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INSTITUTO
PIAGET
Título original
L'Espace-Temps
Autor
Jean-Paul Auffray
Colecção
Biblioteca Básica de Ciência e Cultura,
sob a direcção de António Oliveira Cruz
Tradução
João C. Duarte
Capa
Dorindo Carvalho
Copyright
Flammarion, 1998 - Collection DOMINOS
Fotocomposição e impressão
Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
ISBN: 972-771-187-1
Depósito legal: 139 637/99
11
Galileu
Observador atento dos fenómenos da natureza, Galileu foi um
dos primeiros a utilizar as matemáticas para a explicação das leis
da física. Este fresco, pintado em sua honra no Museo Zoologico de
Florença, representa a célebre experiência do plano inclinado, por ele
realizada em Pisa. Distingue-se em segundo plano a torre inclinada.
Fresco de Giuseppe Bezzuoli (1784-1855).
Tribuna di Galileo, Florença.
©Scala
12
O movimento partilhado
De Aristóteles a Galileu
Esquematizando um pouco, o estudo filosófico
e científico do movimento toma forma verdadei-
ramente com Aristóteles (384-322 a. C.). Diver-
gindo num ponto essencial do seu mestre Platão,
que atribuía toda a realidade ao reino do mundo
supra-sensível (o mundo das Ideias), Aristóteles
pretendia, pelo contrário, conciliar o ser e o devir
no seio de cada elemento da natureza, apresen-
tando uma visão do mundo ordenada e hierar-
quizada. A sua teoria do movimento é o cerne
desse empreendimento. Ela atribui a cada objecto
um lugar que lhe é próprio, no qual ele está em
repouso quando aí se encontra, e para o qual
tende a voltar mal se encontre afastado. Nesta
concepção, o movimento e o repouso são pois
dois estados distintos: um objecto está ou em
movimento ou em repouso. Se está em movi-
mento, é porque, afastado do seu lugar, procura
voltar a ele; está absolutamente em movimento. Se
está em repouso, é porque ocupa o seu lugar;
está absolutamente em repouso. Cada coisa tem o
seu lugar, com uma hierarquia complexa dos
seres s ubindo do mais baixo até ao m ais alto.
16 Também n ão é d e espanta r que o pensamento
V
O movimento partilhado
«A pedra atirada do cesto da gávea cairá [na base do mastro]
seja de que maneira o barco se mova.» Giordano Bruno, Le Ban-
quet des cendres (1584).
Retomada por Galileu, esta ideia conduziu à observação que o
movimento partilhado por vários corpos e como nullo - não tem
efeito observável -, primeira formulação do princípio da relatividade.
De Galileu a Newton
No Diálogo sobre os dois grandes sistemas do
mundo, publicado em 1632, o cientista de Pisa,
18 Galileu (1564-1642), por seu turno, volta a pôr
em causa o aristotelismo e o sistema ptolemaico
evitando no entanto encontrar nisso um pretexto
para voos filosóficos à maneira de Bruno. Reto-
mando, não obstante, as observações deste último,
verifica que as aves numa gaiola se comportam
da mesma maneira, quer a gaiola esteja no cais de
Veneza, quer seja transportada a bordo de um
barco navegando num mar tranquilo. Conclui daí
que o «movimento partilhado» (o do barco) -
movimento dito partilhado porque é comum a
todos os que o partilham - não tem um efeito
observável: é como nulo («nulo por assim dizer»).
No ano seguinte, René Descartes (1569-1650)
envia para impressão o texto do seu tratado Le
Monde. Nele defende, entre outras coisas, sem o
mínimo propósito anticristão, uma física
antiaristotélica e adere à hipótese de Copérnico.
Tomando conhecimento das desgraças de Gali-
leu - que acabava de ser forçado a abjurar de
joelhos as suas explicações a respeito do movi-
mento da Terra, num contexto geral de inflexibi-
lidade da Igreja-, manda retirar imediatamente
o seu texto. Retomará estes elementos nos Prínci-
pes de la philosophie, publicado dez anos mais
tarde (1644). Nesta suma do seu pensamento,
que visa substituir, no uso escolar, os manuais de
inspiração escolástica, Descartes avança três
grandes ideias quanto ao movimento. Reve-
lar-se-ão fundamentais para a continuação da
nossa história.
Primeiro, enuncia Descartes, «Não há nada
de absoluto no movimento a não ser a separação
de dois corpos em movimento um em relação ao 19
outro, mas dizer que um dos corpos está em
movimento e que o outro se encontra em repouso,
isso é relativo e depende da nossa maneira de
conceber». Notemos, de passagem, o uso neste
texto da palavra «relativo». Em seguida, qual-
quer objecto em movimento transporta consigo
uma certa «quantidade de movimento». Final-
mente, noção essencial respeitante à estrutura do
espaço, «O espaço, ou o lugar interior, e o corpo
que está compreendido neste espaço, também só
são diferentes ... no nosso pensamento. Porque,
com efeito, a mesma extensão em comprimento,
largura e profundidade que constitui o espaço,
constitui o corpo». Numa palavra, o espaço, tal
como os objectos (Descartes chama-lhes os cor-
pos), tem três dimensões.
