INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
Porto Alegre,
2018
Marco Aurelio Julio Rodrigues
Porto Alegre,
2018
FOLHA DE APROVAÇÃO
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________________________________________
Dr.ª Mônica Fagundes Dantas (PPGAC-UFRGS)
___________________________________________________________________________
Dr.ª Ana Cecília de Carvalho Reckzigel (PPGAC-UFRGS)
___________________________________________________________________________
Dr. Márcio Pizarro Noronha (ESEFID-UFRGS)
___________________________________________________________________________
Dr.ª Sílvia Patrícia Fagundes (PPGAC-UFRGS)
AGRADECIMENTOS
Após dois anos de dedicação e disciplina, mas de dúvidas e dificuldades, pela busca da
obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas é chegada a hora de mostrar gratidão. Nessa
jornada, é importante olhar para trás e agradecer pela experiência de ter chegado ao final. Ter
olhado de longe, perceber o caminho e como foi conquistado.
Agradeço aos meus pais que me ensinaram valores de humanidade, ética e alteridade
que carrego comigo incondicionalmente.
Agradeço à cultura das Danças Urbanas e a todos meus alunos, colegas, artistas,
coreógrafos, professores com os quais eu troquei conhecimentos ao longo desses anos. A
minha evolução é graças a vocês.
O presente trabalho localiza-se no âmbito das pesquisas em danças sociais e populares, mais
especificamente, das Danças Urbanas. Partindo de uma abordagem artístico-biográfica
contextualizada, cruzo a minha própria trajetória nas Danças Urbanas com o surgimento dessa
arte nos Estados Unidos da América (EUA) e sua propagação no Brasil. Desse modo, tenho
por objetivo compreender quais são os elementos facilitadores para a formação de Corpos
Remixados nas Danças Urbanas em Porto Alegre. A pesquisa apresenta uma abordagem
qualitativa, utilizando estratégias de produção de dados apoiadas em um levantamento
histórico e autobiográfico. Apresenta materiais como desenhos, fotografias, vídeos, filmes,
músicas, livros, textos e falas para elaborar perspectivas sobre Corpos Remixados desde os
anos 1970 até a atualidade. Os quatro elementos facilitadores identificados são: dança
vernacular afrodescendente de contexto urbano; corpografia urbana de diferentes
temporalidades e intensidades; movimentos guiados pela música em ambientes de improviso,
celebração e batalha; corpo atuando como DJ. Ser remixado é estar em conexão com o mundo
moderno repleto de improbabilidades. Controlar ou definir o que está sendo feito não é o
propósito, porque o futuro é remixar.
The present work is located within the scope of researches in social and popular dances, more
specifically, of Urban Dances. Starting from a contextualized artistic-biographical approach, I
cross my own trajectory in Urban Dances with the emergence of this art in the United States
of America (USA) and its propagation in Brazil. In this way, I aim to understand what are the
facilitating elements for the formation of Remixed Bodies in Urban Dances in Porto Alegre.
The research presents a qualitative approach, using data production strategies supported by a
historical and autobiographical survey. It presents materials such as drawings, photographs,
videos, films, music, books, texts and speeches to elaborate perspectives on Remixed Bodies
from the 1970s to the present day. The four facilitators identified are: Afrodescendent
vernacular dance from urban context; urban corpography of different temporalities and
intensities; movements guided by music in environments of improvisation, celebration and
battle; body acting as DJ. To be remixed is to be in connection with the modern world full of
improbabilities. Controlling or defining what is being done is not the purpose, because the
future is remixing.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................... 10
ABORDAGEM METODOLÓGICA.................................................................. 13
1 PRIMEIRA ENTRADA.................................................................................... 18
1.1 DANÇAS URBANAS: DEFINIÇÕES IMPRECISAS/IMPRECISÕES
18
CONCEITUAIS.......................................................................................................
1.2 CRONOLOGIA – DE LÁ PRA CÁ!................................................................. 22
2 SEGUNDA ENTRADA...................................................................................... 29
2.1 PRIMEIRA DÉCADA 1970 – 1980.................................................................. 30
2.2 SEGUNDA DÉCADA 1980 – 1990.................................................................. 33
2.3 TERCEIRA DÉCADA 1990 – 2000.................................................................. 38
2.4 ANOS 2000 ATÉ HOJE..................................................................................... 44
3 TERCEIRA ENTRADA.................................................................................... 51
3.1 A MÚSICA MOVE O CORPO........................................................................ 52
3.2 OS DJS E SUAS CONTRIBUIÇÕES.............................................................. 54
3.3 UMA VIA DE MÃO DUPLA........................................................................... 56
3.4 OS PASSOS SURGEM DA MÚSICA............................................................. 58
3.5 O CORPO REMIXADO COM A MÚSICA.................................................... 60
INTRODUÇÃO
1
Baseado na minha atuação como artista e professor de Danças Urbanas percebi a tentativa, por parte de
dançarinos brasileiros, de se autodeclararem executores de uma Dança Urbana dita original, de essência, de raiz,
autóctone.
2
Os termos em inglês, incluindo esse, estão em um Glossário ao final do trabalho.
12
Urbana Autoral. Cada artista, a partir de um conjunto de referências, criaria sua própria forma
de dançar. Autoral, nesse sentido, remete a uma dança na qual é possível ver traços de
identidade e de autoria do coreógrafo e dos dançarinos. Como ressalta Cruz (2011, p. 35),
“num estilo onde as possibilidades se estendem ao infinito, traços da história corporal do
criador tem abertura e lugar no processo de composição coreográfica”.
Falar de corpo é um esforço que compete problemáticas de ordens culturais, históricas,
geográficas e ideológicas. No caso do Corpo Remixado, aqui identificado ao popular e ao
urbano, alcança uma assinatura própria, ligada às grandes cidades, difícil de definir
pertencimentos com exatidão.
Pode-se dizer, que hoje, existe um foco crescente de pesquisadores interessados nessas
dinâmicas poéticas, estéticas, culturais e de ensino que abordam o viés das Danças Urbanas
com propriedade, engajando singulares reflexões e escavando um nicho de pesquisa dentro do
meio acadêmico. Destaco alguns estudos, em diversos níveis de formação, em Danças
Urbanas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), relativamente recentes e
que vêm sendo realizados no âmbito da Educação, da Sociologia, da Educação Física e das
Artes Cênicas.
Em ordem cronológica de publicação, temos os estudos: “Hip Hop sul: um espaço
televisivo de formação e atuação musical” (FIALHO, 2003); “Hip-Hop: educabilidades e
traços culturais em movimento” (GUSTSACK, 2003); “Dança de Rua: prática corporal,
sociabilidade e prazer” (RECKIZÍGEL; STIGER, 2005); "Na base do muque da onda: estudo
etnográfico de performances entre rappers da ALVO - Associação Cultural da Zona Norte de
Porto Alegre” (SOARES, 2007); “Presenças femininas na dança de rua coreografando
estéticas da existência” (CARVALHO, 2009); “A dança de rua em academias e escolas de
dança de Porto Alegre: do início até a atualidade” (PORTO, 2010); “O Ensino de geografia e
o Hip Hop” (RAMOS, 2012); “Retomando a nossa esquina: o movimento Hip Hop e suas
formas de fazer política em Porto Alegre” (MAFFIOLETTI, 2013); “De Onde Viemos e Para
Onde Vamos? A identidade afro-brasileira nas danças da cultura Hip Hop.” (SILVA, 2016);
“Lógica identitária e paradigma preventivo: o Hip Hop e a construção da periferia como
problema social” (SILVA, 2006). Com destaque, evidencio a pesquisa sobre Danças Urbanas
em “Coreografando em Larga Escala” (CHULTZ, 2016), que propõe uma reflexão sobre a
prática coreográfica em dança com uma comunidade específica, dentro do Colégio Estadual
Júlio de Castilhos, na qual participei ativamente da parte prática.
Com a minha pesquisa, objetivo contribuir para o aprimoramento contínuo do
conhecimento na área das Danças Urbanas e para sua abrangência dentro dos grandes campos
13
ABORDAGEM METODOLÓGICA
3
Coletivo de dança urbana atuante em Porto Alegre, no qual atuo enquanto diretor, coreógrafo e dançarino em
determinadas criações. Atualmente o Grupo My House é também um estúdio de dança onde desenvolvo
processos criativos, cursos e aulas regulares junto à professora e artista Gabriela Chultz. Para ver mais:
www.grupomyhouse.com.br.
14
Seguindo essa proposição, substituí o termo capítulo por Entrada. Faço aqui uma
referência à entrada na roda de improviso dentro das Danças Urbanas. Ao longo de cada
Entrada aparece, em itálico, um texto autobiográfico intitulado de confissões, revelando
aspectos íntimos da minha trajetória. Do mesmo modo, indico links musicais e audiovisuais,
que dão ritmo a cada Entrada, juntamente com as fotografias que ilustram diferentes
acontecimentos e contextos através de elementos articulados que simbolizam o meu processo
incessante de remixagem. A fim de dar conta do conceito, busquei ao longo da escrita
16
apresentar quais são os elementos facilitadores para que ocorra o Corpo Remixado,
estabelecendo em cada Entrada as características de cada um e assim erguendo um painel
mais amplo desse fenômeno artístico.
A partir do recorte autobiográfico, procurei pensar minhas identidades como artista
gaúcho, brasileiro, latino, capoeirista e dançarino urbano e negro. Assim, proponho uma
reflexão ancorada nos processos de globalização das sociedades contemporâneas que, em uma
análise cruzada com múltiplas identidades “representa a vigência de um princípio de ruptura”
(BURITY, 2001, p.4). Como ressalta o autor, “a globalização tanto forma como deforma,
tanto exige como resiste à identidade enquanto signo do local, do singular, do autêntico, do
emancipatório” (BURITY, 2001, p.4). A globalização causa um efeito de identidade
“desterritorializante” uma identidade coletiva em função de questões de relevância global.
A seguir, exponho na Figura 3 o movimento na cabeça, acumulado de longos períodos
de vivências corporais na raiz do cabelo afro. Nesse desenho há um desejo de incorporar
conceitos ao cabelo afro, inspirado no Black Power dos anos 1960. Uma forma de resistência
de uma geração que queria mostrar no cabelo, no rosto, nos lábios grossos, na roupa, no
movimento e na oralidade uma atitude social de pertencimento e identidade. Nesse desenho,
procuro colocar as variadas manifestações e poéticas misturadas como os emaranhados do
cabelo crespo, onde cada fio se entrelaça no outro, demonstrando o quanto de enredado é o
nosso fazer artístico e o quanto de remix existe a cada ondulação do cabelo.
