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DaseinLaConcepcionHeideggerianaSobreElModoDeSerHum 4798420 PDF
DaseinLaConcepcionHeideggerianaSobreElModoDeSerHum 4798420 PDF
Doi: dx.doi.org/10.12804/apl32.1.2014.07
Resumo Abstract
A obra Ser e Tempo do filósofo alemão Martin Heidegger Martin Heidegger’s Being and Time is one of the
é uma das influências fundamentais para o surgimento da major influences on existential-phenomenological
psicologia fenomenológico-existencial. Nela, Heidegger psychology’s development due to its new approach to the
utiliza o termo Dasein para nomear o modo de ser espe- understanding of the human being. The German philoso-
cificamente humano e questionar a tradição metafísica pher called Dasein the particular human mode of being in
(ontológica) ocidental. O Dasein heideggeriano des- order to rethink the western metaphysical (ontological)
pertou o interesse da psicologia em função da renovada tradition. According to Heidegger, Dasein is always a
concepção de homem que apresentava. Para Heidegger, relationship to one’s own being, the characteristics of
o Dasein é sempre relação com o próprio ser, cujas ca- which are called existentials. In Being and Time Dasein
racterísticas são chamadas de existenciais. Em Ser e is described in its everydayness as a being-in-the-world
Tempo, o Dasein é descrito em sua cotidianidade como that is always already projecting itself upon possibilities
ser-no-mundo que existe já sempre se projetando em of being which constitute one’s own being. As a being-
possibilidades de ser, as quais são constituintes do seu in-the-world Dasein does not show itself primarily as
próprio ser. Sendo-no-mundo, o Dasein não se mostra an individualized subject to whom the world is a mental
como um sujeito individualizado que representa objetos object, on the contrary, it loses itself in the anonymity of
mentalmente, ao contrário, perde-se na impessoalidade The One and it establishes practical dealings with the su-
do mundo compartilhado com os outros e lida com o que rroundings. Individuation is something it has to achieve
está ao seu redor de modo prático. A individualização through the fundamental mood of anxiety.
passa pela disposição afetiva fundamental, a angústia. Keywords: Dasein, existential analytic, existential-
Palavras-chave: analítica existencial, Dasein, Heide- phenomenological psychology, Heidegger, human mode
gger, modo de ser humano, psicologia fenomenológico- of being
existencial
* Marcelo Vial Roehe, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Brasil;Elza Dutra, Programa de Pós-Graduação em Psico-
logia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Brasil.
Este trabalho foi apoiado por: CAPES
A correspondência relacionada com este artigo deve ser direcionada a Marcelo V. Roehe, Rua Caiapó, 120 Porto Alegre/Brasil 91900-
550. Correio electrónico: mvroehe@gmail.com
Para citar este artículo: Roehe, M. V. & Dutra, E. (2014). Dasein, o entendimento de Heidegger sobre o modo de ser humano. Avances
en Psicología Latinoamericana, vol. 32(1), pp. 105-113. doi: dx.doi.org/10.12804/apl32.1.2014.07
A expressão composta “ser-no-mundo”, já na sua cun- ao dasein não é uma abertura da razão como tal, mas
hagem, mostra que pretende referir-se a um fenômeno sempre um projeto qualificado, definido, poderíamos
de unidade. Deve-se considerar este primeiro achado dizer, tendencioso (p.54).