Doze anos depois da morte do filósofo fran-
cês em 1650, o matemático e físico inglês Isaac
Newton (1642-1727), inserindo-se, relativamente
a esta questão, na linha de uma tradição teológica
de origens judaicas que concebe o espaço como
um atributo de Deus, opõe às concepções relati-
vistas de Descartes - «Não há nenhum lugar
onde alguma coisa do mundo esteja firme e imó-
vel, senão na medida em que a paramos no nosso
pensamento» - a ideia de um espaço, de um
tempo e de um movimento absolutos: Newton
«absolve» o espaço e o tempo relativos ou vulga-
res de Descartes de toda a ligação com
as coisas que lhes são exteriores; reinventa, sob
uma outra forma, o espaço absoluto de Aristó-
teles «por si mesmo eterna e imutavelmente
20 imóvel»; e adopta, para o tempo, uma noção
1
/
/ L---------
/
/
As dimensões do espaço
Percepcionamos o espaço como tendo três dimensões: compri-
mento, largura e profundidade. Essas dimensões são uma reali-
dade ou simples fruto da nossa imaginação?
Da luz considerada
corno um movimento
As pesquisas sobre o movimento, tal como o
indicámos, estão a base da invenção do
espaço-tempo. Estas pesquisas aceleram-se e
seguem um caminho decisivo com a demonstra-
ção no Observatório de Paris em 1676, pelo
astrónomo Olaüs Rõmer (1644-1710), do facto
que a luz se propaga no espaço a uma veloci-
dade finita - numa palavra, que a luz está em
movimento.
Trabalhando ao lado de Rõmer na Academia
Real das Ciências de Paris, o holandês Christiaan
Huygens (1629-1695) retira da descoberta dos
seus colegas uma importante conclusão. No seu
Traité de la Lumiere (1690), afirma: «Não é possí- 23
vel duvidar que a luz não consista no movimento
de certa matéria.» E continua mais adiante:
«Agora, se examinarmos o que pode ser esta
matéria [ ... ], a que chamo Etérea, veremos que
não se trata da mesma que serve à propagação
do som.» Inspirando-se em ideias propostas por
Descartes, que já via na luz um movimento, ou
mais exactamente, uma tendência para o movi-
mento, propõe um modelo do seu éter*: «Quando
pegamos numa quantidade de bolas de tama-
nho idêntico, feitas de qualquer material
bastante duro, e as colocamos em linha, de
forma que elas se toquem, verificamos que,
quando batemos com uma bola idêntica contra
a primeira dessas bolas, o movimento passa
instantaneamente até à última, sem nos aperce-
bermos que as outras se tenham mexido.»
Demonstra que o movimento assim produzido
se propaga em ondas esféricas a velocidade cons-
tante através do meio e mostra que esta «teoria
ondulatória» permite explicar os fenómenos de
reflexão e refracção da luz.
Estas concepções já não são aceites hoje, sob a
forma imaginada por Huygens; mas. não deixam
por isso de constituir o ponto de partida mais
concretamente atribuível de uma das reflexões
que conduziram à invenção do espaço-tempo.
Com efeito, em 1873, um século depois de
Huygens, o britânico James Clerk Maxwell
(1831-1879) publica o seu Treatise on Electricity
and Magnetism. Nele declara o seguinte: «Em
vários locais deste tratado, foi feita uma tentativa
24 para explicar os fenómenos electromagnéticos
em termos de uma acção mecânica transmitida
de um corpo a um outro por intermédio de um
meio ocupando o espaço entre os corpos. » Partindo
desta ideia, demonstra que a luz pode ser con-
siderada, também, como um fenómeno que se
propaga nesse meio.
Apoia a sua demonstração em duas observa-
ções. Por um lado, a nova teoria está de acordo
com a teoria ondulatória de Huygens no que diz
respeito à existência de um meio capaz de conter
a energia* sob duas formas - potencial e cir1:ética.
Por outro lado, esta teoria introduz uma cons-
tante v. Ora, observa Maxwell, embora os méto-
dos utilizados para determinar o valor desta
constante sejam independentes dos métodos uti-
lizados para determinar a velocidade da luz, os
resultados dessas medidas sugerem que «V = e».
E conclui: isto não poderia ser uma simples coin-
cidência.
Hoje designamos a constante de Maxwell
pela letra e e chamamos-lhe «velocidade da luz
no vazio» ou, mais simplesmente, «velocidade
da luz». Não nos esqueceremos, contudo, que ele
tem ..uma dupla origem e portanto um duplo sig-
nificado.
Maxwell insiste, no seu Tratado, na existência
no espaço de um «meio» capaz de transmitir as
«ondas electromagnéticas» (a luz) bem como a
«acção à distância» da electricidade .e do magne-
tismo. As suas teorias empregam além disso a
noção de um «campo», que as célebres equações
que têm o seu nome descrevem com precisão a
estrutura e o comportamento. Maxwell não 25
ousou ir mais longe: a seus olhos, o éter constituía
a entidade física com a qual devíamos preocupar-
-nos, constituindo o «campo» apenas uma ferra-
menta matemática - certamente útil para a des-
crição da estrutura do éter - mas ele próprio des-
provido de «realidade» física.
Na viragem do século passado, admitia-se
geralmente, com Huygens e Maxwell, que a luz
é um fenómeno de tipo ondulatório, transmitido
através de um «éter» disperso no espaço.
Os físicos, dessa vez, esfregaram as mãos:
deveria ser possível pôr em evidência o movi-
mento da Terra em relação a este éter. A ideia é
muito simples: se a velocidade da luz no éter é e,
então a velocidade da luz, medida a partir de
um laboratório situado na Terra, deveria ser e + v
numa direcção, e - v na direcção oposta.
Aqui intervêm sucessivamente vários actores.
E o primeiro foi Albert Michelson.
Nascido em Strzelno na Prússia polaca em
1852, Michelson emigra para os Estados Unidos
com os pais aos 3 anos. Professor de Óptica na
Escola Naval de Annapolis, passa por Berlim em
1881, onde Schmidt e Haensch, ópticos célebres,
lhe constroem um instrumento de alta qualidade
que ele baptiza de interferómetro e que conta
utilizar para efectuar medidas de alta precisão
respeitantes a fenómenos ópticos.
