatórios ou normativos. púrn:ir as egulações ...mesma em e~uaço~ matem~acas. O_ra,
A primeira destas duas lacunas é, com efeito, que O es- contrariamente à simples formulaçao lógica, ~kll ~
encial e integral permite bem expressar a vanaçoes. Somente
quema de Walras e de Pareto constitui uma estática muito
mais do que uma dinâmica econômica. Ora, sua razão é bem as transformações reais em jogo na dinâmica econômica .se
clara: o ponto onde uma regulação atinge um estado de equi- afastam então cada vez mais de um esquema formal ou axio-
líbrio é def~ní~el por meio de um conjunto de igualdades sim- mático, e é porque este não_ constitui, em ~u_ma, uma imag_em
ple~ que c01~c1~e mo1;1e_ntan~amente com um sistema de ope- suficientemente fiel da realidade, no domm10 das regulaçoes.
raçoes _reversiv~1s. A u_mca diferença entre as regulações e as
operaçoes consiste efetivamente em que o equilíbrio é perma- Diferente é a situação dos sistemas de regras , pois o correto
nente no caso dos grupos ou agrupamentos, enquanto não de uma norma é precisamente assegurar a conservação dos
o é no caso das regulações e dá vez a "deslocamentos", assim valores, ntão a axiomatização se dirigirá a estados perma-
como a compensações simplesmente aproximadas. Mas onde o nentes de e uilíbrio ou sobre transfo ma õ s que serão elas
equilíbrio é atingido pela hipótese, ele não difere daquele
cor~espon~ente a um sistema operatório. A economia pura .nos
--... ...._"'s"'
,sim g_ue uma troca atin.ge o equilíbrio quando certo 13 Ver PARETO, Cours d'économie politique, vol. I (1896), pág. 22
número de condições são reenchidas: igualdade (para cada (§ 52) e BoNIN SEGNI, Manuel élem en taire d'économie politique (1930),
permutador) das "ophélimités ponderadas" das quantidades de págs. 27-29.
A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 7J
72 ESTUDOS SOCIOLóGICOS

mesmas regulada s antecipadamente. Tratar-se-á, neste caso, de se entregou a uma dissecação a priori e suste_n.tou mesmo (o
axiomáticos de caráter puramente qualitativo, isto é, lógico que é tant~ mais_ intere~s~~te para nós e facilita ~s con~ron-
tações dep01s) a irreduubihda?e. absoluta da. anáhse soc10ló-
e não-matemático , mas seu interesse não é menor do ponto gica e da teoria "pura" do direito. Com ~feito, enqua .?to a
de vista que nos ocupa aqui: inteiramente conforme à estru- sociologia é necessariamente causal, e considera c?n~equente-
tura operatória das regras consideradas, a axiomatização al- mente os fenômenos sociais, inclusive as regras de direito, como
cança, com efeito, uma dissociação rigorosa do mecanismo da simples fatos , o método jurídico "puro_" _consiste em reli g~r
construção formal das regras e de todos os fatores ideológicos diretamente entre elas as normas de direito e repousa , pois ,
num tipo particular de implicação, que Kelsen chama "impu-
que a consciência comum e as interpretações metafísicas ligam tação". Ora, como uma norma é esse~cialmente um dev~r -ser.
à interpretação destas regras . .É em particular. sob e t pecto um sollen, enquanto um fato é relativo ao ser, quer dizer a
crítico. qu e o método de axiom a ti zaç.ão coo:espon<l d.e.Jna- "um sein", e não se poderia tirar um dever-ser de m? fa~o
u.e.ira_fr:utuosa à expl.illlção -M>ciológica causaL fazendo rres- nem o inverso, não poderia haver, segundo _K~lsen, soci?~º g:a
po.nd.e entos da ex lica ão o eratória real jurídica, e a ciência do direito só pode co:isistir numa ciencia
da construção pura das normas. É este, ve-se, o problema das
os da
relações entre a implicação e a causalidade que é exposto .ªº
mesmo tempo que aquele das relações entre uma ax10mát1ca
A situação da teoria "pura" do direito em relação à so- e a ciência real que lhe corresponde.
ciologia é particularmente sugestiva deste panto de vista. Cada Em que consiste, pais, deste pont? . de vista. d~ axioma-
um outorga, com efeito, que o direito é uma disciplina essen- tização, o processo da "construção" jundica? O direito, segu?-
cialmente normativa, todo o problema de direito se reduzindo do Kelsen, tem como caráter essencial regular sua própna
a um problema de validade, e não de constatação ou de fato. criação. Uma norma jurídica é, com efeito, criadora de novas
É porque o direito não é uma ciência e não concerne como normas: um parlamento legisla, um governo decreta, u~a ad-
tal à sociologia . Mas a cren ça e a submissão ao direito são ministração regulamenta, um tribunal julga, e estas leis, de-
fatos sociais, que se deve explicar como os outros, e as regras cretos, regulamentos e julgamentos são norm~s elaboradas sem
julgadas "juridicamente válidas" pela coletividade constituem descontinuidade no quadro das normas sup enores que _lhe _con-
interações sociais essenciais, que a sociologia deve estudar a ferem sua validade, por intermédio dos órgãos legislativos,
título de "fatos normativos" como as interações morais ou executivos ou judiciários, agindo devid_o a estas ~ormas _supe-
lógicas, isto é, considerando tais normas como fatos. Ora , a riores. Se, de alto a baixo da hierarqma dos ór~ao~ le gais, há
este estudo positivo corresponde, no terreno das pesquisas ju- assim criação contínua de normas novas, ~1á, poi s, igualment e,
rídicas, uma tentativa de axiomatização análoga à que os ló- devido a este mesmo processo , mas considerado e1? seu se~-
gicos forneceram das re gras ló gicas, e que pode cons eqüente- tido inverso, aplicação contínua das normas an~en.?res: mais
mente facilitar a explica ção sociológi ca exat amente como a precisamente, cada no~ma é ao. me ~mo tempa cnaçao ele nor-
axiomatização logística facilita a análise das representaçõ es co- mas de um grau inferior e aphca çao das normas do grau su-
letivas de caráter racional ou científico. Com efeito , enqu anto perior. Aplicação e criação simultâ~ea~ , .tais são em su~a as
a maior parte elas teorias jurídicas de conjunto procura fun- duas características da construção 1undi ca. Somente exist em
damentar o direito em preocupações metafísicas ou (o que duas exceções neste caso. As normas se validando ~~as às
se torna a mesma coisa para o sociólogo) em ideologias po - outras formam uma pirâmide da qual todos os est ag10s se
lítico-sociais, certo número de autores, em continuação aos tr a-
mantêm graças aos laços ele "imputaç ão" _q~e _asseguram esta
balhos de E. Roguin sobre "A regra ele direito", quiseram p or
validade: mas as duas extremidades da piramide a~r esentam
princípio limitar sua análise à estrutura formal ou norma tiva
características dif erentes . A base d a pirâmide é consutuíd_a pe-
do direito. É assim que H. Kelsen colocou o problema em
termos de epistemologia kantiana: "como o direito é possí- las inumeráveis "normas individualizadas", segundo a fehz ex-
vel?" Em vez de proceder geneticamente como o sociólogo, ele pressão de Kelsen: os julgam entos dos tribunais , as ord ens
74 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA

administrativas, os diplomas universitários, etc. etc., isto é, di- co importa quanto à estrutura formal do sistema: pode-se tra-
zer as normas que só se aplicam em última instância a um duzir os imperativos em proposições, constando a existência
indivíduo, assim determinado por um direito ou por uma obri-
ele uma obrigação ou de um direito; quanto às relações entre
gação particulares. Estas normas individualizadas são, conse-
qüentemente, "aplicação" pura e não são mais criadoras, pois, proposições lógicas, são normas, englobando, pois, um elemen-
além cio indivíduo, não há mais termo imputável juridica- to imperativo, e A. Lalande assinala o fato, precisando que
mente. Quanto ao cume da pirâmide, ele é caracterizado por A implica B "para homem honesto". O direito como a lógica
uma norma única, que é criação pura e não mais aplicação, pode, pois, ser estruturado sob a forma de um sistema de
pois nada é superior a ela. Esta "norma fundamental" não "agrupamentos", e seria fácil exprimir toda a hierarquia das
poderia ser confundida com a constituição mesma, fonte de
todas as normas do direito estático, pois se trata de justificar normas em fórmulas logísticas evidenciando os agrupamentos
até à validez da constituição: ela é, pois, a fonte da consti- ele relações assimétricas (imputações encaixadas), de relações
tuição e constitui a condição necessária a priori ela validade simétricas (co-imputações recíprocas ou relações contratuais)
ela ordem jurídica inteira. e de classes, que a constituem integralmente. Ainda mais, as
Tal é, pois, o direito: um sistema de normas encaixadas, proposições jurídicas, em vez de estarem contidas identica-
dependendo todas de uma norma fundamental e se estendendo mente umas às outras, se constroem umas a partir das ou-
cada vez mais até o conjunto elas normas individualizadas. O
direito, segundo a teoria "pura" de Kelsen, não é nada mais tras, o que significa pôr em paralelo a construção jurídica,
que este sistema de normas vistas como tais, isto é, que não feita de aplicações e ele criações indissociáveis, com uma cons-
existe nenhuma realidade jurídica que não faça parte, a tí- trução lógica feita de operações propriamente construtivas.
tulo ele degrau necessário, deste sistema de normas puras. O Ora, um sistema de operações pode ser estudado por dois
"sujeito de direito" só é um "centro de imputação" das nor-
mas e, além desta característica, só é uma pura ficção de métodos: o método psicossociológico, que analisará causalmen-
natureza ideológica e não jurídica; o "direito subjetivo" deve te sua construção real, e o método axiomático ou lógico, que
ser reenviado assim aos metafísicos e se encontra excluído ela exprimirá unicamente as implicações entre estas operações ou
teoria pura. O "Estado", por outro lado, nada mais é do que as proposições que as traduzem. A teoria pura elo direito
a ordem jurídica mesma, vista em seu conjunto, e toda tenta- constitui evidentemente, deste ponto de vista, uma axiomati-
tiva ele lhe conferir outra realidade além ela puramente nor-
mativa ultrapassa igualmente o direito para se envolver no zação, posto que Kelsen opõe precisamente a "imputação"
terreno ela ideologia política. jurídica à causalidade sociológica. Trata-se então de determi-
nar a relação entre esta axiomática, que é a ciência jurídica
Constata-se o estreito parentesco entre tal concepção e pura, e a ciência real correspondente, que é a sociologia ju-
uma teoria formal qualquer exprimindo a estrutura de um rídica ou parte da sociologia se ocupando em explicar causal-
sistema de operações. Se não existe nada mais no direito que mente as normas, enquanto "fatos normativos" (como diz Pé-
uma hierarquia ele normas encaixadas, unidas entre si por trajitsky), isto é, enquanto regras imperativas que comportam
uma relação formal de imputação, podemos, considerando a uma gênese em função das interações sociais de todos os gê-
imputação como caso particular de implicação, pôr em para- neros e agindo por sua vez enquanto interações particulares.
lelo este sistema com um conjunto de proposições ligadas Percebe-se de antemão o ponto de junção. Se uma teoria
formalmente umas às outras numa pirâmide ele implicações. formalizada, uma vez postos os axiomas iniciais, se desenvolve
As proposições jurídicas estão no imperativo, está entendido, por via puramente dedutiva e sem nenhum apelo ao real, os
enquanto as proposições lógicas estão no indicativo. Mas pou- axiomas iniciais mesmos traduzem sempre, sob forma mais ou
i6 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 77

