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JUNG E A

INDIVIDUAÇÃO*

NILDO VIANA**

Resumo: o presente artigo apresenta uma análise da concepção junguiana sobre o desenvol-
vimento da personalidade e uma breve consideração sobre esse processo e a formação social
do indivíduo tal como é entendido por outros autores. Assim, após uma síntese da concepção
de Carl Gustav Jung, que remete ao problema da individuação, a comparamos com a con-
cepção oriunda da sociologia e outras abordagens que tratam do fenômeno da socialização.
Disso resulta uma perspectiva crítica da análise junguiana, sem descartar o conjunto de
suas contribuições. O maior problema da análise de Jung é, simultaneamente, o seu grande
mérito: a análise da mente como totalidade psíquica. Essa concepção tem como problema a
autonomização da psique humana, o que a desliga do social, sendo este o determinante da
mente humana. O mérito foi ter focalizado o universo psíquico do ser humano, desde que
entendamos não como ele o fez, como autonomização, e sim como foco. Desta forma, compre-
endendo como foco e não autonomia, podemos usar a concepção junguiana para compreender
o fenômeno psíquico.

Palavras-chave: Jung. Individuação. Socialização. Mente. Personalidade

A 
obra de Carl Gustav Jung é uma das mais importantes no interior da psicanálise.
A psicanálise, fundada por Freud, teve um desenvolvimento que promoveu algumas
cisões internas, sendo que a cisão de Adler foi a primeira que gerou forte impacto e
toda uma corrente psicanalítica distinta da freudiana e a de Jung, a segunda que gerou uma
nova tendência no interior da psicanálise1. Após a colaboração com Freud e o rompimento,
Jung desenvolve uma nova concepção psicanalítica que abrange um grande número de teses,

* Recebido em: 21.06.2017. Aprovado em: 19.12.2017.


** Pós-Doutor pela USP. Doutor em Sociologia (UnB). Professor da Faculdade de Ciências
Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFG). E-mail: nildoviana@
ymail.com
486 DOI 10.18224/frag.v27i4.5706 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 4, p. 486-494, out./dez. 2017.
termos, temas. No interior da vasta produção intelectual de Jung escolhemos o tema da
individuação, não só por considerar que é um tema fundamental para a psicanálise, mas
também por ser uma questão central no pensamento junguiano.
No curto espaço que temos para desenvolver a nossa análise da concepção junguiana,
teremos que ser sintéticos e nos limitarmos aos aspectos essenciais. O presente artigo é compos-
to por duas partes: uma que visa expor a concepção junguiana e outra que visa refletir sobre ela.
Após uma breve síntese da análise junguiana da individuação, trabalhando com sua terminolo-
gia e explicação do desenvolvimento da personalidade, passaremos para uma análise crítica da
mesma, explicitando elementos para uma psicanálise orientada criticamente e tendo a sociedade
como pressuposto, ou seja, abordando o processo de individuação e desenvolvimento da per-
sonalidade no interior do conjunto das relações sociais. Esse último procedimento tem como
principal aspecto o reencontro entre individuação e socialização, o indivíduo e a sociedade.

JUNG E O DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE

A obra de Jung e sua análise da individuação remetem para vários construtos, entre
os quais inconsciente pessoal, inconsciente coletivo, persona, sombra, anima, animus, etc. e que
formam uma concepção do desenvolvimento da personalidade. Segundo Jung (1978, p. 49):

Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade’


entenderemos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também
que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo. Podemos, pois, traduzir ‘individuação’ como
‘tornar-se si mesmo’ (Verselbstung) ou ‘o realizar-se do si mesmo’ (Selbstwerwirklichung).