em seu todo. A impossibilidade de dissolvê-la em ele-
mentos, que podem ser posteriormente compostos, não O Dasein é envolvido no mundo, é interessado,
exclui a multiplicidade de momentos estruturais que em função de outra estrutura existencial, a dis-
compõem esta constituição (Heidegger, 1927/2006, posição afetiva. Esta é a condição ontológica de
p. 98-99). manifestações ônticas como o humor. Humor diz
respeito a como alguém está, como se encontra ou
Em Ser e Tempo, homem e mundo aparecem “como vai”. O ser humano não existe num estado
como unidade ontológica original: não há homem neutro, numa atitude teórica diante da realidade,
sem mundo, nem mundo sem homem. O homem pelo contrário, o que se mostra na abertura do aí já
não entra em relação com o mundo a partir de sua aparece vinculado a uma tonalidade afetiva. As coi-
racionalidade primária, pelo contrário, a racionali- sas do mundo, os outros e o seu próprio ser fazem
dade é que se desenvolve desde o vínculo original diferença para o Dasein, podem tocá-lo de alguma
do homem com os demais entes. No cotidiano, os maneira. Mesmo o desinteresse ou a não atribuição
entes não se mostram, primeiramente, como objetos de importância a algo ou a alguém é um modo de
teóricos ou matéria extensa, os entes têm significa- ser afetado pelo mundo. Ao contrário da tradição
dos relativos à relação que o homem, em seu ser, es- mentalista, Heidegger afirma que o humor não é
tabelece com eles, ou seja, o homem já está com os um estado intrapsíquico:
demais entes numa relação de ser. Por exemplo: um
microfone não se mostra como matéria extensa; Ele não vem de “fora” nem de “dentro”. Cresce a par-
um microfone recebe significado como um instru- tir de si mesmo como modo de ser-no-mundo (...). O
mento que permite ao homem que se comunique estado de humor não remete, de início, a algo psíquico
de uma certa maneira. Sendo um instrumento de e não é, em si mesmo, um estado interior que, então,
comunicação, pressupõe a relação entre diferentes se exteriorizasse de forma enigmática, dando cor às
pessoas e uma linguagem em comum. Além disso, coisas e pessoas (...) é um modo existencial básico da
um microfone está relacionado a outros objetos, abertura igualmente originária de mundo (...) (Hei-
como um amplificador, um interruptor de energia degger, 1927/2006, p. 196).
ou um fio, na relação com os quais realiza sua
utilidade para o homem. O conjunto é necessário É o humor, já vinculado ao mundo, que permite
para que cada objeto adquira seu significado como que o Dasein se aproxime de determinadas possibi-
instrumento para realização de necessidades típicas lidades e se distancie de outras, se interesse por algo
do homem que vive em sociedade, no caso, a comu- ou despreze alguma coisa. É sendo afetado ou toca-
nicação (Em Ser e Tempo estas relações constituem do pelo mundo, que o ser humano sente ansiedade,
a significância). O microfone, o amplificador, o medo, alegria, orgulho. Estas são manifestações ôn-
interruptor, o fio, o espaço onde ocorre a comuni- ticas, somente possíveis devido à disposição afetiva
cação são o que Heidegger (1927/2006) chama de que caracteriza o Dasein ontologicamente. Se o ser
totalidade instrumental. Consequentemente, não humano não se vinculasse afetivamente ao mun-
há objetos isolados adicionados uns aos outros no do, ou seja, se não fosse disposto-no-mundo, não
espaço geométrico; é o conjunto que, na relação poderia, por exemplo, eleger prioridades para sua
com o modo de ser do homem, constitui o mundo. vida, pois tudo que há no mundo se mostraria como
sendo igual, não importando nem mais nem menos.
Vattimo (1971/1987) acrescenta: A diferenciação entre o que interessa, atrai, importa
O ser-no-mundo nunca é um sujeito puro, porque ou não é possível em função da disposição afetiva.
nunca é um expectador desinteressado das coisas e dos Heidegger destaca uma disposição em particu-
significados; o projeto dentro do qual o mundo aparece lar, a angústia, a qual considera a disposição fun-
damental. A angústia revela o ser-no-mundo como riza de fato. O futuro (porvir) está sempre impli-
tal exatamente por tornar o envolvimento com as cado, constitui as ações (presentes), uma vez que
coisas do mundo e com os outros, insignificante. o ser humano antecede-a-si-mesmo (Heidegger,
Para o Dasein angustiado “o ente intramundano em 1927/2006).
si mesmo tem tão pouca importância que, em razão
dessa insignificância do intramundano, somente o Em seu ser, a presença já sempre se conjugou com uma
mundo se impõe em sua mundanidade” (Heidegger, possibilidade de si mesma (…) já sempre antecedeu a
1927/2006, p. 253). Ou seja, a totalidade referencial si mesma. A presença já está sempre ‘além de si mes-
do cotidiano se mostra irrelevante, o fazer cotidiano ma’, não como atitude frente aos outros entes que ela
é substituído pela “estranheza”: “a disposição reve- mesma não é, mas como ser para o poder-ser que ela
la ‘como se está’. Na angústia, se está ‘estranho’ ” mesma é (Heidegger, 1927/2006, p. 258-259).