17
1 PRIMEIRA ENTRADA
Nesta primeira entrada discuto o conceito das Danças Urbanas e apresento uma
cronologia das mesmas, com o intuito de situar as transformações ocorridas nessas danças
relacionando-as à minha trajetória.
Discutir o que são Danças Urbanas pode ser uma tarefa complexa. Trata-se de uma dança
com uma história relativamente recente, por isso é importante não fixar certas convicções ou
determinismos, pois corremos o risco de nos tornarmos conservadores. Baseado na minha
atuação como artista, professor e pesquisador, percebi a tentativa de se forjar uma versão das
Danças Urbanas ditas originais e de essência, que seria a autêntica Dança Urbana.
Essa dança já foi chamada, no Brasil, de Funk, Breakdancing, Street Dance, Dança de
Rua entre outros nomes durante os anos de 1980 a 2000, todavia o conceito mais utilizado
atualmente é Danças Urbanas, nomeação genérica que foi traduzida direto do inglês Urban
Dances, cunhada nos EUA para identificar o surgimento de vários estilos de danças ligadas às
matrizes estéticas afro-americanas e de contexto urbano. Pode-se pensar que o urbano é muito
mais que um espaço de elementos visuais, um complexo conjunto de relações que se
estabelece entre esses elementos, compondo um carrossel do nosso cotidiano. A cidade
urbana nesse caso funciona não só como um fator de limites geográficos entre urbano e rural,
já que a localização e o eixo do urbano já se perderam há muito a sua evidência, com a
revolução dos transportes, arquitetura e o desenvolvimento dos meios de comunicação e
telecomunicação. “Daí essa nebulosa conurbação de franjas urbanas” (VIRILIO, 1999).
Desta forma, o termo urbano não dá conta do significado principal desses estilos de danças,
pois há muito mais elementos em jogo nesse processo. Ele funciona mais como um local de
encontro de comunidades, uma ambientação que através das relações sociais distintas criam
uma cultura de música e dança.
Como manifestação cultural é vernacular, ou seja, informal, das ruas urbanas, dos salões
de dança, dos teatros e cabarés. É uma dança que está mudando constantemente, e essas
mudanças, no entanto, sempre refletem uma tradição envolvente e um processo vital de
produção cultural criada pelo povo, sem um estudo prévio, ela simplesmente acontece de
19
dentro das comunidades para fora delas. Em Malone (1996 p.2) o termo vernacular é descrito
assim:
Eu vejo o vernáculo como um processo dinâmico, no qual os estilos mais refinados
do passado são continuamente fundidos com a improvisação do tipo play-it-by-eye e
ear, que inventamos em nosso esforço para controlar nosso ambiente e nos entreter.
E isso não apenas em idiomas e literatura, mas em arquitetura e culinária, em
música, figurino e dança, e em ferramentas e tecnologia. Nela os estilos e técnicas
do passado se ajustam às necessidades do presente, e em sua ação integradora os
estilos elevados do passado são democratizados ... onde quer que encontremos o
processo vernacular operando também encontramos indivíduos que agem como
transmissores entre ele e estilos anteriores, gosto e técnicas (MALONE apud
ELLISON, 1986, p. 2, tradução nossa).
Malone (apud ELISSON, 1986, p. 32) coloca que características como: “ritmo,
improvisação, controle, angularidade, assimetria e dinamismo” são transmitidas das culturas
ancestrais até os dias atuais e que a matriz africana está fortemente presente. Trata-se de
marcas das Danças Vernaculares afro-descendentes. O autor destaca a improvisação como um
dos elementos-chave na criação da vernacular, uma maneira de experimentar novas ideias,
uma liberdade de criação e uma capacidade de adaptação ao meio. Dito isso, podemos buscar
um conceito mais abrangente para explicar as Danças Urbanas na qual as Danças Urbanas
são danças vernaculares, afrodescendentes de conceito urbano, mas que por si só não nos
permitem apreender todas as suas singularidades que são o objeto deste estudo.
Inspiro-me em Cruz (2011) que propõe dois conceitos que são úteis para se pensar as
Danças Urbanas: a “linha estética” que define cada dança, seja o Ballet, o Jazz, o
Contemporâneo entre outras; e o “estilo”, onde cada linha estética possui diferentes estilos de
dança, com história e local de nascimento próprios. Sendo assim, e de acordo com esse autor,
as Danças Urbanas são linhas estéticas de danças que abrigam vários estilos de dança.
Podemos dizer que perceber a linha estética das Danças Urbanas é perceber as leis que
estruturam essa arte no âmago do processo criativo e na sua recepção.
Quais são as características que definem a linha estética das Danças Urbanas. Como
perceber essas leis que as estruturam? O desenho do guarda-chuva que abriga as linhas
estéticas e os variados estilos representa o universo diversificado que é o conceito de Danças
Urbanas. No lado esquerdo da linha estética coloco atributos que são decisivos para a sua
classificação: Vernacular, Urbano, Matriz Afro-americana, Improviso, Celebração, Remix,
Competitividade, Roda, Guiado pela Música, o Chão como recurso e Corpo Fragmentado. E à
direita, estão os estilos que chamo de Estilos de Base, no qual Locking, Popping, Breaking,
20
House Dance, Hip Hop Dance, Wacking, Krump são Danças Urbanas estadunidenses, Dance
Hall Jamaicana e incluo o Passinho como a nossa Dança Urbana brasileira.
Outra confusão recorrente é sempre associar Danças Urbanas à Cultura Hip Hop. Aqui
ocorrem distorções que podem levar a crer que todas as Danças Urbanas têm relação direta
com a Cultura Hip Hop. O que não é verdade, pois cada dança possui origens diferentes.
Ribeiro e Cardoso (2011) acreditam que o melhor é chamar cada dança pelo seu próprio
nome, algo já muito difundido em outros locais do mundo: Rocking, Breaking, Locking,
Popping, Hip Hop Dance, House Dance, Dance Hall, Clowning e Krump. Considero como as
Danças Urbanas base, pois cada uma delas está relacionada a um estilo musical específico, a
passos, posturas, comportamentos e códigos vestimentários característicos. Se formos analisar
o Passinho, notaremos as características de uma dança vernacular oriunda da favela do Rio de
Janeiro, de conceito urbano, dançada ao ritmo das músicas de funk carioca, onde há passos
específicos com nomes como “Sabará” e “Rabiscada”, em que os integrantes dançam sem
camisa e de pés descalços, e que possui todo um linguajar comportamental com pouca ligação
com a Cultura Hip Hop.
21
Outras denominações surgem à medida que as Danças Urbanas ficam conhecidas pela
mídia: New Style Hip Hop, Free Style Hip Hop, Street Jazz, Jazz Funk. Esses termos se
referem às propostas de movimentação que não cabem nos estilos de base, pois misturam
variadas referências, indo em direção a um estilo próprio, um estilo autoral. Ribeiro e Cardoso
(2011) alertam que há um plano comercial de venda da dança e que pode contribuir um pouco
com as transformações ou até mesmo distorções, pois cada artista/dançarino tem um estilo,
uma particularidade dentro deste universo, e precisa se destacar em um mercado competitivo.
Uma grande contradição ocorre quando alguns precursores tendem a criticar dançarinos novos
que remixam vários estilos em seus corpos e que acabam apresentando uma dança distanciada
dos estilos de base. Não foram poucas as vezes que vi profissionais da área dizendo que um
dançarino não dança realmente o estilo que apresenta, pelo simples fato de ele estar
modificando passos e movimentos. Esta liberdade de dançar de modo diferente e de inventar
denominações dificulta o enquadramento conceitual dessas danças e expressa a tensão para se
legitimar o que pode ser ou não considerado Dança Urbana.
O conceito-chave desta pesquisa - Corpo Remixado - flutua dentro desse campo do
indefinível das danças, no qual um dançarino é capaz de cooptar vários estilos dentro do seu
movimento próprio. Não havendo compromisso com nomenclaturas, fundamentos ou técnicas
de um estilo apenas, mas sim a remixagem de vários deles. O Corpo Remixado propõe uma
dança na qual linha estética, história, nome e origem são pautadas pela busca da liberdade
artística, pela remixagem de estilos, pela cultura urbana, pelo pop e pelo encontro entre as
pessoas nas comunidades. Um conceito que se quer aberto, que não pretende encaixotar
movimentos e passos, mas que delineia uma visão mais ampla de criação de movimentos que
partam de repertórios de bases diversas. Portanto, o Corpo Remixado burla a proposta fixa de
estilos e fundamentos de dança, criando uma trajetória voltada para o processo de
reinterpretar e reutilizar recursos herdados, traçando uma prática cotidiana de decodificar e
entender o mundo da cultura pop contemporânea.
22
Tabela 1 - Cronologia
23
músicas, expressão e dança social nos bairros mais pobres, até as blockparties nos guetos de
Nova York seguido pelo início da Cultura Hip Hop. D´alva (2014, p.e3) coloca que as raízes
do Hip Hop são “efeito colateral, uma explosão, a resposta de um corpo social doente que
reage como uma febre que se recusa a passar e, como uma incontrolável peste às avessas,
alastra-se pelo mundo corrompendo a linguagem, distorcendo corpos e rasgando a paisagem”.
Toda essa cultura foi gerada em “ventre inquieto” como diz a autora. Uma cultura que
não aceitava o domínio e controle do poder que se estabelece frente às minorias. Logo, as
Danças Urbanas têm, na sua origem, uma dança vigorosa, de celebração, de batalha e
inquietação. A década de 1970 funcionou como um ensaio para o que viria nos anos
seguintes, com a explosão da música Hip Hop para o mundo, onde se seguiu mostrando uma
arte urbana cheia de dança, moda e música pulsante.