O processo de individuação não é algo simples. É um processo complexo e permeado


por fases e dificuldades. Antes da individuação ocorre a alienação. As várias possibilidades de de-
senvolvimento do indivíduo podem ser denominadas “alienações do si-mesmo” (JUNG, 1978).
Essas alienações são “modos de despojar o si-mesmo de sua realidade, em benefício de um papel
exterior ou de um significado imaginário”, que, “em ambos os casos, verifica-se uma preponde-
rância do coletivo” (JUNG, 1978, p. 49). No entanto, a individuação é um movimento para
a realização, ou melhor, para a autorrealização. “Todo ser tende a realizar o que existe nele em
germe, a crescer, a completar-se. Assim é para a semente do vegetal e para o embrião do animal.
Assim é para o homem, quanto ao corpo e quanto à psique” (SILVEIRA, 1983).
Assim, podemos dizer que existem duas tendências no interior da psique humana:
alienação e individuação. O processo de individuação é um processo conflituoso e por isso
não é linear. O indivíduo para se tornar específico e inteiro, precisa passar pelo confronto
entre inconsciente e consciência, através do conflito e da colaboração, que gera o amadureci-
mento através dos diversos componentes da personalidade (SILVEIRA, 1983). Ele significa
a tendência instintiva no sentido de realizar sob forma plena as potencialidades humanas
inatas2. A individuação possui algumas fases, sendo que a primeira é a retirada da máscara, ou
do que Jung denomina persona.

A individuação obrigava a abandonar a confortável segurança da identificação do


quem-eu-sou com o-que-eu-faço, nossos papeis familiares, pessoais e sociais, a que
Jung chamava a persona ou máscara social. Por exemplo, a persona de Jung era ser um

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médico ou psiquiatra. A dissolução dessa persona era necessária para o desenvolvimento
porque ela não passa de um segmento da psique coletiva. Tal máscara apenas estimula
nossa individualidade, mas não a exprime. Descobrimos, na análise, que o que pen-
samos ser individual e exclusivo em nós é, na verdade, coletivo, um falso sistema do
Self interiorizado (STAUDE, 1995, p. 106).

Ao superar o papel social que constitui a persona, que cumpre a função de um


sistema de defesa, o indivíduo se defronta com o lado obscuro da psique humana: a sombra.
Ela faz parte da personalidade total do indivíduo e é aquilo que não aceitamos em nós, o
que consideramos repugnante, o que reprimimos e projetamos sobre os outros. Embora a
sombra seja um conjunto de componentes diferenciados (fraquezas, imaturidade, complexos
reprimidos, forças maléficas) considerados negativos, ela também possui “traços positivos”
(JUNG, 1987): qualidades não desenvolvidas por razões externas ao indivíduo ou então falta
de energia suficiente para superá-las (SILVEIRA, 1983).

Trazemos em nós o nosso passado, isto é, o homem primitivo e inferior com seus apetites
e emoções, e só com um enorme esforço podemos libertar-nos desse peso. Nos casos de
neurose, deparamos sempre com uma sombra consideravelmente densa. E para curar-se
tal caso, devemos encontrar um caminho através do qual a personalidade consciente e a
sombra possam conviver (JUNG, 1987, p. 81).

A sombra remete ao inconsciente pessoal3 e este é uma camada que é de natureza


pessoal, sendo “aquisições derivadas da vida individual e em parte por fatores psicológicos”
(JUNG, 1978, p. 11). É parte integrante da personalidade e se diferencia do inconsciente co-
letivo, que possui elementos de ordem impessoal, coletiva, formado por “categorias herdadas”
ou “arquétipos” (JUNG, 1978).
Um último elemento que Jung reconhece na formação da personalidade é, no sexo
masculino, a confrontação com a anima, e, no sexo feminino, a confrontação com o animus.
Em cada homem existe “uma minoria de gens femininos que foram sobrepujados pela maioria
de gens masculinos” (SILVEIRA, 1983) e a anima é a representação psíquica dessa minoria de
gens femininos, constituindo uma feminilidade inconsciente no homem. Ela também expressa
a experiência milenar do homem com a mulher (formando a imagem da mãe, que é transposta
para a namorada, esposa ou amante). Da mesma forma, em cada mulher existe “uma minoria
de gens masculinos” também sobrepujados por uma maioria de gens femininos e o animus é
sua representação no psiquismo feminino. O animus se manifesta como “intelectualidade mal
diferenciada e simplista” (SILVEIRA, 1983). O animus também expressa a experiência milenar
da mulher com o homem, formada, principalmente, na imagem do pai, transferida depois para
o professor, o ator, o esportista ou o líder político. Após essa confrontação, quando há a supera-
ção das personificações da anima e do animus, o inconsciente se altera e emerge o self. Esse é o
núcleo mais interior da psique e aparece nos sonhos masculinos como o sábio, mestre espiritual,
filósofo e nos sonhos femininos como sacerdotisa, deusa mãe ou deusa do amor.

