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(celso r braida)
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quais ela pode vir a se manifestar ou atualizar: tanto pode ser uma queimadura ou um movimento ou uma luz ou uma
imagem, etc. Propriamente falando, não há uma ou mais figuras essenciais à concreção da energia. O virtual, nesse
sentido, é pura atividade, e as estruturas pelas quais ele se expressa são apenas incrições, efeitos das concreções,
linguagem. O interessante é pensar isso em relação à morte e ao eu. Faz diferença pensar a morte, a minha, como
possibilidade e pensa-la como virtualidade, como iminente, como já aí; faz diferença pensar o eu como um Possível e
pensa-lo como um Virtual!
Nesse sentido a relação entre Universal e Particular, entre a Espécie e o Exemplar pode ser repensada. Se a passagem
de um ao outro for pensada em termos de real-possível, o indivíduo particular será apenas uma repetição; agora, se isso
for pensado em termos de virtual-atual, (ou mesmo em termos de Tipo e Ocorrência), então desaparece a idéia de
repetição e de determinação abrindo-se espaço para uma diferença, para um diferimento singularizador.
5. Disso seguem-se conseqüências para a noção de ensino. Pense-se em como aprendemos a ser um sujeito humano.
É importante pensar não tanto em termos de nomes e adjetivos, mas em termos de expressões e funções lingüísticas
dêiticas e indicativas. A palavra “eu” pode ser vista como um tipo ou como uma virtualidade. Quando alguém usa essa
expressão para referir-se a si mesmo, essa expressão não o determina em nada, e qualquer um outro pode usar essa
palavra também. No fundo o que temos de aprender é a dizer “eu” e “nós” a reconhecer-se no “tu” e no “vós”, antes de
apreender as noções que elas significam (se é que significam). Essas palavras apenas marcam um lugar no espaço
discursivo, mas o preenchimento desse lugar permanece aberto às mais diferentes diferenças. Nós aprendemos a dizer
“eu”, sem apreender nenhum conceito. Dizer “eu” não implica aplicar nenhum conceito ou determinação “a mim”
mesmo, como acontece, por exemplo, no uso da palavra “professor”.
Ora, um “eu” é uma singularidade, logo, não é apreensível por nenhum conceito, a não ser um que o diferenciasse de
todos os outros “eus”. Por conseguinte, não se pode ensinar a ser-se um “eu”. Isso se sente e sabe. Por analogia, no
aprendizado-ensino de uma arte, trovar ou tocar um instrumento, há duas fases, uma das quais é de apreensão (de
regras, de noções, de formas e procedimentos), a outra é apenas aprendida, sem ser ensinada, a saber, a fase do solo, da
invenção, do estilo próprio. Aprende-se a solar sem que seja possível um ensino. Ensina-se e apreende-se um conceito
ou uma regra ou uma ciência; mas a viver, a ser-se, aprende-se, talvez, — sendo vivo, vivendo-se !?]
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Em Andersen é o rouxinol de metal que substituiu o rouxinol espécie natural, mas que, para
surpresa da corte e do imperador chinês, o encanto do canto da máquina, que, no início parecia
muito melhor do que o do pássaro vivo, pois podia ser repetido quantas vezes se quisesse, essa
mesma repetibilidade produziu logo o contrário do prazer, o tédio, aquele mesmo tédio sentido pelo
pastor errante descrito por Leopardi.
A questão por detrás desses textos, inclusive do texto de Miller, é a da relação entre Natureza,
Artifício e Humanidade, que, em última análise vem à tona justamente no instante em que se
percebe o si que se é. (Esse si, esse ser-si, cuja consciência de si Sartre distinguiu muito bem do
conhecimento de si, esse si resta inapreensível como algo que é o mesmo, que tivesse uma
substancialidade, e por isso mesmo aparece sob o signo da falta e da ausência, e apenas percebido
de relance, na contraluz de um incidente de atenção. O que Sartre diz é, no final, bem simples: o si
não se apreende, mas se aprende!)
Temos, então, a partir dessas vozes poéticas três modos de ser: o animal, o artifícial e o humano.
Num primeiro momento, apressados que somos, poderíamos inferir disso que o si-mesmo, o ser-eu
ou o ser-sujeito dos poetas se contrapõe ao ser-animal e ao ser-artificial, que seria nesse contraponto
que esses poetas se perceberam como sendo um si, e aperceberam-se que esse si não tem a
substancialidade, a permanência na mesmidade, características do animal e do artifício. Como se a
vida consciente de ser uma consciência singular subitamente tomasse consciência e soubesse de sua
singularidade.
Mas, não. Essa é a via da perdição, embora em Yeats esse ponto seja feito, quando o poeta
utiliza a figura daquele que “não sabe o que é”. Eu penso que seja Leopardi quem indica bem
claramente o problema: o pastor errante é que tem um a mais que é um menos em relação à Lua e ao
rebanho: ele, embora tenha tudo, ainda assim tem tédio. Mas, essa não é a conversa de Miller!