Em 1887, Michelson instala o seu interfe-
rómetro no laboratório do seu colega e amigo
Edward Morley, professor de Química na Western
Reserve perto de Cleveland. Morley escreveu
26 ao seu pai, dois anos mais tarde: «Michelson e eu
empreendemos uma nova experiência: queremos
ver se a luz se desloca à mesma velocidade em
todas as direcções.» Três meses mais tarde,
Michelson envia uma mensagem desencora-
jada ao seu mentor em Inglaterra, Lord Strutt
Rayleigh, laureado com o Prémio Nobel da Física:
«Terminámos a nossa experiência. Resultado
decididamente negativo.»
O interferómetro não tinha detectado qual-
quer diferença na velocidade da luz, qualquer
que fosse a sua direcção.
Contudo, algumas semanas mais tarde, o físico
irlandês George Francis Fitzgerald fez uma
descoberta: é possível justificar o resultado nega-
tivo da experiência de Michelson e Morley, afirma
ele, por intermédio de uma hipótese simples mas
ousada, consistindo em supor que qualquer
corpo em movimento à velocidade v sofre um
encurtamento no sentido do seu deslocamento
proporcional ao factor V1 - v 2 / c 2 •
Fitzgerald explicita a sua ideia numa carta
dirigida em 1889 à revista americana Science, que
a publica de imediato. Mas, pouco depois, na
sequência de dificuldades financeiras, a Science
vê-se obrigada a interromper a sua publicação.
Fitzgerald julga que a sua carta não foi publi-
cada a tempo, e ... esquece-a.
Em 1892, o físico holandês Hendrik Antoon
Lorentz (1853-1928), que ignora todos os tra-
balhos de Fitzgerald, descobre por sua vez,
independentemente daquele, o «factor mágico»
V1 - v 2 / c 2 • Mas tendo tido conhecimento, pouco
depois, que Fitzgerald havia feito a descoberta 27
antes dele, reconhece imediatamente - acompa-
nhada de um elogio público - a prioridade do
irlandês. As coisas complicam-se quando Fitzge-
rald, que continua convencido que a Science
tinha falido antes da publicação da sua carta,
insiste em ceder a prioridade a Lorentz - que a
recusa.
Lorentz tinha uma vantagem sobre Fitzge-
rald: era nesta altura o especialista mundial das
teorias de Maxwell, ainda muito pouco conhe-
cidas dos físicos (devido, nomeadamente, às
dificuldades matemáticas que comportam). Por
isso prosseguiu com afinco o empreendimento
tão bem iniciado.
Em 1895, Lorentz publica uma formulação
alargada e simplificada da teoria de Maxwell.
Mas a nova teoria tem uma particularidade: as
suas equações descrevem a realidade num labo-
ratório «em repouso» imerso num éter «imóvel».
Põe-se imediatamente a questão de saber o que
acontece às equações quando o laboratório esti-
ver animado de um movimento uniforme em
r_e lação ao éter - o que deveria ser o caso para
um laboratório situado na terra.
Para responder a esta questão, Lorentz efec-
tua aquilo a que ele chama uma «mudança de
variável». A ideia é das mais simples: se x mede
as distâncias no laboratório «em repouso» ex' as
distâncias no laboratório em movimento em
relação ao éter à veloc;idade v, então passa-se de
um sistema para outro substituindo x, em todos
os lugares em que aparece nas equações, por
28 x' = x -vt.
Quando Lorentz efectua esta substituição de
variável, aparentemente muito natural, tem uma
s urpresa desagradável: as equações transfor-
madas contêm termos dependentes de v/c e v 2/c2
que não estavam presentes à partida. Conse-
quência: deveria ser possível utilizar estes ter-
mos para pôr em evidência o movimento da
Terra em relação ao éter - o que nunca ninguém
conseguiu ainda fazer!
Lorentz decide então modificar a sua teoria
para se desembaraçar pelo menos dos termos ·
mais incómodos, isto é, dos termos em v/c.
Surge-lhe uma ideia: talvez, diz para consigo,
não seja a teoria que convém modificar, mas
antes a fórmula utilizada para a substituição
de variável; talvez, diz para consigo, além da
substituição de variável para x, seja necessário
fazer uma igualmente para ... o tempo, t.
Introduz entã o a ideia de um «tempo local»
definido pela substituição da variável t' = t - vx/ c2.
A ideia parece extravagante pois implica
- afirma! - que o tempo poderia diferir de um
lugar para outro no espaço.
Extravagante ou não, a melhoria é imediata:
com esta substituição de variável, acrescentada à
respeitante a x, os termos em v/c desaparecem
d as equações transformadas.
Restam os termos em v 2/c 2, mais coriáceos.
É então que Lorentz se lembra do «factor
mágico» Vl - v 2 / c 2 • Quando o introduz nas suas
fórmulas, os termos em v 2/c 2 desaparecem por
seu turno. 29
E chegou Poincaré...
Henri Poincaré (1854-1912), matemático, físico
e filósofo, seguia muito de perto os trabalhos
científicos dos seus contemporâneos. Dotado de
uma espantosa capacidade de «tudo compreen-
der», o melhor geómetra da sua geração
deixou-nos estudos profundos dos trabalhos
deles. Além disso, nunca hesitou em dar a
conhecer o resultado das suas próprias reflexões.
No seu «ninho de águia» na rua Gay-Lussac
em Paris, Henri Poincaré segue de perto os
trabalhos de Lorentz. Franze o sobrolho: a hipó-
tese da contracção dos corpos, juntamente com a
do tempo local, não o satisfaz. Explica aos seus
alunos na Sorbonne:
«Esta estranha propriedade pareceria um ver-
dadeiro "toque final" dado pela natureza para
evitar que o movimento absoluto da Terra
pudesse ser revelado pelos fenómenos ópticos.