(Heidegger, 1927/2006, p. 255). Na sequência do
texto, o papel da angústia como disposição funda- A compreensão conduz o ser do homem para as
mental será retomado. suas possibilidades: compreendo a barra de micro-
Como alguém está implica um contexto do qual, fone como um instrumento que permite a comuni-
necessariamente, o Dasein faz parte, implica “es- cação, então o microfone não se esgota como um
tar”. Já-sempre estamos numa situação qualquer, objeto aqui e agora, ele permite – na relação com o
já-sempre há vínculos que nos influenciam e estão ser do homem – um momento seguinte, uma possi-
além de nossa vontade, já-sempre estamos num bilidade de comunicação, desde que utilizado com
determinado humor; a isso Heidegger chama de este fim. Ressalte-se: não se trata de um planeja-
facticidade. A facticidade se dá em função do ser mento mental, trata-se de um “fazer assim”.
humano ser-lançado no mundo. Ser-lançado mos- A compreensão “abre” o possível porque possui
tra que o Dasein é sempre “meu” já num âmbito a estrutura existencial que Heidegger chama de pro-
determinado do mundo. O homem não conduz a si jeto. O Dasein compreende projetando. Uma comu-
mesmo até o ser: é lançado no mundo como herdei- nicação deve ser feita; o microfone será utilizado
ro de condições históricas e ideológicas, herdeiro na medida em que possibilita esta comunicação; a
de uma compreensão mediana da existência num comunicação deverá gerar determinada consequên-
determinado período (Sheehan, 1995). cia. São possibilidades; como tais, são antevistas
O Dasein sempre compreende o ser em geral e o como doadoras de sentido ao que se vai fazer.
seu próprio ser de alguma maneira. Esta compreen- O Dasein não se define pelo que é “aqui e ago-
são não é um conhecimento teórico, racional. Ela ra”, como um objeto restrito à sua manifestação
é prática, porque diz respeito ao modo de ser (ver- material-presente, pois o poder-ser faz parte da
bo, ação). A compreensão se mostra naquilo que o sua facticidade. O que o ser humano é abrange a
ser humano faz, no lidar com a própria existência, dimensão do possível, do ainda-não que poderá vir
providenciar algo em virtude de possibilidades a ser. Aquilo que o Dasein ainda não é como fato,
mundanas. Para Haugeland (1982) compreender é como realidade, ele é como possibilidade, ele é
saber como ser a pessoa que se é, sendo-a. Dreyfus existencialmente, uma vez que o ser humano é suas
(1991) escreve que a compreensão é o saber como possibilidades. “Enquanto projeto, compreender é
proceder em referência ao que se faz; é fazer o o modo de ser da presença em que a presença é as
que é apropriado, conforme a situação. Heidegger suas possibilidades enquanto possibilidades” (Hei-
(1927/2006) observa: “O que se pode no compreen- degger, 1927/2006, p.206).
der, assumido como existencial, não é uma coisa, Heidegger (1927/2006) rejeita o entendimento
mas o ser como existir. Pois no compreender sub- do ser humano como uma unidade isolada que,
siste, existencialmente, o modo de ser da presença por proximidade espacial, se agrupa com outros
como poder-ser” (p.203). seres humanos. Para o filósofo, o homem – exis-
O Dasein existe sempre em função de um poder- tencialmente, ontologicamente – se caracteriza pela
ser que, embora ainda não realizado, já o caracte- convivência, pelo ser-com; o mundo do homem é
mundo compartilhado. Ser-homem sempre envolve mínio dos outros que, sem surpresa, é assumido sem
a presença de outros homens. O ser humano sempre que a presença, enquanto ser-com, disso se dê conta
está referido a um contexto familiar, a um ambiente (Heidegger, 1927/2006, p. 183).
