Você está na página 1de 3

ANTONIO MACHADO

Ou se saneia o Tesouro ou o estresse fiscal vai manietar o governo e


fundir o motor do crescimento

Déficit atinge 4,92% do PIB (e chegaria a 10% com o gasto realizado e não
pago), a reserva para pagar juros sumiu e 42% da dívida rolam no overnight
16/11/2014 - 00:54 - Antonio Machado

A indecisão da presidente Dilma Rousseff sobre quem chamar para a pasta da


Fazenda, o pedido ao Congresso para mudar na undécima hora a métrica fiscal diante
do déficit primário das contas públicas, a tensão no mercado financeiro, o pé atrás dos
partidos governistas e a desconfiança em último grau do empresariado têm um fio
condutor: a constatação de que o governo e suas promessas se tornaram maiores do
que a capacidade de a economia sustentá-los.
É um processo que não surgiu na última campanha eleitoral, ela só fez adiar a
explicitação do descompasso do gasto público em relação à arrecadação tributária. A
deterioração das contas do Tesouro é um evento que emerge sempre que o
crescimento econômico perde força. É assim aqui. E o é também em quase todos os
países. O rolo é outro.
A jabuticaba é que, no Brasil, cerca de 90% do gasto público estão dados em lei e
pela Constituição, de forma que períodos de recessão geram instabilidades não só
devido ao que a acompanha, normalmente, desemprego e suspensão ou
cancelamento de investimentos. A economia fica sujeita a novos gravames tributários e
à alta de juros, já que o gasto rígido impede sua adequação à queda da receita de
impostos.
Se o governo fizer mais que cuidar do que os antecessores fizeram, e eles são eleitos
com essa presunção, ele incorre - e arrasta a sociedade calmamente desinformada a
segui-lo -, em duas apostas: o crescimento econômico correr à frente do gasto orçado
e não faltar apetite do mercado pelos papéis emitidos para custear uma parte do
serviço da dívida e o gasto excedente. Isso costumava ser pacífico.
Deixou de ser pelo crescimento fraco com viés estrutural (isto é, não removido
enquanto persistirem as causas que minam a atividade econômica) e pela suspeita de
que o perfil do gasto público, hoje muito associado a transferências de renda, é o que
mais o debilita.
Gasto fiscal fomenta consumo, ao mesmo tempo em que as ações para equilibrar o
orçamento (menos investimentos público, mais tributos) e manter o appeal dos papéis
de dívida (juros) aumentam o custo de produção. Mais: juro real alto atrai dólares, que
apreciam o câmbio – veneno para a exportação e vitamina para a importação. O
problema é político, já que a receita para resolvê-lo ameaça o emprego e a renda num
primeiro momento e conflita com a retórica de Dilma.
O superávit lobisomem
Para um governo reeleito por margem estreita de votos, assombrado pela
megacorrupção na Petrobras, enfrentando uma seca que ameaça o fornecimento de
energia no país, e água no Sudeste e Centro-Oeste, abalado pela estagnação com
inflação, a estagflação, o estresse do orçamento equivale a uma sentença de
interdição de seus atos.
Ministros de Dilma e economistas heterodoxos questionam a eficácia do arrocho fiscal
com crescimento econômico desfibrado. O alerta é pertinente, embora dependente de
dois fatores que não estão mais ao alcance do governo: tempo e margem de manobra.
O orçamento já exibe déficit nominal de 4,92% do PIB em 12 meses e o superávit
primário (que exclui juros) sumiu. Por isso o governo quer aval do Congresso para
homem virar lobisomem... Quero dizer: déficit virar superávit.
Restos que traem o todo
A questão que se põe é a serventia desses macetes para disfarçar o que está
flagrante: o impasse do gasto público se o crescimento não engrenar. Como não dá
para infla-lo sem resolver o desajuste fiscal (o gasto corre ao ritmo anual de 13,2%,
contra 6,4% da receita), as manobras contábeis não aliviam coisa alguma. Sendo fiel
aos fatos, o cenário fiscal é muito mais sério do que o divulgado.
O orçamento tem sido metodicamente aprovado com “restos a pagar”, definidos como
o gasto executado, mas com o seu desembolso jogado para anos seguintes, somando-
se à despesa fiscal corrente. É uma distorção que cresce em bola de neve. Já somava
R$ 218,6 bilhões em 2013 - 4,1% do PIB. Se fosse pago à vista, em vez de ser um tipo
de precatório velado, o déficit nominal iria a quase 10% do PIB.
Crédito só para 1 dia
Com “restos orçamentários decorrentes de abatimentos que deixam gastos
autorizados impossíveis de executar”, como diz o economista Fernando Montero,
estranha-se que o governo tenha promovido tantas desonerações e ainda as defenda.
A perda de receita por conta desse mecanismo cresce a cada ano, saindo de 3,6% do
PIB em 2009 a 4,92% do PIB estimado de 2015, sangrando 21% da arrecadação
projetada. Quer dizer: falta caixa, a arrecadação desacelera e ainda se abre mão de
receita, confiando que o mercado financie a diferença.
É melhor não confiar: da dívida pública expressa em títulos, R$ 2,07 trilhões em
agosto, 42,5% estão sendo financiados no Banco Central em operações overnight, de
um dia, segundo o diretor da Escola de Economia da FGV, Yoshiaki Nakano. Isso
significa que o crédito público, no sentido literal e figurado da palavra, está virtualmente
exaurido.
Dilma não terá moleza
O que virá adiante depende da interpretação que o governo der aos sinais vitais da
economia. O Caged, Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, por exemplo,
acusou o que não se vê desde outubro de 1999: contração líquida de empregos no
mês, 30,2 mil.
Como falar em arrochar o gasto público se a economia está parando? Mas está
parando por quê? “Com incertezas políticas, salários acima da produtividade,
perspectiva de alta de tarifas, tributos, juro, o risco de racionamento, crescimento de
0,6% no biênio 2014/15, quem vai investir ou contratar?”, indaga Fernando Montero.
Atrás da fieira de maus resultados está a gestão fiscal como causa e sequela. O
governo terá de tomar a iniciativa. Não há como evitar um duro ajuste em 2015, e já
será bom demais se deixar um superávit primário seco de 1% do PIB e algo mais
adiante para reconstruir a confiança. À medida que retorne o crescimento abranda-se o
esforço.
Isso e um plano de reformas devem bastar, apesar da Petrobras, das ruas, do PT,
PMDB etc. Acabou a moleza depois que a corda esgarçou.

Você também pode gostar