Isto não me pode satisfazer.» E dá a «conhecer o
seu sentimento»:
«Vejo como muito provável que os fenóme-
nos ópticos dependam apenas dos movimentos
relativos de corpos materiais em presença [... ] e
isso [ ... ] rigorosamente.»
Para dar toda·a dimensão do seu pensamento,
acrescenta esta previsão: «À medida que as
experiências se tornarem mais rigorosas, o prin-
cípio será verificado com maior precisão.»
Dois anos mais tarde, resume assim os esfor-
ços dos físicos em geral, e de Lorentz em parti-
30 cular, para ultrapassar a dificulda de: «Devo .
explicar [ ... ] porque é que não acredito, apesar
do que diz Lorentz, que observações mais preci-
sas possam alguma vez pôr em evidência mais
do que os deslocamentos relativos dos corpos
materiais. Fizeram-se experiências que deveriam
ter revelado os termos de primeira ordem; os
resultados foram negativos; poderá ter sido por
acaso? Ninguém o admitiu; p r ocurou-se uma
explicação geral, e Lorentz encontrou-a; mostrou
que os termos de primeira ordem deviam
anular-se, mas o mesmo não acontecia para os
de segunda ordem. Fizeram-se então experiên-
cias mais precisas; também foram negativas; isto
também não podia ser fruto do acaso; era neces-
sária uma explicação; foi encontrada; encontra-se
sempre; hipóteses é o capital que menos falta ... »
E interroga-se: O que é «esta singular coincidên-
cia que faz com que uma certa circunstância
venha justamente a propósito para anular os ter-
mos de primeira ordem, enquanto uma outra cir-
cunstância, completamente diferente, mas igual-
mente oportuna, se encarregaria de destruir os
de segunda ordem? N ão, é necessário encontrar
uma mesma explicação para uns e para outros, e
então tudo nos leva a pensar que esta explicação
será igualmente válida para todos os termos de
ordem superior, e que a anulação mútua desses
termos será rigorosa e absoluta».
Eis-nos no âmago do problema.
31
Poincaré inventa
o espaço-tempo
O espaço-tempo inventado
De que se trata?
Percepcionamos o mundo que nos cerca num
quadro a quatro dimensões, em que três nos
parecem ser de uma e spécie - o espaço - e a
quarta de uma outra espécie - o tempo. Poincaré
coloca a seguinte questão: como é que, matema-
48 ticamente, se dá conta desta diferença?
Trigonometria hiperbólica
O coseno (eh) e o seno (sh) definidos a partir de uma hipér-
bole em vez de um círculo permitem converter a transformação
de Lorentz x' = k (x + Et), t' = k (t + EX) numa rotação do
espaço-tempo cujo ângulo e é dado pelas fórmulas ch0 =k, she =kE
que satisfazem a relação ch28 - sh2 8 = 1.
As geometrias
Em geometria descritiva, duas figuras são «iguais» se uma é a
perspectiva da outra. A geometria métrica está baseada na noção
de distância que satisfaz as três condições seguintes:
aa = O, ab = ba, ac :::; ab + bc.
No espaço-tempo o trajecto A-C corresponde ao maior tempo
para ir de A a C.
a ... zero.
No espaço vulgar, quando a distância entre
dois pontos é nula, diz-se que esses dois pontos
coincidem. Não se passa o mesmo com o
espaço-tempo: o intervalo entre dois pontos
pode ser nulo sem que os pontos coincidam.
A partir de cada ponto O do espaço-tempo,
podem traçar-se raios ao longo dos quais o inter-
valo medido a partir de O é nulo. Essas linhas
formam um cone chamado «cone de luz» de O.
Representam as trajectórias possíveis de sinais
luminosos emitidos a partir de O.
Antes de terminar com a questão da geome-
tria infinitesimal no espaço-tempo, voltemos um
56 pouco atrás. Consideremos uma transformação
de Lorentz para a qual E tem um valor muito
pequeno. A transformação neste caso toma a
forma simplificada, x' = x + Et, t' = t + EX ou
ainda dx = Et, dt = EX. É aquilo a que se chama
em teoria de grupos a transformação infini-
tesimal geradora do grupo. A simplicidade e a
elegância deste resultado não se inventam.
57
Dinâmica
no espaço-tempo
Um clarão na noite
O matemático David Hilbert (1862-1943) - o
«Poincaré alemão» - anuncia que estabeleceu a
equação tensorial da relatividade geral. Nos dias
4, 11, 18 e 25 de Novembro de 1915, Einstein
apresenta aos seus colegas da Academia das
Ciências da Prússia uma exposição dos seus tra-
balhos em curso. Na última sessão, dia 25, anun-
cia-lhes que a formulação da nova teoria está
enfim completa e procede à leitura das equações
tensoriais.
Em Londres, o astrónomo britânico Arthur
Eddington (1882-1944) toma conhecimento por
intermédio de Lorentz, que passara o período
de guerra na Holanda a qual havia permanecido
neutra, que, nos primeiros dias do conflito,
Einstein, em Berlim, tinha assinado uma petição
intitulada Apelo aos Europeus convidando
os intelectuais a oporem-se com todas as forças
ao desencadear das paixões nacionalistas
na Europa. Quacre, objector de consciência e 77
pacifista irredutível, o próprio sir Arthur se
tinha recusado pegar em armas. Passionalmente
determinado a promover a reconciliação dos
povos após a louca aventura, concebeu um
audacioso estratagema.
