Você está na página 1de 13

Chica Pelega - A guerreira de Taquaruçu, de Aulo Sanford de Vasconcellos

Recomende esta página para um amigo

Versão para impressão

A obra Chica Pelega – a guerreira do Taquaruçu, de Aulo Sanford de Vasconcellos, faz parte da
literatura contemporânea de Santa Catarina. Esta obra revela as chocantes injustiças e os
desmandos que culminaram na Guerra do Contestado, que teve por cenário o planalto catarinense,
palco do mais violento e prolongado movimento armado da história do país. Ela ressurge sob o
chicote verbal de um velho jornalista que, entre embates, esperanças e morticínios, foi o escriba
redesenhando a sua comovente e trágica crônica.

O romance é narrado em primeira pessoa por Pedro da Silva, um velho jornalista que, irriquieto
na sua aposentadoria, pinçou, dentre os protagonistas dos combates, a fascinante figura de
Francisca Roberta, a brava Chica Pelega, heroína da Cidade de Santa Taquaruçu.

PERSONAGENS

Personagem principal - Roberta Francisca (Chica Pelega) – É a heroína da história. Chica Pelega
nasceu na lavoura, em meio à floresta, por isso, dizer que ela é filha da terra, irmã da floresta,
irmã do rio. Sua mãe dera à luz, sozinha e depois foi banhar-se no rio. Desde pequena, Chica
possuía o dom da cura. Os pais atribuíam isso ao Monge, pois a mãe só engravidara depois de
obter o patuá com o carvão pertencente aos restos da fogueira deixado por João Maria. Chica
perdera o pai e o namorado em um massacre realizado a mando dos donos da estrada de ferro.
Sozinha com a mãe, foi acompanhar o Monge José Maria e os romeiros; no acampamento, Chica
cuidava dos doentes com muita dedicação.

É morta ao final da história em um massacre criminoso organizado pelas forças do governo.

Personagens secundários -
Zinho e Chiquinha - pais de Chica Pelega
Zico – namorado de Chica
Monge São João Maria
Monge São José Maria
Ninica
Rita
Bocudo
Praxedes, o Xandoca
Frei Rogério Neuhaus
Euzébio
Zé Biriva
Jerônimo
Menino de Deus
Maria Rosa
Cel. Albuquerque
Cap. Palhares
E tantos outros...

CONTEXTO HISTÓRICO - A GUERRA DO CONTESTADO


Tendo sido um dos conflitos sociais mais sangrentos ocorridos no Brasil, juntamente com a
revolta em Canudos, a guerra do Contestado consistiu no choque entre militares enviados pelo
governo e os milhares de camponeses sem-terra estabelecidos na região do Contestado, situada a
oeste de Santa Catarina. Estes camponeses provinham da paralisação de obras de uma estrada de
ferro e, ainda, outros camponeses que ocupavam as terras adjacentes à estrada de ferro. Esta faixa
de terra ocupada pertencia à empresa americana contratante da ferrovia, a Brazil Railway.

A região do Contestado circunstancialmente enfrentava o problema do questionamento de


fronteiras: os estados de Santa Catarina e Paraná disputavam a posse desta faixa de terra. Por
outro lado, no ano de 1912 surge uma figura que seria seguida pelos camponeses carentes de
terras para sua subsistência: o "monge" José Maria, a quem era atribuída uma aura mística pelos
camponeses. Logo, José Maria arrebanha grande número de adeptos, à semelhança do messiânico
Antônio Conselheiro, em Canudos. Este arrebanhamento de camponeses fiéis concentrou-se em
Taquaruçu, desagradando as autoridades privadas locais (coronéis), que logo trataram de expulsar
tais camponeses. A partir daí, o povo, liderado por José Maria, migrou para a região do
Contestado, mais precisamente em Campos do Irani. Os conflitos não cessam: as situações
históricas cruzaram-se na medida em que se noticiou sobre a ocupação de catarinenses em terras
paranaenses. Tropas lideradas sob o mando do coronel João Gualberto Gomes de Sá, enviadas
pelas autoridades paranaenses, deram luta aos camponeses seguidores do "monge": os resultados
foram as mortes do coronel e do "monge", assim como a derrota do exército pelos combatentes
camponeses. A morte do "monge" só fez aumentar a fama deste, que ganhou novos adeptos
localizados em diversas regiões adjacentes. Este conjunto de seguidores passa a ostentar posturas
a favor da monarquia, declarando guerra aos poderes então constituídos. Os conflitos estenderam-
se até 1916, tendo fim mediante uma ampla intervenção das forças militares federais, que
aniquilaram a resistência dos militantes de José Maria. Ao final do ano de 1916, um acordo
assinado por Afonso de
Camargo e Filipe Schmidt, respectivamente governadores do Paraná e de Santa Catarina, põe fim
às disputas territoriais. Campos de Irani, município da região central do antigo Contestado,
passou desta forma a chamar-se Concórdia.

A OBRA

O narrador inicia o prólogo, apresentando-se: chama-se Pedro da Silva e é jornalista aposentado.


Como tal, não consegue se livrar do hábito de escrever. Reclama que tem o jardim de sua casa
para cuidar, mas que não tem a mínima aptidão para jardinagem. E começa a contar o seu fascínio
pela Guerra do Contestado, desde que lera o livro do historiador Oswaldo Rodrigues Cabral
acerca do assunto.

Como jornalista que era, ficou tentado em escrever um romance que tivesse tal guerra como pano
de fundo. Resolveu, então, contar a história de Francisca Roberta, a Chica Pelega, heroína entre
os jagunços.

