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Resumo
Intervenções urbanas e produções audiovisuais do coletivo Frente 3 de fevereiro
provocaram a elaboração deste artigo, que trata de artivismo e experiências estéticas
políticas que rompem os “espaços opacos” das cidades. “Espaços opacos” e “espaços
luminosos” são termos cunhados por Milton Santos para denominar as zonas periféricas
e as zonas centrais das metrópoles capitalistas. Nessas disputas de territorialidades a
questão do racismo e da violência do Estado são marcantes na vida das pessoas e
comunidades. E a subversão desse quadro de injustiça social passa pela denúncia e pela
ocupação dos espaços simbólicos e políticos. Este artigo fala de cinema e movimento
negro na vida urbana.
Abstract
Urban interventions and audiovisual productions by the Frente 3 de Fevereiro collective
led to the elaboration of this article, which deals with artivism and political aesthetic
experiences that break the “opaque spaces” of cities. “Opaque spaces” and “luminous
spaces” are terms coined by Milton Santos to describe the peripheral and central areas
of capitalist metropolises. In these territorial disputes, the issue of racism and state
violence are marked in the lives of people and communities. And the subversion of this
picture of social injustice involves denouncing and occupying symbolic and political
spaces. This article addresses cinema and the black movement in urban life.
Introdução
Pensar o espaço de forma política sempre foi uma preocupação do geógrafo e pensador
brasileiro Milton Santos.
A primeira ação do coletivo foi a obra Monumento Horizontal (2004): uma placa
de metal cimentada no asfalto construída no local em que Flávio Ferreira Sant’Ana foi
assassinado pela polícia, dois meses depois do ocorrido. A obra marcava uma espécie de
enterro simbólico para o jovem negro (ALVES; OLIVEIRA, 2015; DOSSIN, 2009). E
foi um ponto importante também para o entendimento das estratégias de mobilização do
coletivo. Apesar de uma intensa articulação com movimentos sociais, instituições
políticas e figuras públicas importantes, o momento da inauguração do monumento foi
esvaziado: “Só a gente estava lá com a família do Flávio, no lugar em que ele tinha sido
morto, com um monumento horizontal… Tinha a gente e seis pessoas”, relembra
1
Os integrantes do coletivo 3 de Fevereiro Eugênio Lima, Felipe Teixeira e Iramaia Gongora foram
entrevistados por conferência de vídeo online pelos autores em outubro de 2019 para a escrita deste
artigo.
Eugênio Lima. O sucesso na concretização do monumento - que apesar de ser retirado
inúmeras vezes pela polícia, foi sucessivamente reinstalado pelo coletivo -, mas a
ausência de uma participação mais massiva da sociedade civil organizado levou aos
integrantes ao entendimento que no lugar de ações massivas seria mais efetivo partir
para a “amplificação de ações de guerrilha”. Concretamente isso significou formas de
pensar a ressonância midiáticas das ações nos veículos tradicionais e alternativos de
imprensa após os acontecimentos.
Sem jamais abandonar o espaço urbano como local de ação, o coletivo passa a se
preocupar com formas de utilizar a cobertura midiática: “Então, a gente caminhava de
um lado com aliança concreta ou com movimento social, ou com torcida organizada, ou
com espaço de território, ou com a quebrada que estava junto. E, por outro lado, a gente
sabia que as reverberações midiáticas dessas ações, a gente tinha que pensar: “como que
eles ou elas iriam reagir a isso?”, explica Eugênio Lima. Para o artista o fato do racismo
estrutural também ser um componente fundamental da mídia hegemônica ajudava na
ampliação das ações: “E aí a gente começa a criar outras ações sabendo desse lugar de
como a própria mídia por ser muito racista e por também ser muito previsível, ela pode
ser utilizada como um processo de duplicação da própria ação”, explica Lima.
Para Iramara Gongora, o fundamental desta utilização da mídia era o aumento
do alcance das ações: “A ideia da mídia é que ela possa alcançar espaços que a gente na
rua não consegue. A gente na rua é tête-à-tête, a gente na costura pequena, na aliança.
Quando a gente vai para qualquer tipo de mídia sendo o documentário, as fotografias, as
gravações, elas vão para replicar”. Nesse sentido, um importante dispositivo que passa a
ser utilizado pela Frente 3 de Fevereiro são as bandeiras: em geral, um tecido branco,
escrito em letras grandes pretas e vermelhas, sempre de grandes proporções e com
frases provocativas: “Brasil Negro Salve”, “Onde estão os negros?”, “Zumbi somos
nós”. No documentário “Bandeiras”, (Frente 3 de Fevereiro, 2005)2 é possível
acompanhar os passos da criação e execução do dispositivo na abertura das bandeiras
em estádios de futebol: a pintura da bandeira, a aliança com as torcidas organizadas, a
conversa com a polícia e abertura da bandeira em momentos importantes (como os de
comemoração de um gol). O documentário além das imagens de registro do coletivo
utiliza trechos de transmissão dos jogos na televisão em que as bandeiras da Frente
foram transmitidas ao vivo para milhões de espectadores.