Frank Dyson, astrónomo real de Inglaterra,
tinha anunciado um eclipse total do Sol para
27 de Março de 1919, eclipse que devia ser obser-
vável em certas regiões próximas do equador.
27 de Março de 1919, ilha do Príncipe, pos-
sessão portuguesa no Golfo da Guiné na África
ocidental... Narrativa de sir Arthur, organizador
e chefe da expedição britânica vinda para obser-
var o eclipse:
«Estava tudo a postos. Um metrónomo pre-
parava-se para registar os 302 segundos do
eclipse total.. . Quando a fase total começou, o
disco de sombra da lua tornou-se visível através
de uma nuvem. Foram obtidas dezasseis foto-
grafias, de dois a vinte segundos de exposição.
As primeiras chapas não mostravam estrelas;
mas a nuvem dispersou-se um pouco no fim .. .
Pudemos obter uma em que se via nitidamente a
imagem de cinco estrelas [da constelação das
Híades] que eram bastante convenientes para a
determinação pretendida.»
Alguns meses mais tarde, de regresso a Lon-
dres, Eddington e a sua equipa verificaram a
posição das estrelas antes e durante o eclipse.
Cinco dias antes da celebração do primeiro
aniversário do armistício de 1918, sir Joseph
Thomson convocou uma sessão extraordinária
78 da Royal Society em Londres. A seu convite, o
astrónomo real anunciou ao mundo que o valor
obtido pelos astrónomos britânicos para o des-
vio da luz na passagem do Sol - 1,61 segundos
de arco segundo uns, 1,98 segundo outros - estava
de acordo com o valor previsto pela nova teoria
do cientista alemão Einstein (1,75 segundo de
arco). Sir Joseph celebrou esta concordância
como constituindo «a maior descoberta rela-
cionada com a gravitação depois de Newton
ter enunciado os seus princípios». A imprensa
mundial retomou a declaração dos astrónomos
britânicos e amplificou-a. O «mito Einstein»
acabava de nascer.
Segundo a eminente física e historiadora da
ciência Françoise Balibar, Einstein aceitou
«entrar no jogo», considerando que o seu dever
era o «de não se furtar à súbita celebridade que
lhe caía nos ombros e de, pelo contrário, a uti-
lizar para fazer progredir as causas que tomava
a peito, e em primeiro lugar a da paz». O espaço-
-tempo ganhou assim a sua promoção e Einstein
a imortalidade, mas ...
Mas, quatro anos mais tarde, um «ilustre des-
conhecido», um certo Louis de Broglie, iria fazer
uma descoberta e voltaria repentinamente a pôr
tudo em causa...
79
O jogo das ideias
A gare de Perpignan (página anterior)
Centro do Uni verso segundo Salvador Dali, a estação de
Perpignan seria, ela também, uma singularidade do espaço tempo?
A imaginação dos poetas junta-se por vezes à dos cientistas.
Salvador Dali,
A gare de Perpignan.
Museu Ludwig, Colónia.
© DEMART PRO ARTE B.V.
Genebra, ADAGP, Paris 1996/
Deschames & Deschames.
82
A poesia é uma ciência exacta.
JEAN C OCTEAU
84
O espaço-tempo
e o Universo
I
'
I
'
/ '
/ '
A quiralidade
Num espaço a uma dimensão, as setas que apontam numa
direcção distinguem-se das setas que apontam na direcção oposta.
Esta distinção - esta quiralidade - desaparece no espaço a duas
dimensões. A distinção mão esquerda/mão direita que existe no
es paço-tempo desa pareceria se o espaço-tempo tivesse cinco
dimensões, quatro das quais de tipo espacial.
Campos ou partículas?
Em relatividade geral, o espaço-tempo apare-
ce sob a forma de um campo, isto é, de urna enti-
dade cujas propriedades variam de um ponto
para outro de maneira contínua, e em que o
valor do campo num ponto define o campo nos
pontos vizinhos. Einstein tornou-se um adepto
irredutível desta noção: «o campo [ ... ] é para o
físico moderno tão real corno a cadeira em que
está sentado», escreveu um dia.
Teoria do campo, a relatividade geral descreve
pois a matéria sob ·a forma de urna espécie de
geleia amorfa desprovida de estrutura e sobre-
tudo sem «grurnos» . Na física das partículas, a
matéria é considerada, muito pelo contrário, sob
a forma de «grurnos» - as partículas. Nesta con-
cepção, as partículas trocam continuamente
entre si entidades de um tipo particular: os
«mediadores*». Essas trocas produzem os efeitos
90 que atribuímos convencionalmente às «forças».
Os mediadores das três forças unificadas até
hoje foram identificados e verificada a sua exis-
tência. O mediador da gravitação, o gravitão,
ainda não foi observado, mas toda a gente está
de acordo em pensar que o será um dia.
A relatividade geral atribui os efeitos aparen-
tes da gravitação à curvatura do espaço-tempo.
Não existe lugar para o gravitão em relatividade
geral. E não é tudo.
Na física das partículas, admite-se que o
espaço-tempo, mesmo «vazio», contém uma
certa quantidade de energia, a qual, segundo as
equações da relatividade geral, deveria produzir
um campo gravitacional detectável. Ora, não se
passa nada disso.
Existe portanto algo necessariamente inexacto
na nossa formulação da teoria. O físico ameri-
cano Richard Feynman (1918-1988), de quem
falaremos mais tarde, propôs esta explicação :
«Quando Einstein e outros tentaram unificar a
gravitação e a electrodinâmica, essas teorias
eram aproximações clássicas. Dito de outra
maneira, eram falsas.»
Portanto, está lançada a nossa discussão: em
física, pode bem ser que existam ideias que nos
agradam - e que talvez sejam falsas; e outras que
nos parecem bizarras - e que talvez sejam correctas.
