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Enquanto quis Fortuna que tivesse

esperança de algum contentamento,


o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse


minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos


a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos...


E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos!

Luis de Camões

Pequena canção
Pássaro da lua,
que queres cantar,
nessa terra tua,
sem flor e sem mar? Cecília Meireles
Vaga música
Nem osso de ouvido ( 1942)
Pela terra tua.
Teu canto é perdido, Sobre o autor
pássaro da lua...

Pássaro da lua,
por que estás aqui?
Nem a canção tua
precisa de ti!

Mesmo àquele que folhear displicentemente o livro Vaga Música não passará despercebido o fato de que uma
das formas poéticas mais utilizadas aqui é a da canção, o que vem indicado, à maneira antiga, já nos títulos:
"Pequena canção da onda", "Canção da menina antiga", "Canção excêntrica", "Canção quase inquieta",
"Canção do caminho", "Canções do mundo acabado", "Canção quase melancólica", "Canção de alta noite",
"Canção mínima", entre muitas outras semelhantes.
Essa forma é na verdade largamente usada em toda a obra de Cecília Meireles, não constituindo uma
peculiaridade apenas desse livro. Segundo alguns teóricos, a canção seria a manifestação mais importante do
gênero lírico. Ela seria, por assim dizer, o lugar onde a essência desse gênero é realmente liberada. Que
esse lugar tenha sido amplamente explorado pela poeta, cuja poesia está entre as mais genuinamente líricas
da literatura brasileira, não é um acaso.

No poema escolhido, algumas características da canção aparecem nitidamente: a forte atuação do som e
do ritmo, a impregnação da realidade exterior pela emoção, o apagamento dos fatos, a indeterminação
quanto ao tempo e ao espaço. Essas características se ligam intimamente. Assim, a musicalidade mais
enfatizada na canção indica a fusão entre o eu e o mundo exterior. A alma invade o mundo objetivo, que
aparece apenas como um reflexo daquela. Isso leva a um apagamento dos contornos da vida exterior e,
conseqüentemente, a frases mais brandas, mais musicais, pois, mais do que definir um acontecimento, busca-
se criar uma atmosfera emocional, para o que a música contribui fortemente. Esse relaxamento dos contornos
implica também o relaxamento das noções de tempo e espaço, elementos sempre difíceis de precisar numa
canção, que parece no mais das vezes se desenvolver no sem-tempo e no sem-espaço. É o sem-tempo e o
sem-espaço da vida interior.
Som e Ritmo

Antes de qualquer consideração quanto à musicalidade, é necessário levantar alguns aspectos que dizem
respeito ao metro usado no poema. Este é constituído por três estrofes ou quadras, com quatro versos cada
uma, sendo estes pentassílabos, isto é, compostos de cinco sílabas:

1 2 3 4 5
Pás-sa-ro-da-lu-(a)
1 2 3 4 5
que-que-res-can-tar,
1 2 3 4 5
nes-sa-ter-ra-tu-(a)
1 2 3 4 5
sem-flor-e-sem-mar?

Se procedermos assim com os demais versos do poema, verificamos sempre o mesmo número de sílabas, ou
seja, cinco. Lembramos que, tratando-se de poesia, conta-se apenas até a última sílaba tônica. Por isso
não é de estranhar que tenhamos considerado, nos versos paroxítonos "Pássaro da lua" e "nessa terra tua",
apenas até as sílabas "lu-" e "tu-" respectivamente. Já os versos "que queres cantar" e "sem flor e sem mar"
são oxítonos, ou seja, terminam em sílaba tônica, a qual deve ser incluída na contagem silábica.

Versos de cinco sílabas são também chamados de redondilhas menores, tomados em relação à redondilha
maior, de sete sílabas. Um como o outro são fartamente empregados na poesia popular, como é o caso da
literatura de cordel. O uso de versos curtos na produção folclórica e semifolclórica certamente é um fator que
colabora na condensação maior do assunto e confere mais agilidade rítmica a composições feitas muitas vezes
para ser acompanhadas de música. No caso da poesia culta, que é o foco do nosso interesse nesta pequena
análise, esse recurso muitas vezes visa a objetivos semelhantes: maior concentração do conteúdo, realce dos
valores rítmicos, entre outros.