O self (si mesmo) não se revela apenas através de personificações humanas. Sendo uma
grandeza que excede de muito a esfera do consciente, sua escala de expressões estende-se
de uma parte ao infra-humano e de outra parte super-humano. Assim, seus símbolos po-

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dem apresentar-se sob aspectos minerais, vegetais, animais; como super-homens e deuses.
Também sob formas abstratas. A denominação de self não cabe unicamente a esse centro
profundo, mas também à totalidade da psique. O reconhecimento da própria sombra,
a dissolução de complexos, liquidação de projeções, assimilação de aspectos parciais do
psiquismo, a descida ao fundo dos abismos, em suma, o confronto entre consciente e
inconsciente, produz um alargamento do mundo interior do qual resulta que o centro da
nova personalidade, construída durante todo esse longo labor, não mais coincida com o ego.
O centro da personalidade estabelece-se agora no self, e a força energética que este irradia
englobará todo o sistema psíquico. A consequência será a totalização do ser, sua esferificação
(abrundung). O indivíduo não estará mais fragmentado interiormente. Não se reduzirá a
um pequeno ego crispado dentro de estreitos limites. Seu mundo agora abraça valores mais
vastos, absorvidos do imenso patrimônio que a espécie penosamente acumulou nas suas
estruturas fundamentais. Prazeres e sofrimentos serão vivenciados num nível mais alto de
consciência. O homem torna-se ele mesmo, um ser completo, composto de consciente e
inconsciente incluindo aspectos claros e escuros, masculinos e femininos, ordenado segundo
o plano de base que lhe for peculiar (SILVEIRA, 1983, p. 99-100).

É nesse momento que se conclui o processo de individuação. Caso não ocorra, o


estágio anterior fixado gera neuroses e outros processos limitativos do desenvolvimento da
personalidade. O encontro com o self, o núcleo da personalidade, possibilita a integração da
totalidade da personalidade4.

JUNG, PERSONALIDADE E SOCIEDADE

A breve descrição da concepção junguiana do desenvolvimento da personalidade é


fundamental para realizarmos um confronto entre sua abordagem e a de outros psicanalistas,
focalizando a questão da sociedade. O campo perceptivo de Jung é a mente humana enquan-
to que a sociologia tem a sociedade como domínio temático, assim como a antropologia se
dedica à cultura e outras ciências humanas outros aspectos da sociedade (ciência política,
historiografia, economia, etc.).
O que Jung denomina “individuação” é um processo psíquico no qual a sociedade
pouco aparece. Erich Fromm também discute o processo de individuação, mas o faz mostran-
do não apenas o desenvolvimento do universo psíquico individual, pois apresenta também
que se trata de um processo social (FROMM, 1981). É esse processo que possibilitou algumas
críticas ao pensamento junguiano:

Jung considerava a ‘individuação’ e a ‘coletividade’ como um par de opostos. Críticos


de Jung objetaram quanto ao fato de que ele não tinha um senso de sociedade, de que a
individuação só é possível quando o indivíduo obtém sua individuação às custas de um
trabalho equivalente em benefício do coletivo, da sociedade. Só os que pagaram seu preço
à sociedade por iniciativa própria podem atingir os níveis mais elevados da individuação
(STAUDE, 1995, p. 107).