Para entrar mais a fundo na nossa discussão,
interessemo-nos por um conceito que, por si só,
incarna o essencial dessas dificuldades.
No papel, o caminho mais curto para ir
de um ponto a outro é uma linha recta. Na
superfície de uma esfera, é um arco de círculo. 91
No espaço-tempo, e 1nais geralmente num
espaço curvo, o caminho mais curto é chamado
geodésica.
Por ocasião de uma conferência dada em
Princeton em 1921, Einstein definiu assim esse
conceito: «[No espaço ordinário] o movimento
de um ponto material que não esteja submetido
à acção de nenhuma força é [... ] rectilíneo e uni-
forme. A generalização natural, isto é, a mais
simples, da linha recta é [... ] a linha mais curta
(geodésica).»
Introduz então esta ideia fundamental que
está na base da concepção do movimento em
relatividade geral: «Admitiremos por conse-
guinte, em conformidade com o princípio de
equivalência, que o movimento de um ponto
material, que está sujeito apenas à influência da
inércia e da gravitação, é descrito pela equação
[da geodésica].»
A equação da geodésica, tal como Einstein a
escreveu, tem todas as marcas da simplicidade e
da elegância matemática que, para alguns físicos,
são as provas últimas da veracidade em física.
É compreensível que ela tenha seduzido Einstein.
Infelizmente para a sua teoria, as pesquisas expe-
rimentais e teóricas levadas a cabo durante um
século demonstraram que as partículas elementa-
res presentes na natureza não se comportam
corno pontos materiais deslocando-se ajuizada-
rnente ao longo de geodésicas no espaço-tempo.
Nestas condições, somos levados a perguntar
porque é que a relatividade geral conseguiu con-
92 servar o favor de numerosos físicos que a consi-
deram ainda hoje como uma das teorias mais
efectivadas da história da física.
A realidade das coisas é a seguinte.
Em escalas muito grandes - à escala cósmica
do universo -, a relatividade geral ensina-nos,
talvez, alguma coisa sobre a estrutura do
espaço-tempo: poderia estar provido de curva-
tura. À escala subatómica, em contrapartida, não
nos ensina nada - salvo talvez o seguinte: a
estrutura do espaço-tempo a esta escala não é
a descrita pela relatividade geral.
95
Espaço-tempo
e partículas elementares
A supersimetria
Sabemos todos o que é que se entende por
simetria: a minha mão esquerda é a imagem
simétrica da minha mão direita. Quando a sime-
tria não é evidente - por exemplo quando não é
do tipo geométrico - falaremos de supersimetria.
Existe na natureza uma supersimetria que
assente nas partículas elementares da física?
Numerosos físicos pensam que sim. Definem o
grau N de supersimetria presente no universo e
dizem que se N =O, então o espaço-tempo pode-
ria ter... vinte e seis dimensões!
Mais modestamente, se N = 1, teria dez.
A que correspondem as dimensões suplementares?
Se a natureza é supersimétrica, então é pre-
ciso que o espaço-tempo também o seja. As
dimensões suplementares seriam as «superpar-
ceiras» das dimensões clássicas. 99
Esta versão da teoria das cordas goza do
favor dos especialistas. Um deles, o brilhantís-
simo Edward Witten, um dos sucessores de
Einstein no Institute for Advanced Studies
de Princeton, escreveu: «A teoria das cordas é
uma teoria do século XXI que caiu por acaso nas
mãos dos físicos do século xx ... Tentaremos tirar
o melhor partido possível disso.»
A supersimetria prevê a existência de uma
«parceira supersimétrica» para cada uma das
partículas elementares, parceiras com proprieda-
des estranhas, não tendo ainda sido detectada
nenhuma delas. Uma delas, por exemplo, seria o
monopólo magnético, ainda nunca visto - salvo
talvez uma vez , como o yeti, mas a observação
nunca foi confirmada. Uma outra poderia ser
um minúsculo «buraco negro» de acordo com
uma previsão devida ao jovem teórico Michael
Duff da universidade A & M do Texas.
A relatividade geral explica a gravitação por
meio da noção da curvatura no espaço-tempo.
A teoria das cordas apoia-se numa consideração
geométrica bastante diferente.
Se as partículas são pontos, as suas trajectó-
rias no espaço-tempo são geodésicas. Se elas são
cordas, as trajectórias assemelham-se a fitas
(a tubos, se as cordas forem anéis). O utensílio
matemático da teoria das cordas é pois a belíssiina
teoria das superfícies estudada sistematicamente
pela priineira vez por Riemann.
Esta teoria é de uma enorme beleza e de uma
grande riqueza. É em parte por esta razão que a
teoria das cordas, da qual ela é o núcleo, parece
100 tão atraente.
Duas observações pugnam a favor da teoria
das cordas aos olhos dos especialistas: tendo os
seus fundamentos na geometria, está em condi-
ções de prolongar a relatividade geral e incorpora
automaticamente a gravitação, na medida em
que, pelo menos, prevê a existência do gravitão.
Infelizmente, ainda nenhuma das suas previsões
pôde ser verificada.
Onde é que tudo isto nos leva? Segundo Shel-
don Glashow, professor em Harvard, laureado
com o Prémio Nobel da Física, a teoria das
cordas vai dominar a física durante o próximo
meio século «da mesma maneira que a teoria
de Kaluza-Klein dominou a física nos últimos
cinquenta anos, isto é, a nada».
Michael Green, um dos pais fundadores da
teoria das cordas, é de opinião contrária. Segundo
ele, a teoria das cordas «está destinada a per-
durar durante longos anos; o facto de ela ter a
ver com tantos ramos das matemáticas mostra
que contém verdades profundas».