menos disfarçada, operações reais das quais constituem o es- Enfim, é evidente que as regras que mantêm as represen-
quema abstrato. Ora, é precisamente o que, no caso da for- tações coletivas racionais dão lugar por sua vez a uma axioma-
malização jurídica de Kelsen, aparece claramente: a "norma tização precisa: é a lógica mesma, como expressão comum dos
fundamental" que exprime formalmente a condição a priori mecanismos operatórios intra-individuais e interindividuais. É
da validade da ordem jurídica inteira; nada mais é do que 0 que veremos mais detalhadamente no § 7, mas de um novo
expressão abstrata deste fato concreto que a sociedade "re- panto de vista, pois a lógica não é somente uma das formas
conhece": o valor normativo desta ordem; ela corresponde, axiomatizadas da explicação sociológica; ela é também o pro-
pois, à realidade social do exercício efetivo de um poder e do duto da vida social e constitui desde então um dos domínios
"reconhecimento" deste poder ou do sistema das regras que onde a explicação sociológica se prolonga em explicação do
emanam dele. Se a construção jurídica formal pode s~r axio- conhecimento.
matizada da maneira mais "pura", é pois duvidoso que a Resumidamente, todos os sistemas de normas que alcança-
norma fundamental possa ela mesma permanecer pura, por- ram um estado de equilíbrio ao mesmo tempo móvel e rela-
que o "reconhecimento" real constitui um intermediário in- tivamente permanente padem dar vez a uma axiomatização,
dispensável entre o direito abstrato e a sociedade; é sem dú- que duplica e completa a explicação sociológica real,. mas. se~
vida dever do axiomático cortar o cordão umbilical para dis- substituí-la, pois ela liberta somente as estruturas 1mphcat1-
sociar a construção formal de suas amarras com o real, mas vas, independentemente da causalidade sociaL Este ponto es-
é dever do sociólogo lembrar que este cordão umbilical exis- tando esclarecido, o apelo a est gêner.o de fonnaliz_açã_oco_n-
tiu e que seu papel foi fundamental na alimentação do direito tribuindo pouua vez par disso iar os mecanismos prop ia-
embrionário. mente operatórios das ·deologias que lhes estão igadas na
Ora, se tal é a situação da teoria "pura" do direito, po- consciência comum, trata-se ag a e çheg à plicação socio-
de-se prever tanto de uma disciplina que, para dizer a ver- lógica real (por oposição à formal) do pensamento socia ·z o
dade, não existe ainda, mas que seria interessante elaborar: e coletivo. Reservamos esta discussão para o fim deste capí-
a teoria "pura" das relações morais. Contrariamente à opinião tulo, porque ela não interessa somente à epistemologia do
de Kelsen mesmo, não está excluído que se encontre na cons- ponto de vista da estrutura da explicação sociológi~a, , . s·-
trução das normas morais um processo análogo ao descrito derada enquanto forma particular de pensamento c1ent1hco:
por este autor no terreno jurídico; mas tratar-se-ia de uma ela condiciona a epistemologia em relação à matéria estu-
construção de relações pessoais, e não mais transpessoais, assim dada mesma, pois se trata do pe sarnento como tal, enquanto
como de uma elaboração muito mais lenta, interessando a objeto de análise da sociologia. Em outras palavras, toda so-
sucessão das gerações (cada norma transmitida sendo aplica- ciologia se prolonga naturalmente numa sociologia do conhe-
ção de normas precedentes e criação de novas normas) e prin- cimento (assim como toda psicologia atinge por sua vez uma
cipalmente uma diferenciação muito maior das "normas in- psicologia do conhecimento), e esta sociologia do conheci-
dividualizadas", sem intervenção de órgãos estáticos criadores mento condiciona a epistemologia genética mesma.
de normas. Quaisquer que sejam estas diferenças, valeria a Dois problemas fundamentais devem ser examinados a
pena tentar a comparação, com o apoio de uma formalização esse respeito: explicação sociológica das formas sociocêntri-
precisa e logística. ensamento (ideologias em geral até às metafísicas pro-
78
ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA

priamente ditas) e a explicação sociológica das formas opera- aJ).a· técnicas ligada. t.J;aba.lho material e às
tórias de pensamento coletivo (da técnica à ciência e à ló-
gica). ações <l!:!eo homem exerce na naturez.a, e estas técnicas cons-
tituem um primeiro tipo ele ...i:elações entre os sujeitos e 0s
obj.etos: rel.aÇões suscetíveis de eficácia, e conseqüentemente
§ 6. O PENSAMENTO SOCIOCÊNTRIGO. - A análise do de-
d~ objetividade, mas relações cuja tomada de consciência per-
senvolvimento individual do pensamento leva a esta consta-
manece parcial, porque ligada aos resultados obtidos e não
tação essencial que as operações do espírito derivam da ação
se dirigindo à compreensão das conexões mesmas. Existe, por
e dos mecanismos sensório-motores, mas exigem ademais, para
outro lado, um pensamento científico ou operatório, que pro -
se constituir, uma decentração gradual em relação às formas
longa em partes as técnicas (ou enriquece-as em troca), mas
iniciais de representa5ão, que são egocêntricas. Em outras pa-
que as completa acrescentando à ação uma compreensão das
lavras, explicação do pensamento operatório no indivíduo
relações, e principalmente substituindo pela ação material estas
I supõe a consideração de três e não somente de dois sistemas
cognitivos: .há_ primeiramente a assi111ilação pr.átka elo real _
ações e estas técnicas interiorizadas que são as operações _de
cálculo, de dedução e de explicação. Somente, entre a técmca
aos esquemas de atividade sensório-motriz, com um começo
e a ciência, há um meio-termo, cujo papel foi às vezes o de
de decentração na medida em que estes esquemas se coor-
um obstáculo: é o conjunto das formas coletivas de pensa-
denam entre eles e em que a ação se situa em relação aos
mento, nem técnicas, nem operatórias e procedendo da sim-
objetos sobre os quais se dirige: há em seguida assimilação re-
presentativa do real aos esquemas iniciais do pensamento, es- ples especulação; são as ideologias de qualquer gênero, cos-
quemas permanecendo egocêntricos na medida em que não mogônicas ou teológicas, políticas ou metafísicas, que se esta-
constituem ainda operações coordenadas, mas ações interio- belecem entre as representações coletivas mais primitivas e os
rizadas isoladas; há enfim a assimilação às operações mesmas, sistemas reflexivos contemporâneos mais refinados. ira, o &

que prolongam a coordenação das ações, mas mediante uma sultado mais importante das análises sociológicas conduzidas
decentração sistemática em relação ao ego e às noções subj e- sobre este meio-termo, nem técnico, nem operatório, do pen-
tivas. O progresso do conhecimento individual não consist e, ~amento coletivo, foi mostrar que ele é essencialmente so-
pois, somente numa integração direta e simples dos esquemas ciocêntrico, enquanto a técnica e a ciência constituem duas
iniciais nos esquemas ulteriores, mas numa inversão funda- espécies de relações objetivas entre os homens em sociedade
mental de sentido que subtrai as relações na prioridade do e o universo ideolo i sob todas as suas formas é uma repre-
ponto de vista próprio para uni-las em sistemas que subordin am se.n.ta.ção das_ coisas centrando _ ·ve._
rso sobr él sociedade
este ponto de vista à reciprocidade de todos os pontos de l:l..w:ruJ.oa~
s9bre s s aspir~ões e sobre seus conflitos. Assim
vista possíveis e à relatividade inerente aos agrupamentos ope- como o advento do pensamento operatório supõe, no indiví-
...ratórios. Ação prática, pensamento egocêntrico, e pensam ento duo, uma decentração em relação ao pensamento egocêntrico
operatório são, pois, os três momentos essenciais de tal cons- e ao eu, decentração necessária para permitir à operação de
trução. prolongar as ações das quais proced e, assim tamb ém o pensa-
mento científico exigiu sempre, no desenvolvim ento social,
Ora, a análise socioló gica do pensamento coletivo conduz
uma decentração necessária para permitir ao pensamento cien-
a resultados exatamente paralelos. Existem nas diversas socie- tífico continuar a obra das técnicas na qual coloca suas raízes.
80 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇ,TO EM SOCIOLOGIA 81

Nada é mais significativo no que concerne à necessidade tentar o segundo é, pelo contrário, dissociar o ideológico do
desta decentração fundamental, que comparar as concepções concreto e introduzir na análise das interações presentes as
idealistas do desenvolvimento coletivo (tal como a lei dos três três categorias da técnica, da ideologia e da ciência, com de-
estados de Augusto Comte tornada a teoria da consciência co- centração necessária da terceira em relação à segunda.
letiva em Durkheim) aos conceitos marxistas da infra-estru- Augusto Comte e principalmente Durkheim sustentaram
tura técnica e da superestrutura ideológica, inspirados pelo o primeiro destes pontos de vista, e pode-se mesmo afirmar
sentimento vivo dos desequilíbrios e dos conflitos sociais. Es- que a idéia central do durkheimianismo é a derivação de to-
tes três autores concordam quanto ao caráter sociocêntrico das das as noções racionais e científicas a partir do pensamento
ideologias, mas enquanto Comte e Durkheim vêem na ciên- religioso, concebida como expressão simbólica ou ideológica
cia o prolongamento natural do pensamento sociomórfico, uma da coação do grupo social primitivo sobre os indivíduos. Entre-
sociologia operatória como a de Marx reúne, pelo contrário, a tanto, ninguém mais do que Durkheim insistiu sobre o cará-
ciência às técnicas e fornece, quanto às ideologias, um remarcá- ter "sociomórfico" destas representações coletivas primitivas.
vel instrumento crítico permitindo descobrir o elemento so- Se ele pôde manter duas afirmações tão difíceis de conciliar,
ciocêntrico até nos produtos mais refinados do pensamento é evidentemente porque, em vez de proceder a uma análise
metafísico contemporâneo: subordina assim a objetividade per- dos diferentes tipos de interações sociais, ele falou constante-
seguida pelo pensamento científico a uma condição prelimi- mente a linguagem global da "totalidade". Desde então, para
nar e necessária, que é a decentração dos conceitos em rela- demonstrar a natureza coletiva da razão, ele recorreu ao mes-
mo tempo a duas espécies de argumentos, bem distintos de
ção às ideologias superestruturais, e sua relação com as ações
fato, mas utilizados simultaneamente sob a coberta desta no-
concretas sobre as quais repousa a vida social.
ção indiferenciada do todo social, exercendo sua coação sobre
O correto de uma sociologia do conhecimento ignorando o os indivíduos . Os primeiros destes argumentos são de caráter
alcance de tal processo de decentração é vir cedo ou tarde sincrônico e consistem em mostrar que os indivíduos não po-
a unir o pensamento científico às noções místicas e teológicas deriam atingir a generalidade e a estabilidade próprias aos
primitivas: e, efetivamente, se remontarmos cada vez mais às conceitos, às noções de tempo e de espaço homogêneos, às
etapas da evolução de uma noção, encontraremos sempre, com regras formais da lógica, etc., sem uma constante troca de
a condição de não abandonar o terreno da superestrutura, al- pensamento regulada pelo grupo inteiro. Os segundos argu-
gumas formas iniciais desta noção, que são de natureza reli- mentos são de ordem diacrônica, e voltam a estabelecer a
giosa. Assim, a idéia de causa foi primeiramente mágica e ani- continuidade entre as representações coletivas atuais e as repre-
mista; a idéia de lei natural se confundiu por muito tempo sentações coletivas "originais"; o caráter "sociomórfico" des-
com a de uma obediência das vontades sobrenaturais; a idéia tas representações primitivas é então uma prova a mais, aos
de força começou sob aspectos ocultos, etc. Toda a questão olhos de Durkheim, de sua origem social, e, com0 ele se re-
está em saber se tal derivação é direta, ou se, pelo contrário, cusa a distinguir o caráter cooperativo das regras assegurando
o pensamento científico decentrou pouco a pouco estas no- o trabalho técnico ou intelectual efetuado em comum e o ca-
ções sociocêntricas reajustando-as a seu objeto prático: susten- ráter coercitivo das tradições ou transmissões unilaterais, este
tar o primeiro destes dois pontos de vista é afirmar a conti- sociocentrismo prim1t1vo não o incomoda quanto à interpre-
nuidade da consciência coletiva, considerada em bloco; sus- tação das representações coletivas racionais, e não lhe parece
82 ESTUDOS SOCJOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 8)