A transmissão dos estilos de dança, formatos e passos que foram surgindo ao longo do
tempo tem relação direta com os avanços tecnológicos que começaram nos anos 1980, tais
como: a inovação na gravação musical de vinil para fita K7, cd, mp3 e streem; as informações
audiovisuais via filmes, canais de televisão como a MTV, videoclipe, DVD, internet, redes
sociais, com destaque para o YouTube; a utilização dessa dança pela publicidade, propaganda
e artistas pops; e no seu ensino nas academias de ginástica, estúdios e escolas de dança. Tudo
isso fez com que as Danças Urbanas se espalhassem pelo mundo. Em suma, a forma como as
informações foram surgindo através das décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000 em diante foram
bem desordenadas, baseada em atividades práticas, na experiência, na observação e nas
mídias. Um conhecimento adquirido através da vivência da realidade, em contato com o
mundo e o cotidiano – um conhecimento empírico.
entra principalmente pelos ouvidos, o ritmo pelo peito e as pernas são impulsionadas por
diferentes práticas corporais, tornando um ciclo sem fim de movimentos. Todo um ciclo de
pensamentos, culturas e atravessamentos que programam a nossa própria história e a nossa
arte. Um giro sem fim e constante, no qual cada um pode ter a sua própria trajetória,
influenciada por tantas mudanças de direção. Essa remixagem é a minha, representada no
desenho, pois o remix é único.
Essa afirmação pretende defender a ideia de que nosso remix é individual, pois cada
um tem uma caminhada autoral. Forma-se por meio de incessantes trocas de conhecimento,
absorção e reprodução. Portanto, o meu remix transita no entre, flutua no limiar das variadas
técnicas do movimento e é aberto às influências de outros territórios. O Corpo Remixado faz
parte do que me tornei, na ideia de uma continuidade do corpo dançante: “o mesmo corpo que
dorme, acorda, come se exercita e ama é o instrumento e a manifestação da dança”
(DANTAS, 1999, p. 70).
Dessa forma chego ao meu Primeiro Elemento Facilitador: o Corpo Remixado parte de
uma linha estética de dança vernacular, afrodescendente e de contexto urbano.
26
Confissão 1
Preciso então confessar! Eu sou remixado! Confesso que dentro de mim não há nada de
original, sou o resultado de misturas. Não escondo que minha arte se formou das
brincadeiras de criança, das músicas e do jogo social. Em mim, não existe essa tal de
essência, pois não vim do nada, todo meu trabalho criativo é construído sobre o que veio
antes. Células que se cruzaram vindas de outras tantas células que se cruzaram. E posso
dizer que foi desde cedo que comecei com essa ideia: eram cópias reinventadas, roubos
programados, furtos anotados. Estudava, juntava tudo, organizava, transformava, testava e
deletava o desnecessário sem nenhum apego. Depois, fazia minha enorme colcha de retalhos.
E foi sempre assim que construí meu remix através de crossfaders de Kung Fu com Capoeira,
de footwork do Breaking com saltos da ginástica aeróbica, do moonwalk do Michael Jackson
com os running man do MC-Hammer sem limites nem regras, já que o Fade in de um,
poderia ser o Fade out de outro. É a única forma que vejo a construção da minha arte,
hackeando o que lá está e propondo outras tentativas instintivas no corpo, no desenho ou na
fala. Podem até pensar que essa proposta seja inadequada, mas ela me enche de esperança.
Pois quando estou livre do fardo de ser completamente original, posso parar de tentar
construir algo do nada e abraçar a influência ao invés de fugir dela.
28
2 SEGUNDA ENTRADA
Confissão 2
Quando comecei a dar os primeiros passos, não havia professores de Danças Urbanas, digo
que a televisão foi meu professor por muito tempo. Ficava na frente da televisão copiando os
passos da forma como apareciam. Lembro que era uma época que não existia internet, e o
vídeo cassete estava apenas começando. Trazendo uma cultura pop que chegava de forma
desordenada e sem explicação, sem manual de informações de como abrir a caixa e apertar
os botões certos. Pegávamos tudo, absorvíamos no nosso corpo e aprendíamos a dançar:
olhando, trocando, copiando e remixando. Construí assim, um corpo dançante sem
definições, pois não é possível situar em um local ou nome ou técnica, ficando em uma
combinação do corpo da cultura pop .
30
Nasci em vinte de fevereiro de 19704, em Porto Alegre no sul do Brasil, meu pai,
originário de Santa Vitória do Palmar, extremo sul do Rio Grande do Sul, veio com doze anos
para a capital. Aqui conheceu a minha mãe no bairro Mont´Serrat, onde formou uma família
de três filhos, na qual eu sou o caçula. O bairro Mont´Serrat está situado na região central de
Porto Alegre, conhecido hoje como um bairro moderno, com uma admirável vista, no qual o
comércio imobiliário está crescendo, tornando-o um dos bairros mais valorizados da cidade.
No entanto, não foi sempre assim. Na segunda metade do século XIX era conhecido
predominantemente como um bairro habitado por negros emancipados, após a abolição da
escravatura, um local de difícil acesso, como é mostrado em “Negro em Preto e Branco:
História Fotográfica da População Negra de Porto Alegre” (SANTOS, 2005). 5
Porto Alegre foi testemunha de uma mobilidade territorial demarcada por ampla
exclusão social, no período após a abolição do regime escravo, quando as famílias
negras foram obrigadas a se mudarem de lugares sem nenhuma estrutura para outros
piores [...] (SANTOS, 2005 p. 36).
4
Por uma coincidência do destino nasci na mesma época que nascia a cultura Hip Hop nos EUA. Naquela época
ainda sem um nome específico, mas uma cultura urbana que crescia com todos os elementos da dança, do grafite,
do DJ, MC.
5
Em Negro em Preto e Branco - História Fotográfica da População Negra em Porto Alegre (SANTOS, 2005)
nos mostra que na capital gaúcha, a partir da segunda metade do século XIX, o maior contingente de negros se
encontrava nas cercanias da cidade, no Areal da Baronesa, na Cidade Baixa, imediações da atual Rua Lima e
Silva, e nas chamadas Colônia Africana e “Bacia”, atuais bairros Bonfim, Mont’Serrat, Rio Branco e Três
Figueiras. Nestes territórios negros desenvolveram-se intensamente os cultos afro-brasileiros. No caso destas
últimas áreas tratava-se, em sua origem (em torno da época da abolição), de uma “zona insalubre, localizada nas
bordas de chácaras e propriedades que ali existiam, de baixa valorização e de pouco interesse imediato para seus
donos, que foi sendo ocupada por escravos recém-emancipados”. Mais tarde, habitando em cortiços e
“avenidas”, isto é, conjunto de famílias negras ocupavam um mesmo espaço e valiam-se de serviços sanitários e
de fornecimento de água coletivos. Deste modo, os negros constituiriam os segmentos populacionais que
caracterizariam os denominados pioneiros do solo urbano, já que seguiriam ocupando as áreas menos nobres da
cidade, sem a mínima ou com precárias condições de infraestrutura urbana ou, então, distantes e de difícil acesso
viário (SANTOS, 2005).
31
artistas da cena pop mundial. Eram músicas dançantes e que faziam das boates uma nova
forma de entretenimento nas noites porto-alegrenses.
Dica: Sugiro que assista à cena do filme “Os Embalos de Sábado à Noite” na qual o ator John Travolta dança
a música “You Should be Dancing” do grupo Bee Gees mostrando toda uma atmosfera da época dos anos
1970, na qual dançar na pista fazia a diferença.
Link:https: <<//www.youtube.com/watch?v=RMcempYIpD4 >>. Acesso em 10 set. 2018.
Nos anos 1970 as boates eram chamadas de discotecas6 e chegaram ao Brasil na mesma
época da ditadura militar que impunha seus anos de chumbo. E a Disco Music, influenciada pelo
funk, pelo soul e até mesmo pela música latina, logo se tornou símbolo de um movimento de
liberdade. Filmes como “Os Embalos de Sábado à Noite” e a telenovela “Dancing Days” lançaram
as meias de lurex, as calças pantalona, calças boca de sino, a camisa romana, com a gola imensa e
criaram toda uma atmosfera na qual dançar era uma forma de se diferenciar na noite. Aqui em
Porto Alegre havia discotecas como a Crocodilo´s, a Tajmahall7 e algumas outras. Na época eu
não idade para poder entrar nestes espaços e só podia me contentar com as histórias que meu irmão
contava e com as músicas que ele escutava.
O terceiro estímulo, que tive por influência do meu pai, foi o samba. Artistas como
Alcione, Clara Nunes e Martinho da Vila ditavam o ritmo das manhãs de domingo. Meu pai
nos acordava ao som do samba em alto volume e, digamos, que só o ato de levantar da cama
com música já cria todo um gesto rítmico que fica impregnado dentro da gente. O modo como
se constituiu a minha musicalidade, contribuiu definitivamente para forjar a minha relação
com o movimento, uma relação embalada pela música. O gesto e a captação auditiva se
moldaram, formando um turbilhão de sensações dentro de um corpo que dança de forma
aleatória e com uma técnica aberta.
Para clarificar os estímulos que mais me identificaram, ficaremos com as músicas dos
cultos brasileiros afro-religiosos (Batuques), a música negra estadunidense (Blues, Soulmusic,
R&B, Funk, Discomusic, Hip Hop, Housemusic) e o Samba. Esses estímulos se tornaram
parâmetros auditivos que provocaram um roteiro de movimentos na riqueza dinâmica dos
processos de identidade visual.
6
Como eram chamadas as casas noturnas que tocavam Disco Music nos anos 1970.
7
A Crocodilos ficava na Plinio Brasil Milano e a Tajmahall ficava na av. Farrapos e tinha mais como Looking
glass, Papagaios. O interessante que apesar de fazerem parte de uma história da noite de Porto Alegre, há poucos
registros dessa época. Ficando apensas a história sendo contada através da oralidade das pessoas que viveram
essa época.
