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MAGALDI, Sábato. O texto no teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001.

“Da noção do pecado original decorre a cosmologia strindberguiana, mesmo na sua primeira
fase naturalista, quando se proclamava ateu e ainda não enveredara pelas indagações místicas.
Foi Eva, frívola e leviana, que se deixou seduzir pelo demônio, envolvendo o inocente Adão e
condenando sua descendência ao trabalho. Não custou a Strindberg assimilar Eva ao próprio
demônio que tenta sem descanso o homem e converte a Terra em inferno. O inferno terreste,
inspirado por Swedenborg a Strindberg, é obra da mulher, que mantém vivo o fogo no qual a
humanidade se consome.” p.198

“O pensamento e a forma de Strindberg acham-se tão intimamente entrosados e decorrem de


uma tão marcada expressão individual que é impossível separá-los em compartimentos
estanques. Acompanham muito de perto, também, a sua biografia, de sorte que se pode segui-
los num itinerário definido, não obstante a vida do dramaturgo fosse um recomeçar
permanente, uma volta sem fim à fonte, uma tentativa alucinada de procurar as razões
primeiras. Nenhuma obra corresponde melhor do que a de Strindberg ao conceito de Antonin
Artaud, segundo o qual o teatro foi feito para abrir coletivamente os abscessos. Abscesso
exposto sem nenhum véu ao público – essa a extraordinária garra dos textos
strindberguianos.” p.201-202

“Os textos em vários atos não desmentem, porém, esse ideal dramático da perseguição à
essência das coisas: tornaram-se, no vigor com que foram compostos, essa cena única, apenas
ampliada. Não há no teatro de Strindberg o tradicional esquema da apresentação de um
assunto, seu desenvolvimento e desfecho. Desde o princípio, as personagens vivem em
clímax, do qual a continuidade cênica representa as múltiplas manifestações desconexas. Sem
a rotineira preparação psicológica, ele passa, de um diálogo a outro, a estados emocionais
opostos, perfeitamente assimiláveis pela platéia. Desde que se abre o pano, instaura-se o clima
de paroxismo, consumindo as criaturas.” p.202

“As personagens são visualizadas com base na indefectível necessidade de expiação. Apesar
da culpa maior da mulher, sinônimo de tentadora, o homem tem a sua parte de
responsabilidade, ao menos porque foi sensível à tentação. Na intrincada contabilidade que se
estabelece nesse universo de devedores, não será arbitrário muitas vezes assimilar a figura do
credor ao sentimento íntimo do pecado. O dramaturgo sempre compõe uma história material e
palpável, em que a exegese pode bastar-se com os dados objetivos. Mas a extraordinária
projeção de suas idéias permite que se passe, sem arbítrio, ao mundo dos símbolos.” p.203

“A alegoria de O Sonho usa o leitmotiv dos versos: ‘Cada prazer que experimentas/ traz a dor
aos outros”. A filha de Indra assim explica a matéria humana: ‘No início dos tempos, no
momento em que o sol começava a resplandecer, veio Braham, a força divina primordial, e
permitiu que Maia, a mãe do mundo, o seduzisse, para propagar-se. O contato da substância
primordial com a matéria da terra determinou a queda do céu. O mundo, a vida e os homens
não são assim mais do que fantasmas, sombras, imagens de sonho...’. Essa metáfora ajusta-se
às personagens de Strindberg, que se definem por um grande vazio interior. Seu substrato
fundamental é o nada. Divididas entre tantas solicitações contraditórias, perdem o estímulo
espontâneo, a força vital. Despertam apenas ao atrito com antagonistas. Se vivesse solitária, a
criatura strindberguiana manteria um equilíbrio feito de ausência. Sua energia desperta, num
dos pólos magnéticos, pela aproximação de outra criatura. A mulher e o homem representam
esses pólos naturalmente antagônicos. Mas estando destinados um para o outro, sua energia
poderia cair em repouso, se um elemento catalisador não fosse incluído em sua reação. Daí o
surgimento permanente de uma terceira personagem, que estimula o casal, obriga-o a definir-
se. Muitas vezes parece suspeita essa figura estranha na equação amorosa. Em várias peças,
há referência à ela.” p.203

“O deserto íntimo precisa ser povoado. Despojada de matéria própria, a personagem procura
alimentar-se com a substância de outra. ‘Devorar ou ser devorado’ – nessa alternativa única
resume-se a possibilidade de afirmação do ser, segundo se declara em O pai. Daí a presença
crescente do tipo do vampiro na dramaturgia de Strindberg. Umas personagens esvaziam as
outras de seiva, sustentam-se pela destruição do mundo à volta.
[…] Para alcançar esse difícil efeito de engalfinhamento, destruidor das personagens,
Strindberg elevou à perfeição a técnica por ele denominada “luta de cérebros”. Com efeito,
não há na sua obra uma história linear, cujo termo traga a solução. As armas apuram-se
sempre mais e se um golpe ainda não é suficiente para decidir a partida, outro virá,
aproximando-se do alvo fatal. O processo de progressão dramática é o de desnudamento
paulatino das personagens, por meio de revelações a cada cena mais comprometedoras.”
p.204

“Poucos escritores assimilaram, como Strindberg, todas as tendências, todas as filosofias


anteriores e contemporâneas, mesmo contraditórias. Tudo foi absorvido por ele. Sua obra
parece, assim, um cadinho, no qual a experiência humana e literária se filtra nos traços
essenciais. Do naturalismo determinista aos delírios místicos, foi percorrida a gama de
explorações intelectuais: confluência da realidade e do sonho, das cruas exigências prosaicas e
da imaterialização dos valores terrenos. Súmula do processo dramático, do clássico ao
medieval, do romântico ou naturalista e contendo o surrealismo, o expressionismo e o
vanguardismo. Obra enciclopédica, acendendo os caminhos literários do século XX.” p.205

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