2
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hX3GFEHsTSs&t=97s. Acesso em 12 de Fevereiro
de 2020.
das ideias do coletivo. Se o espaço de disputa é a cidade com a suas zonas opacas e
luminosas, o trabalho do coletivo integrou também a expansão da intervenção urbano
pela utilização de vídeos e fotografias. Na próxima seção, nos deteremos nos
documentários realizados pela Frente, como também uma forma de ressonância das
ações do coletivo.
Os filmes criados pelo grupo eram uma estratégia de circulação das discussões
para além da agenda da mídia tradicional: “Então o documentário tinha esse movimento
propositivo que a gente ia em lugares comunitários, em movimentos, passava o
documentário e fazia uma conversa, fazia um workshop”, explica Teixeira - destacando
que o material cinematográfico era utilizado também como uma expansão do coletivo
para outros países.
Embora a construção técnica dos filmes na captação fosse feita por integrantes
específicos com experiência na área do audiovisual, a montagem era feita de forma
coletiva por todos os participantes. Isso para Eugênio Lima mostrou-se uma questão
bastante complexa, porque “onde na política não tem autoria, mas na arte você
reivindica a autoria”, pontua Lima. Para o artista o fazer coletivo dos filmes pela frente
foi um processo de amadurecimento: “(...) a gente teve que criar processos coletivos
para decidir coisas que supostamente seriam do ponto de vista técnico individuais: qual
é a fonte da letra? Como vai escrever? Qual é a cor da tinta? Quais são os processos que
podem democratizar o processo de edição?”. Assim, por exemplo, no processo de
montagem de “Zumbi somos nós” (Frente 3 de Fevereiro, 2005), os storyboards e as
timelines f oram colocados em cima da mesa e iam sendo discutidos e manipulados
coletivamente.
Iramara Gongora destaca que também foi importante a criação de processos para
que mesmo os integrantes sem experiência técnica de realização com cinema pudessem
estar envolvidos: “A gente não tinha uma super verba para pagar uma equipe. A gente
tinha a gente. Então foi criando estrutura para que todo mundo pudesse participar,
mesmo por exemplo, eu que trabalho com dança e produção, então eu não tenho um
trabalho com audiovisual, mas fui aprendendo a minutar, fazendo transcrição,
organizando”. O três integrantes entrevistados destacaram que todas as tomadas de
decisão se faziam por reuniões presenciais: “Não adiantava você não gostar e não ir para
a reunião”, ressalta Gongora.
3
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9g7m12ixqjM. Acesso em 12 de fevereiro de 2020.
sonoro, constituído por uma espécie de bricolagem musical que une
os tambores e seus ritmos ancestrais com a construção do Dj.
Afro-Samples, Hip-Hop, Samba e Soul-Music brasileira, uma ode ao
sincretismo sonoro, que coloca junto as canções de Aruanda com o
ritmo e a poesia do Rap e Spoken Word4.
4
Sinopse do documentário Zumbi Somos nós. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=9g7m12ixqjM. Acesso em 12 de fevereiro de 2020.
5
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nUZBkMDm8zU&t=9s. Acesso em 12 de fevereiro
de 2020.
Fonte: Frame do filme “Arquitetura da exclusão” (Frente 3 de Fevereiro, 2010)
Legenda: Globo mundi com a frase “Haiti aqui” na praia.
Considerações finais
https://contrapontoefuga.wordpress.com/2008/07/21/zumbi-somos-nos-diaspora-afronetica/
http://www.omenelick2ato.com/mais/frente-3-de-fevereiro
Referências (USADAS ATÉ O MOMENTO)
ALVES, Iulo Almeida; OLIVEIRA, Marília Flores Seixas de. O monumento horizontal
e a luta
antirracista: arte & política em pesquisa. In: Revista Perspectivas do Desenvolvimento:
um enfoque multidimensional. Volume 03, Número 04, Julho 2015.
DOSSIN, Francielly R. Reflexões sobre o Monumento Horizontal: o corpo negro além
do racismo e da negritude. 2009. 144p. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) –
Centro de Artes, Universidade do Estado de Santa Catarina. 2009.
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