33
Confissão 3
Penso que, quem me via dançar naquela época, pouco conseguia identificar uma
técnica precisa, pois todo o meu aprendizado corporal se dava de forma autodidata,
empírico, olhando e copiando, transformando em novos símbolos, sem preparação,
aquecimento ou regras. Eu não contava música, eu dançava com as batidas da música, com
os registros que eu tinha das imagens da TV, eu copiava aquilo, pequenas imagens na minha
cabeça que ia ligando uma com a outra sem pensar muito, pegava um slide do Michael
Jackson, ligava com um quadril dele, chutes e sentia o grave da música no meu peito, fazendo
com que este se projetasse para o fundo do meu próprio corpo e para frente como se fosse
uma caixa de som; outra coisa que eu fazia muito era o waving, a ondulação que se transmite
de um lado para o outro, em momentos em que a música perdia o grave e ganhava uma
suavidade, uma escuta intuitiva da música. Nenhum tipo de preocupação com julgamentos se
estava certo ou errado, se eu estava fazendo bem ou não; eu dançava muito olhando para as
pessoas, afinal de contas eu não tinha o espelho de uma sala de dança. E nas reuniões
dançantes, o coro da festa gritava: dança, dança, quando tocava uma música animada; eu
dançava, ficava suado, e não conseguia dançar musica lenta depois, porque as meninas não
queriam se molhar de suor. No entanto, quando fui para o baile Black, todo mundo dançava
assim, no baile Black, todo mundo suava e dançava junto, depois tirava os casacos
jogávamos no chão e não tinha virtuosismo ou exibicionismos. Era dançar, celebrar e cantar
as músicas do momento com toda a comunidade negra da época. Foi um momento de
descoberta, de autoconhecimento e onde pude perceber que sim havia diferença na cor da
pele na hora que estávamos em convívios diferentes.
Destaco nesta fase duas práticas importantes da minha trajetória: a Capoeira, que
pratiquei durante dez anos; e as imitações de Michael Jackson, que eu fazia nas festas de
reunião dançante da escola.
Hall (2014) coloca que as identidades são construídas através de um discurso
simbólico e representativo. Desde “[...] os anos de 1970, tanto o alcance quanto o ritmo da
integração global aumentaram enormemente, acelerando os fluxos e os laços entre nações”
(HALL, 2014 p. 39). Saliento que nessa época o mundo vivia a Guerra Fria, então nada
acontecia por acaso. O objetivo norte-americano era de espalhar a sua cultura pop pelo mundo
e nós no Brasil estávamos na rota dessa conquista cultural e territorial. É possível dizer que os
34
EUA viram na força de uma cultura popular, nascida das profundezas de um local caótico,
uma música, uma dança, uma fala que poderia ser uma das formas de vender a sua proposta
de domínio comercial, econômico e cultural. Eu, assim como vários jovens de Porto Alegre,
daquele período dos anos 1980, fui influenciado por uma cultura pop que chegava,
principalmente, via televisão, mas também pelos discos, cinema e pelo rádio. Uma música que
servia para dançar nas festas, nas reuniões dançantes e nos videoclipes. O autodidatismo, a
criação empírica, a cópia sem nem um tipo de pré-julgamento do que absorvíamos era a
maneira que começamos a consumir tudo o que vinha junto com as Danças Urbanas
estadunidenses: música, dança, roupas, tênis, filmes, videoclipes, shows, gestos e falas. Era
um consumo massivo daquilo que vinha de fora do Brasil, sem muito conhecimento ou
crítica. Era tudo muito novo, mas muito sedutor para todos os adolescentes que buscavam
uma identidade que já não cabia só no nosso bairro. Queríamos consumir tudo que vinha dos
Estados Unidos.
Uma das grandes referências que tenho, nos anos 1980, são os filmes de luta, quando
voltava do cinema para casa ia dando pernadas, fazendo as sequências coreográficas do Bruce
Lee8, para mim ele simbolizava força, liberdade de expressão e sabedoria. Bruce Lee deixou
um legado de que podemos ser adaptáveis a qualquer tipo de situação, de que somos fluídos e
dinâmicos ou que estamos sempre em movimento e aprendendo. Somos sempre aprendizes!
Ele é responsável pela seguinte frase: “Seja água meu amigo (LEE, 1971)”! Eu ficava
imitando os movimentos das lutas, fazendo imitações de golpes que eu nem sabia o que eram.
Estava testando o meu corpo através de uma brincadeira de lutas e fantasias. Se não fosse com
meu irmão, era com os amigos ou guerreiros imaginários (que eu criava na minha mente) que
eu lutava girando e saltando no ar.
Porém não foram as artes marciais orientais que me levaram a soltar toda essa energia,
foi a Capoeira com aulas regulares bem próximas da minha casa. Foi o meu primeiro
aprendizado formal, com um mestre, um grupo, horário e método, agora eu fazia parte de uma
comunidade: O Grupo Filhos da Vivência9 do mestre “Mano” (Luis Inácio). Aprendi a
8
É amplamente considerado por muitos comentadores, críticos, pela mídia e por outros artistas marciais como
um dos mais influentes artistas de artes marciais de sempre e um ícone da cultura pop do XX. É, muitas vezes,
dado crédito a Lee por ter ajudado a mudar a maneira como os asiáticos eram apresentados nos filmes
americanos.
9
Disponível em:<<-http://manoinacio.wixsite.com/filhosdavivencia/about_us>> Site do Grupo Filhos da
Vivência. Facebook <<https://www.facebook.com/pg/CapoeiraVivencia/about/?ref=page_internal>>.
35
10
Na Capoeira, tradicionalmente, o batizado seria o momento em que o capoeirista recebe ou oficializa seu
apelido, ou nome de capoeira. A maioria dos capoeiristas passa a ser conhecida na comunidade mais pelos seus
respectivos apelidos do que por seus próprios nomes. ... O costume do apelido surgiu na época em que
a capoeira era ilegal.
11
Toque de berimbau da Capoeira Regional
12
“Thriller” é o álbum mais vendido de todos os tempos. Tendo vendido mais de 100 milhões de cópias. Foi
com “Thriller” que Michael Jackson se tornou a maior estrela pop do século XX.
36
hipnotizado. Para um menino negro de treze anos, que morava em um bairro simples de Porto
Alegre, aquilo caiu como uma combustão de desejos, criatividade e sonhos. Lembremos que
nesse mesmo ano era lançado o canal de videoclipes norte-americano “MTV” com 24h de
música na televisão, o que nos deixava mais ligados em toda essa avalanche de imagens de
dança, shows, música e sucesso.
Confissão 4
Os pés deslizam em uma plataforma onde piscam luzes a cada passo, o sapato bicolor, as
meias brancas, a jaqueta preta. Michael Jackson canta e dança na batida da música em uma
métrica precisa como um metrônomo. Bumbo e caixa, a linha distintiva de baixo e soluços
vocais característicos de Michael Jackson. No Brasil chegou como uma avalanche para todos
os jovens da época, saltando em nossos ouvidos e fazendo o coração bater no ritmo. Olhar
Michael Jackson dançando no videoclipe Billie Jean, depois Beat it e Thriller me fizeram
querer dançar dessa forma, deslizar como ele, me vestir como ele. Para mim, foi irresistível,
eu criava passos e até figurinos. Lembro de buscar a luva, mostrar a meia branca, achar uma
jaqueta que lembrasse o clipe. Sonhava em um dia ir à terra do Michael e dançar num
videoclipe dele. Diferentemente do que vivemos hoje, naquela época não era tão fácil ter
acesso imediato na palma da mão a vídeos de dança. Eu precisava esperar que o vídeo fosse
transmitido em algum canal de televisão. Ficava a frente do aparelho tentando absorver os
movimentos, trocava uma ideia com outros amigos para ver o que eles tinham assimilado.
Também não havia maneira de fazer um “Rewind13” ou passar o vídeo lentamente até
aprender o passo em Slow. Era algo bem autodidata onde o que eu não sabia, eu mesmo
inventava e coreografava. Até meu pai comprar um Vídeo Cassete de duas cabeças da marca
Sharp. Aí sim, ficou mais fácil de copiar direto da televisão e treinar as coreografias e os
passos.
Lembro bem que nas reuniões dançantes paravam a festa para eu dançar na roda,
imitando os passos do rei do pop. Moonwalker, chutinhos laterais, giros com as duas pernas
juntas, parando nas pontas dos pés, quadril em movimento e segurando um chapéu. Foram as
13
Botão de retrocesso na fita cassete e vídeo cassete.
37
primeiras coreografias que eu fiz. A cultura pop estadunidense dominava em todos os sentidos
fazendo com que um jovem adolescente negro quisesse falar em inglês, vestir as mesmas
roupas dos negros de lá, ter os mesmos gestos e as mesmas ideias. O Pop e a juventude tem
uma ligação umbilical; são indissociáveis, uma forma a outra. Nós aqui no Brasil, estávamos
saindo de uma ditadura militar de 20 anos, vivíamos uma guerra fria com medo da bomba
nuclear eminente. E aqueles vídeos nos davam toda uma sensação de liberdade, sucesso e
poder. Éramos alvos fáceis.
Assim sendo, mergulhei fundo nesse universo e comecei a consumir tudo que tinha
relação com cultura pop, música e dança negra norte-americana. Então destaco filmes como:
“Fame” (1980); “Wild Style” (1982); “Staying Alive” (1983); “Flashdance” (1983), “Beat
Street” (1984); “Breakdance” (1984), “Footloose” (1984); “Sol da Meia Noite” (1985); “Dirty
Dancing” (1987); e “Moonwalker” (1987). Destaco cantores e seus respectivos álbuns como:
Michael Jackson (“Thriller”, 1981), Lionel Richie (“All night Long”, 1983); Prince (“Purple
Rain” 1984), MC Hammer (“Let´s Get Started”, 1988); e Run DMC (“Run DMC” 1984). E,
por fim, cantoras como: Chaka Khan (“I Feel For You”, 1984); Janet Jackson (“Rhythm
Nation 1814”, 1989); Paula Abdul (“Forever Your Girl”, 1988); e Madonna (“Like a Virgin”,
1984).
Só que os Estados Unidos eram distantes do meu universo, viajar para o exterior era
algo de luxo nos anos 1980. E eu era de família humilde, tendo me desenvolvido em um
bairro predominantemente negro. Característica que foi sendo alterada conforme o mercado
imobiliário teve interesse pela região. Quando olho para trás, pelo espelho retrovisor, percebo
o quanto esse bairro “embranqueceu”, lembro quando pequeno, que, nas brincadeiras de rua,
éramos a grande maioria. Já nessa época, percebi que a cor da rua foi mudando até não
existirem mais moradores negros em todo bairro. Meus pais vivem lá até hoje apertados pelo
crescimento da cidade e seus prédios. Somos a última família negra que ainda vive na rua
Comendador Rheingantz.
O desejo de triunfar com a dança era uma constante e eu ainda não sabia como. Não
queria só brilhar numa simples reunião dançante, queria dançar com aqueles artistas famosos
da cena pop estadunidense que eu via na televisão e no cinema. A resposta para satisfazer o
meu querer demoraria a chegar, mal sabia eu naquele período.