“Chica Pelega representa, mais que tudo, um emblema de luta. Independente de sua existência
física, significa a indignada síntese de uma coletividade injustiçada.” Em seguida, há um esboço
sobre o contexto histórico do Contestado, onde o narrador expõe fatos como o início da
construção daquela que viria a modificar a vida da maioria dos habitantes da região: a ferrovia a
qual tinha como dono o americano Percival Farquhar, que fundara a Brazil Railway Company. A
obra foi concluída em 1910 e compreendia os trechos entre os rios Iguaçu e Uruguai, seguindo
pela bacia do Rio do Peixe. “Levou apenas dois anos a conclusão desse trecho, indo de Porto
União da Vitória, no Paraná, até Marcelino Ramos, no Rio Grande.”
“Para a exploração da madeira ao longo da linha, a empresa americana criou a Southern Brazil
Lumber Company, a qual logo implantou duas gigantescas serrarias, uma em Três Barras e outra
em Calmon.”

“No pico dos trabalhos, empregaram-se nas obras cerca de 8000 trabalhadores, arrebanhados nas
vielas do Rio de janeiro, de Salvador e Recife, sob a promessa de bons salários e do respectivo
recâmbio para as suas cidades de origem ao término dos trabalhos. Muitos operários, em vez de
bons salários, ganharam tiros no bucho. Mortos não recebem salário.”

Quanto ao fato de serem levados de volta, a Companhia também não cumpriu e, sem dinheiro e
sem lugar para morar, os trabalhadores começaram a vagar pelo
sertão. Muitos deles, mais tarde, uniram-se a José Maria, fazendo parte do grupo dos excluídos,
dos escorraçados.

Faziam também parte desse grupo aqueles que haviam sido expulsos de suas terras, muitos deles
posseiros, plantadores de erva-mate, tudo devido à valorização do produto por causa da
proximidade da estrada de ferro.

A história relata o aparecimento de três monges, os quais os jagunços diziam ser a mesma pessoa,
já que eles prometiam ressuscitar. O primeiro monge, João Maria, apareceu por volta de 1850, um
italiano de Piemonte.

“Alimentava-se tão somente de raízes e de frutos, e dormia sobre uma tábua. Possuía na mão
esquerda três dedos aleijados.Então um dia ele sumiu, e houve lendas a respeito de sua morte.” O
povo acreditava que ele havia morrido, mas que iria ressuscitar.

“E ele de fato retornou. Ressurgiu em 1890. Com outra cara, mas com a mesma missão anterior.
Misturava o português com o espanhol, e na mão esquerda não apresentava defeito. Aí pelo ano
de 1910, o profeta, de novo, sumiu de circulação, mas antes teria prometido um novo retorno.”

“Dito e feito. Porque ele mais uma vez retornou, retornou, sim, agora na figura de José Maria, o
terceiro Monge. O primeiro João era o segundo João e era, ainda, o José, todos Maria. Diferentes
entre si embora fossem iguais, por serem o mesmo. Essa, a crença do sertanejo.”

Além dos Monges, havia também Chica Pelega, mas era preciso falar um pouco mais sobre o
Contestado, terra de ninguém e, ao mesmo tempo, disputada pelos estados de Santa Catarina e do
Paraná. “Aos sertanejos não cabia o direito à terra. Cabia-o aos poderosos, aos amigos dos
governantes. Tripudiados pela justiça dos homens, aos caboclos só restava apelar para a justiça
divina.” E isso estava representado na figura do Monge, que era contrário à República injusta e
lutava por uma Monarquia ideal. Para isso ele ressuscitaria. “Para aniquilar o Dragão devorador.”

A guerra durou de 1912 a 1916. “Uma guerra tão feroz quanto burra” em que os recursos
financeiros eram escassos. “Além de evitar o morticínio de ambos os lados, teria alavancado o
desenvolvimento da região já a partir do início do século. Mas, enfim, por irremediável equívoco,
enveredou-se pela luta armada, aventuresca, longa, encarniçada e, sobretudo, inglória.”

I – O Capitão Palhares

O Capitão Palhares era o homem de confiança da empresa americana. Ele sozinho era a
autoridade responsável por aquela por aquela faixa da linha férrea. Era obediente aos donos e
cruel e sanguinolento com os outros. Não se conformava com a fuga de Venuto Baiano, um dos
trabalhadores da estrada de ferro, que conseguira escapar, ludibriando todos os guardas; pior que
isso, inconformava-se com a bronca que receberia de seu superior por causa da fuga do
“vagabundo”.

II – Zinho da Chiquinha

Zinho e Chiquinha, sua mulher, vieram do Rio Grande para tentar a vida no vale do Rio do Peixe.
Como não tinham filhos, não tiveram dificuldades para desbravar a nova terra. Apossaram-se de
um pedaço de terra e construíram um rancho. Tempos depois, já possuíam lavoura e disso viviam.
Quando ouviram falar na tal estrada de ferro, imaginavam que a situação iria melhorar, porém,
enganaram-se.

Certa vez, passando por uma pedra em que diziam ter estado São João Maria por três dias, Zinho
catou uns restos de carvão, eu certamente seriam os restos da fogueira do Monge, e a mulher fez
um patuá para ela e para ele. A partir daquele dia, as coisas começaram a mudar, “as colheitas
melhoraram, ambos trabalhavam com maior disposição na fé, multiplicar-se com mais fertilidade
os animais da criação, e Chiquinha, que até então não conseguia, ficara grávida.