de trabalho, a uma localização (rua, bairro, cidade,
etc.), a uma origem (povo, país), ao uso de objetos O exercício impessoal do cotidiano alivia o
comuns produzidos por outras pessoas; todas são Dasein da responsabilidade individual por suas
determinações coletivas que contribuem para o des- decisões, uma vez que os julgamentos e escolhas
envolvimento de nossa própria identidade (nosso são – impessoalmente – prescritos. Sendo assim, o
nome, por ex., é decidido por outros). impessoal facilita, nivela e superficializa a convi-
A convivência é um aspecto existencial do Da- vência cotidiana.
sein e sua realização poderá ser plena ou deficien- Não é o “eu” quem assume a responsabilidade
te, habilidosa ou difícil, quer dizer, a maneira ou pelas decisões e pelas ações: identificado com o ser-
a qualidade com que exercitamos o ser-com são com impessoal do cotidiano, o ser humano se faz
possibilidades de um modo de ser já constituído no indiferenciado. “Todo mundo é o outro e ninguém
mundo compartilhado. Heidegger (1927/2006) usa é si mesmo. O impessoal que responde à pergunta
o termo preocupação para designar, de forma geral, quem da presença cotidiana, é ninguém, a quem a
os relacionamentos possíveis entre seres humanos. presença já se entregou na convivência de um com
o outro” (Heidegger, 1927/2006, p. 185).
O ser-com determina existencialmente a presença, A medianidade imposta pela impessoalidade
mesmo quando um outro não é, de fato, dado ou per- cotidiana determina que o ser humano exista, na
cebido. Mesmo o estar-só da presença é ser-com no maior parte do tempo, conforme características que
mundo. Somente num ser-com e para um ser-com é não são propriamente suas. Elas são de todos e de
que o outro pode faltar (Heidegger, 1927/2006, p.177). ninguém: “numa primeira aproximação, ‘eu’ não
‘sou’ no sentido do propriamente si mesmo e sim
Só pode ser solitário ou viver isolado quem, os outros nos moldes do impessoal. É a partir deste
originalmente, é social. Quando se percebe que e como este que, numa primeira aproximação, eu
alguém está falando sozinho, isso somente chama ‘sou dado’ a mim mesmo” (Heidegger, 1927/2006,
a atenção porque a fala é sempre entendida como p. 187). Portanto, aquilo que alguém faz é feito co-
ato comunicativo exigindo, portanto, comunidade. mo todos os outros fazem, aquilo que alguém diz
Sendo-lançado num mundo-com, o Dasein já- é dito como todos os outros dizem, etc. Como se
sempre se encontra num contexto de práticas e não houvesse a possibilidade de escolha diante de
entendimentos medianos estabelecidos, que dizem como conduzir a própria vida.
respeito a como se deve conduzir a vida, ao qual A identificação com o modo de ser já dado pelo
Heidegger chama de impessoal. A convivência co- impessoal deixa encoberta a liberdade do Dasein
tidiana, as rotinas socialmente partilhadas, o viver para assumir a responsabilidade por suas ações, por
a vida como se costuma viver, como todos vivem seu modo de vida. O fazer cotidiano impessoal se
absorvem a individualidade, o si-mesmo de modo mostra como uma necessidade, como a única possi-
que o “eu” não se sobressai como um ponto refe- bilidade de ser, de tal maneira que o Dasein sequer
rencial para o agir, ficando velado na identificação reconhece que pode escolher seu modo de ser. Lo-
com o “todo mundo”, na impessoalidade. go, o ser humano existe não se apropriando de si
mesmo, não sendo propriamente (autenticamente)
A presença, enquanto convivência cotidiana, está sob si mesmo, mas sim impessoalmente si mesmo. Para
a tutela dos outros. Não é ela mesma que é, os outros apropriar-se de si mesmo, o Dasein deve retomar-se
lhe tomam o ser. O arbítrio dos outros dispõe sobre as da dispersão no impessoal; é aqui que a angústia
possibilidades cotidianas de ser da presença. Mas os desempenha o papel de disposição fundamental.