Ao mesmo tempo em que praticava uma arte brasileira eu também praticava uma arte
estadunidense e gostava de filmes orientais de artes-marciais, por vezes estas manifestações se
misturavam uma no ambiente da outra. Fazia um moinho no meio da roda de Capoeira e dava
38
um rolê ou uma queixada em meio a uma Cypher de dança ou até mesmo fazia um gesto de
luta em meio aos passos de dança. E lembro que isso era visto com certa estranheza.
A partir dessa década, o meu remix começou a tomar forma, o Corpo Remixado se
manifestava em torno desses ambientes, que de certa forma tinham suas semelhanças como a
roda, o improviso, o embate, a provocação, o canto e a música. Mas que eram distantes
geograficamente, as fronteiras não eram tão próximas como talvez sejam agora na era digital.
Dessa época trago comigo características que são fundamentais como a cultura do Hip Hop, a
cultura pop, a cultura urbana, a disciplina técnica oriunda da Capoeira, a arte, a cultura
afrodescendente e a dedicação de ir buscar algo que te caracterize. Isso ficou enraizado na
minha pele e me acompanha eternamente. Hoje retorno a tudo isso, para fundamentar a minha
pesquisa.
Na terceira década, destaco outras práticas que marcaram a minha trajetória: as Festas
Black que frequentei nas noites de Porto Alegre, a minha incursão na Aeróbica Competitiva, -
que me levou a disputar um mundial em Las Vegas e finalmente conhecer os EUA - a criação
do meu primeiro grupo de dança chamado Escravos do Ritmo e as primeiras experiências
como professor.
Ao final dos anos 1980, eu comecei a ir às festas Black em Porto Alegre.
Impulsionado por meus amigos negros que diziam que eu tinha que ir ao encontro da minha
negritude, conhecer a minha real identidade. Faziam referência ao fato de criarmos mais um
movimento de identificação e resistência negra que ocorria entre os jovens negros do bairro,
algo que não era um privilégio só nosso, mas também já ocorria no Rio de Janeiro, com a
Black Rio (VIANNA, 2014), São Paulo e claro nos EUA como é mostrado em (SANTOS,
2005).
A partir da década de 70, do século XX, os negros de Porto Alegre foram bastante
influenciados pelo movimento para a garantia dos direitos civis dos negros norte-
americanos e seus líderes Martin Luther King, Malcolm X, Angela Davis, enfim,
pelos movimentos Black-power e Black-muslims; pelos processos de
descolonização e libertação das antigas colônias africanas e das ações de seus
respectivos líderes Os negros passaram a ocupar os espaços de sociabilidade pública,
no centro da cidade de Porto Alegre, por meio de algumas esquinas, pontos de
encontros, bares e galerias e shopping centers (SANTOS, 2005 p.38).
39
O autor coloca que essas festas constroem uma “ambiência afro-midiática” através da
relação dos corpos em movimento com a música gravada e os equipamentos de som e luz,
propondo, mediado por uma memória coletiva, a nos levar à presentificação do afro. É a roda,
o improviso, a batucada, a informalidade e o canto que remetem às origens deixadas pela
diáspora e nos colocam num ambiente de retorno às origens.
Essas festas ocorriam longe da região onde eu morava, meus pais não queriam deixar
eu ir por esse motivo. E foi só a partir dos 16 anos que consegui ter a chance de ir à primeira
festa Black. Foi na Sociedade Floresta Aurora, na região sul de Porto Alegre, no bairro
Cristal. Lá tocaram os Djs do Grupo Jara Mussisom, que era um dos grupos mais famosos da
época e realizava essas festas em vários locais da periferia e região metropolitana. Sua festa
mais famosa acontecia normalmente no Sindicato dos Metalúrgicos, na Avenida Assis Brasil
zona norte de Porto Alegre. Eram 2500 pessoas dançando todos os finais de semana. “Estas
instituições comprovam a existência de uma ampla rede de relações sociais no território
urbano, entre os integrantes da população negra de Porto Alegre” (SANTOS,2005 p.38).
Percebe-se que este movimento Black, que emerge dos bairros negros e latinos
estadunidenses, ultrapassa as fronteiras e chega ao Brasil, com uma força de mudança
reconhecimento e resistência, na qual o negro busca um protagonismo através da sua música e
através da sua dança. Para melhor entender o que ocorria naquela época é importante assistir
a reportagem indicada abaixo, com um resumo da rotina de uma das festas Black do período -
Jara Musisom, Negras Noites, Black Porto – eram algumas das festas que se destacavam
nessa época. Nota-se que as festas eram combinadas nas esquinas do centro da cidade (Borges
com Rua da praia ou na Frente do Shopping Rua da Praia), com panfletos que indicavam onde
40
seria o encontro. Havia uma informalidade na divulgação dos locais das festas, era algo
esperado durante toda semana: onde seria o próximo baile.
Confissão 5
Fui lá por pura curiosidade, sem muitas pretensões ou expectativas. Era na zona sul de Porto
Alegre que ficava o clube Floresta Aurora. Ao chegar em frente, lembro-me da minha
primeira impressão, ver a grande quantidade de negros reunidos. Como falei antes, o meu
bairro já tinha embranquecido e eu acabava indo em festas onde os brancos eram a maioria.
Mas lá, na entrada do Clube Floresta Aurora, era diferente, na medida em que entrava na
pista de dança e olhava as caixas de som empilhadas, a multidão dançando e suando, me vi
em uma combinação de encontro comigo mesmo e autoconhecimento da minha negritude e
da minha colocação social. As meninas me olhavam diferente, foi um momento no qual perdi
a inocência e percebi que havia sim diferença na cor da pele, na forma de se expressar, nos
gestos e na dança. O som que agora batia dentro do peito e reverberava a alegria de saber
que estava sim agora completo. Eu tinha me encontrado com a minha música e com a minha
dança.
Desde pequeno, tinha o grande desejo de conhecer os EUA, a música e a dança do país
que via apenas pela televisão. Porém não tinha condições financeiras para tal feito, havia
muita dificuldade, eu já cursava Publicidade Propaganda/ UNIISINOS e de certa forma,
estava me desviando do meu objetivo. Numa tarde de domingo, vi uma competição de
Ginástica Aeróbica no Ginásio da Brigada, da capital, em 1990 e descobri que o vencedor do
campeonato brasileiro, ganharia uma viagem para os EUA. Ali estava a oportunidade que eu
precisava. Não pensei duas vezes, no outro dia já estava numa academia de ginástica
praticando a modalidade. Assim, larguei a Capoeira e mergulhei no mundo da Ginástica
Aeróbica.
Confissão 6
Confesso que aprendi com a Aeróbica a contagem musical, a linha de pernas e
braços, os meus limites físicos e psicológicos, mais flexibilidade, força, agilidade e a dar
valor ao treinamento e ao compromisso com um sonho. Foi através desta atividade que pude
conhecer outras cidades e viajar muito abrindo meus horizontes. Foram momentos de muitas
superações e que me deram reconhecimento nacional, que me abriram espaço nas academias
de ginástica e dança em Porto Alegre. Quando cheguei aos EUA, o que me chamou a atenção
primeiramente foram os negros com status social e econômico melhor do que no Brasil.
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Percebi que eles tinham força física, eram mais altos, com roupas e comportamento mais
descolados, apareciam na televisão, nas revistas ou até mesmo eram mais orgulhosos da sua
cor. Senti uma mistura de decepção e alegria, pois sabia que o negro no meu país estava
sempre à margem e não era percebido. Mas lá através da dança e da música tinham força de
penetração social que abriam portas. Confesso que durante muito tempo queria ser igual a
eles, queria falar inglês como eles, sentia que só assim iriam me respeitar, sendo um negro
estadunidense. Ledo engano e puro romantismo ou inocência de um menino que cresceu
tendo como heróis figuras internacionais. Afinal de contas sou brasileiro. Em Los Angeles e
Las Vegas eu vi uma dança urbana de academia de ginástica, com roupas coladas, utilizada
para o desempenho físico e perda de calorias, chamavam de cárdio-funk. Muito distante das
festas Black, das rodas que acontecia nas ruas e nos clubs. Aquilo mais funcionava como
adaptações de uma dança ao nível das aulas de aeróbica. Foi de lá então que decidi que iria
ter o meu grupo de dança, que iria viver daquilo, que iria ser um professor de Danças
Urbanas e largaria a Aeróbica.
Em 1995, criei o meu primeiro grupo de Danças Urbanas, o Grupo Escravos do Ritmo,
logo depois que saí do mundo das competições. O nome foi inspirado no álbum da cantora
Grace Jones (“Slave to the Ryhthm”, 1985). Comecei a criar minhas primeiras coreografias de
Danças Urbanas e a ministrar minhas primeiras aulas. Juntei em torno de vinte cinco
integrantes, alunas de jazz da academia Boa Forma que ficava na rua Assis Brasil, a
proprietária, Suzana Dávila, é uma grande professora e coreógrafa de Jazz em Porto Alegre.
Ela foi a primeira pessoa que me incentivou e abriu as portas para o mundo da dança em
escolas de dança. Foi um local que me deu o espaço adequado para criar, ensaiar e explorar o
meu lado criativo. Ensaiava todos os dias, e comecei a participar de festivais competitivos de
dança (Porto Alegre e Bento Gonçalves, RS, Joinville, SC, entre outros). Participava de uma
categoria chamada estilo livre, já que não havia a categoria de Danças Urbanas como
atualmente. Ganhamos alguns festivais que nos deram reconhecimento, fazendo com que meu
trabalho adquirisse visibilidade na cidade, e, assim, o espaço para eu iniciar a minha carreira
como professor estava estabelecido. A escola que me deu abertura para que eu criasse meus
métodos foi o estúdio de dança Dullius Dance, em 1996. Com um grupo de pouco mais de
sete alunos consegui criar um campo de trabalho, um local de criação e um repertório
coreográfico que foi me formando como um artista dessa cidade.