O nascimento da criança acontece no meio da lavoura, enquanto Chiquinha trabalhava, sozinha.


“Assim, nasceu em plena luz do sol e no contato direto com a terra, a robusta Francisca Roberta.
Lavou-se a mãe e a menina, num fundo entre as pedras do regato logo em frente.”

III - A última festa da Ninica

Para a inauguração da estrada de ferro, estavam presentes muitos moradores que acreditavam
ingenuamente na mudança de suas vidas, na facilidade que iria lhes trazer a construção da
estrada. Francisca Roberta contava, então, com 15 anos. Tornara-se muito bonita e todos os
rapazes a cortejavam; mas foi Zico, moço trabalhador, quem dançou com ela e por quem os pais
da moça faziam gosto do namoro.

Na festa estava também Ninica, irmã de Jerônimo, uma garota deficiente, “desmiolada”, que
fugira de casa e fora para a festa. Os homens se aproveitavam dela e faziam do pasto “colchão”. A
certa altura da festa, três homens, dentre eles o terrível Bocudo, a estupraram, mataram-na e
deixaram-na deitada, de olhos abertos no pasto.

IV – Uma habilidade natural

Com o tempo, foi-se descobrindo a habilidade que Francisca Roberta tinha em tratar dos animais.
Certa vez, quando ela possuía onze anos de idade, viu um pinto agonizando na areia. Ele havia
comido muito fubá e logo bebera água, formando, então, uma massa em seu papo. Francisca
pegou uma faca afiada, cortou o local, tirou a massa dura e depois costurou a garganta do
bichinho, colocando mel para a cicatrização. O bicho sobreviveu e tornou-se um grande galo do
terreiro. Quando completou doze anos, o pai dera à moça um cavalo. Aos treze anos, já sabia
montar e laçava animais na corda, “manejava a montaria e o laço como homem feito”; tempos
depois, ajudou uma vaquinha a parir, pois o filhote estava entalado e morreriam os dois se não
fosse a intervenção da garota. Como sua fama ia longe, um vizinho seu, que morava muito longe,
Zecão Amaro, pai de Zico, o rapaz que dançaria com ela na inauguração da estrada de ferro,
chamou a moça para que ela curasse seu cavalo, que estava agonizando. Ela fez um remédio à
base de ervas, e Zico ajudou-a a segurar a cabeça do cavalo para que ele o tomasse. Foi ali que os
dois começaram a se notar.
V – Planos de casamento

Zico e Francisca Roberta começaram a namorar. Havia, entretanto, um problema: ele queria
morar nas terras do pai dele, e ela, nas terras da família dela. A moça quase desistira do
casamento por causa disso, até que Zico aceitou construir sua casa nas terras do sogro. Com essa
decisão, Francisca voltou a sorrir e, todos os dias, ela ia para as terras roçar, capinar e construir
sua casa. Todos a ajudavam.

Nesse tempo, correu um boato que o governo estaria desapropriando algumas terras e expulsando
seus donos dali; mas, Zinho nem se preocupou com isso, pois suas terras ficavam a mais de cinco
quilômetros da estrada de ferro.

VI – Gentlemen, these Lands are Ours

Os homens, comandados pelo Capitão Palhares, começam a invadir as propriedades próximas à


linha de ferro (cerca de 15 km de cada lado da estrada). A primeira a ser invadida é a casa de
Zinho; para essa empreitada, foram juntos Bocudo e Dilzo Cabeção, os mesmos que estupraram
Ninica e mataram-na. Desde a festa de inauguração da estrada, Bocudo ficara de olho em
Francisca Roberta, e quando soube que iriam invadir suas terras, ofereceu-se para ir lá, a fim de
estuprá-la. Chegaram a casa e só havia dois homens, Zinho e Charrua. Por não quererem deixar
suas terras, eles foram assassinados, e os pistoleiros colocaram fogo na casa. Bocudo lamentou
não ter encontrado Francisca Roberta. Foi embora; já noite, Chiquinha e Franscisca Roberta
voltavam da roça quando se depararam com o triste quadro. “Então, ao mesmo tempo houve um
só grito, um só pavoroso urro arrancado de duas gargantas, e caíram ambas de joelhos junto ao
corpo contorcido de Zinho. Uma cena horripilante, de um realismo brutal.”

Outros homens também foram em outras propriedades e mataram seus posseiros. Zico e toda a
sua família foram mortos, e a casa, incendiada.

VII – O Senhor Bom Jesus de Taquaruçu

“Nos inícios de 1912, espalhava-se a nova do ressurgimento do monge João Maria em Campos
Novos.” O homem era um curandeiro que ganhara fama por ter curado a mulher de um rico
fazendeiro. Chamava-se José Maria.

Para os jagunços, era São João Maria que havia ressuscitado e que vinha dos céus reacender a
esperança contra a opressão e intolerância dos poderosos senhores de terra. Diferente dos outros
dois Monges, este gostava muito de viver rodeado pelo povo. Francisca Roberta, agora já sem o
sorriso no rosto e com o olhar vazio, e sua mãe Chiquinha, com os cabelos brancos que adquirira
da noite para o dia, depois do brutal assassinato de seu marido, foram seguir o Monge em
Taquaruçu.

VIII – O régulo contrariado

Francisco Albuquerque, o poderoso Superintendente de Curitibanos, mandava e desmandava no


lugar. Com a morte de seu inimigo, Henrique de Almeida, deu emprego ao filho dele,
Henriquinho, a fim de passá-lo para o seu lado. Henriquinho ficou sossegado no seu canto, até
que apareceu Henrique Rupp Júnior, o novo Promotor Público.