O espaço-tempo fractal
Nascido em Varsóvia, em 1924, numa família
judia lituana, Benolt Mandelbrot emigra para
Paris doze anos mais tarde. Admitido na Escola
Normal Superior e no Politécnico após a Liberta-
ção, escolheu o Politécnico - em parte para fugir
ao ensino matemático dado, na Escola Normal
Superior, pelos adeptos do grupo semiclandes-
tino Bourbaki fundado em Paris após a Primeira 101
Guerra Mundial, juntamente com outros, pelo
seu tio, o matemático Szolem Mandelbrotj,
em reacção às concepções teóricas de ... Henri
Poincaré.
Dez anos mais tarde, Mandelbrot abandona a
França e instala-se nos Estados Unidos. Põe a si
mesmo uma questão: Qual é a dimensão de um
novelo de fio? Visto de longe, o novelo é um ponto,
cuja dimensão é zero; visto de mais perto, é uma
pequena esfera, portanto um objecto a três dimen-
sões; de mais perto ainda, distingue-se o fio de que
é feito, fio que parece apenas ter uma dimensão,
mesmo que se enrole sobre si mesmo e se enrede
até preencher o espaço. De mais perto ainda...
Mandelbrot propõe então a seguinte ideia: os
objectos da natureza não têm necessariamente
um número inteiro - 1, 2, 3 ... - de dimensões.
E introduz a noção de dimensão fractal*.
Esta noção revelou-se extremamente fecunda
para a descrição de todas as espécies de objectos
presentes na natureza - por exemplo, as nuvens
(como descrever o contorno de uma nuvem?).
Mas a sua utilização na física das partículas
demorou bastante.
Laurent Nottale, astrofísico no Observatório
de Paris, em Meudon, foi um dos primeiros a
interessar-se por este assunto . Segundo ele,
numa certa escala de observação - no nível suba-
tómico, mas também no nível cósmico! -, as
dimensões do espaço-tempo poderiam não ser
as que nós observamos à escala que nos é fami-
liar - o espaço-tempo tornar-se-ia fractal. Esta
102 ideia evoca uma outra ...
Michel Serres propôs esta ideia: «O tempo
não escorre, percola.» Imaginemos uma rede de
pontos ligados uns aos outros, aleatoriamente,
quer por um filamento isolante, quer por um
filamento condutor. Pode acontecer que pelo
menos um caminho ininterrupto permita passar
de uma ponta até à outra do reticulado através
de filamentos condutores. Nesse caso uma cor-
rente poderá atravessar a rede. Diz-se de uma
rede como esta que percola (do latim per [atra-
vés], e colare [coar]). A ideia é válida mesmo se a
rede é de dimensão fractal.
As concepções fractais permitirão fazer avan-
çar a física?
Recuar no tempo
A 18 de Outubro de 1883, um grupo de súb-
ditos britânicos - homens e mulheres - deixa o
hotel Alexandria a caminho do topo do Ben
Nevis, a montanha mais alta das ilhas Britânicas
na Escócia. Um tocador de flauta ao som de
Lochiel's awa' to France vai à frente. No cume, à
neve e ao vento, Lord Abinger inaugura o nov o
Observatório do monte Nevis. Onze anos mais
tarde, em Setembro de 1894, Thomson Rees
Wilson, estudante em Cambridge, faz um está-
gio de duas semanas no Ben. Uma manhã, cerca
das cinco horas, quando nascia o sol, observa
um fenómeno estranho: «A sombra do cume do
Ben estendia-se sobre uma nuvem até ao hori-
zonte. Na superfície da nuvem, no sítio em que a 103
sombra terminava, apercebi-me de anéis brilhan-
temente coloridos - a sombra do Ben "na sua
glória". Excitado perante esta visão, decidi tentar
reproduzir esses anéis no meu laboratório. »
Quando volta para Cambridge, Wilson
inventa a câmara de Wilson para o estudo dos
anéis «da glória».
Vinte anos mais tarde, uma partícula atravessa
uma câmara de Wilson no Instituto de Tecnolo-
gia da Califórnia. O acontecimento é registado
fotograficamente. Carl Andersen, que examina
o rasto de bolhas deixadas na câmara pela par-
tícula, descobre, com grande surpresa, que ele
corresponde ao rasto que poderia ser deixado
por um electrão dotado de uma carga positiva -
um positrão*.
Em 1940, Richard Feynman inicia estudos
superiores de Física na Universidade de Prince-
ton. Uma noite, o seu orientador de tese, John
Wheeler - apenas alguns anos mais velho que
ele -, telefona- lhe . Fala-lhe de uma ideia
que acaba de lhe ocorrer: o positrão descoberto
por Andersen na sua «câmara de Wilson» pode-
ria bem ser... «um electrão a recuar no tempo».
A ideia provoca em Feynman «uma impressão
indelével». Põe-se imediatamente ao tr abalho.
(O físico suíço Ernst Stückelberg tinha tido a
mesma ideia, mais ou menos ao mesmo tempo.)
Em 30 de Março de 1948, vinte dos maiores
físicos do século reúnem-se numa estalagem nas
montanhas de Pocono na Pensilvânia para a í
discutirem entre si os problemas da física. No
104 dia seguinte, Richard Feynman apresenta-lhes a
sua concepção do electrão que r ecua no tempo.
Mas, antes que ele tivesse podido acabar, o grande
Niels Bohr, galardoado com o Prémio Nobel,
prestigioso opositor de Einstein sobre a matéria
da nova física, tira-lhe o giz da mão. E explica no
quadro porque é que as ideias do seu jovem
colega são inaceitáveis ...