Aqui temos a sociedade (ou “coletividade”) aparecendo e um questionamento rea-


lizado por alguns ao pensamento de Jung. A sociedade, segundo Staude, é um par oposto ao
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processo de individuação. Como observamos anteriormente, a individuação é conquistada
superando a persona, ou seja, o que alguns sociólogos e psicólogos chamariam de “papeis
sociais”. Essa oposição requer uma compreensão crítica da sociedade. Contudo, Jung não
demonstra possuir uma análise mais profunda da sociedade5 e nem do impacto dessa sobre os
indivíduos. O impacto do social sobre o individual é um dos principais temas da sociologia e
em alguns autores aparece com o nome de socialização. O processo de socialização, abordado
por vários sociólogos, é inverso ao de individuação, no sentido junguiano.
No processo de socialização observamos como o indivíduo se torna um ser social.
Esse fenômeno pode ser visto sob formas distintas. Ele pode ser percebido através de uma
concepção dualista da natureza humana, que seria, por um lado, egoísta, e, por outro, social,
e por isso a socialização visa tornar o indivíduo um ser social e adaptá-lo à sociedade (DUR-
KHEIM, 1974). Também pode ser considerado um processo que tem a incumbência de for-
mar o ser social, mas, simultaneamente, para determinado lugar na sociedade (dependendo
da classe social, entre outras divisões sociais), para determinada forma histórica de socieda-
de (a sociedade escravista ou feudal geram indivíduos diferentes adaptados a elas). Assim, a
incumbência universal da socialização é formar o ser social, é um processo de humanização.
A incumbência histórico-particular é para ele se preparar para viver em determinada socieda-
de e determinada posição no seu interior (VIANA, 2011).
Aqui nos deparamos com a posição junguiana. A oposição entre indivíduo e so-
ciedade é relativa, depende de cada sociedade histórica particular, e por isso a sua tese uni-
versalista é problemática, pois, retirando as diferenças que atribui ao oriente e ocidente, que
fica no nível mental (JUNG, 1986), não apresenta uma percepção da evolução histórica da
humanidade, as formas de sociedade, as características fundamentais da sociedade moderna.
Estas ficam ausentes em sua análise (VIANA, 2002). O único processo social mais relevante
que Jung reconhece na sociedade moderna é a especialização e profissionalização, que gera a
persona, e a racionalização, que gera o sufocamento do inconsciente (JUNG, 1988)6.
Assim, a crítica a Jung pelo fato dele desconsiderar a responsabilidade social do in-
divíduo, é equivocada e Staude está correto nesse aspecto. Contudo, a crítica mais profunda
segundo a qual a sociedade e o processo de constituição social do indivíduo está ausente, bem
como a concreticidade desse processo, não é respondida. Um exemplo pode esclarecer isso.
A discussão sobre anima e animus, em Jung, é problemática por universalizar algo que, mes-
mo tendo um elemento universal, não é totalmente universal. A ideia de existência de gens
femininos e que isso explicaria o pendor sentimental do homem e a existência de gens mas-
culinos que explicaria o pendor racional das mulheres é algo que as informações produzidas
por antropólogos e sociólogos demonstram ser equivocado. A antropóloga Margareth Mead,
mostra, ao analisar três tribos indígenas, três formas de manifestação de temperamento de
homens e mulheres, sendo que uma é igual à nossa sociedade (e, portanto, de acordo com o
esquema junguiano), outra é o contrário (as características consideradas, em nossa sociedade,
femininas são desenvolvidas pelos homens e as masculinas pelas mulheres), e uma terceira na
qual ambos os sexos revelam um equilíbrio entre ambas (MEAD, 1988)7.
Isso significa que existe uma socialização diferencial entre os sexos e dentre os aspec-
tos diferenciais estão o “temperamento” ou os “ethos sexuais”. A constituição de ethos sexuais
rígidos é um elemento que pode gerar desequilíbrios psíquicos e Jung está correto em colocar
a necessidade de “confrontação” do homem com a anima e da mulher com o animus, pois são
potencialidades humanas que a socialização diferencial tolhe em cada um deles, pois ambos
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possuem capacidades intelectuais e racionais, bem como sentimentais. Esse mesmo processo
também existiu em outras sociedades, sob formas diferentes, devido ao processo histórico e
se reproduz na sociedade moderna. Logo, nada tem a ver com “gens masculinos” ou “gens
femininos”, não é uma questão genética ou orgânica e sim sociocultural, bem como não é
algo universal.
O que a análise histórica e social deve levar em conta, e assim contribuir com essa