A vinda do Promotor fez despertar em Henriquinho a vontade de disputar o poder, como fizera
tempos antes, seu pai. Agora os dois eram rivais. Henriquinho apoiava o Monge e seus
seguidores, e Francisco Albuquerque, contrariado, tentava manter a ordem do lugar e mostrou-se
contra os peregrinos.

IX – Chica Pelega

“Quando Francisca Roberta e o seu grupo chegaram em Taquaruçu, onde se realizava a festa do
Bom Jesus, assustaram-se com a enorme concentração humana.” Eram muitas as pessoas que por
lá ficavam, principalmente por causa do Monge. Todos os “escorraçados da terra” e os
“obstruídos da vida” viam em José Maria a salvação para sua vida. Era o ano de 1912, e nunca se
vira tanta gente naquela festa.

“Praxedes Gomes Damasceno, o Xandoca, dono das terras, trazia o sal, o açúcar mascavo, as
gasosas, também as bebidas fortes, e ainda as prendas para os sorteios do dia.”

“Como de praxe, elegia-se para o evento um Imperador-festeiro, escolha que dessa vez recaiu em
Manecão Rocha.”

Todo aquele povo acreditava que a República era coisa do Diabo, por isso, veneravam a
Monarquia.

Durante a festa, Francisca Roberta viu o gaiteiro que tocara na inauguração da ferrovia, e
lembrou-se de seu pai e de Zico. Depois, ela e sua mãe foram para a fila, a fim de receberem as
bênçãos do Monge. Quanto mais se aproximava de José Maria, Francisca “sentia-se como sendo
arrebatada por uma progressiva e estranha absorção magnética, e de imediato uma relaxante
sensação de paz esparramou-se-lhe pela alma há muito atormentada por permanente amargura.”

O Monge parecia já saber da tragédia que abalara as duas. Após ser abençoada, Francisca viu uma
menina vestida de branco com flores no cabelo, de mais ou menos 14 anos de idade. Chamava-se
Maria Rosa e era a Virgem do reduto.

Para o local seguiam muitas pessoas em busca de bênção e de cura. Francisca Roberta era agora
peça indispensável, pois cuidava muito bem dos doentes que procuravam o Monge. Tão bem, que
começou a receber mimos dos romeiros, dentre eles um cavalo e uma “espécie de matilha ou
echarpe de lã forrada, felpuda como um pelego, a qual, atada ao pescoço, cobria-lhe os ombros e
caía em ponta, ainda uma parte nas costas.” Ela saía em disparada com seu cavalo e com essa
matilha que esvoaçava ao vento. Por causa disso, o povo começou chamá-la carinhosamente de
Chica Pelega.

X – A obediente retirada de Taquaruçu

Quem não estava gostando nada daquela concentração de fiéis era o Superintendente
Albuquerque. Para ele, aqueles crentes queriam derrubar a República e instituir a Monarquia.
Certamente eram apoiados por fazendeiros da região e por Henriquinho Almeida.

O Chefe de Polícia do Estado de Santa Catarina estava em Curitibanos e mandou ordens para que
o Monge se retirasse do local. Houve quem quisesse briga com a polícia, mas José Maria ordenou
retirada. Iria para os campos de Irani. Muitos o seguiram, e alguns se mandaram pela imensidão
do planalto.

“Chica Pelega, à frente dos seus desvalidos, e mais uma vez sem destino, acabou retornando para
os lados da sua saudosa Estação Limeira.”
XI – A gleba ocupada

“Chica Pelega embrutecera, nem completara ainda dezoito anos e perdera, por completo, a
capacidade de sonhar.” Houve até quem se interessasse por namorá-la, mas ela não quis.

Ao chegar à Estação Limeira, a decepção foi grande. “Ao longo da linha, a caboclada continuava
sendo enxotada à bala, e a golpes de chicote, pelos homens do Capitão Palhares. Como se fossem
cachorros. Todas as terras do vale eram destinadas pela Lumber aos colonos estrangeiros –
alemães, italianos, polacos.”

Ao chegar a casa onde morava, Chica viu as sepulturas do pai e dos outros que ela e a mãe
enterraram. “Revendo a gleba, nutriu-se ela de boas e nostálgicas lembranças da sua alegre
infância, também do início da sua esperançosa mocidade.” Lembrou-se de que o pai dizia que a
estrada de ferro viria para ajudá-los, e ela só trouxera a desgraça. Uma casa fora construída perto
de onde se dera o massacre, e pessoas habitavam o lugar. Chica sentiu raiva, chamou-lhes ladrões.
Ali próximo, brincando no chão, Chica viu uma criança brincando. Ao se aproximar, o menino
não se assustou com a sua presença e lhe sorriu. Ela pregou na camisa do menino o alfinete com a
cruz verde, presente que ganhara de Zico. O pai do garoto, ao ver Chica, veio gritando por sua
descuidada mulher que deixara a criança sozinha no quintal.

Chica fugiu mato a dentro e não mais foi vista pelo estrangeiro. Fora se encontrar com seu grupo.

“O seu retorno ao vale do Rio do Peixe revelou-se decepcionante, e Chica arrependeu-se de não
ter seguido com o Monge para Irani. E foi pensando no Irani e no Monge que decidiu trilhar, com
os seus liderados, o caminho do oeste.”

XII – O vexame oficial no heróico chão do Irani

Nesse capítulo, o Coronel paranaense João Gualberto marcha para Irani a fim de expulsar José
Maria e seu povo de lá. O Monge lhe pede um tempo para sair, mas o coronel não quer saber e
ordena um ataque surpresa, na madrugada do dia 22 de outubro de 1912.