necessitar nenhuma decentração ou inversão de sentido do ria estar limitado às ideologias das sociedades primitivas so-
pensamento científico em relação à ideologia sociomórfica. mente. Com efeito, as "classificações primitivas" descritas por
Ora , os primeiros destes dois gêneros de argumentos são Hubert e Mauss, e calcadas sobre as repartições dos indivíduos
perfeitamente válidos, como veremos detalhadamente no § 7. em tribos e clãs, as formas qualitativas do tempo e do espaço
Mas, com duas condições. Uma, é admitir que o trabalho modeladas sobre a sucessão das festas coletivas ou a topografia
coletivo que conduz à constituição das noções racionais e das do território social, as noções de causa e de força emanando
regras lógicas é uma ação executada em comum antes de ser das energias próprias à coação do grupo, etc., todos estes fa.
um pensamento comum: a razão não é senão comunicação, tos são incontestáveis e altamente instrutivos para a sociolo-
discurso, e conjunto de conceitos; ela é primeiramente sistema gia. Mas que provam eles exatamente: que as principais cate-
de operaçõ es e é a colaboração na ação que conduz à generaliza- gorias do espírito são fabricadas pela sociedade ou que são
ção operatória. A outra, destas duas condições, é reconhecer deformadas por ela? Ou as duas ao mesmo tempo? E que es-
que se trata então aí de um processo heterogêneo em relação tas formas sociomórficas de pensamento estão no ponto de par-
à opressão ideológica das tradições. Certamente, há também tida da razão ou simplesmente das ideologias coletivas?
técnicas "consagradas" como noções impostas em relação à opi- Ora, um mal-entendido freqüente corre o risco de obs-
nião: mas não é esta consagração que determina seu valor ra- curecer tal discussão: pelo fato de que as representações coleti-
cional. Não se poderia assimilar o "universal" ao coletivo se- vas "originais" são sociomórficas, e princi paimente pelo fato
não se referindo a uma cooperação, no trabalho material ou de que elas se transmitem prontas pela coação educativa das
mental, isto é, a um fator de objetividade e de reciprocidade gerações anteriores sobre as seguintes numa sociedade ignorando
implicando a autonomia dos parceiros e permanecendo estra- a divisão do trabalho econômico, as classes sociais e a dife-
nho à coação intelectual das representações sociomórficas im- renciação intelectual dos indivíduos, imagina-se então que elas
postas pelo grupo inteiro ou por algumas de suas classes so- são mais socializadas que as nossas (mais socializadas, p. ex.,
ciais. Quando Durkheim, respondendo à objeção que lhe era que a razão autônoma de um matemático raciocinando sobre
feita de subordinar a razão à opinião pública, declarou que noções que ele mesmo inventou) ou pelo menos de igual so-
esta era mau juiz da realidade social efetiva e permanecia cialização. Ora, basta, para dissipar tal ilusão, constatar que,
sempre atrasada em relação às correntes profundas que atra- se o desenvolvimento das operações racionais supõe uma coo-
vessam esta última; reconheceu de fato esta irredutibilidade peração entre os indivíduos liberando-os de seu egocentrismo
da cooperação à coação, e a necessidade, por fazer uma socio- intelectual inicial, as representações coletivas sociocêntricas cor-
logia concreta, de dissociar o todo social em processo diverso respondem, em compensação, sobre o plano inicial ao que
(o que acarreta então uma análise dos tipos de atividades, são as representações egocêntricas no plano individual. A crian-
de relações interindividuais, de coações e de oposições de clas- _ ça, no nível do pensamento intuitivo, admite assim que os
ses, de relações entre gerações, etc.). astros o seguem em suas caminhadas, notadamente a lua e as
Quanto aos segundos argumentos de Durkheim, isto é, à -; trelas que parecem voltar atrás quando ela também volta.
descoberta das representações coletivas "sociomórficas" não se ~ Quando o primitivo admite que o curso dos astros das esta-
poderia subestimar o interesse dos fatos assim postos em evi- ções é regulado pela sucessão dos acontecimentos sociais, e que
dência, mas estes fatos não implicam necessariamente as con- 0 Filho do Céu, nos antigos chineses estudados por Granet,
seqüências que deduz deles; e este sociocentrismo não pode- assegura sua caminhada regular fazendo a volta de seu reino,
ESTUDOS SOCIOLóGlCOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 85

depois de seu palácio, a centração sobre a tribo ou mesmo so- vicg) 14 a pretender impor aos físicos modernos o respeito da
bre o imp ério, substitui a centração sobre o indivíduo, isto é, noção de "força" porque deriva do mana dos melanésios, ou
que o sociocentrismo se substitui ao egocentrismo, mas per- da orenda mágica dos siouxl Na verdade, o sociomorfismo pri-
manece um inegável parentesco de estrutura entre estas duas · mitivo está na origem não da razão mas das ideologias socio-
espécies de "centrismos", em oposição às operações decentra- cêntricas de todos os tempos, com a única diferença de que
das da razão. Há assim mesmo uma finalidade, um animismo, com a divisão do trabalho econômico, ..í! sociocentrismo _ da
um artificialismo, uma magia, uma "participação", etc., ego- classes sociais dominou pouco a pouco o sociocentrismo sim-
cêntricas na criança, e apesar de todas as diferenças entre plesmente: subordinar o tempo físico ao calendário das festas
estas noções fluidas e instáveis e as grandes cristalizações coletivas é, com efeito, representar o universo centrado so-
coletivas que caracterizam as mesmas atitudes no plano da bre o grupo social, da mesma forma que o teórico do "direito
ideologia dos primitivos, há novamente convergência entre o natural" imagina uma ordem do mundo conferindo aos indi-
egocentrismo intelectual do indivíduo e o sociocentrismo das víduos em sociedade a posse inata de certos direitos (o que
representações "primitivas". legitima então o direito de propriedade, etc.), ou da mesma
Podemos então responder às questões expostas acima. Não forma que o teólogo e o metafísico constroem um universo
é o caráter sociomórfico das representações coletivas primitivas cujo centro parece coincidir com o homem mesmo, isto é, com
que demonstra a natureza social da razão, mas é (como vimos a maneira pela qual a sociedade está organizada ou tende a
há pouco e retornaremos no § 7) o papel necessário da coo- ser melhor organizada num momento determinado da história.
peração na ação técnica e nas operações efetivas do pensa-
mento que a prolongam. As representações coletivas sociomór- Antes de examinar a forma pela qual o marxismo e o
ficas só constituem um reflexo ideológico desta realidade fun- neomarxismo interpretam as ideologias contemporâneas, lem-
bremos ainda a doutrina de Tarde. Bste sociólo o ue uma
damental: exprimem a maneira pela qual os indivíduos se facilidade perigosa prejudicou, dispensando-o ao mesmo tem-
representam em comum seu grupo social e o universo, e é -Eº de uma reconstituição histórica ou etnográfica precisa e
porque esta representação só é intuitiva ou mesmo simbólica, da informação psicológica indispensável ao estudo das intera-
e não ainda operatória, que ela é sociocêntrica, devido a uma ç§es interindividuais (ponto de vista que ele substitui ao da
lei geral a todo pensamento não-operatório, que é a de per- ')otalidade" durkheimiana), tem entretanto observações suges-
tivas de detalhe abundantes. No esquema geral que Tarde
manecer centrado em seu sujeito (individual ou coletivo) . Ain- f az das interações ("imitação", "oposição" e "adaptação" ou
.da.Jnais tr.ansmitida e consolidada pelas coações ~ a tradição "invenção"), a lógica preenche duas funções particulares, co-
~ da educação, ela se opõe precisamente à formação das ope- muns à atividade individual e às interações mesmas. Uma
rações racionais, que implicam o livre jo go de uma coopera- função de "equilibração", primeiramente: a lógica é uma co-
ordenação das crenças, que afasta as contradições e assegura
_çã de ensamento fundamentada na ação. As representações a síntese das tendências conciliáveis. Uma função de "majo-
coletivas sociocêntricas próprias às sociedades primitivas não ração", por outro lado: a lógica permite-nos tender para uma
estão, pois, no ponto de partida da razão científica, apesar certeza sempre maior. Somente esta equilibração e esta majo-
da continuidade aparente levantada por Durkheim, que se ração das crenças podem ter por sede, seja a consciência indi-
vidual vista como sistema momentaneamente fechado, seja a
deteve no desenvolvimento contínuo das superestruturas sem
compreender a decentração essencial de pens amento que su-
14 L. BRUNSCHVICC, L 'exP érience humain e et la causalite Physique, Pa -
põe a ciência: e isto até chegar (como observou Brunsch-
ris, Alcan, 1922, págs. 106-107.
A EXPUCAÇ,W EM SOCIOLOGIA 87
86 ESTUDOS SOCIOLóGICOS

sociedade inteira considerada também como sistema único. jurídico-morais e idéia de Deu s a título de suporte dos valores,
Donde uma "lógica individual", fonte de coerência e de crença para a lógica social.
refletida no seio de cada consciência pessoal (é a lógica simples.- É interessante constatar que Tarde, contra sua vontade
uien te, no sentido comum do termo) e a "lógica social", fonte e quase em oposição a todo_ o re_sto de sua dou~rina, foi levado,
de unificação e de reforço das crenças no seio de uma socie- desde que aborda a soc10logia _do conhecimento, a reco-
çlade dada. Tarde entreviu freqüentemente a interdependência nhecer a existência de um dualismo fundamental entre as
da consciência individual e da sociedade: assim as oposições ideologias sociocên tricas resultantes ~a opres sã?. d~ gru P? ~
sociais se traduzem no indivíduo sob a forma de conflitos a ló gica racional. Está claro, com efeito, que a _lógic~ ~ocial
internos, as deliberações externas sob a forma de reflexão de Tarde nada mais é do que a superestrutura 1deolog1ca ex-
interior, a adaptaçã o social sob a forma de invenção mental, primindo o sociocentrismo próprio a toda coação coletiva es,
etc., com idas e vindas contínuas entre os pólos internos e ex- piritual· T a ão e a majora~.ão q_ue co~st.~tuem su~s
ternos de cada um dos pares . .D.ra, fato curioso, não se colo- leis só são uma tradução velada da coaçao social de Durk-
cou precisamente o problema em relação à lógica e não se heim fonte ao mesmo tempo das transmi ssões obrigatórias _
perguntou por que a "lógica individual" deriva da "lógica so- e do~ valores "sagrados" . Quanto à "lógica individual" de
cial" ou vice-versa, ou se ambas se constroem simultaneamente. Tarde , seu gra nd e defeito foi não ter com p~ee:idi~o que ela
Ele se limita a marcar os antagonismos e isto de maneira muito é muito mais socia l que o pensamento soc10centnco mesmo
sugestiva, mas sem jamais se colocar no terreno genético. Na e que, lon ge ele ser inata ao indivíduo, sup~e uma co~p~raç~o
"lógica individual", como a chama Tarde, a equilibração e a contínua: no pensamento individual em v_1~sd e_ sonahzaçao
majoração andam juntas: uma crença será tanto mais assegu- (o egocentrismo infantil) não há nem_ equ1hbraçao, ~em ma-
rada quanto faça parte de um sistema mais coerente e não jora ção sistemáticas das cr~nç~s,_ por falta .de operaço es coor-
se afronte com nenhuma contradição. Na "lógica social", parece den adas ao mesmo tempo md1v1dual e sonalmente (ver § 7).
à primeira vista, que acontece a mesma coisa: a "majoração" Por outro lado, a impo ssibi lidade de c~nciliar soci~lment~ a
conduz à acumulação destas espécies de "cap itais de crenças", majoração e a eq uilibra ção só é verdadeira p~ra as ~deologias,
como diz Tarde , que são as religiões, os sistemas morais e e ainda nas sociedades suficientemente diferenciadas: no
jurídicos, as ideologias políticas, etc., e a "equilibração" tende plano da cooperação social, o equ ilfbri? da s crenças e sua
à supressão dos conflitos pela eliminação das opiniões singu- majoração não têm nad a ele contraclttór:º· co~o mo~tra1;1. as
lares ou heresias. Mas, precisamente porque cada indivíduo é r elações coletivas intervindo na colaboraçao técnica e c1e1:-t1Itca.
levado a pensar e a repensar no sistema das noções coletivas, Brevemente, a "ló gica individual " ele Tarde_ será.ª :óg1<:a so-
cia l mesma, e sua "lógica social", a ideolo gia soooce ntn ca.
as duas tendências à majoração e à equilibração sociais são
inconciliáveis e têm primazia alternadamente: quando as cren-
ças estão muito unificadas socialment e (ortodoxas devido à Ao contrário do realismo idealista de Durkheim e do in-
equilibração), os indivíduos não crêem mais nelas, e, quando dividualismo de Tarde, a concepção essencialmente concreta
procuram reforçar suas convicções (major ação ), caem na heresia que Karl Marx fornece do problema das ideologias e da ló -
e ameaçam assim a unidade do sistema. A história das reli- gica (abstração feita das paixões políticas unindo-se a um
giões, etc., e mesmo dos sistemas de sinais verbais (conflito nome tornado simbólico e tomado lado a lado ao de um
do falar corretamente e da expressividade) fornecem a Tarde profeta ou de um sofista) enquadra sin gu larmente melhor com
numerosos exemplos desta alternância, de onde termina por
concluir que as sociedades alcançam sempre a subordinação os dados atuais da psicologia que com os da sociologia. O
seja da "lógica individual" à "lógica social" (sociedades ditas mérito de..Kaci Marx é, com efeito, ter distinguido nos fenô-
primitivas, teocracias orientais, etc.), seja o inverso (demo- menos sociais uma infra-estrutura efetiva e uma superestrutura
cracias ocidentais). Estas duas lógicas são, pois, incompatíveis, oscilante entre o simbolismo e a tomada de consciência ade-
e, de fato, repousam sobre "categorias" opostas: noções espaço- qu ada, no mesmo sentido (e Marx mesmo o declara explici-
temporais e objeto material, para a lógica individual; noções
88 ES 'J unos SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLU(;J.,J 89