discussão, é o grau em que cada um desses processos (racionalização, no sentido junguiano
da palavra, e sentimentalizacão) são introjetados pelos indivíduos e são um obstáculo para
o desenvolvimento de sua personalidade (no sentido junguiano, ou seja, sob forma integral).
É, nesse sentido, Jung está novamente correto ao observar o excessivo racionalismo da socie-
dade que ele chama de “ocidental”. O sufocamento dos sentimentos é algo muito intenso na
sociedade moderna e as explosões sentimentais são a resposta, muitas vezes violenta, e que
explica aspectos da modernidade.
Sem dúvida, uma compreensão mais profunda da sociedade e uma percepção mais
ampla da formação social do indivíduo seria fundamental para reconhecer que muitas carac-
terísticas humanas consideradas “universais” são, na verdade, produtos sociais e históricos8.
Elementos universais existem, mas mesmo estes podem ser reprimidos (o que é problemático
e fonte de desequilíbrios psíquicos) e assumirem distintas formas dependendo da sociedade
e da época. A sombra, que Jung considera parte da psique humana, pode ser concebida não
como algo universal e natural, sendo mais histórico e tendo a ver com as relações sociais e
a vida individual no interior dessas (VIANA, 2002), sem descartar a ação das “dicotomias
existenciais” (FROMM, 1978).
Da mesma forma, os elementos biológicos existem e são atuantes sobre o universo
psíquico individual, bem como os sociais, tal como apontados por Freud e Adler, respectiva-
mente. O próprio Jung reconhece9, embora não seja nosso objeto aqui. Essa ressalva é impor-
tante para que não se confunda nossa posição, pois o ser humano é um biossociopsíquico, o
que constitui sua complexidade. Freud enfatizou alguns aspectos, Adler outros, bem como
Rank, Fromm, Horney, entre outros, enfatizaram aspectos diferentes do ser humano, espe-
cialmente seu constituição social e cultural.
Nesse contexto, a psicanálise, no seu conjunto, permite a constituição de uma
percepção integral do ser humano, a partir da assimilação crítica das principais contribui-
ções psicanalíticas existentes. Uma concepção totalizante de ser humano é fundamental e a
contribuição de Jung, que aponta para a percepção de fenômenos psíquicos relativamente
autônomos10, segundo ele, traz importantes reflexões que podem ajudar o projeto de uma
reconstituição do ser humano como totalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista o que foi colocado no decorrer do presente texto, a psicologia analí-
tica de Jung aparece como um importante capítulo na história da psicanálise. Outras verten-
tes diferenciadas tentaram adaptar o legado de Freud ao desenvolvimento de novas tendências
ideológicas, como o estruturalismo (LACAN, 1992) e o existencialismo (MAY, 1974), além
das anteriormente citadas. Esse processo aponta para o reconhecimento de que, entre todas
as abordagens psicanalíticas, a de Jung ocupa um lugar fundamental, ao lado de Freud, Adler,
Fromm e outros.
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Uma das principais contribuições de Jung é o processo de individuação, foco de
nossa análise. O processo de individuação é explicitado na perspectiva do indivíduo em seu
processo de formação, o que teria, como processo determinante, o processo de socialização,
pensado na perspectiva social. Foi por esse motivo que apresentamos a concepção junguiana e
depois a comparamos com outras concepções, oriundas da sociologia e outras áreas do saber,
para recompor a totalidade que é o desenvolvimento da personalidade.
A nossa conclusão é a de que grande parte das análises de Jung é útil para um de-
senvolvimento da psicanálise, retirando o seu “invólucro místico”, tal como colocou Marx
em relação a Hegel (MARX, 1988). Assim, a contribuição de Jung deve ser reconhecida, mas
criticamente. Somente dessa forma é possível haver um discernimento sobre o que contribui
com a compreensão do universo psíquico dos seres humanos e o que é descartável. A abor-
dagem crítica é fundamental, mas também o cuidado para não jogar a criança fora da bacia
junto com a água suja. O que fizemos aqui foi a retenção da criança e o descarte da água suja.
E uma das grandes contribuições de Jung, a nosso ver, é o seu foco analítico na psi-
que humana e sua dinâmica própria. O problema ocorre em sua autonomização do psiquis-
mo, o que pode ser corrigido com sua inserção numa totalidade mais ampla que é a sociedade.
Alguns termos junguianos precisam se integrados ao processo analítico da mente humana,
como persona, sombra, entre outros. Para isso se tornar mais sólido é fundamental a releitura
de Jung e de seu significado no interior da história da psicanálise. Essa é a nossa conclusão e
que promove um amplo programa de pesquisa a ser realizado no futuro.