outros não estão determinados. Ao contrário, qualquer A identificação com o impessoal tranquiliza o ser
outro pode representá-los. O decisivo é apenas o do- humano no sentido de lhe assegurar que tudo ocorre
como deve ser. A angústia, no entanto, rompe as uma escolha. Recuperar a escolha significa escolher
identificações impessoais cotidianas, o que vinha essa escolha, decidir-se por um poder-ser a partir de
sendo familiar se torna estranho. Estranheza, para seu próprio si-mesmo. Apenas escolhendo a escolha é
Heidegger, significa “não se sentir em casa”. que a presença possibilita para si mesma o seu poder-
Na angústia, o mundo das ocupações impes- ser próprio (Heidegger, 1927/2006, p. 346).
soais cotidianas, familiares e tranquilas perde essa
condição e o Dasein se vê diante de si mesmo, Para Heidegger (1927/2006), o apelo da cons-
singularizado como ser-possível para quem a pro- ciência, que permite ao ser humano recuperar a
priedade e a impropriedade são possibilidades do si mesmo da impessoalidade é um modo de fala.
seu modo de ser. A fala é outra das características constitutivas do
Dasein. A fala não é a expressão verbal como cos-
Na presença, a angústia revela o ser para o poder-ser tumeiramente se entende, esta é a linguagem. “A
mais próprio, ou seja, o ser-livre para a liberdade de compreensibilidade do ser-no-mundo, trabalhada
escolher e acolher a si mesma. A angústia arrasta a por uma disposição, pronuncia-se como fala (…). A
presença para o ser-livre para…, para a propriedade de linguagem é o pronunciamento da fala” (Heidegger,
seu ser enquanto possibilidade (…). A presença como 1927/2006, p. 224). A fala é mais ampla do que a
ser-no-mundo entrega-se, ao mesmo tempo, à respon- linguagem, dela fazem parte a escuta e o silêncio.
sabilidade desse ser (Heidegger, 1927/2006, p. 254). “Escutar é o estar aberto da presença enquanto ser-
com os outros” (Heidegger, 1927/2006, p.226).
A transição para o poder-ser próprio também O que é escutado já é compreendido de modo
envolve ouvir o apelo da consciência. Enquanto está compartilhado. Heidegger exemplifica: no cotidia-
entregue às rotinas da impessoalidade, o Dasein não no, não se escuta um ruído puro, porém o barulho
ouve a si mesmo, ele escuta a “falação” impessoal da motocicleta ou do carro, o fogo crepitando, a
dos outros. A consciência surge como a possibilida- coluna marchando. O Dasein já está, humorada
de de uma escuta própria que, consequentemente, e compreensivamente, junto aos entes intramun-
deve romper a escuta do impessoal. Para isso, con- danos, de modo que o que é escutado não são,
trapõe à falação rotineira tranquilizadora o silêncio primeiramente, sensações que, num segundo mo-
angustiado: “O apelo fala estranhamente em silêncio mento, levam aos significados do mundo (carros,
(…). Só o apelo sintonizado pela angústia possibilita pessoas em marcha). A escuta é compreensiva, pois
que a presença se projete para o seu poder-ser mais o ser humano está-no-mundo-com-outros. Escuta
próprio” (Heidegger, 1927/2006, p. 356). o compreendido e, por isso, pode, também, não
O apelo da consciência indica o estar em dívida compreender o que escuta.