tamente) onde a psicologia é obrigada a distinguir entre o tos metafísicos, as intenções escondidas e os interesses reais em
comportamento real e a consciência. A subestrutura são as jogo. Os conceitos marxistas de superestrutura e de infra-es-
ações efetivas ou as operações, consistindo em trabalho e em trutura se encontram então sob a seguinte forma: de um lado,
técnicas e unindo os homens em sociedade à natureza: relações um elemento variável, dependente das idéias filosóficas ou
"materiais", diz Marx, mas deve-se entender bem que desde das modas espirituais do dia, e consistindo em "derivações"
as condutas mais materiais de produção, há troca entre o conceituais e verbais; por outro lado, os interesses efetivos,
homem e as coisas, isto é, interação indissociável entre os su- fonte inconsciente da ideação coletiva e se manifestando sob
jeitos ativos e os objetos. É esta atividade do sujeito em in- forma de "resíduos" constantes. Mas a fraqueza da tentativa
terdependência com as reações do objeto que caracteriza es- de Pareto, não importando que interesse apresente seu esforço
sencialmente a posição dita "dialética", por oposição ao ma- para fazer dos "resíduos" os componentes de um equilíbrio
terialismo clássico (Marx explicou este aspecto censurando a mecânico e para analisar objetivamente as oscilações e os des
Feuerbach sua concepção receptiva ou passiva da sensação). locamentos de equilíbrio, se deve a dois defeitos essenciais.
A superestrutura social é para a infra-estrutura o que a cons- Por um lado, ele concebeu seus "resíduos" como espécies de
ciência do homem individual é para sua conduta: assim como instintos inatos no indivíduo, classificáveis, uma vez por to-
a consciência pode ser uma auto-apologia, uma transposição das e, conseqüentemente, inalteráveis durante a história, sem
simbólica ou um reflexo inadequado do comportamento, ou compreender que eles mesmos eram o resultado de interações
que consiga prolongar o comportamento sob forma de ações devidas às atividades múltiplas do homem em sociedade. Por
interiorizadas e de operações desenvolvendo a ação real; assim outro lado, sua análise das "derivações" ideológicas perma-
também a superestrutura social oscilará entre a ideologia e neceu singularmente estreito, por falta de uma cultura filosó-
a ciência. Se a ciência prossegue e reflete a ação técnica sobre fica suficiente, e não lhe permitiu desenvolver todo o simbo-
o plano do pensamento coletivo, a ideologia constitui essen- lismo que comporta a conceitualização própria a esta superes-
cialmente, pelo contrário, um simbolismo sociocêntrico, cen- trutura cambiante.
trado não sobre a sociedade inteira, que está dividida e su- É à análise sistemática deste simbolismo ideológico que
jeita às oposições e à luta, mas sobre subcoletividades que são se consagraram os discípulos contemporâneos de Karl Marx
as classes sociais com seus interesses. em sociologia, e é sobre os resultados destes métodos novos
É marcante, quando nos esforçamos para alcançar certa de interpretação que se poderá julgar o valor das hipóteses
objetividade em sociologia, constatar que esta distinção da in- marxistas . Mas, desde já os trabalhos de G. Lukacs e de
f~ estrutura e da superestrutura foi retomada por um dos L. Goldmann forneceram uma idéia precisa do que se deve
maiores adversários da teoria marxista, o que mostra a ne- atingir na sociologia da criação literária e, principalmente,
~sidade de tais noções para a análise sociológica das ideologias o que interessa diretamente à epistemologia, na crítica socio-
as metafísicas. Em seu grande Tratado de Sociologia Geral, lógica do pensamento metafísico .
V. Pareto insiste, com efeito, durante mais de mil páginas, Em seus diversos ensaios, Lukacs evidenciou o papel da
~bre a utilidade essencial que há, para compreender os meca- "consciência de classe" em toda produção filosófica e literá-
nismos sociais, em estudar os "discursos", as teorias pseudo- ria e o processo de "reificação" que atribui ao pensamento
científicas, as ideologias em geral, de maneira a destacar, sob burguês. Ele mostrou, principalmente, no mecanismo da pro-
a aparente racionalidade desta produção gigantesca de concei- dução literária a projeção idealizada dos conflitos sociais vivi-
90 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇil O EM SOCIOLOGIA 91

dos pelos criadores. Suas análises mais remarcáveis concernem França". 15 Quanto à Alemanha, o atraso considerável do li-
às repercussões do Termidor francês sobre a cultura alemã, beralismo coloca o escritor e o filósofo humanista alemão numa
notadamente sobre Hõlderlin, Goethe e Hegel. posição totalmente diferente, feita de solidão e do sentimento
da impossibilidade de uma realização rápida do ideal racio-
No terreno da crítica metafísica, a obra de L. Goldmann nal. De onde uma explicação sociológica possível da filosofia
prolonga a de Lukacs, mostrando, com exemplos significati- kantiana. " importância de Kant reside antes de mais nada
vos como os de Kant e Pascal, que a criação dos grandes sis- no fato de que, por um lado, seu pensamento exprime da ma-
temas especulativos constitui essencialmente a satisfação pelo neira mais clara . as concepções do mundo individualistas e ato-
pensamento de algumas necessidades dominantes relativas ao mistas, retomadas de seus predecessores e levadas até suas úl-
desenvolvimento de uma classe social durante determinado pe- timas conseqüências, e que, precisamente devido a isso, o pen-
ríodo da história das sociedades nacionais . É assim que a luta s.am..ento vai de encontro a seus últimos limites que se tornam
da burguesia européia contra o feudalismo, depois sua liber- para Kant os limites da existência humana como tal, do pen-
tação, comportaram a constituição de certo número de ideais samento e da ação do homem em geral, e que, por outro lado,
não pára (como a maior parte dos neokantianos) na cons-
que dominam todo o pensamento metafísico ocidental. São,
tatação destes limites, mas já dá seus primeiros passos, hesitan -
primeiramente, os conceitos fundamentais de liberdade e de
tes, sem dúvida, mas entretanto decisivos, para a integração
individualismo, acarretando a igualdade jurídica, a título de
na filosofia da segunda categoria, do todo, do universo . . . " 16
condição necessária, e atingindo o racionalismo, que é, em
A importância ao mes).llo tempo sociológica e epistemoló -
essência, a filosofia da autonomia e dos direitos do indivíduo.
gica de tal método de análise não poderia escapar. Do ponto
Mas, em seguida, e à medida que alcança esta libertação do
de vista sociológico, ele permite enfim fornecer uma interpre-
indivíduo, é o sentimento trágico de sua ruptura com a co- tação adequada das ideologias e de sua extensão real, e evi-
munidade humana e conseqüentemente a busca de um ideal tar o duplo abuso, consistindo seja em situá-las no mesmo pla-
de totalidade, concebido ao mesmo tempo como necessário e no que o pensamento científico mesmo, seja em depreciar e
como inacessível. A isto acrescente-se a diversidade dos pontos recusar toda sua significação funcional (taxando- as de simples
de vista nacionais: se estas grandes linhas acusam uma nitidez reflexo ou "derivação", etc.). Na realidade, uma ideologia é a
particular no pensamento francês, o empirismo inglês reflete expressão conceitualizada elos valores nos quais crêem um
o espírito de compromisso social: "Um compromisso é uma conjunto de indivíduos, e como tal preenche uma função ao
limitação, aceita sob a pressão da realidade exterior, dos de- mesmo tempo positiva e bem distinta daquela da ciência; a
sejos e das esperanças de onde se partiu. Lá onde a estrutura ideologia traduz uma tomada de posição, que ela defende e
procura justificar, enquanto a ciência constata e explica. A
econômica e social de um país nasceu essencialmente de um
psicologia do romancista é assim diferente daquela do psicó-
compromisso entre duas classes opostas, a visão do mundo dos
logo, podendo atingir a análise com uma finura igual senão às
filósofos e dos poetas será muito mais realista e menos radical vezes superior: o romancista exprime, com efeito, sempre, mes-
que nos países onde uma longa luta manteve na oposição a
classe ascendente. Isto nos parece ser uma das principais ra-
15 L. GoLDMANN, La commttnaut é humaine et l'tmi vers chez Kant,
zões do fato de que o pensamento filosófico da burguesia inglesa Paris, P.U.F . 1948, pág. 10.
se tornou empirista e sensualista, e não racionalista como na 16 Ibidem , pág . 8
92 ESTun ·os SOCIOLóGICOS 4 EX.PU~ÇÃO EM SOCIOLOGU 9J

mo se é realista, um ponto de vista sobre o mundo e sobre Em suma, a análise sociológica do pensamento coletivo
a sociedade, que é o seu próprio, enquanto a ciência procura conduz à distinção de três e não de dois sistemas interdepen-
só conhecer o do objeto. Uma metafísica é uma apologia, ou dentes; as ações reais, que constituem a infra-estrutura da
uma avaliação, seja uma teodicéia ou uma glorificação do nada. sociedade; a ideologia que é a conceitualização simbólica dos
Como tal, uma ideologia obedece a leis de conceitualização es- conflitos e das aspirações nascidas destas ações; e a ciência
pecial, que são as do pensamento simbólico em geral, mas de que prolonga as ações em operações intelectuais, permitindo
um simbolismo coletivo mais do que individual: satisfaz pelo explicar a natureza e o homem, e decentrando este dele mes-
pensamento necessidades comuns, como o sonho e o jogo com- mo para reintegrá-lo nas relações objetivas que elabora gra-
plementam os desejos individuais, e alcança uma realização ças à sua atividade. Assim, por um paradoxo extremamente
dos valores sob a forma de um sistema ideal do mundo, que revelador, o processo do conhecimento objetivo supõe uma de-
corrige o universo real. Seu simbolismo é, pois, necessaria- centração semelhante na sociedade e no individuo; assim como
mente sociocêntrico, pois sua função própria é traduzir em 0 individuo se libera de seu egocentrismo intelectual tomando
consciência de seu ponto de vista próprio para situá-lo entre
idéias as aspirações nascidas dos conflitos sociais e morais,
os outros, assim também o pensamento coletivo se libera do
isto, é, de centrar o universo sobre os valores elaborados pelo
sociocentrismo, descobrindo as amarras que o retêm à socie-
grupo ou pelas subcoletividades que se opõem ao centro do
dade e se situando no conjunto das relações que une estas à
grupo social.
natureza mesma. O problema que falta examinar é o de
Do ponto de vista epistemológico, esta explicação socio- estabelecer se esta estrutura decentrada de pensamento que
lógica do pensamento metafísico fornece um instrumento es- constitui a lógica é também social, ou se só é individual, e
sencial de crítica do conhecimento. Longe de alcançar a repar- de que forma aparece como coletiva num outro sentido que
tição dos conhecimentos humanos em duas estantes bem deli- não o do simbolismo sociocêntrico.
mitadas, a do pensamento sociocêntrico e a do pensamento ob-
jetivo, permite encontrar o elemento ideológico onde quer § 7. LÓGICA E SOCIEDADE: AS OPERAÇÕES ~ORMAIS ; A