Tal como tratamos de elaborá-la e de transmiti-la nos nossos dispositivos de ensino, na nossa prática,
apontamos para o “ponto sujeito” do indivíduo. Ao fazê-lo, nos afastamos da dimensão da natureza, como da
dimensão das operações da ciência. Introduzimos a contingência e, com ela, um mundo que não é nem o
cosmos, nem um universo. (...) Neste mundo, um caso particular jamais é um caso exemplar de uma regra ou
de uma classe. (O diagnóstico de nosso tempo).
Eis a indicação principal. Agora, o texto de Miller, seguindo estritamente o cânone estruturalista
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e platônico, estabelece um diagrama binário de oposições, cujos polos são marcados positiva e
negativamente. Trata-se de um recurso retórico, e também de um recurso teórico, com efeitos
bastante imediatos e sedutores para o pensamento desavisado. Desse modo, Miller contrapõe:
o singular, às classes;
a natureza, a estrutura e o real, à verdade e ao semblant;
depois, contrapõe
o indivíduo real, ao universal,
depois, assumindo um ponto de vista meta-discursivo, suspeitoso, contrapõe:
o historicismo, o nominalismo e o pragmatismo, ao Logicismo, à Indução, ao Platonismo.
Logo a seguir, contrapõe ainda:
a contingência e a diferença, ao abstrato, à repetição e à identidade.
Por fim, no ápice-base desse diagrama binário de oposições, Miller estabelece a oposição-cisão
fundante de tudo isso, a saber:
a oposição entre ser-sujeito e ser-animal.
O objetivo de Miller aparece no final do texto e resumidamente. O que ele quer nos dizer é que a
psicanálise não é ciência determinante, mas arte reflexionante, apropriando-se, a meu ver de modo
equivocado, da contraposição kantiana entre
juízo reflexionante, e juízo determinante.
Esse diagrama binário de oposições, essa estrutura cindida de opostos, sobre a qual Miller
desenvolve o seu pensamento, nós a poderíamos denominar de o canto de rouxinol de Miller, pois
ela é a mesma de Platão e de Qoheleth. (Canto esse que tanto nos encanta quanto nos enreda, e
enquanto nos seduz, como o canto das sereias, o eterno canto das sereias, ouvido por Ulisses, esse
canto também quer ser a verdade da univerdade que nos fascina.)
Vejamos algumas passagens centrais do texto quanto a esse aspecto. A intenção explícita e
orientadora do andar do texto é a de isolar um conceito de singularidade e unicidade que escape da
filiação dependente em relação a uma generalidade e univerdade científica.
(A univerdade é a verdade única que se contrapõe à verdade que inclui um si e, assim, se torna
variegada, a univer-SI-dade. Todavia, aqui subjaz um paradoxo: o ensino lacaniano, ao aprofundar
apenas a palavra do mestre, termina por se fixar como univerdade no sentido inverso, o do
privilegiamento de um si cujos outros agora servem apenas para jogar mais luz na sua palavra.)
Diz Miller
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“Se privilegiamos o caso particular, o detalhe, o não-generalizável, é na medida em que não mais acreditamos
nas classes, nas classes dos sistemas de classificação. (...) Sabemos que nossas classes e que nossos sistemas
de classificação são mortais e que as classes que utilizamos são históricas. (...) Sabemos que nossa
classificação tem algo de relativo, de artificial ou artificioso, em suma, que são somente semblant. Isto é, as
classes não têm um fundamento na natureza, nem na estrutura e nem no real. Parece-me que as classes
aparecem hoje como fundamentadas somente na verdade. (...) Nossas classes produzem efeitos de verdade mas
o fundamento, na verdade, não se fundamenta no real.” (Fazer pacotes)
Toda prática do diagnóstico – médico-psicológico – tem como inerente a idéia de que o indivíduo é um
exemplar de uma classe. (...) Precisamente por esta razão a prática do diagnóstico repugna, ..., ao
individualismo contemporâneo. O indivíduo contemporâneo resiste à idéia de tornar-se apenas um exemplar e,
todas as vezes que lhe colocamos uma classificação a resposta é “não, sou apenas eu, não sou um número, não
sou um exemplar”. Hoje em dia, dúvidas são lançadas sobre as classificações. Vivemos numa cultura do
historicismo. Este ensina-nos que qualquer categoria utilizada no cotidiano tem um história. (idem).
Nossas classes não têm um fundamento nem na natureza, nem na observação. Nem a psicose, nem a neurose
são espécies naturais. Parece-me que o que nos distingue dos que nos antecederam é que sabemos do artifício
das nossas categorias. Sabemos que nossas categorias têm como fundamento a prática lingüística dos que são
concernidos pelo tema do qual se trata. (Nominalismo e pragmatismo no diagnóstico)
O universal da classe, seja ela qual for, nunca está completamente presente num indivíduo. Como indivíduo
real, pode ser exemplar de uma classe, mas é sempre um exemplar com uma lacuna. (idem)
Para ilustrar essa idéia de uma des-relação entre o indivíduo e as classes e categorias sob as quais
ele cai, para ilustrar, com efeito, o a menos do indivíduo em relação à classe, ou dito de maneira
mais precisa, o a mais do indivíduo em relação ao universal, Miller traz à liça o rouxinol de Keats e
os comentários de Borges.