do Dasein para com seu próprio ser. Em dívida para O silêncio é uma possibilidade da fala. Expres-
com as possibilidades mais próprias que se deixa sões como “silêncio que fala” e “silêncio ensurde-
passar, enquanto se vive de acordo com o impes- cedor” mostram o papel comunicativo do silêncio:
soal. Perdido na impropriedade do impessoal, o “Quem silencia na fala da convivência pode ‘dar
ser humano não responde por suas possibilidades, a entender’ com maior propriedade” (Heidegger,
deixando-as ao arbítrio da impessoalidade. É com- 1927/2006, p.227). O verdadeiro “poder escutar”
preendendo o apelo da consciência que o Dasein vem do silêncio como um modo da fala de quem
pode escolher a si mesmo. A fim de apropriar-se de tem algo a dizer em sua abertura própria.
si mesmo, o Dasein precisa se responsabilizar por O Dasein é antecedendo-a-si-mesmo na forma
suas escolhas, assumindo a liberdade de escolher a de compreensões já projetadas e neste movimento
própria possibilidade de fazer escolhas. existencial ele encontra sua possibilidade derradei-
ra, a morte. Ser-para-a-morte é como Heidegger
A passagem do impessoal, ou seja, a modificação do chama este modo de ser do homem. A morte aqui
impessoalmente si mesmo para o ser si mesmo de ma- não é vista como um evento que está por vir ou
neira própria deve cumprir-se como recuperação de como o final da vida instalado num ponto futuro
ao qual se deve chegar; o Dasein é ser-para-o-fim: de Dasein (Heidegger, 1927/2006). Tem sido a
sendo para sua morte, ele, de fato, morre constante- principal influência para o desenvolvimento do
mente enquanto existe. A morte também não é um campo fenomenológico-existencial na psicologia,
evento que completa a vida do ser humano: como desde seus primórdios com Ludwig Binswanger
poder-ser, o Dasein sempre é possibilidade, ou seja, (Binswanger, 1975; Halling & Nill, 1995).
enquanto existe, ele ainda não é o que pode ser. O Quando se procura compreender o homem a
ser humano, “enquanto existir, deve, em poden- partir do seu modo de ser, discussões baseadas
do ser, ainda não ser alguma coisa” (Heidegger, em dualismos tradicionais como corpo/mente (ou
1927/2006, p.305). alma), sujeito/objeto, homem/ambiente podem ser
Em Ser e Tempo, a morte como ser-para-o-fim é revisadas, de modo que se entenda que as polarida-
vista como a possibilidade mais própria do Dasein, des são manifestações do modo de ser do homem e
pois é ele mesmo que dá a si essa possibilidade. A não seu fundamento.
morte, como possibilidade própria, não está nas re- A título de exemplo de um debate dualizado, pa-
lações do ser-com (“preocupação” com os outros), ra o qual a analítica de Heidegger pode contribuir,
nem no lidar com os entes não humanos (“ocu- veja-se as discussões psicológicas sobre saúde. Os
pação” com as coisas). A morte é de si mesmo para trabalhos de psicologia que debatem o problema
si mesmo. Ela é singular como possibilidade para o da saúde se caracterizam pela crítica ao modelo
Dasein e singulariza o Dasein como possibilidade biomédico, o qual se caracteriza pelo entendimen-
irremissível de si mesmo. Sendo-para-a-morte, o to materialista, biomecânico do processo saúde-
ser humano somente pode apreender a morte como doença (Alonso, 2004; Carvalho, Bosi & Freire,
um fenômeno antecipatório. Não se tem a experiên- 2009; Sebastiani & Maia, 2005), priorizando a
cia da morte mesma, uma vez que, na morte, ces- individualidade corporal e deixando em segundo
sam as experiências. Enquanto se vive, antecipa-se plano aspectos contextuais como qualidade dos
a morte como a possibilidade (certa) do fim. ambientes (Kuhnen et al., 2010), cultura e história
À totalidade estrutural do ser do Dasein, Heide- diferenciada das pessoas e das sociedades (Mori &
gger (1927/2006) chama de cura. Como estrutura Gonzalez Rey, 2012); história, política, economia,
existencial, a cura mostra a unidade do anteceder-a- o cotidiano, o bairro, a família (Zurba, 2011).