que se introduza, isto é, até o halo metafísico que envolve COOPERAÇÃO. - Desde o instante em que renunciemos a un-
toda ciência positiva e do qual só se diferencia muito gradual- damentar a razão sobre uma concepção platônica dos univer-
mente. Por um lado, evidencia a dualidade de pólos entre um sais ou sobre a estrutura a _priori de uma sub· etividade trans-
pensamento cuja função é justificar valores e desenvolver as cendental, só nos resta identificar o "universal" e o coletivo.
relações entre a natureza e o homem. Mas, por outro lado, Que a razão se sirva de suas formas na experiência, ou que
como estes valores constituem as finalidades das ações do ho- as reconstrua graças a interações diversas entre o sujeito e os
mem em sociedade, e que as relações objetivas entre o homem objetos, nada mais é, com efeito, que o acordo dos espíritos
e a natureza são conhecidas somente por intermédio de tais como critério de verdade (experimental ou formal), se afas-
ações, todas as transições são dadas entre os dois pólos extremos; tarmos toda referência a um absoluto exterior ou interior.
de onde a dificuldade, para a ciência mesma, de se dissociar da Sem dúvida, esta assimilação da verdade ao reconhecimento
ideologia, e a necessidade absoluta de uma decentração do coletivo repugna à primeira vista profundamente à razão, por-
pensamento científico em relação ao pensamento sociocêntrico, que O rigor de uma demonstração lógica ou de uma prova
assim como o egocêntrico. experimental, sejam estas estabelecidas por um único indi-
A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA '15
94 ESTUDOS SOCIOLóGICOS

víduo, é fora do comum com o valor de uma opinião comum, porta) constituem ações individuais ou ações de natureza so-
mesmo quase ger:l e multissecular. Mas tal argumentação le- cial, ou ainda as duas ao mesmo tempo? Ora, a uma questão
vanta duas questoes, e é da solução destas duas questões que posta em tais termos, a noção de "agrupamento" operatório
depende a significação de toda interpretação social da lógica: permite fornecer a mais simples das respostas, em analogia
qual é a ~atureza do acordo dos espíritos garantindo a com o que já dissemos das relações entre a lógica e a psicolo -
verd~d: lógica (por ·oposição a outras espécies de acordos gia . Deve-se ainda, para clarificar esta resposta, colocar-se se-
~ossiveis), e qual é a natureza, coletiva ou individual, dos parada e sucessivamente dois pontos de vista que é neces-
mstrum:ntos de pensamento por meio dos quais um indivíduo, sário (já vimos no § 3) distinguir em sociologia: o ponto de
mesmo isolado e momentaneamente contradito por todos os vista genético ou diacrônico e o ponto de vista sincrônico ou
outros, demonstra uma verdade lógica ou a existência de um relativo ao equilíbrio das trocas mesmas.
fato?
A primeira destas duas questões deu lugar aos mais gra- I. O ponto de vista diacrônico. - O estudo do desen-
ves mal-entendidos, por parte dos defensores como dos adver- volvimento da razão mostra uma estreita correlação entre a
sários, da concepção sociológica da lógica . De que O verda- constituição das operações lógicas e a de cert as formas de co-
deiro repousa sobre uma concordância dos espíritos, concluiu- laboração. É o detalhe desta correlação que é necessário atin-
se que todo acordo dos espíritos engendra uma verdade, como gir, se quisermos apreender as verdadeiras relações entre a
se a história (passada ou contemporânea) não abundasse em razão e a sociedade, sem se contentar com o método global e
ex~m.plos de err~s coletivos. ~ fetivamente a concepção durk- essencialmente estatístico de descrição, que recobre a noção
heimiana da umdade e da continuidade da "consciência co- de "consciência coletiva". Ora, este detalhe pode ser anali-
letiva" alcança tal assimilação do verdadeiro no "consenso sado sobre dois terrenos diferentes, um relativamente conhe-
universal": "quod ubique, quod semper, quod ab omnibus
cido; o outro, ainda muito insuficientemente destrincado: o
creditur" se tornaria assim o critério da verdade para O soció-
da socialização do indivíduo e o das relações históricas e etno-
logo como para São Vicente de Lerins. Mas uma fórmula
gráficas entre as estruturas operatórias do pensamento e as
desse gênero repousa sobre a confusão das ideologias e da ló-
diversas formas de cooperação técnica e de interações intelec -
gica racional (isto é, científica), e basta introduzir a distin-
tuais. Um e outro destes domínios devem ser considerados
ção entre estas duas formas de pensamento, para afastar todo
com cuidado igual, porque sustentam entre eles a mesma re-
equívoco. O acordo dos espíritos que fundamenta a verdade
lação que a embriologia e a anatomia comparada em biolo-
não é, pois, o acordo estático de uma opinião comum: é a
gia, com a única diferença, de que os fatores de transmissão em
convergência dinâmica resultante do emprego de instrumen-
jogo são aqui de natureza exterior ou social e não internas
tos comuns de pensamento; é, dito de outra forma, 0 acordo
e~tabeleci_do _p~r meio de operações semelhantes utilizadas por ou hereditárias.
diversos md1v1duos. A primeira das duas questões distingui- A formação da lógica na criança , primeiramente, eviden-
das no momento conduz, pois, à segunda . cia dois fatos essenciais: que as oper ações lógicas procedem da
Esta segunda e única questão se reduz ela mesma a isto: ação e que a passagem da ação irreversível às operações rever -
as operações lógicas (sejam efetuadas por um único indiví- síveis se acompanha necessariamente de uma socialização das
ações, procedendo ela mesma do egocentrismo à cooperação.
duo que tenha conseguido possuí-la, ou por vários, pouco im-
96 ESTUDOS SOCIOLóGICOS Â EXPLICAÇllO EM SOCIOLOGIA 97

. C~n~iderando primeiramente a lógica do ponto de vista Quanto a estas estruturas sucessivas, lembremo-nos das qua-
do md1v1duo, ela aparece, com efeito, essencialmente como um tro principais, de maneira a mostrar em seguida sua íntima
sistema de operações, isto é, de ações tomadas reversíveis e correlação com a socialização do indivíduo. Há primeiramente,
compostas entre elas segundo "agrupamentos" diversos; e es- antes do aparecimento da linguagem, as estruturas sensório-
tes agrupamentos operatórios constituem eles mesmos a forma motrizes, mergulhando elas mesmas suas raízes na organização
de e~uilí_bri_ofinal atingida pela coordenação das ações, uma reflexa hereditária e conduzindo à construção de esquemas
vez_mteno~1:adas. O ponto de partida psicológico de tais ope- práticos tais como os do objeto, dos deslocamentos no espaço
raçoes (ad1çao ou subtração lógica, seriação segundo diferen- próximo, etc. Desde o aparecimento da linguagem e da fun-
ças ordenadas, correspondência, implicação, etc.) deve, pois, ção simbólica em geral (símbolos ilustrados, etc.) e até mais
ser buscado além do momento em que a criança se torna ou menos 7-8 anos (segundo período) as ações efetivas do pe-
apta à lógica propriamente dita. O pensamento individual não ríodo precedente se duplicam de ações executadas mentalmen-
é assim capaz de ?perações concretas (compreender que um te, isto é, ele ações imaginadas, dirigindo-se à representação
todo se conserva mdependentemente da disposição das par- das coisas e não mais somente aos objetos materiais mesmos.
tes, etc.) senão entre sete anos em média e 11-12 anos, segundo A forma superior desta representação ilustrada é o pensamento
as noções em jogo, e só alcança as operações formais (racio- "intuitivo", que atinge entre 4-5 e 7-8 anos, a evocação das
cinar sobre proposições dadas a título de simples hipóteses) configurações de conjunto relativamente precisas (seriações,
correspond ências, etc.), mas somente a título de figuras e sem
depois desta última data. A lógica é, pois, forma de equilíbrio
reversibilidade operatória. Ora, se este pensamento ilustrado
móvel (cuja reversibilidade atesta precisamente este caráter de ou intuitivo realiza um equilíbrio superior ao da inteligência
equilíbrio), caracterizando o fim do desenvolvimento e não sensório-motriz, pois completa a ação por antecipações e re-
um mecanismo inato fornecido desde o começo. A lógica se constituições representativas, este equilíbrio permanece instá-
impõe certamente, a partir de um nível dado, com necessidade, vel e incompleto, comparado ao da etapa seguinte, porque
mas, isto é, de equilíbrio final para o qual tendem necessaria- unido a evocações figurais sem reversibilidade propriamente
mente as coordenações práticas e mentais, e não a título de dita. Aos 7-8 anos, pelo contrário (terceiro período), as ações
necessidade a priori: a lógica se torna a priori, se podemos executadas mentalmente, que são os julgamentos intuitivos,
dizer assim, mas quando de seu acabamento somente, e sem alcançam um equilíbrio estável, correspondendo ao começo
o se~ na origem! Sem dúvida, as coordenações entre ações e das operações lógicas mesmas, mas sob a forma de operações
movimentos, de onde procede a lógica, repousam elas mesmas concretas. Dois aspectos novos caracterizam este equilíbrio e
em parte sobre coordenações hereditárias (como insistimos aparecem simultaneamente (e com freqüência muito brusca-
atrás), mas estas não contêm antecipadamente a lógica: elas mente) a título de termo final das articulações representativas:
contêm certamente ligações funcionais que, uma vez abstraí- a reversibilidade e a composição de conjunto em "agrupa-
das de seu contexto, são recompostas sob formas novas duran- mentos" operatórios. Um "agrupamento" é um sistema de ope-
te estágios ulteriores (sem que esta abstração a partir das co- rações tal que o produto de duas operações do sistema seja
ordenações anteriores da ação, nem esta recomposição, façam ainda uma operação do sistema; tal que cada operação com-
parte de uma estrutura a priori) . Para compreender psicologi- porta um inverso; tal que o produto de uma operação direta
camente a construção da lógica, deve-se, pois, seguir lado a e seu inverso equivale a uma operação nula ou idêntica; tal
lado os processos cuja equilibração final constitui esta lógica, que as operações elementares estejam associadas e tal que, en-
mas todas as fases anteriores ao equilíbrio terminal perma- fim, uma operação composta com ela mesma não seja modi-
necem de caráter "pré-lógico": continuidade funcional do ficada por esta composição. Uma vez construídos sobre um
des~n.vo~vimento, concebido como um andamento para o terreno concreto, estes agrupamentos operatórios podem, en-
eqmlibno, mas heterogeneidade das estruturas sucessivas deií- fim, mas aos 11-12 anos somente, ser traduzidos em proposi-
mitando as etapas desta equilibração, tais são, pois, os doi:; ções e dar lugar então (a partir desta quarta etapa) a uma
aspectos essenciais da evolução individual da lógica. lógica das proposições, ligando as operações concretas por
98 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 99