Naquela ocasião, havia certa resistência dos praticantes das danças mais clássicas, que
não entendiam bem que dança era aquela que eu propunha, queriam ver ponta de pé, linhas
43
retas, leveza e música erudita. Não compreendiam o “batidão” da música pop americana, os
joelhos flexionados, o corpo curvado num incessante balanço e o barulho que toda aquela
dança trazia aos palcos14. Porém, ao final dos anos 1990, com o crescimento da Dança
Urbana, os produtores de festivais perceberam que seria necessário aumentar o espaço de uma
dança popular que só crescia a cada ano e contava com mais adeptos. Foi aí que criaram a
categoria Danças Urbanas.
No meu ponto de vista, percebo que para a Dança Urbana se legitimar em espaços que
não habitava antes como palco, videoclipe e cinema, ela teve que se higienizar. Abriu mão do
formato de roda, buscou a frontalidade típica do palco italiano, ganhou linhas e colunas para
as pautas coreográficas, alinhou braços e pernas para ficar com os movimentos mais limpos,
sincronizados e harmônicos. Eu, nos Escravos do Ritmo, aderi a essa ideia, pois já vinha com
toda uma questão de treinamento da aeróbica e seus movimentos retilíneos de ginástica.
Sendo assim, tratei de estruturar as produções do grupo com essas características espaciais e
de virtuosismos.
Desde o início até os dias de hoje, a grande maioria dos alunos é de mulheres, que vem
de outras experiências com a dança, como o Jazz, Ballet e Dança Contemporânea. Eu comecei
a propor uma mistura de estilos, onde elas tinham que organizar as técnicas em um processo
complexo de movimentos, tempos musicais e quebras de dinâmica. Era muito comum
visualizarmos nessas danças alguém fazer um passo de Hip Hop como Running man, seguido
de uma pirueta dupla ou um Footwork, com um salto afastado. Essa característica
amalgamada e sem manual de instrução de como praticá-la era o ponto de liberdade, mas de
muitas controvérsias a respeito de definições precisas, que de fato não existiam. Nesse
contexto os estilos eram nomeados conforme as ideias vinham à cabeça. Street Jazz, Aero
Funk, Hip Hop New Style, entre outros, eram nomes comuns de se ouvir, mas que ninguém
sabia muito bem como explicá-los.
O Escravos do Ritmo era da zona norte e se projetou em meio às academias de
ginástica, estúdios de dança e festivais, já outros grupos da zona sul como Hackers Crew e
Restinga Crew se projetaram em festas, rodas, shows e projetos culturais. Em outras cidades,
também ocorria o mesmo fenômeno, elenco dois grupos que se destacaram na época: Dança
14
O que digo, é por experiência própria, pois não há registros históricos sobre esse momento de rejeição, pois
eram comentários que se ouviam nos nos bastidores dos festivais e nas mesas dos jurados que julgavam aquela
dança estranha.
44
15
É o primeiro grupo profissional sul-americano do gênero, surgiu em 1991, com a finalidade de elevar e
divulgar a Dança de Rua no País, tornando-a um estilo de dança digno e respeitado. Criado pelo bailarino e
coreógrafo Marcelo Cirino. Vencedores de dezenas de títulos conquistados, dentre eles 27 primeiros lugares
consecutivos em competições de nível internacional.
16
Do professor e coreógrafo Octávio Nassur o grupo se destacava por trabalhar com um número muito elevado
de meninas e todas de coque de ballet em coreografias muito disciplinadas e organizadas espacialmente.
17
As nomenclaturas das aulas variavam de acordo com o professor, não havia nada ainda de nomes
fundamentados ou estilos bem definidos. Isso só viria acontecer nos anos 2000.
18
Destaco aqui os locais que desenvolvi meu trabalho: Academia Boa Forma (1993 – 1997); Academia do
Parcão (1997 -2003); Dullius Dance (1997 – 2016)
45
ainda mais essa ideia na Pós-graduação (PUC/RS 2007 até 2009). Percebi que dar aulas de
dança não é uma ciência exata, que não havia uma única forma infalível de aula, mas que era
necessário ter início, meio e uma finalidade bem pautada. Teria que haver um propósito de
aula, uma filosofia de trabalho. Desde essa época vivo numa busca pela aula ideal, que eu sei
que nunca vou atingir, mas que me mantém na caminhada, na busca e isso é o mais valioso.
Nesse mesmo ano, fiz a minha primeira viagem para a Europa, em busca de
conhecimento, fui a um dos mais renomados eventos de Danças Urbanas mundiais, JUSTE
DEBOUT (Paris). 19 Voltei transformado e com a ideia de que deveria inovar meus trabalhos,
buscando mais a minha própria arte, sem estar atrelado às regras das escolas de dança ou aos
festivais competitivos. Foi então que criei o Grupo My House.
A fundação do My House ocorreu em março de 2007. A proposta do grupo sempre foi
a de se tornar um organismo vivo, na qual cada integrante tem a oportunidade de desenvolver
a sua própria identidade, a sua própria dança. Algo que venho trabalhando até hoje, pois
acredito que no campo das Danças Urbanas não há espaços para criar fronteiras ou
encaixotamentos estéticos.
Nesse fluxo contínuo de muita vontade, nas ramificações de criatividade, inspiração e
determinação, me joguei em um campo de ideias para criar espetáculos de Danças Urbanas.
Irei citar apenas três espetáculos que representam a minha evolução nas produções e que
demonstram o ciclo de mudanças de narrativas poéticas da minha própria dança. Pois a minha
proposta era um retorno à roda, onde eu poderia ressignificar toda uma bagagem de vivências
corporais remixadas em mim e nos meus alunos. O lema era criar um espetáculo de arte
urbana, com características fundamentais dessa dança.
My House – “Nunca um Lar Foi Tão Agitado” (2009) – Esse foi o meu primeiro
espetáculo e nele fiz a minha grande aposta. Trouxe uma linguagem na qual o(a)s
dançarinos(as) atuavam, criei esquetes, alterei as estruturas do palco deixando tudo à mostra,
mais real e sem coxias. Pela primeira vez, incluí o estilo House Dance nas coreografias, além
de teatro e interações com o público. Porém nesse espetáculo, ainda havia a coreografia
marcada, as colocações em forma geométrica, os movimentos limpos e sincronizados.
Carreguei muito do que tinha criado nas escolas de dança para esse trabalho. A necessidade
de colocar impresso nos meus dançarinos a minha marca e a minha linha de movimento, era
ainda latente.
19
Juste Debout numa tradução literal significa só em pé. https://www.juste-debout.com/en/ fui dois anos
seguidos 2007 e 2008 e pude fazer aulas com ícones da Dança urbana mundial e me apaixonei pelo estilo House
Dance .
46
O espetáculo Avesso (2012), foi uma proposta de trabalhar a mistura, onde propus uma
obra mais próxima do público, em salas alternativas e com mais interação. Eram três casais,
cada qual com um estilo de dança diferente, que dançavam buscando a mistura representada
por um drink feito em um ambiente de bar. Nesse trabalho, busquei mais a criação em
compartilhamento de ideias, fui mais diretor do que criador de passos, aqui eu ganhei mais
maturidade artística e de cena. Começava aos poucos incluir a ideia da remixagem, sem criar
fronteiras limítrofes entre os estilos que surgiam na criação.
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Transmobilização (2014), nessa proposta decidi que iria para a rua, acabaria com as
frontalidades, colocações e pautas coreográficas muito exatas. A poética de Transmobilização
era a Mobilidade Urbana e a Dança Urbana. Através de relatos pessoais do próprio elenco,
construiu-se uma narrativa que se movimenta a favor da livre expressão no espaço urbano.
Com essa ação, o poder de transformação do panorama da cidade se tornou uma
possibilidade, sendo a dança e o graffiti dois expoentes dessa mudança. Penso que este
espetáculo transmite e muito o retorno à roda e as minhas origens na rua. Foi a partir desse
momento que resgatei algumas referencias do passado trazendo para a cena do espetáculo a
arte urbana de uma outra maneira.
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bairro quando pequeno, na minha relação com a rua e nas brincadeiras de criança. Nas rodas
de Capoeira nas praças de Porto Alegre, nos bailes Black na zona sul, na vida que levei em
São Paulo para competir, na minha chegada em Las Vegas e Los Angeles, quando finalmente
conheci os EUA e nas minhas viagens para Europa, especialmente Paris. O Urbano é o meu
local e de onde emergem as minhas referências, é no atravessamento de ruas e nos
atravessamentos sociais que posso falar sobre essa dança e esse corpo que remixa. O Corpo
Remixado detém essa corpografia urbana, feita de imagens, encontros e reconstruções dentro
de um complexo conjunto de relações que se estabelece entre elementos diferentes, compondo
um carrossel do nosso cotidiano: diversidade, liberdade e resistência, o que lhe confere uma
arte de viver com a diferença. Assim gira a cidade, giram todos em um enorme turntable de
complexidades.
A partir da minha relação perceptiva com a cidade derivam essas experiências com o
urbano, através de diferentes temporalidades. Dessa forma, olhando pelo espelho retrovisor as
décadas que estão vivas em minhas memórias, surge um desejo de retorno à roda. Vontade de
voltar ao ambiente de improviso e celebração, de estar em comunidade e de dançar sem
julgamentos ou definições. Pois, penso que, a espetacularização inevitável das Danças
Urbanas e sua higienização para o grande público fez com que se perdesse um pouco da
espontaneidade da ação, o dançar por dançar sem precisar ser visto ou definido. Busco com
esta pesquisa algo deixado lá atrás, quando flutuava em movimentos que partiam de sons,
vibrações e sentimentos. O Corpo Remixado representa um ato de resistência, mas também de
liberdade de ação. Assim, o segundo elemento facilitador é: ter uma corpografia urbana.
51
3 TERCEIRA ENTRADA
Acima, na Figura 10, o Dj com fones e operando sua Pick up Boombox representa um
maestro das pistas de dança, criando uma playlist de músicas que impulsionam os
movimentos de uma comunidade, representada por corpos que são provocados através de uma
batida musical e que respondem com dança de variadas formas.
O ponto de partida é o conceito de que tudo começa pela nossa experiência auditiva e
pela leitura corporal que fazemos dos estímulos musicais. Aponto a autora Susan Langer
(1980) no texto “O Círculo Mágico”, no qual propõe que “as sensações corporais dos
dançarinos, fundindo-se com coisas vistas e ouvidas, com todo caleidoscópio de figuras e
gestos místicos, sustentam o grande ritmo” (LANGER, 1980, p.208). Ainda para a autora “o
ritmo que irá transformar todo movimento em gesto, e o próprio dançarino em criatura liberta
dos vínculos usuais da gravitação e da inercia muscular, é estabelecido mais facilmente pela
música” (LANGER, 1980 p.212).