Ao atacar o reduto, o próprio Coronel fora surpreendido. “Uns duzentos sertanejos, parecendo mil
alucinados, lacedemônios, atiravam-se de todos os lados sobre a formação militar. “Tudo isso
aliado a uma gritaria infernal, ‘Viva São Sebastião!’, ‘Viva a Monarquia!’”

A metralhadora que for trazida pela polícia, “negou-se a cuspir fogo”, uns dizem que caíra no rio
e, por isso, falhara. “Foi uma batalha relâmpago. Antes de o sol nascer já havia terminado. E Davi
venceu Golias.”

O Coronel João Gualberto foi morto, e o Monge também. Aquele havia matado o Monge, com
um tiro de seu revólver. Mas, o Monge lhes prometera que ressuscitaria logo e lhe traria boas-
novas. Aqueles que quisessem lutar ao lado dos justos, lutariam no Exército Encantado de São
Sebastião, pois todos os que “viessem a tombar durante a guerra santa retomariam a luta como
integrantes do Exército Encantado.”

Cavaram para o Monge uma cova rasa, a fim de que na hora em que ele ressuscitasse, não tivesse
muito trabalho em sair do túmulo. Os fiéis acreditavam que ele voltaria e que, muito em breve,
seria erguida em Taquaruçu a Cidade Santa de São Sebastião e que seria instituída a Monarquia
no sertão. “A Monarquia dos sonhos. Porque ele assim o disse, e nele acreditamos.”
XIII – Os abomináveis corós de Jerônimo

“Mais uma vez batendo pernas pelos socavões da floresta, já há meses, eles aguardavam com
ansiedade, aguardavam, sim, pelo prometido sinal aglutinador.” O bando que andava com Chica
Pelega já não se sentia sozinho.

“Das alturas, São João Maria, São José Maria, São Sebastião os amparava. Eles, os santos, eram
um só. Para, na hora certa, surgir com os seus cavalos e carros de fogo e, à frente dessa Milícia
Celeste, conduzi-los à vitória esmagadora contra o Dragão opressor.”

Estavam no ano de 1913. A fome e a miséria eram companheiros desse povo. Para o jagunço
Jerônimo, a culpa era do Zé Biriva, o mestiço capenga, pois após a sua chegada, eles passaram a
fracassar na caça e na pesca. Sem mais nada para comer, o único “prato” disponível eram os
corós, umas larvas que ficavam grudadas nos paus podres.

O sinal finalmente chega aos jagunços: São José Maria, o Ressuscitado, aparecera, em Perdiz
Grande, para a virgem Teodora, neta de Euzébio, dizendo para que o povo rumasse para
Taquaruçu a fim de instituir lá a Monarquia. O povo ficaria sob a proteção do Exército
Encantado.

“Para Taquaruçu, foi a palavra de ordem, e todos puseram-se a seguir Chica Pelega.” A esperança
novamente habitava os corações dos jagunços.

XIV – Zé Biriva, o homem do laço e do raio

Logo no início da caminhada, o povo se deparou com um novilho gordo. Todos tentaram pegá-lo;
ele já ia fugindo para o mato quando foi laçado por Zé Biriva que, sem demonstrar qualquer
emoção, levou o gado para o povo.

Jerônimo pediu desculpas a Zé e, a partir daquele momento, tornaram-se companheiros e só


andavam juntos. Biriva era homem de pouca conversa; Jerônimo falava pelos dois, contara ao
novo amigo sobre sua irmã Ninica, morta pelo pistoleiro da Lumber, o Bocudo, o qual seria
castigado por José Maria. De seu lado, Zé Biriva contara ao amigo sobre as várias mortes que
presenciara pelo sertão, sobre a cicatriz que trazia na virilha por causa das aspas de um boi, razão
por que mancava, e sobre um raio que o atingira no braço.

“Zé Biriva era o homem do laço. E era, também agora, o homem do raio.”

XV – Não eram óculos

O capítulo inicia com a referência a Henrique Rupp Júnior, o promotor mauricinho vindo de
Porto Alegre, que tentava impor a lei naquele sertão, porém, não sabia que ali valia mesmo era “o
berro do trabuco, e o melhor argumento era a bala. A autoridade só se fazia respeitar com mão de
ferro, a única linguagem entendida pela caboclada xucra e sobremodo matreira.” Por isso, a
presença dele ali era incômoda aos homens poderosos, principalmente, quando ele se juntou a
Henriquinho de Almeida, o protetor do Monge e de seu bando.

Em Taquaruçu, o cenário começava a se modificar. “Os arruaceiros concentravam-se, não em


improvisado acampamento, mas, ao contrário, ergueram um organizado arraial composto de uns
400 ranchos, agora bem protegidos por piquetes armados. Alimentava-se essa nova multidão, para
variar, da carne fornecida pelos mesmos fazendeiros e estancieiros liderados pelo Cel.
Henriquinho de Almeida.”

O Cel. Albuquerque, na sede da Superintendência, precisava tomar alguma providência. Estava de


olho em Praxedes, que outrora ajudara os crentes, mas que agora dizia estar arrependido e ao lado
da polícia. Iria usar a força novamente. Ele contratou Neném do Rio para juntar outros caboclos
pistoleiros a fim de resolver o problema.