meio de novas operações de implicação ou de exclusão entre a linguagem aprendida ofe~ece. à cria~ça ~m ~istema completo
proposições, e que constitui a lógica formal no sentido cor- de "sinais" coletivos, estes sma1s verbais nao sao todos compre-
rente do termo. endidos de antemão e são por muito tempo completados por
Estas quatro formas de estruturas assim lembradas, que um sistema não menos rico de "símbolos" individuais, que
correspondem, pois, a quatro períodos sucessivos da equilibra- se vê em abundância no jogo da imaginação (ou jogo ~im-
ção das ações e das operações de pensamento individuais, o bólico), na imitação represen~ativa (o~ "diferida"), e nas ima-
problema de sociologia do conhecimento que se coloca a seu gens múltiplas sobre as quais se apóia seu pensamento. Do
respeito é, então, o seguinte: se a lógica consiste numa ponto de vista das significações, isto é, do pensamento mesmo,
organização de operações, que são definitivamente ações inte- constata-se, por outro lado, que as_trocas interindividuais_ das
riorizadas e tornadas reversíveis, deve-se admitir que o indi- crianças de 2 a 7 anos são c~racteriza~as .P?r um egocent~1smo
víduo atinge sozinho esta organização ou a intervenção de que permanece a meio camu~ho_ do m?1v!dual e_ do sooal, e
fatores sociais é necessária para explicar a sucessão das qua- que pode definir-se por uma md1_ferenoaçao relativa d?ponto
tro espécies de estruturas descritas? Estes fatores eventuais se de vista próprio e do ponto de vista do outro (é por isso que
reduzem, por outro lado, a noções e operações interindividuais, a criança não sabe discutir, nem expor se~ pensamento segundo
comportando diversos tipos de relações possíveis, cuja trans- uma ordem sistemática, que fala por s1 tanto quanto pelos
missão educativa (pela linguagem, pelos ensinamentos da famí- outros e representa mesmo sem coordenação os jogos col:tiv~s).
lia, pelas noções escolares, etc .) só representa um tipo particular? Ora, existe uma relação estreita entre este caráter egocentri~o
Ora, às quatro etapas principais do desenvolvimento das ope- das trocas intelectuais e o caráter intuitivo ou pré-operatório
rações correspondem, de forma relativamente simples, os es- do pensamento próprio às mesmas idades: t~do P:nsamento
tágios correlativos do desenvolvimento social: é pois a análise intuitivo é, com efeito, "centrado" numa configuraçao. percep-
desta socialização intelectual do indivíduo que deve responder tiva privilegiada, correspondendo . ~ja ao ponto de v1s~3:mo-
às duas questões precedentes, que esta socialização seja a cau- mentâneo do sujeito, seja à _sua at1;1d~de, mas ~em mob.~hdade
sa do desenvolvimento operatório, que seja seu resultado ou nas transformações operatórias possive:s, q.uer dizer ~em de~en-
ainda que uma relação mais complexa existe entre as duas. trações" suficientes. Quanto às coaçoes mtel~ctua1s e~er~1das
pelos mais velhos e pelos adultos, seu conteudo é a.ss1milado
Se a socialização começa desde o nascimento, ela interessa a estes esquemas egocêntricos, e só os transf~rma assm~ sup:r·
pouco à inteligência durante o período sensório-motor que ficialmente (é porque a vida escolar propname?te dita nao
precede o aparecimento da linguagem. É verdade que a cri- pode começar antes dos 7 anos). No terceiro penodo, caracte-
ança aprende a imitar antes de saber falar, mas ela só imita rizado pelas operações concretas (de 7 a 11 anos), corresp~nde,
os gestos que sabe executar espontaneamente ou os que ad-
em compensação, nítido progress? da ~ocialização: a criança
quire por ela mesma numa compreensão suficiente: a imitação
sensório-motriz não influencia, pois, na inteligência, da qual se torna capaz de colaboração mais segu!da com s:us P!rentes,
é, pelo contrário, uma das manifestações . Esta inteligência pré- de troca e coordenação de pontos de vista, de discuss~o e de
verbal é assim essencialmente uma organização das percepções apre sentação concretas ordenadas, etc. Ela se torn~ assm~ sen-
e dos movimentos do indivíduo ainda entregues a ele mesmo. sível à contradição e capaz de conservar dados anteriores, isto é,
Para o que representa o segundo período, suas estruturas intui- que os começos da cooperação na_ ação _e no pensamento
tivas e pré-operatórias apresentam um começo muito significa- ocorrem juntos a um agrupamento sistemático e rev_ersível ,das
tivo de socialização, mas com características intermediárias relações e operações . Donde result~ u~a compr_eensao possivel
entre a natureza individual do primeiro período e a cooperação dos ensinamentos adultos: estes nao sao propriamente forma-
próprias ao terceiro, assim como o pensamento intuitivo per- dores da lógica, pois a assimilação das noções transmitidas
manece intermediário entre a inteligência sensório-motriz e a exteriormente é condicionada pela estruturação ao mesmo
lógica operatória. Do ponto de vista dos meios de expressão, tempo intelectual e interindividual que caracteriz~ a forma~ão
necessários ao mesmo tempo à constituição das representações do pensamento . Esta correlação íntima entre o sooal e o lógico
e às trocas do pensamento, primeiramente, constata-se que se é ainda mais evidente durante o quarto período, onde o agru-
100 ESTUDOS SOCIOLóGICOS
A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 101

~a~e~to das operações fo~is dirigido sobre simples "propo-


siçoes corresponde às necessidades da comunicação e do dis- Em compensação, o paradoxo da "mentalidade primiti-
curso, quando ultrapassam a ação imediata. va·" permanece extremamente instrutivo, e este é o grande
. Em suma, cada progresso lógico equivale, de forma indisso- mérito de L. Lévy-Bruhl o de ter posto este problema, mesmo
c~ável, a :im progress? na socialização do pensamento. Deve-se se negligenciou um de seus aspectos essenciais que é a de-
di~er entao que a cnança se torna capaz de operações racio- terminação das relações entre a técnica e as representações
nais porque seu desenv~l~imento socia! a torna apta à coo- coletivas "primitivas". Retendo-se primeiramente nestas repre-
~e:açao, ~u d~ve-~e.ad~1t1r, ao contráno, que são estas aqui- sentações somente, permanece certamente algo de essencial na
siçoes lógicas individuai~ que lhe permitem compreender os hipótese da "pré-lógica", apesar do recuo expresso pelos
outros e a conduzem assim à cooperação? "Cadernos" póstumos do autor. Sem dúvida Lévy-Bruhl foi
muito longe não distinguindo o funcionamento do pensamen-
Este círculo indissociável do desenvolvimento das ações to e sua estrutura operatória. Do ponto de vista do funciona-
ou operações da inteligência e do desenvolvimento das intera- mento, o pensamento do "primitivo" é comparável ao nosso:
ções individuais entre os membros de toda coletividade se as necessidades de coerência (independentemente do nível
atingido), de adaptação à experiência, de explicação, etc., são
encontra no terreno histórico da evolução das técnicas e da
invariantes funcion ais independentes do desenvolvimento. Mas
evolução do pensamento pré-científico e científico. Mas se, em do ponto de vista da estrutura operatória, a noção de parti-
cada sociedade constituída, vemos evidentemente os modos de cipação nos parece ter resistido vitoriosamente às críticas. Quan-
troca do pensamento correlacionar com o nível deste pensa- do Durk.heim respondeu que a lógica dos primitivos é idên-
mento, mesmo sem que seja possível decidir as causas e os tica à nossa, pois eles têm classificações, quando A. Reymond
e E. Meyerson sustentaram respectivamente que os primitivos
efeitos nesse processo circular, o período mais importante a
possuem o princípio de contradição e o de identidade, mas o
este respeito da história escapa às nossas investigações: o que aplicam de outra forma que nós o aplicamos, etc., eles têm
se estende entre a horda, comparável aos bandos de macacos evidentemente razão quanto à função: o primitivo classifica
antropóides, e a sociedade organizada que possui técnicas co- e utiliza conseqüentemente alguns modos de sistematização e
letivas e uma linguagem articulada. Nos chimpanzés, que são de assimilação anunciando a não-contradição e a identificação.
os mais sociais dos antropóides, vemos despontar a função sim- Mas isto não resolve o problema de estrutura: os esquemas
intelectuais "primitivos" já constituem classificações e sistema-
bólica 17 e certa colaboração na ação, mas o essencial do tizações lógicas? Do ponto de vista de uma lógica atomística,
ato de inteligência permanece sensório-motor, sem estrutura- a questão não comporta, é verdade, resposta precisa, porque
ç~o operatória , nem coletiva das relações; a imitação, em par- encontraremos, ao buscá.las, todos os elementos de nossa
ticular, permanece como no bebê subordinada à inteligência lógica em qualquer forma primitiva de pensamento, taxando
sensório-motriz. É entre o "murro" chelense e O tr atamento ent ão os outros elementos de erro ou de ilogismo. Do ponto de
dos metais próprios ao homem neolítico, que se deveria po- vista de uma lógica das totalidades, em compensação , existem
crit érios: pode -se reduzir as classificações primitivas a "agru-
der seguir as interações do progresso técnico, da comunicação
pamentos" de operações e suas regras de coerência e de assi-
por sinais verbais e das transformações da inteligência, mas mil ação a "princípios" operatórios, formais ou concretos?
estamos reduzidos a esse respeito a inferir estas modificações Assim posto, o problema comporta então uma solução: se é
em função dos instrumentos técnicos, somente conhecidos, ~em certo que os esquemas empregados permanecem a meio cami-
estar de posse das três espécies de fatores em jogo. nho entre objetos não-individualizados em sua identidade
sub stancial e conjuntos não-generalizados sob forma de clas-
17 ses disjuntas e encaixáveis, não se poderia falar de "agrupamen-
. Ver P . GUILLAUME, La Psychologie des singes; in DUMAS , Nouv eau
lra1té de Psychologie. tos", nem, é lógico, de operações formais, n em mesmo de ope-
raç ões concretas; a participação seria, pois, comparável ao pen-
A EXPLICAÇÂO EM SOCIOLOGIA 103
102 ESTUDOS SOCIOLóGICOS

teração intelectual corresponde então uma estrutura intuitiva


sa_mento intuitivo e pré-operatório da criança (nível II), e
nao às estruturas dos níveis III e IV. ou operatória determinada da inteligência, e é esta correspon-
dência que constitui o análogo do que se observa durante o
Entreta?to, dois pontos permanecem em suspenso, e é
a seu respeito que. a _obra de L. Lévy-Bruhl está ainda por desenvolvimento individual.
comple_tar. f:m. pnme1ro lugar , tratar-se-ia de distinguir na O problema é, pois, o seguinte: por um lado (e isto na
pré-lógica pnmi~iva a yarte da ideologia coletiva, no sentido
evolução mental do indivíduo, como na sucessão histórica das
das repres:ntaçoes feitas, transmitidas obrigatoriamente de
u.m~ geraçao a outra, e a das interações entre indivíduos ra- mentalidades), existem escalas sucessivas de estruturação lógica,
c10cmando conc~etamente (a propósito de um objeto perdi- isto é, de inteligência prática, intuitiva ou operatória. Por
do, de um cammho a seguir, etc.). Em segundo lugar _ e outro lado, cada uma das escalas (sendo que várias podem coe-
é ª. esse ponto que conduzirá cedo ou tarde o estudo do pri- xistir numa mesma sociedade) é caracterizada por certo modo
meiro p~nt?. - o problema essencial para situar a mentali-
de cooperação ou de interação social, cuja sucessão representa
dade P:imitiva em sua verdadeira perspectiva, é destacar
ª.s relaç?es entre o. pensamento do primitivo e sua inteligên- o progresso da socialização técnica ou intelectual mesma. Deve-
oa prática ou técnica. Ora, o paradoxo, assinalado por Lévy- se então concluir que é a estruturação lógica ou pré-lógica de
~ruhl mesmo, da situação intelectual dos "primitivos" con- um nível considerado, que determina o modo de colaboração
siste em que, se. ele~ são. pré-lógicos em suas representações, em jogo, ou que é, ao contrário, a estrutura das interaç( ,es
el:s parecem mmto mtehgentes em ação: sua habilidade téc-
nica, _sua compreensão das relações práticas (inclusive a ori- coletivas que determina a das operações intelectuais? É aqui
e?taçao no es,raço) não têm medida comum com suas capa- que a noção de "agrupamentos" operatórios permite simpli
odades dedutivas ou reflexas. Está, pois, claro que nos falta ficar esta questão aparentemente sem saída: basta determinar,
um_ elo: ou sua inteligência operatória atinge o nível das ope- sobre uma escala dada, a forma precisa das trocas entre os
raçoes co~cretas, mas fracassa por uma ideologia coercitiva indivíduos, para perceber que estas interações são elas mesmas
ou, n~ açao _mesma, per~an:ce intuitiva e pré-operatória, ma~
as articula_çoes de suas mtmções práticas estão mais próximas constituídu por ações e que a cooperação consiste ela mesma
da operaça.o que suas representações verbais e míticas. Uma num sistema de operações, de tal forma que as atividades do
vez :onhec.idas,. ~or. cada sociedade, as relações entre a ação sujeito se exercendo sobre os objetos, e as atividades dos su-
t~cnica, a i_ntehgenoa ope_ratória ~ a ideologia poderemos en- jeitos quando agem uns sobre os outros se reduzem na realidade
tao determinar os verdadeiros níveis em jogo. a um só e mesmo sistema de conjunto, no qual o aspecto social
e o aspecto lógico são inseparáveis na forma como no conteúdo.
. Ora'. do ponto de vista das relações entre a lógica e a
vi~a social, vê-se de antemão o alcance do paradoxo da men- II. O ponto de vista sincrônico. - Se as realidades ló-
t~hdade primitiva e do problema geral assim posto das rela- gicas não ultrapassam o campo do pensamento, em oposição
çoes entre a técnica e a lógica: ao lado das trocas de pensa- à ação, e se o correto dos conceitos, julgamentos e raciocínios
mento propriamente dito, repousando sobre a comunicação é reduzir-se a elementos isoláveis, segundo um modelo ato-
verbal e a transmissão oral de verdades anteriores, existem místico, então é claro que a lógica e a troca social não têm
t~ocas de ação consistindo num ajustamento recíproco de mo- nada de comum, a não ser que uma pode condicionar a ou-
vimentos e ~e trabalhos, com transmissão de processos, mas tra. Mas se, pelo contrário, a lógica consiste em operações
um~ tran~missão que, mesmo no caso das técnicas "consagra- que procedem da ação, e se estas operações constituem por
das_ , supoe um~ ,:ºoperação efetiva ou em atos por oposição sua natureza mesma sistemas de conjunto ou totalidades, cujos
à simples submissao do espírito. A cada um dos níveis de in-
1()4 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 105