Por que dizemos "concentração do conteúdo"? Ora, porque os pequenos versos de cinco sílabas não propiciam
que um conteúdo seja desdobrado, em todas as suas conexões lógicas, tal como o permite o soneto, por
exemplo, tipo de composição estruturado por versos de dez sílabas e bastante apto ao jogo intelectual. Na
canção ocorreria, ao contrário, uma "simplificação do conteúdo". Isso não quer dizer que se perca em
profundidade, mas antes que esta é obtida por meio da força sugestiva das palavras, cuja sonoridade ganha
relevo, e dos ritmos, bastante diversificados na composição analisada. Aqui, as três principais modalidades
rítmicas possíveis para versos de cinco sílabas comparecem:

a)- - ´ - ´
b)´ - ´ - ´
c) - ´ - - ´

O sinal (´) corresponde justamente às sílabas fortes no verso, e o sinal (-) indica as sílabas fracas. Ao
ritmo A se ajustariam os seguintes versos:

- - ´ - ´
nes-sa-ter-ra-tu-(a)
pe-la ter-ra-tu-(a)

O verso seguinte, que se repete em cada uma das quadras, é o único que descreve o ritmo B:

´ - ´ - ´
Pás-sa-ro-da-lu-(a)

O ritmo C aparece nos demais versos:


- ´ - - ´
que que-res-can- tar
Nem-os- so- deou-vi-(do)
Teu-can-toé-per- di-(do)
pre- ci- sa- de- ti

Observe que nos ritmos A e C há dois momentos fortes e três fracos (os momentos fortes estão em negrito),
alterando-se apenas a maneira como esses momentos se sucedem, por outro lado no ritmo B há três
momentos fortes e dois fracos, o que o torna menos suave que os outros, pois há apenas um intervalo entre
os acentos. Estes, quando estão mais separados uns dos outros (como nos ritmos A e C), conferem ao verso
um movimento mais ondulatório e delicado.
Vamos tentar solfejar o poema, isto é, ler em voz alta apenas seu desenho rítmico. Usaremos tá (que deve ser
pronunciada com energia) para indicar as tônicas e ta para indicar as átonas:

Tá-ta-tá-ta-tá,
ta-tá-ta-ta-tá,
ta-ta-tá-ta-tá,
ta-tá-ta-ta-tá?

ta-tá-ta-ta-tá
ta-ta-tá-ta-tá.
ta-tá-ta-ta-tá,
tá-ta-tá-ta-tá...

tá-ta-tá-ta-tá,
ta-ta-tá-ta-tá?
ta-ta-tá-ta-tá
ta-tá-ta-ta-tá!

Lendo em voz alta, podemos perceber melhor a variedade dos ritmos, com a qual o poema se livra de cair na
monotonia. Observem como se altera a distribuição dos acentos de uma linha para a outra. As linhas
destacadas em negrito dizem respeito ao verso "Pássaro da lua", que, como já dissemos, descreve o ritmo B,
mais rígido, uma vez que, nele, o número de momentos acentuados supera o de momentos não acentuados.
Não é um ritmo com o qual possamos nos sentir embalados; ao contrário, ele nos obriga a trabalhar, ficar
vigilantes, pois um golpe duro (o acento) não tarda. Mas a poeta o empregou com comedimento e habilidade:
ele aparece em posições alternadas, abrindo a primeira estrofe, encerrando a segunda e novamente abrindo a
terceira. Está, portanto, em situação de destaque.