Neném do Rio trouxe um homem de nome Ernestino, que parecia usar óculos e apresentou-o ao
Cel. Albuquerque. “De trato bruto, atarracado, mostrou-se logo em descompasso com aquele
mundo de gabinete. Guardava um ar desconfiado e selvagem. E não usava óculos. O que possuía
eram enormes olhos bovinos, esbugalhados, que por desconhecida doença, ou por excesso de
aguardente, raiavam-se de profusos capilares sangüíneos. Além disso, profundas olheiras, como
absurdas tarjas roxas, contornavam-lhe os protuberantes olhos bovinos. Um tipo estranho e de
uma feiúra notável.”

O Superintendente passou as ordens e foi para casa deitar. Deitado, ele refletia sobre as vantagens
e desvantagens do poder, sobre política, religião católica e algo que o incomodava: acusavam-no
de maçom, portanto, os padres estavam de olho nele.

XVI – Dinamiza-se o Arraial de Taquaruçu

Taquaruçu se organiza enquanto reduto dos crentes. Criam-se os 12 Pares de França (24
cavaleiros inspirados nos fiéis cavaleiros do monarca Carlos Magno, Imperador francês); ao alto
tremula a bandeira de São Sebastião, uma bandeira branca com uma cruz verde ao centro; no
Quadro Santo, realizam os salmos e ladainhas; a vara de marmelo é instituída como mecanismo
punitivo; agora, eles estavam sob orientação espiritual de Manoel, o Menino Deus, e a Virgem
Teodora foi destituída do poder, “perdeu o aço”, como eles diziam. Por coincidência, Manoel
também era filho de Euzébio.

Naquele lugar, os crentes sentiam-se livres. Havia comida e bebida à vontade. Zé Biriva tornara-
se o laçador oficial e Jerônimo, o açougueiro; os dois continuavam muito amigos. Jerônimo diz
que o Menino Deus está muito doente, “só babava e ria, ria muito”, o garoto lhe lembrava muito
sua irmã gêmea Ninica, que também tinha esses surtos.

De vez em quando, o povo dizia que via José Maria cavalgando pelo céu com seu cavalo alado.
Chica Pelega nunca conseguira vê-lo, diziam que ela não tinha o “aço”. Ela continuava
trabalhando muito no arraial, cuidava dos doentes, costurava, ajudava a erguer os casebres e
participava dos salmos.

Ganhara um cavalo de boa linhagem de Chico Ventura e sempre era vista, saindo em disparada
pelos campos em suas incursões solitárias.

“Todos na irmandade sabiam ser inevitável um futuro embate com as tropas do governo. Porque
assim profetizara o Monge. Ele prenunciara uma luta de seis anos até a vitória final. A Nova
Ordem preconizada pelo Santo havia de chegar. Sem ganâncias, sem injustiças. Seriam novos
tempos de paz e de bondade. Para conseguir isso, teriam de lutar. E ela possuía o braço forte, era
irmã da floresta, sabia manejar a espada e o facão.”

XVII – Uma ameaça de castração


Frei Rogério, o padre da Igreja Católica, decidira visitar o arraial, a fim de persuadir os crentes a
acabarem com aquela concentração e fazê-los voltar ao seu lugar de origem. Fora acompanhado
do bodegueiro Praxedes. Frei Rogério queria mostrar aos jagunços que a verdadeira religião era a
católica, que os verdadeiros santos eram os canonizados e que, portanto, João Maria e José Maria
não poderiam ser santos, e que o único que teria ressuscitado era Cristo, essa história do Monge
não era verdadeira. Somente a religião católica poderia levá-los ao Reino da Glória.

Ao conversar com Euzébio, este lhe disse que quem resolvia a situação era seu filho Manoel, o
Menino de Deus.

“- Cachorro! T’arreda daqui, corvo maldito! Ou eu mando te espancá!” – disse Manoel.

“- Mió que espancá, é capá ele!” – disse Querubina, a mãe de Manoel.

“Gente selvagem, selvagem, sim. Um terror. Até o velho Euzébio aproximou-se, agora ele
também ajudando nas torpes ameaças. Por muita sorte conseguira escapar ileso.” Quem o ajudou
foi Benedito, filho de Cirino Chato. “Dizem ter sido esse mesmo Benedito quem veio a
assassinar, anos mais tarde, o Cel. Albuquerque.”

VXIII – Emprenhou, foi trocado e apanhou

O Menino de Deus, Manoel, anunciou que José Maria lhe aparecera e mandara que ele ficasse
rodeado de moças virgens, todas de branco, que era para reforçar a pureza. E assim, vivia ele, ia
para a floresta com as virgens, ficava na sala designada aos seus encontros com José Maria
sempre rodeado pelas moças. Até que um dia, as mulheres da comunidade perceberam que as
moças estavam grávidas. Todas!

Manoel foi destituído do cargo e expulso do reduto, não sem antes, ser açoitado com a vara de
marmelo. Quem ocupara seu cargo, agora, foi Joaquim, neto de Euzébio.

Ao receber notícias de um iminente ataque ao reduto, Joaquim anunciou-lhes “vitória certa”.


Falara com o Monge e, sob a proteção de São Sebastião, eles poderiam ir para a guerra tranqüilos
que sairiam dela vencedores.

XIX - Um local de florzinhas silvestres

Próximo às terras de Chico Ventura ficava um campo muito tranqüilo, todo florido, um
verdadeiro lugar para meditação. Foi por ali que as tropas do governo vindas de Curitibanos
resolveram entrar para atacar os crentes. À frente, vinha Ernestino, o homem das olheiras
enormes que pareciam óculos cor-de-rosa. Esperariam a noite chegar e pegariam os crentes de
surpresa.