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Claro, porque o exemplar de animal é a espécie. Aqui, o verdadeiro do platonismo é verdade ao nível do
animal porque, efetivamente, um animal realiza totalmente a espécie. É o que proponho, pois para mim essa é
a perspectiva lacaniana. Pode-se dizer que o animal realiza exaustivamente sua espécie enquanto exemplar.
Porém, o ser falante, o sujeito ou ser de linguagem, nunca realiza de maneira clara e exaustiva nenhuma classe
e somente pode imaginar-se confundido com a espécie humana quando se imagina mortal. (....)
Dizendo de outra maneira, chamamos de “sujeito” ao efeito que desloca, sem parada, o indivíduo da espécie, o
particular do universal e o caso da regra. Ou seja, o que denominamos “sujeito” é essa disjunção que faz com
que Keats não seja Ovídio ou Shakespeare. No entanto, o rouxinol de Keats é o mesmo que o rouxinol de
Ovídio e de Shakespeare, mas, precisamente, nem Keats é Ovídio, nem Shakespeare.” (O efeito de sujeito)
Há um déficite na instânciação da classe num indivíduo e é justamente por causa desse traço que o indivíduo
pode ser sujeito, por nunca poder ser exemplar perfeito. (...) Do nosso ponto de vista (psclse lacaniana) há
sujeito toda vez que o indivíduo se afasta seja da espécie, do gênero, do geral ou do universal.
(Nessa direção, em termos mais técnicos, o que Miller está propondo é uma dissociação entre
singular e particular. O (exemplar) particular sempre é apenas a realização/repetição de um
universal (espécie, gênero) enquanto que um singular sempre teria um a mais, ou a menos, em
relação às determinações do universal ou da espécie. Por conseguinte, enquanto o rouxinol seria o
mesmo (universal) um sujeito humano sempre diferiria em relação à regra da espécie, não sendo
apenas mais um caso da espécie humano.)
O sujeito inventa a maneira segundo a qual ele, sujeito, subsume seu caso sob a regra válida na suposta espécie
dos sujeitos. E qual é a regra universal da espécie dos sujeitos sob a qual cada analisante subsume seu caso? É
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um universal muito particular: é a ausência de uma regra. É isto o universal. É o universal negativo. É o
universal que é ele, por si mesmo, um buraco. É uma fórmula não escrita, fórmula que se inscreve.
(...) Daí que o que resta, no final, é a psicanálise como Arte, a arte da psicanálise, que não é mais ciência do
geral e das classes e das determinações.
5. Para concluir
Ressaltei na minha leitura o modo como Miller constrói seu texto intencionalmente sobre uma
cisão. Na minha percepção das coisas, essa é uma opção infeliz que solapa a força de sua arguição,
pois introduz uma dicotomia estática que gera uma tensão com a tese principal do texto. Pois, se a
condição do sujeito é a ausência de regras, e que o ser-sujeito surge justamente enquanto se inventa
nessa ausência, então, mesmo a regra da oposição binária não tem aí mais nenhuma vigência. Essa
regra de oposição binária também é algo que não pertence ao sujeito, não pertence ao si do si-
mesmo, pois esse si não se identifica com nenhum objeto, os quais, esses sim, não podem escapar
da oposição entre ser e não-ser.
Ora, eu penso poder dizer, sem mais, que o que leva Miller à sua conclusão foi ater-se a um
esquema dicotômico, um esquema binário de oposição, pois uma outra via estava aberta para ele
fechar melhor seu texto, qual seja, a de explorar um esquema plural, prestando atenção e fazendo
justiça ao argumento desenvolvido por Yeats e Andersen a partir da idéia de Artifício. A condição
humana e sobretudo a condição de sujeito, poderia ser pensada como o nexo do entrecruzamento do
Artifício e da Natureza, de tal modo que o ser-sujeito seria então o abrir-se para a multiplicidade
infindável de possibilidades, que o inacabamento, que é o nosso, nos impõe. Assim poderíamos
pensar a compulsão, para não dizer o frenesi, com que hoje nós humanos buscamos nos completar e
preencher com artifícios e aparatos e máquinas, frutos da tecno-ciência, fundados na univerdade, a
verdade sem si, como sendo a tentativa delirante e até doentia de responder a algo que nos é
intrínseco, a saber, essa falta de determinação, essa pulsão para a singularidade e para a não
repetição, que tanto são a fonte da insatisfação quanto do tédio diante da repetição da natureza e das
instituições. Essa pulsão, na verdade, é o próprio rastro da ipseidade, do si, que resta fora, que resta
impreenchível, mas que, propriamente falando, nos solicita.