Ora, esse único verso que se repete três vezes é o "tu" do poema, ao qual se dirige o eu lírico. Em termos
gramaticais, "pássaro da lua" é um vocativo. Todo o poema é, na verdade, uma interpelação desse "tu",
interpelação que aparece em lugares estratégicos, como já referimos:

Pássaro da lua,
......................,
.......................,
.......................?

.......................
....................... .
.......................,
pássaro da lua...

Pássaro da lua,
.......................?
.......................
.......................!

A primeira e a segunda ocorrência estão separadas uma da outra por um intervalo de seis versos, enquanto a
segunda e a terceira ocorrência se sucedem imediatamente. Mas, para aliviar essa seqüência de dois versos
idênticos, de dois ritmos idênticos, Cecília Meireles achou a excelente solução de colocar reticências no fim
da segunda quadra, com o que se produz uma pausa maior e podemos respirar um pouco. As reticências ao
menos propiciam que o verso seja repetido com um intervalo de tempo maior. São uma espécie de pausa no
centro do poema, após o que recobramos mais força para voltar à pergunta que inicia a terceira quadra e com
o que se evita a desagradável colisão de duas ocorrências de um verso bastante duro quanto ao ritmo.
Esse afrouxamento do tempo ocasionado pelas reticências tem por certo uma contrapartida no nível da
mensagem, pois o eu lírico já avisa: "Teu canto é perdido,/ pássaro da lua...". Há aqui também um certo
afrouxamento, mas da expectativa, da ilusão: para que cantar se não existe nem "osso de ouvido"?
Reparemos no alcance dessa última imagem, pela qual o ato de ouvir se torna uma espécie de estaca, de
porto seguro que impeça a dissolução, a evanescência total. Pois, se batesse no "osso" de algum ouvido, a
canção não resultaria em algo tão inapreensível e mesmo inútil, como seria, aliás, o canto de um fictício
pássaro da lua:

Pássaro da lua,
que queres cantar,
nessa terra tua,
sem flor e sem mar?

O poema se inicia com uma pergunta sobre a matéria da canção: o que há para cantar se não há, "nessa terra
tua", nem flor nem mar, elementos que desde as mais remotas épocas servem à poesia? Essa estrofe conclui
que não está disponível, para o pássaro cantor/compositor, os elementos tipicamente poéticos nos quais se
basearam tanto as simples e belas cantigas.

A segunda quadra verificará a ausência de um destinatário ao qual se dirija o pássaro e concluirá pela
inutilidade do canto, pois ele "é perdido". Mas devemos entender esse perdido em sentido literal também: na
ausência de um ouvido-pedra, de um ouvido-calço, de um ouvido-osso, a música não se fixa e escapa.
Não há, para esse canto, nem matéria nem ouvinte. E a estrofe final põe em questão até mesmo a serventia
do cantor:

Pássaro da lua,
por que estás aqui?
Nem a canção tua
precisa de ti!

A canção, sem ter aquilo de que falar e sem ter para quem falar, talvez não precise nem de seu criador.
Reparemos como aqui é reposta a rima lua/tua que percorre o poema e que contribui para a sua unidade
sonora, melhor dizendo, para a sua circularidade sonora - para o que é também decisiva a repetição de
"Pássaro da lua" ora no começo, ora no fim das estrofes, como já referimos.

As palavras tua e lua são palavras-chave, que, a cada repetição, adensam mais e mais a atmosfera do
poema, aumentando o seu clima onírico, cujo ponto alto coincide com a conclusão de quem nem mesmo a
canção acompanha o seu cantor. O pássaro da lua talvez seja o mais solitário dos seres. Mas não será dele
talvez a canção mais pura, por ser praticamente vazia de conteúdo e por estar livre de seu próprio autor? Uma
canção que, mais do que algo criado, parece ter existido desde sempre? Não será a canção por excelência?