JUNG AND THE INDIVIDUATION

Abstract: this article presents an analysis of the Jungian conception about the development of per-
sonality and a brief consideration about this process and the social formation of the individual as
understood by other authors. Thus, after a synthesis of the conception of Carl Gustav Jung, which
refers to the problem of individuation, we compare it with the conception coming from sociology
and other approaches that deal with the phenomenon of socialization. This results in a critical pers-
pective of the Jungian analysis, without discarding the set of its contributions. The major problem
of Jung’s analysis is, at the same time, his great merit: the analysis of the mind as a psychic totality.
This conception has as its problem the autonomization of the human psyche, which disconnects it
from the social, which is the determinant of the human mind. The merit was to have focused the
psychic universe of the human being, provided we understand not how he did it, as autonomiza-
tion, but as focus. In this way, understanding as focus and not autonomy, we can use the Jungian
conception to understand the psychic phenomenon.

Keywords: Jung. Individuation. Socialization. Mind. Personality.

Notas

1 A psicanálise adleriana, bastante citada por Jung, pois seu rompimento e estruturação de uma interpretação
psicanalítica distinta da de Freud, ganhou um espaço que acabou se perdendo com o passar dos anos. Apesar
da psicanálise de Adler ter trazido conceitos fundamentais para a psicanálise, como a de “complexo de
inferioridade”, a historiografia da psicanálise não lhe faz a devida justiça, pois apesar de aparecer em capítulos
de livros sobre história da psicanálise, a profundidade e importância de sua contribuição não é levada em