elementos são necessariamente solidários uns aos outros, en- fazer isso, cada um dos colaboradores pode escolher seu sis-
tão estes "agrupamentos" operatórios expressarão tanto os ajus- tema de referências, mas será necessário coordenar num só
tamentos recíprocos e interindividuais de operações, quanto esses dois sistemas de coordenadas, o que volta a fazer corres-
ponder por uma operação propriamente dita suas operações
as operações interiores do pensamento de cada indivíduo.
respectivas.

Partamos da técnica, cujas formas de equilíbrio são cons- Em suma, cooperar na ação é operar em comum, isto é,
tituídas simultaneamente por uma cooperação nas ações mes-
mas e por agrupamentos de operações concretas dos quais tra- ajustar por meio de novas operações (qualitativas ou métri-
tam~ acima. Eis dois indivíduos que se propõem a construir cas) de correspondência, reciprocidade ou complementarida-
cada um, sobre as duas bordas de um riacho, uma escada de de, as operações executadas por cada um dos parceiros. Ora,
pedras em forma de trampolim, e ligar estas duas escadas por acontece assim com todas as colaborações concretas: selecionar
uma prancha horizontal formando uma ponte. Em que vai junto objetos segundo suas qualidades, construir com muitas
consistir sua colaboração? A ajustar umas às outras algumas pessoas um esquema topográfico, etc. e coordenar as opera-
ações, das quais umas são semelhantes e se correspondem por
ções de cada parceiro num só sistema operatório, cujos atos
suas características comuns (p. ex., fazer escadas da mesma
forma e da mesma largura), das quais as segundas são recí- mesmos de colaboração constituem as operações integrantes.
procas ou simétricas (p. ex., orientar as vertentes verticais Mas, então, onde está a parte do social e a parte do indivi-
das escadas face ao rio, isto é, uma em face da outra, e as dual? Analisando a cooperação como tal (isto é, uma vez ex-
vertentes inclinadas, do lado oposto) e das quais as terceiras cluídos os elementos ideológicos ou sociocêntricos que podem
são complementares (um dos bordos do rio sendo mais alto acompanhá-la ou deformá-la), elas se resolvem, pois, em ope-
que o outro, a escada correspondente será menos alta, en-
rações idênticas às que se observam em estados de equilíbrio
quanto a outra comportará um degrau a mais para alcançar a
mesma altura). Mas, como se vai efetuar este ajustamento de da ação individual. Mas estas operações das quais se livram os
açõe~? ~rimeiramente, por meio de uma série de operações indivíduos, atingido o nível de equilíbrio dos agrupamentos
qu~htat~vas: correspondência das ações a elementos comuns, operatórios concretos, são elas mesmas de natureza individual?
re:iprocidade das ações simétricas, adição ou subtração das Não mais, e por razões recíprocas. O indivíduo começa por
açoes complementares, etc. Logo, se cada uma das ações dos
ações irreversíveis, não compostas logicamente entre elas, e ego-
c?laborado~es,. sendo regulada por leis de composição rever-
sivel, constltm uma operação, o ajustamento destas ações de cêntricas, isto é, centradas sobre elas mesmas e sobre seu re-
um . cola?orador a outro (ist~ é, sua colaboração mesmo) sultado. A passagem da ação à operação supõe, pois, no indi-
consiste. igu~lmente em operaçoes: estas correspondências, es- víduo, uma decentração fundamental, condição do agrupamen-
t~s reciproci?ades ou simetrias e estas complementaridades to operatório, e que consiste em ajustar as ações umas às ou-
sao, com efeito, operações como as outras, assim como cada tras, até poder compô-las em sistemas gerais aplicáveis a to-
um~ ~as ações respectivas dos colaboradores. Em seguida, in-
tervir~o operações concretas de medida: para obter uma lar- das as transformações: ora, são precisamente estes sistemas que
g~ra i~ual, cada u~ dos parceiros medirá sua escada, depois permitem unir operações de um indivíduo às dos outros.
ªJustarao sua medida, mas este ajustamento consistirá nova- É evidente que apenas um único e mesmo processo de con-
mente numa operação propriamente dita da mesma natureza junto intervém nestas diferentes situações: por um lado, a
pois será necessário utilizar um meio-termo ou uma medid~
cooperação constitui o sistema das operações interindividuais,
comum para igualar as medidas respectivas . Por fim, será ne-
cessário determinar junto à horizontalidade da prancha, sen- isto é, dos agrupamentos operatórios que permitem ajustar umas
do que cada um deverá ajustar uma das extremidades: para às outras as operações dos indivíduos; por outro lado, as ope-
106 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPUCAÇÃO EM SOCIOLOGIA 107

rações individuais constituem o sistema das ações decentra- à lógica das proposições suas regras fundamentais de agrupa-
das e suscetíveis de se coordenar umas às outras em agrupa- mento.
mentos que englobam as operações do outro, assim como as ope-
rações próprias. A cooperação e as operações agrupadas são, Está claro, primeiramente, que uma troca de idéias, isto
pois, uma única e só realidade vista sob dois aspectos dife- é, de proposições obedece, do ponto de vista de sua forma
rentes. Não há, pois, lugar para perguntar se é a constitui- exterior, ao esquema das trocas em geral que descrevemos
ção dos agrupamentos de operações concretas que permite a (§ 5). Mas, no caso particular das proposições os valores reais
r e s e os valores virtuais t e v, resultantes das trocas entre
formação da cooperação, ou vice-versa: o "agrupamento" é a dois indivíduos x e x', tomam a seguinte significação: r (x)
forma comum de equilíbrio das ações individuais e das intera- exprimirá o fato de que x enuncia uma proposição, isto é, co-
ções interindividuais, porque não existem dois modos de equi- munica um julgamento a x'; s (x') marcará em troca o acordo
librar as ações e porque a ação sobre o outro é inseparável (ou o desacordo) de x', isto é, a validade atual que ele atri-
_bui à proposição de x; t (x') traduzirá, por outro lado, a ma-
da ação sobre os objetos.
neira pela qual x' conservará (ou não) seu acordo ou seu
Mas, o que já é transparente no terreno das operações desacordo, isto é, esta validade atualmente reconhecida ou ne-
concretas o é ainda mais no das operações formais, isto é, das ada por ele, mas que e1e poderia negligenciar em seguida;
v x) enfim é, mas aesta vez do ponto de vista de x, a validade
trocas de pensamento independentes de qualquer ação ime-
futura da ro osição enunciada em r (x) e reconhecida (ou
diata. Com efeito, os agrupamentos de operações formais cons- negada) em s (x'). Temos em suma r (x) ~ s (x') ~ t (x') ~
tituem a lógica das proposições: ora, uma "proposição" é ato de ~ v (x), etc. No caso em que é este x' que comunica uma
comunicação, como insistiu, do ponto de vista formal, o Cír- proposição a x, temos inversamente r (x') ~ s (x) ~ t (x) ~
culo de Viena, que reduz a lógica a uma "sintaxe" e a úma ~ v (x'); estas duas sucessões são marcantes, sendo cada uma,
re resentante dos valores atribuídos sucessivamente às propo-
"semântica" gerais, logo às coordenações de uma linguagem,
~ições enunciadas pelos parceiros x e x'. Em outras palavras,
e de um ponto de vista psicológico à escola de Mannoury que uma troca de proposições é, do ponto de vista da partida, um
reconduz a lógica a um conjunto de atos concretos de comu- sistema de avaliações como um outro, e que, sem a intervenção
nicação social. A lógica das proposições é, pois, devida à sua das regras especiais de conservação, não obedeceria senão a sim-
natureza mesma, um sistema de trocas, mesmo que as propo- ples regulações; assim, num diálogo qualquer, cada um pode
esquecer o que diz o interlocutor, mesmo que tenha preceden-
sições trocadas sejam as do diálogo interior ou de vários su-
ti~mente concordado; ou inversamente se deter no que já exis-
jeitos distintos, pouco importa. O problema está então em de- tia, enquanto o parceiro mesmo mudou de opinião. Como,
terminar em que consiste esta troca, do ponto de vista socio- pois, uma troca de idéias vai-se transformar numa troca re-
lógico ou real, depois em comparar suas leis às da lógica gulada e constituir assim uma cooperação real de pensamento?
formal mesmo. Ora, a troca das proposições é seguramente mais Deve-se primeiramente precisar o destino ulterior dos va-
complexa do que a das operações concretas, pois esta última lores v (x) e t (x') ou v (x') e t (x): quando a validade da pro-
posição enunciada por x em r (x) foi reconhecida por x', que
se reduz a uma alternância ou a uma sincronização de ações conserva seu reconhecimento sob a forma t (x'), então x pode
concorrendo a um fim comum, enquanto a primeira supõe invocar ulteriormente este valor de reconhecimento sob a for-
um sistema mais abstrato de avaliações recíprocas, de defini- ma v (x) para agir sobre as proposições de x'. Donde a suces-
ções e de normas. Entretanto, iremos ver que esta troca cons- são v (x) ~ t (x') ~ r (x') ~ s (x); ou, no sentido inverso,
titui também um agrupamento de operações e que são as con- (se x' evoca v (x') para agir sobre x):v (x') ~ t (x) ~ r (x) ~
s (x'). Dito de outra forma, o papel dos valores virtuais de
servações obrigadas próprias a tal agrupamento que impõem ordem t e v é o de obrigar, sem cessar, o parceiro a respeitar
108
A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA 109
ESTUDOS SOCIOLóGICOS