Lembremos algumas das características que definem esse gênero poético, comentadas brevemente por nós no
início deste texto: o apagamento dos fatos, a indeterminação quanto ao tempo e ao espaço. Essas
características não apareceriam com extrema força no canto de um pássaro da lua, ser
imaginário no fim das contas? Este não viria a ser, portanto, o símbolo de uma situação
extrema, ou mesmo um ideal? Pois nele a canção se livraria de todos os estorvos que
ainda a impedem de ser a mais pura música: o osso de autor, o osso de ouvido e o osso
de conteúdo. Liberta de tudo isso, a canção de um fabuloso pássaro numa terra de nada
e de ninguém como é a Lua seria a indeterminação total, o sem-tempo e o sem-espaço
máximos. Uma tal indeterminação que, no limite, implica a inutilidade até mesmo do eu,
do sujeito cantor.
Assim é que, se, num primeiro momento, o gênero da canção significava a mais íntima expressão do cantor,
na qual o mundo de fora está dissolvido, o poema de Cecília parece apontar para algo além disso, na medida
em que cria uma situação imaginária em que o próprio cantor aparece dissolvido. Uma situação por certo de
negatividade e desolamento, em que não há nem flor nem mar nem ouvido e nem mesmo pássaro- mas
paradoxalmente propícia à libertação total do canto.

Cecília Meireles
Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro em 7 de novembro de 1901. Aos 16 anos se diploma professora e começando a escrever poemas de
forma efetiva. Publica diversos livros: Espectros (1919), Nunca mais ... e poema dos poemas (1923) e Baladas para El-Rei(1925). Seu livro
de prosa poética, Criança, meu amor foi indicado como leitura oficial nas escolas. Entre 1930 e 1933, dirigiu a Página da Educação no Diário de
Notícias do Rio de Janeiro e, em 34, inaugurou o Centro de Cultura Infantil do Pavilhão do Mourisco, a primeira biblioteca infantil do país. Com o
suicídio do marido Cecília Meireles volta a lecionar, escreve sobre folclore no jornal A Manhã, crônicas para o Correio Paulista e dirige a Revista
Travel in Brazil, no Rio. O livro Viagem (1939), recebeu da Academia Brasileira de Letras o Prêmio de Poesia. Inicia um período de intensas
atividades e viagens, cujo reflexo encontramos em obras como Doze noturnos de Holanda e Poemas escritos na Índia. Em 1953, após
intensa pesquisa histórica, publicou o Romanceiro da Inconfidência. Cecília Meireles morreu no Rio, em 9 de novembro de 1964.
Visite também o site do Alô Escola: Cecília Meireles, baseado em programa produzido pela Rádio Cultura FM

Balada Do Mangue
Vinicius de Moraes
Composição: Vinicius de Moraes
Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
Não sois Lœlia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilingüidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé,
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas do amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
Rola perdida no céu...
Mas que brilho mau de estrela
Em vossos olhos lilases
Percebo quando, falazes,
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabras, glúteas caftinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
Cantais, maternais hienas
Canções de caftinizar
Gordas polacas serenas
Sempre prestes a chorar.
Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
E o contraponto de vozes
Com que ampliais o mistério
Como é semelhante às luzes
Votivas de um cemitério
Esculpido de memórias!
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
Por que vos deixais imóveis
Alérgicas sensitivas
Nos jardins desse hospital
Etílico e heliotrópico?
Por que não vos trucidais
Ó inimigas? ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!

Monte Castelo
Legião Urbana
Composição: Renato Russo (recortes do Apóstolo Paulo e de Camões).
Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja
Ou se envaidece...
O amor é o fogo
Que arde sem se ver
É ferida que dói
E não se sente
É um contentamento
Descontente
É dor que desatina sem doer...
Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...
É um não querer
Mais que bem querer
É solitário andar
Por entre a gente
É um não contentar-se
De contente
É cuidar que se ganha
Em se perder...
É um estar-se preso
Por vontade
É servir a quem vence
O vencedor
É um ter com quem nos mata
A lealdade
Tão contrário a si
É o mesmo amor...
Estou acordado
E todos dormem, todos dormem
Todos dormem
Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade...
Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...

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