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16.fev.2020 às 2h00
“Está com dó? Leve para casa.” Tantas vezes ouvimos essa reação, provocada
pela miséria alheia. Ela indica a dureza dos sentimentos de quem a profere, e
vai além, porque descortina uma visão de mundo.
Quantas vezes ouvimos: “Lutei muito, me fiz por mim mesmo, me esforcei”,
coisas que põem o falante no pedestal do exemplo e da virtude. Mesmo a
dureza em tratar o outro adquire o álibi de lição: “Não dou moleza porque
senão ‘essa gente’ não aprende.”
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2/26/2020 Na direita ferina e na esquerda dogmática, vida confortável é despautério - 16/02/2020 - Jorge Coli - Folha
constitutivo.shtml),
excluindo qualquer dever coletivo, a não ser, talvez, o de
mostrar-se como modelo. E o “leve para casa” tem uma consequência
suplementar: a de que a decorrência dos movimentos generosos da alma é a
ação individual. Sentimentalismo bondoso resolve-se com esmola. Ou então,
adote.
A crítica é a seguinte: “É de esquerda, mas viaja para Paris”. Ou então: gosta
de vinhos bons, come em restaurantes finos, compra roupas caras —e o
leitor poderá, se quiser, continuar essa lista fácil. Ou seja, se alguém é de
esquerda, deveria levar a vida de Madre Teresa de Calcutá, que tão belamente
se consagrou aos pobres.
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A convicção de que todos devem ter o direito de viver com dignidade e bem-
estar não exige que alguém se torne um missionário da caridade,
renunciando aos bens deste mundo. Exige a consciência de que cada um é
responsável por toda a coletividade, em particular pelos mais vulneráveis.
Desse modo, tentar se opor, com os meios que cada um possui, contra essa
situação de gigantesco desequilíbrio (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/02/parasita-
espelha-tensoes-do-capitalismo-tardio-da-coreia-do-sul.shtml), a mim me parece apenas uma
questão de bom senso. Ninguém deveria viver com as migalhas que os ricos e
super-ricos (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/01/como-os-super-ricos-assumiram-o-controle-do-
mundo-dos-museus.shtml) dignam-se a conceder aos mais pobres. Numa situação
como essa, cada vez mais o princípio de justiça social desaparece. Como se
esvai qualquer princípio, pretensamente virtuoso e esforçado, de
meritocracia.
O próprio trabalho deveria ser uma escolha, e não uma obrigação. Se alguém
não deseja investir sua vida no trabalho, seja porque não encontra nele
satisfação pessoal, seja porque não vê interesse em consumir ou acumular,
deveria ter, ao menos, o necessário para viver de maneira decente.
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Jorge Coli
Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.
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