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devida conta. Embora Adler e Jung tenham sido os primeiros e mais importantes dissidentes de Freud, esses
“desviacionistas de 1912” (THOMPSON, 1976) logo foram seguidos por outros: “nos inícios de 1920,
quatro outros discípulos de Freud ou se afastaram ou de qualquer modo discordaram em vários aspectos
com o movimento principal, nomeadamente Otto Rank, Wilhelm Stekel, Sandor Ferenczi (que, no entanto,
nunca rompeu completamente com Freud) e Wilhelm Reich” (BROWN, 1963, p. 49).
2 A individuação não é “sinônimo de perfeição” e também não significa individualismo ou egoísmo, tendo
mais o sentido de “completar-se”, aceitando o fardo de conviver com tendências opostas oriundas de sua
natureza sob forma consciente (SILVEIRA, 1983). “a acusação de individualismo é um insulto banal,
quando é dirigida ao desenvolvimento natural da personalidade” (JUNG, 1991, p. 179).
3 “A sombra coincide com o inconsciente freudiano e com o inconsciente pessoal junguiano” (SILVEIRA,
1983, p. 92).
4 Apesar de algumas interpretações diferentes, como a de Maroni (1998), é esse o processo que caracteriza
o desenvolvimento da personalidade em sua forma ideal, na perspectiva junguiana. Assim, o self pode ser
compreendido como núcleo e como totalidade da personalidade: “o self (Selbst) tem dupla definição: a)
como totalidade da personalidade; b) como arquétipo do centro da personalidade, arquétipo da orientação
e do sentido” (MARONI, 1998, p. 109).
5 Isso é comum na psicanálise, que é absolutamente compreensível, pois não é o campo perceptivo de
análise dos psicanalistas. Por outro lado, isso faz parte do próprio problema identificado por Jung, ou
seja, a persona e o apego à profissão, que, enquanto forma de especialização (inclusive intelectual, o que é
legitimado pela divisão de “objetos de estudo” das diversas ciências particulares), não só limita o indivíduo
no desenvolvimento da sua personalidade, mas também no desenvolvimento de sua consciência. Assim,
a psicanálise, por possuir uma compreensão limitada da sociedade, o que pode ser visto em Freud, Adler,
Jung e até mesmo na chamada “escola culturalista” (Horney e outros) e “freudomarxista” (Reich, Fromm,
etc.), que oferecem uma especial atenção aos problemas sociais e ao contexto social e cultural. Freud, o
fundador da psicanálise, nunca desenvolveu estudos mais profundos sobre a sociedade, sendo que quando
tratava dessa, suas referências eram psicólogos e não sociólogos e outros pesquisadores que tratam mais
diretamente dessa questão, e isso pode ser visto em sua abordagem da origem de determinados fenômenos
sociais na qual parte de mitos e lendas ao invés do processo histórico real, tal como sua análise da origem do
incesto (FREUD, 1974).
6 É justamente essa especificidade histórica que permite alguns autores julgar que a individuação (também
traduzida como “individualização”) é produto da sociedade capitalista: “O processo de ‘individualização’
tem, pois, as suas raízes nas relações de produção do modo de produção capitalista” (CARDOSO e
CUNHA, 1987). No entanto, consideramos que o mais correto é considerar que a individuação assume uma
característica específica na sociedade capitalista, que é tanto real (autonomia relativa do indivíduo) quanto
meramente discursiva (individualismo).
7 Não nos referimos aqui à questão da sexualidade, muito mais complexa, e que remeteria a diversas pesquisas,
com suas divergências analíticas, e sim ao modo de ser de homens e mulheres, ou “ethos sexuais”, que
também é um fenômeno biossociopsíquico.
8 No interior da psicanálise essa necessidade de abordar a socialização já foi sentida e uma primeira tentativa
de abordá-la mais sistematicamente já foi realizada (LORENZER, 2001).
9 Segundo Jung: “tenho plena consciência dos méritos de Freud, e não tenho intenção alguma de diminuí-
los. Sei, inclusive, que o que ele diz se adapta a um grande número de pessoas, e é possível afirmar que tais
pessoas têm exatamente o tipo de psicologia que ele descreve. Adler, cujo ponto de vista era completamente
diverso, também tem um grande número de seguidores, e estou convencido de que muitos têm uma
psicologia adleriana. Também tenho os meus – não são tão numerosos quanto os de Freud – pessoas que,
presumivelmente, têm a minha psicologia. Chego a considerar minha contribuição como minha própria
confissão subjetiva. É a minha psicologia que está nisso, meu preconceito que me leva a ver os fatos da minha
própria maneira. Mas espero que Freud e Adler façam o mesmo, e confessem que suas ideias representam
pontos de vista subjetivos. Desde que admitamos nosso preconceito estaremos realmente contribuindo para
uma psicologia objetiva” (apud. MARONI, 1998, p. 18-19). No entanto, não é possível concordar com
essa autora, pois a afirmação da existência de “psicologias múltiplas” em Jung e que isso estaria em acordo
com uma posição nietzschiana de crítica de noção da verdade, entra em contradição com a realidade. As
críticas de Jung, especialmente em relação a Freud, deixa isso relativamente claro: “não consigo ver onde
Freud consegue ir além de sua própria psicologia e como poderá aliviar o doente de um sofrimento do qual

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o próprio médico padece” (JUNG, 1989, p. 325). Da mesma forma, a multiplicidade de “psicologias” (que,
no caso, quer dizer “tipos psicológicos”) podem gerar diferentes pontos de vista subjetivos, mas somente
reconhecendo isso, como a psicologia junguiana, é que se pode chegar a uma psicologia objetiva, como faz
Jung. Por conseguinte, a abordagem junguiana está distante do relativismo. Esse é um procedimento psíquico
comum nos seres humanos e, tal como Jung, Freud fez o mesmo: “da mesma forma que a investigação de
Adler trouxe algo de novo à psicanálise – uma contribuição à psicologia do ego – e cobrou por esse presente
um preço demasiado alto jogando fora todas as teorias fundamentais da análise, assim também Jung e
seus seguidores prepararam o caminho para a sua uta contra a psicanálise, presenteando-a com uma nova
aquisição” (FREUD, 1978, p. 80).
10 A “autonomia do inconsciente”, ou da psique humana (JUNG, 1987), é uma das teses de Jung e que
ele utiliza para entender o fenômeno religioso, sob forma distinta de Freud e daqueles que ele denomina
“materialistas”.

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494 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 4, p. 486-494, out./dez. 2017.

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