A autora propõe que a música nos coloca em movimento, instiga a expressão do corpo
e nos tira da inércia. A captação auditiva aciona estruturas musculares estabelecendo o que
fazemos com o nosso corpo seja na roda, na batalha ou no palco. Outros autores reforçam que
“a dança nasce da música. A Dança Urbana tem relação direta ao histórico e evolução da
música no mesmo período” (RIBEIRO; CARDOSO, 2011, p.15). Ou seja, uma lógica na qual
os estilos de Danças Urbanas surgem dentro de um estilo musical específico.
A fim de entender a base desse fenômeno, busquei as relações da música e da dança
através de um olhar mais atento nas matrizes africanas, já que os povos da África
relacionaram todas as formas de experiência de vida, criando, aprendendo e avaliando dança e
música. São sistemas de tradições distintas, mas relacionados, que têm estilos e práticas
semelhantes ou sobrepostos. Essas tradições compartilham muitos dos mesmos elementos de
contexto, procedimento básico e padrão interno. As semelhanças que ligam as culturas
tradicionais africanas podem servir de base para a compreensão da avaliação estética que
ajuda a moldar formas artísticas afro-americanas (MALONE, 1996).
Dentro da concepção africana, a música está ligada a uma ou mais formas de arte,
incluindo a dança. São eventos sociais multidimensionais, que de fato estimulam esse tipo de
participação, porque permitem que os membros da comunidade interajam socialmente em
situações musicais. Além disso, articular a batida através da resposta motora aumenta o prazer
da música e faz com que a pessoa se sinta mais envolvida no evento musical. O filósofo Fu-
Kiau Bunseki citado por Malone (1996 p.11) usa a expressão cantar-dançar-batucar, para
53
indicar o denominador comum das performances africanas negras, que por sua vez não
existem sem este poderoso trio.
Nessa perspectiva, a África é o continente dançante, na medida em que a música e a
dança permeiam toda e qualquer atividade, sendo uma forma de inscrição e transmissão de
conhecimentos e valores. Todo som, todo gesto, em África, significam, o que faz Robert
Farris Thompson afirmar que a “África introduz uma diferente história da arte – a história de
uma arte dançante” (THOMPSON apud MALONE 1996 p. 11).
Malone (1996) ainda nos fala que em tais cenários de dança e música, as escolhas de
instrumentação, tipos de músicas tocadas e variedade de movimentos – relacionando as três -
variam muito dependendo da ocasião e da cultura. A música para a dança poderia ser
fornecida por um único tambor, um conjunto de tambores ou vários grupos de trompetes,
flautas e xilofones ou até mesmo a combinação de tambores e vozes. Na África, os diferentes
grupos enfatizam esses ritmos em partes diferentes do corpo na hora de dançar. Alguns
enfatizam a parte superior, outros dão acento nos quadris, mãos e pés de forma específica,
fortes movimentações de contração e liberação da pélvis e torso superior.
Os ritmos dos instrumentos e das canções definem quais os movimentos de dança
serão determinados ou quais sequências de tempo são escolhidas e como elas são
agrupadas. Considerando que os dançarinos, muitas vezes, movem-se através de um sutil
complexo de classificações espaciais, com ênfase nos aspectos rítmicos-dinâmicos do
movimento e na estreita relação entre movimento e música. Os africanos levados para a
América do Norte afirmaram seus valores ancestrais cantando músicas que incitavam os
dançarinos a moverem seus corpos, flexionando os joelhos (MALONE, 1996).
Um ótimo exemplo dessa relação ancestral da música que impulsiona ao movimento e
à dança é o que ocorre no estilo musical Hip Hop, nascido na cidade de Nova York, nos anos
197020, onde os grandes mentores dessa cultura foram os DJs, criadores de uma nova maneira
de fazer música: estruturada de forma simples e muitas vezes precária, assim descrita por
utilizar dois pratos e um microfone. Criada a partir de samplers de outras canções da Disco
Music ou de temas de Funk and Soul. O fato é que, a música feita pelos DJs era uma
20
Uma cultura de resistência contra a segregação racial, violência, exploração de minorias e lutas por direitos
civis. Uma cultura criada por jovens norte-americanos negros e porto-riquenhos que viviam a margem da
sociedade e buscavam expressar as suas identidades em meio à desordem do bairro do Bronx em Nova York.
Era um caos total a vida no Bronx, com muito desemprego, com batalha de gangs lutando por territórios e
alimentadas pelo fracasso do planejamento urbano de uma cidade à beira da falência. No entanto, é considerado
o ponto de partida dessa cultura.
54
compilação de outras canções, uma mistura de batidas, pequenos trechos de vozes e efeitos
tecnológicos como bateria eletrônica e os scratches.
Autores como Broughton e Brewster (2006) declaram que os DJs promoviam festas
para sua comunidade, nas quais observavam que havia partes das músicas que motivavam as
pessoas a dançar. Era a parte instrumental, conhecida como breakbeat. Começaram então a
buscar formas de manter mais sessões das breakbeats, a fim de sustentar a energia na pista de
dança. Desse modo, o público ampliou as possibilidades de mostrar a sua melhor versão
dançante.
Os DJs logo proporcionaram uma verdadeira ebulição de música, festas, b-boys, b-
girls, raps, batalhas, scratches, mcs e grafite. Tudo sendo remixado em uma complexa teia de
possibilidades expressivas. De tal modo, que fez com que o Hip Hop se tornasse a voz de uma
geração de jovens ao redor do mundo, inspirando-os a proclamarem seus corpos em uma
mistura de sons, passos de dança, poesia e expressão corporal. Pode-se dizer que a ideia de
remix cresce, abre um espaço de oportunidades e mostra que não há mais limites entre a
música e a dança. O que os DJs propuseram foi uma explosão cultural de dentro dos guetos de
Nova York para o mundo.
O DJ, em uma definição básica, seria o responsável por tocar determinadas músicas
em sequência durante uma festa, garantindo a animação do evento. Outra tarefa do DJ seria a
de apresentador, alguém que nos mostra e cria o ambiente propício para a dança e à diversão.
Na evolução da contemporaneidade, com o aumento dos recursos tecnológicos, os DJs
atingiram níveis de artistas criativos que se utilizam de músicas já prontas e fazem uma
releitura totalmente inovadora para o espectador. O DJ remixa, na sua sensibilidade musical,
novos timbres, ruídos e batidas já criadas, além de reorganizá-las em seu instrumento: a mesa
de som repletas de botões, luzes, mixers, turntables e cabos. Dentro desse emaranhado
tecnológico, pode surgir algo que rearranje nossas sensibilidades e crie uma poética, que seja
capaz de nos levar a outros níveis de percepção. Os DJs mais importantes, que se destacaram
a partir dos anos 1970, por essa revolução musical que originou não só o Hip Hop, mas todo
uma forma criativa de pensar música e dança, foram: Kool Herc, Grand Master Flash e Africa
Bambaataa.
O DJ Kool Herc buscava uma forma criativa de unir a comunidade em prol da
diversão e expressão. Herc era um jovem negro, nascido e criado até os 10 anos em Kingston,
55
Jamaica, que produzia festas no lado leste do bairro do Bronx. Ali todos se encontravam para
dançar e ouvir a música que ele colocava nos seus turntable: traficantes, cafetões, prostitutas,
membros de gangues e jovens de várias etnias.
Em “Cant Stop Wont Stop: A History of Hip Hop Generation” (CHANG, 2005), Herc
escreve a introdução do livro, declarando que para ele, no início, ser DJ era algo que servia
apenas para divertir, mas depois suas festas se tornaram “rituais de passagem” para aquela
geração de jovens. Herc é considerado o mentor da proposta de esticar a parte instrumental
das músicas. Em Miyakawa e Schloss (2015) é possível entender como isso era feito – o que
se chamava de Breaks:
[...] abaixava o volume entre um disco e outro, com frequência falava sobre a
transição dizendo palavras de ordem para o público [...] Herc colocava temas mais
antigos e mais funky que agradavam, repetia uma e outra vez as partes que mais
gostavam. Os b-boys haviam encontrado seu DJ (BROUGHTON; BREWSTER,
2006 p. 248).
Outro grande DJ do Hip Hop foi Grandmaster Flash, nascido em Barbados. Ele
possuía um dom para a eletrônica desde pequeno. Descobriu a força do breakbeat e
transformou o Hip Hop em uma nova forma de música, absolutamente genuína. Flash ficava
por horas testando uma forma de inserir os breakbeats com precisão, sem que perdesse o
ritmo. Acabou criando técnicas como Quick Mix Theor (Teoria da Mescla Rápida) e a Clock
Theory (Teoria do Relógio) (BROUGHT; BREWSTER, 2006).
Africa Bambaata foi o fundador do coletivo Zulu Nation, uma fundação focada na
cultura Hip Hop. A sua grande força social foi unir as diferentes gangues e criar festas ao ar
livre, as Block Parties, onde a trégua era feita.
56
Um bom dançarino é aquele que conversa com a música, ouve claramente e sente a
batida, e é capaz de usar diferentes partes do corpo para criar visualizações de
ritmos. Os dançarinos que se movem bem e acompanham a batida de perto tornam a
improvisação mais fácil para o baterista, porque seus movimentos geralmente são
mais claros (MALONE, 1996 P.15).
Inspirado em Thompson (1979), Malone (1996 p. 15) aborda cinco traços da música
africana que também estão presentes na dança. Thompson os descreve como:
1. Dominância de um conceito percurssivo de desempenho – definido pelo modo
que os músicos tocam seus instrumentos e o modo que os dançarinos movem seus
corpos;
2. Ritmos cruzados. Os músicos criam tensão na música tocando vários ritmos
diferentes ao mesmo tempo. Dançarinos articulam alguns dos ritmos em diferentes
partes de seus corpos;
3. Tocar e dançar - refere-se à prática de percussão de diferentes ritmos
sobrepostos ao mesmo tempo, com cada ritmo contribuindo para o todo
polimétrico do músico que move tronco e cabeça ao som do seu próprio
instrumento;
4. Chamadas e respostas - é uma forma especial de antifonia, em que o chamador
alterna suas linhas com as respostas temporárias regulares de um coro; O
57
cidades, do passo marcado na batida da música, num deslocamento estacionário quase como
se estivesse numa esteira.