XX – Viram chispas de raio e sangue no chão

Dá-se início mais uma batalha. Os jagunços lutavam com a força de São Sebastião, já os
soldados, lutavam com a força da metralhadora que a tudo atingia.

Metralhadora e fuzis contra facões, contra primitivos tacapes, contra espetos de peroba? A
desproporção das armas mostrava-se evidente.”
O velho Euzébio fora atingido com uma bala na perna. Caiu e, junto com ele, os ânimos dos
jagunços. E “vacilar significa agigantar o inimigo”. Estavam nesse clima quando ouviram um
estridente:

“- Iiiiiiiiiiiiiiiii ih eh eh eh eh eh eh eh!!! Viva a Monarquia! Viva São Sebastião! Iiiiiiiiiiiiiii ih ah


ah ah ah ah ah ah!!!”

“Eis que ali vinha Chica Pelega, a brava filha da floresta, arremetida, lançando o seu estridente e
feroz grito de guerra, dos olhos jorrando-lhe chispas de raio. Em disparada, com o rosto quase
colado à crina do cavalo, projetou-se por detrás das forças inimigas agrupadas e aí foi fazendo
enorme estrago, golpeando de gume e de ponta com fúria desconhecida, com brutal energia
provinda da fé. Surgia como um anjo da morte, como um demônio sanguinário.
Eis aí Chica Pelega, mulher-centauro, a imagem viva de todas as fúrias.
Batendo, atropelando, furando, nutrida por ira santa.”

Vicente Telles, folclorista e compositor do Contestado, mais tarde, cantava: “Quem viu Chica
Pelega viu chispas de raio clareando o sertão,/ Quem viu Chica Pelega viu rasga-mortalha piar no
sertão,/ Quem viu Chica Pelega viu fogo no céu e viu sangue no chão”.

A vinda de Chica Pelega foi o ânimo que faltava aos jagunços. De repente, as forças do governo
começaram a fraquejar, e os jagunços de José Maria pareciam aumentar sua coragem. Um homem
tentou matar Zé Biriva, mas Jerônimo jogou-lhe uma faca nas costas, e ele caiu morto, com o
rosto no chão. Ao virá-lo, para saber de quem se tratava, deram com a imagem de Ernestino, o
homem de grandes olheiras que pareciam óculos.

XXI – Desaparecem Jerônimo e Zé Biriva da Cidade Santa

“Vitória no Irani, vitória em Taquaruçu, viva São José Maria!” O povo estava em festa. Todos
elogiavam Chica Pelega, afinal fora ela quem dera força aos jagunços. Chica Pelega, porém, não
se sentia lisonjeada com os elogios, pelo contrário, preferira voltar a cuidar dos doentes.

Zé Biriva e Jerônimo sempre eram vistos juntos, até que alguns dias depois da festa, eles
sumiram. “Sumiram do reduto uma semana depois do embate. E sem nada avisar. Insubmissos, os
dois, porque segundo as regras da comunidade, ninguém devia afastar-se da Cidade Santa por
simples capricho, à revelia do comando.”

XXII – A sumária justiça do Coronel

O Cel. Albuquerque está ansioso por causa da demora das tropas enviadas pelo governo.
Enquanto isso, governa o local com ainda mais rigor.

Dias antes, prendera um forte armamento que seria destinado ao bodegueiro Praxedes, o Xandoca
– certamente, pensou o Cel. era para abastecer os jagunços.

Logo em seguida, atiraram em Praxedes; havia várias versões sobre quem dera o tiro, mas o fato é
que nunca se soube a verdade. O Cel. Albuquerque o prendeu mesmo assim, para tirar
informações dele, mas nada conseguiu. No dia seguinte, Praxedes morreu por falta de socorro.

A família e os amigos do comerciante revoltaram-se contra o Cel. e passaram a apoiar os


jagunços. “Por ironia, o Cel. Albuquerque, no seu obcecado desejo de destruí-los, acabou por
reforçar-lhes a fileiras.”
O Governo mandou para região do Espinilho 750 homens armados. Sabendo disso, os sertanejos
tomaram providências: Menino de Deus Joaquim reuniu os 600 devotos no Quadro Santo e
ordenou-lhes as novas instruções do monge: deveriam abandonar o reduto. E assim fizeram.
Agora, sob a proteção da Virgem Maria Rosa, seguiram para Caraguatá e deixaram no reduto
somente crianças, velhos e doentes; esses, os verdadeiros soldados não atacariam.

Chica Pelega, contudo, não acompanhou os jagunços. Preferiu ficar com sua mãe e cuidar dos
doentes também. “Talvez mais adiante, sem pressa para enfrentar a viagem, ela para lá seguisse
com a sua mãe e com outros que assim o desejassem. Compreenderam-na os chefes, louvando-lhe
inclusive a atitude.”

XXIII – A seqüestrada

Próximo da estrada de ferro havia umas casinhas de madeira outrora ocupadas pelos seus
construtores, mas que agora estavam vazias. Às pessoas que não pertencessem à ferrovia era
proibida a entrada, com o risco de serem mortas.

Em uma dessas casas, estava a menina Rita, uma garota que fora ali presa por Bocudo, o carrasco
assassino de Ninica, que, após matar toda a sua família, ganhou a garota em um roubado jogo de
baralho e agora a mantinha presa, para sua satisfação sexual.