A segunda condição é a igualdade geral dos valores em


as proposrçoes anteriormente reconhecidas, e a aplicá-las às
suas proposições ulteriores. Deve -se observar ainda que, con- jogo nas sucessões r (x) ~ s (x') ~ t (x') ~ v (x) ou r (x')
forme a uma lei geral das interações sociais, toda conduta ~ s (x) ~ t (x) ~ v (x'), dito de outra forma a) o acordo
dirigindo-se inicialmente a outra é aplicada na sucessão pelo sobre os valores reais, seja r = s e b) a obrigação de conser-
sujeito mesmo, de tal forma que x enunciando a proposição var as proposições reconhecidas anteriormente (valores vir-
r (x) será ele mesmo satisfeito, donde s (x) e se obrigará a re- tuais t e v, suscetíveis de ser realizadas na sucessão das trocas).
conhecer nele sua validade ulterior, donde t (x) e v (x).
Com efeito, se não há acordo, seja r (x) = s (x') ou r (x') =
= s (x), não p0deria haver equilíbrio, e a discussão conti-
Dito isto, pode-se tirar dois ensinamentos de tal esque- nuaria. Por outro lado, se o acordo for sempre posto em questão,
matização: pode-se querer em primeiro lugar determinar as ainda não p0deria haver equilíbrio. Ora, sem a intervenção de
condições de equilíbrio da troca, isto é, as características do regras, isto é, de uma conservação obrigada, as validades an-
estado no qual os interlocutores se encontrarão de acordo ou teriormente reconhecidas se desagregariam quando de uma
intelectualmente satisfeitos; em segundo lugar, pode-se mos- nova troca, e teríamos, p. ex., s (x') > t (x') ou s (x) > t (x);
trar que estas condições de equilíbrio implicam precisamente ou, pelo contrário, as negações anteriores seriam esquecidas
um agrupamento das proposições, isto é, fazer um conjunto e teríamos s (x') < t (x'), etc. A discussão só é, pois, possível
de regras que constitui uma lógica formal. É este segundo pon- mediante as conservações s (x') = t (x') = v (x) e s (x) =
to que desejamos assinalar, pois se trata de fazer perceber que = t (x) = v (x'), o que mostra de antemão o caráter norma.
a troca mesma das prop0sições, enquanto conduta social, com- tivo de toda troca de pensamento regulada por oposição às
porta por suas próprias leis de equilíbrio uma lógica coin- regulações de uma troca de idéias baseada em simples interesses
cidindo com a lógica que usam os indivíduos para agrupar momentâneos.
suas operações formais. A terceira condição necessária de equilíbrio é a atuali-
zação p0ssível em todo o tempo dos valores virtuais de ordem
No que concerne primeiramente ao equilíbrio das trocas,
é fácil de ver que ele comporta três condições necessárias e t e v, dito de outra forma, a possibilidade de retomar sem
suficientes. A primeira é que x e x' estejam de posse de uma cessar às validades reconhecidas anteriormente. Esta reversi-
bilidade toma a forma: [r(x) = s (x') = t (x') = v (x)] ~
escala comum de valores intelectuais, expressos pür meio
de símbolos comuns unívocos. A escala comum deverá, pois.,.
[v (x) = t (x') = r (x')= s (x)] e acarreta a reciprocidade
comportar três características complementares: a) uma lingua-
r (x) = r (x') e s (x) = s (x'), etc.

gem, comparável ao que é o sistema de sinais monetários fi-


Antes de mostrar como estas condições de equilíbrio acar-
duciários para a troca econômica; b) um sistema de noções retam a constituição de uma lógica, convém ainda observar
definidas , seja que as definições de x e de x' convirjam in- que estas três condições são realizadas somente em certos ti-
teiramente, seja que divirjam em parte, mas que x e x' pos- PoS de troca, que podemos designar por definição do termo
suam uma mesma chave permitindo traduzir noções de um de cooperação, em oposição com as trocas desviadas por um
fator seja de egocentrismo seja de coação . Com efeito , o equi-
dos parceiros no sistema do outro; e) certo número de propo- líbrio não poderia ser atingido quando, por egocentrismo in-
sições fundamentais colocando estas noções em relação, admi- telectual, os parceiros não conseguissem coordenar seus pontos
tidas por convenção e às quais x e x' p0ssam referir-se em de vista: falta então a primeira condição (escala comum de
caso de discussão. valores) e a terceira (reciprocidade) de onde a impossibilidade
110 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOL O GIA Ili

de atingir a segunda (conservação), por falta de obrigação sen- teórico, a cooperação no plano das trocas concretas supõe, pois,
tida por uma parte e pela outra: as palavras são tomadas em uma conquista contínua sobre os fatores de automatização e
sentidos diferentes pelos interlocutores, e nenhum recurso é de desequilíbrio. Quem diz autonomia, em oposição à ano-
possível às proposições reconhecidas como válidas anteriormen- mia e à heteronomia, diz, com efeito, atividade disciplinada
te, pois o indivíduo não se sente obrigado a levar em consi-
deração o que admitiu ou disse. No caso das relações intelec- ou autodisciplina, a igual distância da inércia ou da atividade
tuais onde intervém, sob uma forma ou outra, um elemento forçada. É onde a cooperação implica um sistema de normas,
de coação ou de autoridade, as duas primeiras condições pa- diferindo da suposta livre troca cuja liberdade se torna ilu-
recem, em compensação, preenchidas. Mas a escala comum dos sória pela ausência de tais normas. E é porque a verdadeira
valores se deve então a uma espécie de cours forcé devido à cooperação é tão frágil e tão rara no estado social dividido
autoridade dos usos e das tradições, enquanto, por falta de
reciprocidade, a obrigação de conservar as proposições ante- entre os interesses e as submissões, assim como a razão per-
riores só funciona num sentido único (p. ex., x obrigará x' manece tão frágil e tão rara em relação às ilusões subjetivas
e não o contrário): acontece que, por mais cristalizado e só- e aos pesos das tradições .
lido em aparência que seja um sistema de representações cole-
tivas impostas por coação, de gerações a gerações, ele não O equilíbrio das trocas assim caracterizado comporta, pois,
constitui um estado de equilíbrio verdadeiro ou reversível na
ausência da terceira condição, mas um estado de "falso equi- essencialmente um sistema de normas, em oposição às simples
líbrio" (como se diz em física para os equilíbrios aparentes regulações . Mas, então, é visível que estas normas constituem
devidos à viscosidade, etc.); a intervenção da discussão livre agrupamentos que coincidem com os da lógica mesmo das pro-
bastará, pois, para deslocá-los . O estado de equilíbrio, tal posições, apesar de não admitirem essa lógica em seu ponto de
como é definido pelas três condições precedentes, está assim partida .
subordinado a uma situação social de cooperação autônoma,
fundamentada sobre a igualdade e a reciprocidade dos parcei- Em primeiro lugar, independentemente das condições ini-
ros, e se liberando simultaneamente da anomia própria ao ego- ciais que determinam as proposições de x, seja r (x) e o acordo
centrismo e da heteronomia própria à coação. de x', seja s (x'), ou o inverso, a obrigação de conservar as va-
Mas é necessário precisar que a cooperação, ta l como a lidades reconhecidas, isto é, a conservação obrigada dos va-
definimos por suas leis de equilíbrio e a opomos ao duplo lores virtuais t (x') e v (x), ou o inverso, acarreta ipso facto
desequilíbrio do egocentrismo e da opressão, difere essencial - a constituição de duas regras, que aparecem assim como re-
mente da simples troca espontânea, quer dizer do laissez-faire gras de comunicação ou de troca, abstração feita ao equilíbrio
tal como o concebia o liberalismo clássico. É claro, com efeito,
interno das operações individuais: o princípio de identidade,
que sem uma disciplina assegurando a coordenação dos pon-
mantendo invariante uma proposição durante trocas ulterio-
tos de vista por meio de uma regra de reciprocidade, a "livre
res, e o princípio de contradição conservando sua verdade se
troca" fracassa continuamente, seja devido ao egocentrismo
ela é reconhecida verdadeira, ou sua falsidade se ela é decla-
(individual, nacional ou resultante da polarização da socie-
rada falsa, sem possibilidade de afirmá -la e negá-la simulta-
dade em classes sociais), seja d~vido às coações (devidas às
neamente.
lutas entre tais classes, etc.) . A passividade da livre troca, a
noção de cooperação opõe assim a dupla atividade de uma Em segundo lugar, a atualização sempre possível dos fa-
decentração, em relação ao egocentrismo intelectual e moral tores virtuais v e t obriga assim reciprocamente os parceiros
e de uma liberação em relação às coações sociais que este ego- a retornar sempre para conciliar as proposições atuais às
centrismo provoca ou mantém. Como a relatividade no plano proposições anteriores; a conservação obrigada da qual acaba-
112 ESTUDOS SOCIOLóGICOS A EXPLICAÇÃO EM SOCIOLOGIA llJ

mos de tratar não permanece, pois, estática, mas acarreta o teúdo a comunicação de uma operação efetuada por um in-
desenvolvimento da propriedade fundamental que opõe o pen- divíduo: o agrupamento resultante do equilíbrio das opera-
samento lógico ao pensamento espontâneo: a reversibilidade ções individuais e o agrupamento exprimindo a troca mesma
operatória, fonte de coerência de toda a construção formal. se constituem juntos e são somente as duas faces de uma mes-
Enfim, assim reguladas pela reversibilidade e pela conserva- ma realidade. Nunca um indivíduo só seria capaz de conser-
ção obrigada, as produções ulteriores de proposições, r (x) ou vação inteira e de reversibilidade completa, e estas são as exi-
r (x') e os acordos dos possíveis entre parceiros, s (x') ou s (x) gências da reciprocidade que lhe permitem esta dupla con-
tomam necessariamente uma das três mormas seguintes: a) quista, por intermédio de uma linguagem comum e de uma
as proposições de um podem corresponder simplesmente às do escala comum de definições. Mas em troca a reciprocidade só
outro, de onde um agrupamento apresentando a forma de uma é possível entre sujeitos individuais capazes de pensamento
correspondência termo a termo entre duas séries isomorfas de equilibrado, isto é, apto a esta conservação e a esta reversibi-
proposições; b) as de um dos parceiros podem constituir o si- lidade imposta pela troca. Em suma, de qualquer maneira
métrico das proposições do outro, o que supõe seu acordo so- que voltemos à questão, as funções individuais e as funções
bre uma verdade comum (do tipo a) justificando a diferença coletivas chamam-se umas às outras na explicação das condi-
de seus pontos de vista (p. ex ., no caso de duas posições es- ções necessárias ao equilíbrio lógico. Quanto à lógica mesma,
paciais modificando as relações de esquerda e de direita ou ela ultrapassa ambas, pois depende do equilíbrio ideal ao qual
tendem as duas. Não significa dizer que existe uma lógica
de duas posições nas relações de parentesco tais como os irmãos
em si, que comandaria simultaneamente as ações individuais
de um dos parceiros serem primos do outro e reciprocamen-
e as ações sociais, pois a lógica é a forma de equilíbrio ima-
te); e) as proposições de um dos parceiros podem completar
nente ao processo de desenvolvimento destas ações mesmas.
simplesmente as do outro, por adição entre conjuntos comple-
Mas as ações, tornando-se compostas e reversíveis, adquirem,
mentares.
elevando-se assim à posição de operações, o poder de se subs-
Assim, a troca mesmo das proposições constitui uma lógi- tituir umas pelas outras. O "agrupamento" só é, pois, um
ca, pois acarreta o agrupamento das proposições trocadas: um sistema de substituições possíveis, seja no seio de um mesmo
agrupamento próprio a cada parceiro, em função de suas tro- pensamento individual (operações da inteligência), seja de um
cas com o outro, e um agrupamento geral devido às corres- indivíduo por outro (cooperação social compreendida como um
pondências, às reciprocidades ou às complementaridades de sistema de cooperações) . Estas duas espécies de substituições
seus agrupamentos solidários. A troca como tal constitui, pois, constituem então uma lógica geral, ao mesmo tempo coletiva
uma lógica, que converge com a lógica das proposições indi- e individual, que caracteriza a forma de equilíbrio comum
viduais. tanto às ações sociais quanto às individualizadas. É esse equi-
líbrio comum que axiomatiza a lógica formal.
Donde, novamente, a questão tratada a propósito das ope-
rações concretas: esta lógica da troca resulta de agrupamentos
individuais preliminares ou o inverso? Mas a solução se im-
põe de maneira muito mais simples ainda do que no caso
das operações concretas, pois uma "proposição" é, por essên-
cia, um ato de comunicação que constitui sempre em seu con-

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