Conhecido por diagrama de Feynman, o dia-
grama apresentado por Richard Feynman nesse
dia constitui uma das mais brilhantes valoriza-
ções do conceito do espaço-tempo jamais imagi-
nadas desde a invenção do conceito.
A ideia teórica segundo a qual uma partí-
cula pode evoluir no tempo tanto num sentido
como no outro está longe de ser uma ideia
«extravagante». Ela é, pelo contrário, uma das
ideias mais poderosas que foram propostas na
física das partículas no decurso do século: efec-
tivamente ela explica de uma vez por todas as
propriedades observadas da antimatéria. Per-
mite compreender nomeadamente porque é que
a cada partícula de matéria corresponde uma
partícula de antimatéria que é a sua réplica per-
feita. E permite descrever eficazmente os pro-
cessos elementares nos quais intervêm as partí-
culas de antimatéria. Tomemos o caso de um
electrão que entra em colisão com um antielec-
trão - um positrão -, fenómeno observado cor-
rentemente e chamado «aniquilação». Na inter-
pretação convencional, as duas partículas
desaparecem subitamente do visor «de corpo e
alma», deixando como único traço da sua coli-
são dois fotões que vemos afastarem-se do local 105
Â= 00
t= t2 - --------
t=D --+---
OjogodaQED
Neste jogo, representa-se o espaço-tempo por
meio de dois eixos, um designado por «espaço»
e o outro por «tempo». Existem duas peças no
jogo: o electrão e o seu mediador, chamado
fotão. As «jogadas» autorizadas, tal como foram
enunciadas pelo seu inventor Richard Feynman,
são em número de três:
- um fotão dirige-se de um ponto do
espaço-tempo para outro;
- um electrão dirige-se de um ponto do
espaço-tempo para outro;
108 - um electrão emite ou absorve um fotão .
Nesta concepção, não há nem antipartículas,
nem antimatéria: os positrões são electrões vul-
gares ... recuando no tempo.
À lista das «jogadas» autorizadas é neces-
sário acrescentar as leis que regulam o desloca-
mento das «peças» - electrões e fotões - no espa-
ço-tempo.
Eis, na minha opinião, como devem ser enun-
ciadas essas leis:
- as partículas - electrões ou fotões - são
livres de evoluir no tempo tanto num
sentido como no outro;
- as partículas - electrões ou fotões - deslo-
cam-se transpondo passos.
A mecânica do passo
Encontrei Louis de Broglie pela última vez
alguns anos antes da sua morte em Louvecien-
nes em 1987. Evocando o futuro da física, ele rea-
firmou, nesse dia, a sua convicção que o dado
fundamental em física de partículas não podia
ser a amplitude, como se ensina oficialmente,
mas devia ser a fase.
Partilho esta convicção.
Vamos ver do que se trata.
Consideremos um sinal, por exemplo o
número 2, gravado sobre uma «roda da sorte». 109
A mecânica do passo
Uma fonte emite partículas, uma parede oferece-lhes dois cami-
nhos para atingir o alvo. No esquema da esquerda as partículas
chegam ao alvo em fase, o seu efeito é detectado. No esquema da
direita, os caminhos são de comprimentos diferentes, as partículas
atingem o alvo fora de fase, o seu efeito anula-se.
A escolha
Chegámos finalmente ao fim da nossa discus-
são. A escolha é clara. Foi bastante bem definida
por Roger Penrose, um dos «grandes mestres»
contemporâneos da relatividade geral. Ele escre-
veu: «A partir do momento em que tentamos
unificar a mecânica quântica e a relatividade
geral de maneira correcta - dito de outro modo,
a partir do momento em que procuramos elabo-
rar uma teoria da gravitação quântica ... »
Alto aí! Eu digo que querer pôr a relativi-
dade geral e a mecânica quântica em pé de
igualdade é um erro. Digo que uma teoria da
114 gravitação quântica - ou mais precisamente uma
teoria quântica da gravitação - não deve tentar
prolongar a relatividade geral. Como a mecânica
analítica de Lagrange e a termodinâmica de
Helmholtz, Clausius e Clapeyron, a relatividade
geral é uma bela teoria, mas tem os seus limites.
Saibamos respeitá-los. Quanto à mecânica quân-
tica, aprendamos a reformulá-la na linguagem
da mecânica do passo: ela ganhará em simpli-
cidade e em clareza, qualidades que hoje lhe
faltam um pouco.
115
Anexos
117
Glossário
123
Bibliografia
História
CALLOT, É., Maupertuis, le savant et le philosophe, Riviere, coll.
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«BTP», 1993. As ideias de Descartes respeitantes ao
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MAUPERTUIS, P .-L. M. de, Essai de cosmologie, Vrin, coll. «Vrin
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PENROSE, R., L'Esprit, l'Ordinateur et les Lois de la physique,
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P. 19: Ibid, II, 13, 1647.
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P. 21 e 22: LEIBNIZ, G. W . F., Écrits à Clarke, quatrieme écrit,
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P. 26 e 27: MORLEY, E., carta a S. B. Morley de 17 Abril de 1887,
citada em Science in Nineteenth Century America, Hill
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P. 26: MICHELSON, A., carta a J. W. Strutt (lord Raleigh) de 17
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nouvelle, Gabay, 1989, p. 77.
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P. 43: Ibid., p. 78.
P. 45: Ibid., p. 78.
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P. 77: EDDINGTON, A., citado em P. Frank, Einstein, Flam-
marion, coll. «Champs», 1991, p. 215.
P. 78 e 79: THOMSON, sir J.J., citado em P. Frank, Einstein,
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Segunda Parte
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130
Índice remissivo
133
Índice
Prefácio...................................................................... 9