Rita vivia acuada a um canto da casa, com o horror de ver chegada a hora em que seu algoz viria.
Escutou os galopes do cavalo. Era ele. Mas, de repente, um laço o prendeu, e ele foi arrastado
pelos pedregulhos, uivando de dor. Quem o laçara foi Zé Biriva, e quem fez o resto foi Jerônimo,
vingando-se da morte da irmã gêmea Ninica. Após arrastá-lo por muito tempo, Jerônimo pegou
uma faca e começou a esfolá-lo, iniciando por seus órgãos genitais. Urros terríveis ecoavam na
noite.

De seu lado, Rita reconheceu na voz sofredora, a figura de Bocudo, e bendisse a quem fizera
aquilo. Depois de matá-lo, Jerônimo e Zé Biriva conversaram com Rita, que lhes expôs todo o
seu drama, e os três seguiram para Caraguatá, para junto do pessoal do Monge.

XXIV – O massacre de Taquaruçu

Antes de as tropas do Tenente-Coronel Aleluia Pires marcharem contra Taquaruçu, este


comandante recebeu a visita de Manoel Correia de Freitas, Deputado Federal, que pretendia
conversar com os jagunços antes de atacá-los.

Na verdade, ele queria uma solução pacífica para o conflito. Também no Rio de janeiro, um
advogado queria interceder pela pacificidade, mas o Governador de Santa Catarina, Vidal Ramos,
insistia em chamar os jagunços de “perigosos fanáticos perturbadores da ordem pública”, por isso
o país sentiu-se ameaçado, e ninguém intercedeu por aquele povo.

Acontece que, ao chegar ao reduto, o Deputado só encontrou velhos, crianças e doentes, ninguém
que pudesse responder pelos jagunços, pois não havia guerreiros no arraial. Ele veio embora.

Indiferentes à atitude do Deputado, o Cap. Vieira da Rosa e o Tenente-Coronel Aleluia Pires


organizaram um ataque a Taquaruçu, mesmo sabendo que lá só havia gente indefesa.
“Iniciou-se o massacre. A capela rachou-se ao meio, e a grande cruz a ela defronte partiu-se por
metade. Os casebres, o galpão, era tudo alvejado sem erro. Fazia-se ensurdecedor o bombardeio,
misturando-se ao crescente pipocar dos trovões. Não encontraram os moradores onde se abrigar,
os seus frágeis casebres nada protegiam, destroçado foi o galpão em pouco tempo. Desorientados,
corriam todos, perdidos em círculos, alvos fáceis dos obuses e do matraquear das metralhadoras.
Correram para o Quadro Santo; de lá, os velhos e as mulheres do arraial lançavam os seus
estridentes gritos de fé, “Viva a Monarquia!”, “Viva João Maria!”, “Viva São Sebastião!”

Acreditava-se no poder mágico das bandeiras. Orientadas pelas mães, crianças empunharam as
suas pequenas bandeiras. Acreditava-se que cada bandeira, ao riscar por três vezes no ar o
formato de uma cruz, resultaria na morte de 50 soldados inimigos. Por isso, monitoradas pelas
mulheres, as crianças iam riscando cruzes no ar com as suas bandeirolas. E iam caindo, uma a
uma, varadas pelas incessantes rajadas de balas.

Velhos e enfermos oravam, e mulheres xucras entoavam salmos. E erguiam os olhos para o céu,
procurando algo entre as nuvens revoltas. Onde estava José Maria, o Ressuscitado? Certamente
havia de aparecer, tomado de fúria santa, cavalgando no seu branco. Desceria das nuvens a
qualquer momento, sim, cavalgando glorioso à frente do seu invencível Exército Encanto para
esmagar o Dragão.

Continuava o pipocar da metralhadora. E José Maria não vinha. Mas ele estava lá. E vivo como
sempre esteve, nenhum caboclo duvidava disso. E todos ali tombando, um a um, nutridos dessa
esperança.

Chica Pelega estendia-se no lodo com o corpo crivado de balas. A chacina aconteceu completa,
deixando à mostra um cenário horripilante. Espalhavam-se os corpos por todos os cantos, a maior
parte deles completamente mutilados.

Um pouco antes do cessar-fogo, quando inda haviam bombas estourando e cerrados estampidos
sacudindo a noite, ouviu-se, com terna sonoridade, uma canção de ninar. Uma voz de embalo
morno e suave a contrastar com os ásperos ribombos da violenta razia. E então se viu, no relance
de um clarão, a mãe de Chica Pelega sentada na lama com a ensangüentada cabeça da filha no
colo. Alisava-lhe a cabeça e cantava com doçura, indiferente aos estouros dos obuses, a sua velha
canção de ninar.

Enlouquecera, em piedosa loucura, agarrada ao cadáver da filha. Sangue e lama maculavam-lhe


agora, os cabelos de algodão. Era ela a única sobrevivente do terrível massacre. Dentre a fuzilaria
infernal não houve uma única e misericordiosa bala capaz de pôr um breve fim aos seus
tormentos.

O narrador termina a história sobre a figura de Francisca Roberta, valente Chica Pelega, “a
imolada heroína de Taquaruçu”, a filha da terra e irmã da floresta, observando seu jardim,
merecedor de um melhor jardineiro.

Resquícios do massacre da guerra e de Chica Pelega ficam em sua memória. “Jogada na


marginalidade, ela [Chica Pelega] morreu sem ter morrido. Chica Pelega eram todos. E não se
matam todos, que são impessoais. Por isso ela não morreu. Ei-la, algures, a trágica Chica Pelega,
a filha da terra, irmã do rio, basta olhar e querer vê-la.”

Créditos: Cláudia Regina Silveira - Doutora em Letras - Literatura Brasileira

Você também pode gostar