si-mesmo, do ser-em (facticidade) e do ser-junto aos Os trabalhos de psicologia afirmam que o pro-
demais entes: “O ser da presença diz anteceder-a-si- blema da saúde não se restringe aos limites do cor-
mesma-no-já-ser-em-(no mundo)-como-ser-junto-a po humano. O processo saúde-doença transcende
(os entes que vêm ao encontro dentro do mundo). a individualidade corporal, ele alcança os espaços
Esse ser preenche o significado do termo cura” que dizem respeito à vida humana. Subjacente a esta
(Heidegger, 1927/2006, p.259-260). Antecedendo- discussão, está uma concepção de homem. Há um
a-si-mesmo, o ser humano se projeta em possibi- entendimento de que o homem não é uma unidade
lidades, a partir da situação em que ele já-está e material autossuficiente, dentro da qual um processo
vem sendo, enquanto se preocupa com outros seres biomecânico gera saúde ou doença. Os limites do
humanos e se ocupa com entes não humanos. Nos ser humano não se esgotam no seu corpo, uma vez
momentos constitutivos da cura, aparece a tempo- que o Dasein é-no-mundo. O ser humano está vincu-
ralidade do modo de ser humano: antecede-se (fu- lado de tal maneira àquilo que lhe é transcendente,
turo), desde onde já se está (passado), a fim de lidar que apenas a consideração do corpo não é suficiente
com o que vem ao encontro no mundo (presente). para dar conta de um entendimento da saúde hu-
mana; porque, conforme Heidegger (1927/2006),
Considerações Finais não se compreende o homem considerando-o, ape-
nas, na forma de uma individualidade que ocupa
A analítica existencial de Heidegger publicada um espaço natural. Se o ser humano transcende
em Ser e Tempo é a descrição do modo de ser es- sua própria materialidade, muitos dos fenôme-
pecificamente humano, ao qual o filósofo chama nos humanos também deverão ser compreendidos
levando em consideração essa transcendência. O Carvalho, L., Bosi, M. & Freire, J. (2009). A prática
que Heidegger chama de ser-no-mundo dá respaldo do psicólogo em saúde coletiva: um estudo no
às propostas psicológicas que enfatizam o vínculo município de Fortaleza (CE), Brasil. Psicologia:
homem-contexto, no debate sobre saúde. Ciência e Profissão, 29(1), 60-73.
O Dasein heideggeriano não é uma descrição Dreyfus, H. (1991). Being-in-the-world: A commentary
de fácil acesso para psicólogos e profissionais da on Heidegger’s Being and Time. Cambridge: The
saúde em geral. Provavelmente por isso, Heidegger MIT Press.
(1987/2001) colaborou proximamente com Medard Halling, S. & Nill, J. (1995). A brief history of existen-
Boss e seu grupo, com vistas a esclarecer seu pen- tial-phenomenological psychiatry and psychothe-
samento e facilitar o desenvolvimento da Daseinsa- rapy. Journal of Phenomenological Psychology,
nalyse (Boss, 1979). Mesmo na filosofia, Heidegger 26(1), 1-45.
continua a ser debatido e diferentes visões sobre o Haugeland, J. (1982). Heidegger on being a person.
Dasein seguem aparecendo. A dificuldade natural Nous, 16(1), 15-26.
com textos filosóficos e, ainda mais, com um texto Heidegger, M. (2001). Seminários de Zollikon. São
que apresenta inovações linguísticas, a fim de se Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes. (Originalmente
afastar da tradição metafísica e questioná-la, são li- publicado em 1987).
mitações compreensíveis para quem inicia a leitura Heidegger, M. (2006). Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes;
de Ser e Tempo com um olhar psicológico. Ainda Bragança Paulista: São Francisco. (Originalmente
que não esteja livre dessas dificuldades, espera-se publicado em 1927).
que este texto contribua para os estudos dos leito- Kuhnen, A.; Felippe, M; Luft. C. & Faria, J. (2010). A
res interessados na influência de Heidegger sobre importância da organização dos ambientes para
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