Esse fenômeno faz com que o passo se popularize e seja executado várias vezes de
forma lúdica e recreativa na rua, numa festa ou em qualquer outro ambiente.
estes eram confrontados com os de outro proprietário (EMERY, 1988 p.90). As tradições de
brincar, debochar e as batalhas funcionam como improviso, o improvável, a mudança de
direção e a proposta de inovação. A partir dos anos 1970, a cultura Hip Hop difundiu essa
ideia através das batalhas de DJs, MCs e Breakers, é a “busca por reconhecimento” como diz
(RIBEIRO; CARDOSO, 2011 p. 96) “é uma forma cultural muito próxima desse tipo de luta,
e as apostas de uma batalha têm semelhante caráter de tudo ou nada”. As batalhas têm uma
proposta de superação do dançarino e, sobretudo, as batalhas ou rachas funcionam como um
local de troca, pois não há maneira de enfrentar o outro sem ser contaminado corporalmente
pelo oponente. É uma relação de jogo que destacam a propicia ambiência de reinvenção do
estilo. Através de estratégias os participantes desses ambientes atuam com o improvável.
O Corpo Remixado tem na sonoridade a sua maior inspiração cinética. Atua em locais
mais comuns ao remix - o círculo, a roda, a cypher, as block parties, os nightclubs e as
batalhas ou rachas – pois estes possuem as condições ideais da mistura como: música;
ambiência do improviso; DJ e MC; relação de chamadas e respostas; celebração; dança;
competitividade; configuração circular; tecnologia interativo musical; sistemas de iluminação;
espaços livres; pista de dança; mínimo de regras;; informal. A expressão se dá de ideias,
sensações e sentimentos através do som. Através de uma combinação corpo-música-ambiente,
a expressão se origina a partir do que se escuta, do que se vê e do que se guarda nas memórias
sociais vividas. Toda esta combinação originada das matrizes Africanas, a forma de
transmissão dessa linguagem ao longo dos anos, a proposta de mistura dos DJs a partir dos
anos 1970, o avanço tecnológico na indústria musical em combinação com ambientes de
improviso contribuem na formação desse Corpo Remixado dentro das Danças Urbanas.
Portanto o terceiro Elemento Facilitador é: ter uma ligação direta com a musicalidade em
ambientes de improviso e batalha.
64
65
4 QUARTA ENTRADA
fecundas. Posto isto, “a hibridação funde estruturas ou práticas sociais distintas gerando novas
estruturas e novas práticas” (CANCLINI, 2003, p.5).
Considero que possa haver uma troca entre as partes, mas também uma resistência em
ambas. Canclini (2003), mostra que há uma resistência em aceitar essas e outras formas de
hibridações, porque geram insegurança nas culturas e conspiram contra sua autoestima
etnocêntrica. Ele alerta que a facilidade de comunicação implica em aceitarmos tudo
indiscriminadamente. De todo modo, assim como o autor, acredito que reivindicar a
heterogeneidade e a possibilidade de múltiplas hibridações é acima de tudo um movimento
político para que o mundo não acabe preso à lógica homogeneizadora.
A mestiçagem, assim como no hibridismo, tem sua componente biológica, mas não é a
exclusiva nem a mais importante. A mestiçagem histórica, cultural e linguística modelou o
conjunto das sociedades humanas. Os autores Laplantine e Nouss (2002) fornecem uma
67
Porque ser, é ser com, é ser em conjunto, é partilhar – a maioria das vezes
conflituosamente – a existência. Privados da relação com os outros ficamos privados
de identidade e, assim, somos conduzidos por autossuficiência e narcisismo ao
autismo (LAPLANTINE; NOUSS, 2002 p. 78).
A mestiçagem não possui nada de certeza ou não certeza do sentido, é as duas coisas
juntas. É o pensamento da mediação que se exerce nos interstícios a partir dos cruzamentos e
das trocas. Os autores colocam que como numa sinfonia “tudo é dado ao mesmo tempo,
embora esse todo não pare de se transformar” (LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p.84). As
condições da mestiçagem residem que na mistura nenhum elemento se sobressai ao outro,
todos são igualmente importantes, não importa o tamanho das contribuições individuais,
como na astrofísica, onde mesmo as estrelas menores são importantes para inteireza dos
sistemas.
Em se tratando de uma pesquisa brasileira no campo das Danças Urbanas que
envolvem a relação de troca entre países como no caso de EUA e Brasil, proponho que o
Corpo Remixado é influenciado por estas culturas, mas sem que haja privilégios de uma
sobre a outra, mesmo considerando a assimetria de poderes sociais e econômicos. Avalio
como improdutivo considerar qualquer purismo dentro desta arte ou qualquer tentativa de
nivelamento homogêneo do dançarino (a), pois não importa aqui o tamanho de cada
contribuição. As trocas se dão de forma constante, não de cima para baixo, mas de lado a
lado. As diferenças EUA/Brasil existem, mas na troca elas ocorrem sem dominação ou
vantagens dentro do corpo do dançarino(a). Portanto, acredito ser importante ressaltar a frase
do escritor Boaventura de Souza Santos (2003, p. 56) que explicita que “temos o direito a ser
iguais sempre que a diferença nos inferioriza. Temos o direito de ser diferentes sempre que a
igualdade nos descaracteriza”.
É preciso estar alerta o tempo todo para não cair na dicotomia do dominado e
dominante, porque a mestiçagem se dá no presente onde este mesmo está sempre sendo
renovado, ou seja, há sempre uma transformação em curso onde o futuro será incerto. É a
incerteza do devir, nunca fixo sendo imprevisto e irreversível. “O devir nunca se adivinha:
esta é a dinâmica, vibrante e frágil, da mestiçagem” (LAPLANTINE; NOUSS, 2002 p.119).
O hibridismo e a mestiçagem têm sido expressões recorrentes no dicionário de
ciências sociais. Tanto a proposta de Canclini (2003) para “Culturas Híbridas” quanto a de
Laplantine & Nouss (2002) para “A Mestiçagem” nos servem com base reflexiva para
pensar na prática de misturar repertórios de movimentos corporais.
69
A crítica e professora francesa Laurence Louppe por exemplo em seu artigo “Corpos
Híbridos” (2000), analisa os processos de intercâmbio cultural fixando-se a termos
“mestiçagem” e “hibridismo” e os direcionado para estudos relacionados à dança
contemporânea, propõe uma distinção entre eles. Louppe adota a denominação de “corpos
ecléticos”, proposta por Dena David (1993), como sendo: “aquele oriundo de formações
diversas, acolhendo em si elementos díspares, por vezes contraditórios, sem que lhe sejam
dadas as ferramentas necessárias à leitura de sua própria diversidade” (LOUPPE, 2000, p.32).
Louppe (2000) acrescenta que a “mestiçagem” na dança é apenas superficial, pois se
dá somente na mistura de códigos, na justaposição de figuras motrizes e na articulação de
vocabulários gestuais distintos. Para que isso ocorresse, seria necessário muito tempo, talvez
toda uma vida. Seria necessária uma filosofia do corpo um trabalho sobre o tônus corporal, ou
seja, é todo o dispositivo qualitativo do bailarino tudo o que o constitui em sua relação com o
mundo que deveria, na verdade, ser objeto de mutações e de misturas. Dito isso, Louppe
acredita que atualmente o que ocorre na dança seja um hibridismo.
Para a autora a mestiçagem é uma “mistura de sangue ou de raças que não se
modificam na sua estrutura, mas são enriquecidos pela acumulação de diferentes heranças
genéticas ou culturais. Evoca uma ideia de universalidade, alteridade, pertencente a grupos
identitários” (LOUPPE, 2000, p.30). Já o híbrido não se enquadra em lugar nenhum o híbrido
não é nada... O Híbrido funciona mais como uma perda, “cria uma relação entre espécies
incompatíveis, dando origem a criaturas aberrantes, destacadas às margens das comunidades
vivas” (LOUPPE, 2000, p.30).
A hibridação é, hoje em dia, o destino do corpo que dança, um resultado tanto das
exigências da criação coreográfica, como da elaboração de sua própria formação. A
elaboração das zonas reconhecíveis da experiência corporal, a construção do sujeito
através de uma determinada prática corporal torna-se, então, quase impossível
(LOUPPE, 2000 P.31).
Atualmente, não há como ter uma técnica pura, nem mesmo ser fiel a apenas um
coreógrafo ou grupo, mas ser regido pelo princípio da experimentação, a qual procura a
eficiência que vai dar conta de uma estética do momento. Este é, acima de tudo, um corpo
plural.
Louppe (2000) coloca quais são as condições favoráveis para que ocorra esse corpo
eclético como a
70
[...] poética da ambivalência, na qual o corpo roça na sua própria ruína através da
savoir- faires (prática, saber fazer), cujo uso múltiplo, totalmente sem referencias,
atenua e quase que dissolve sua presença e seu gesto. Longe de conjurar essas
fragilidades talvez seja tempo de pensa-las, de decifrar o sentido que elas escondem
(LOUPPE, 2000 p.31).
Fica por parte da autora, uma questão implícita se esse novo modo de ser do
dançarino(a) é perigoso ou não para novas gerações decifrarem. Um corpo que “se perde de
uma construção baseada em conceitos prévios criadores de uma estética permanente para
refazer uma formação que o faz cruzar correntes múltiplas” (LOUPPE, 2000, p. 27). Neste
ponto discordo da ideia de perigo, penso ao contrário. Há uma liberdade. Cabe a professores,
dançarinos e coreógrafos buscarem novas adaptações de ensino e criação. Penso que a forma
vertical de aprender e criar dança, na qual seja determinada por um pensamento linear,
repetitivo, segmentado e previsível, presa a uma escola, estilo ou técnica específica, vá aos
poucos sendo substituído por uma forma mais horizontal, não linear, multidisciplinar,
compartilhada e imprevisível. São desafios de uma nova era de aprendizagem onde o poder do
conhecimento está em tudo.
As noções de hibridismo e mestiçagem relacionados à dança constituem uma base
teórica voltada ao desenvolvimento do conceito operacional de Corpo Remixado,
contribuindo para uma perspectiva sobre a remixagem nas danças urbanas. No entanto, tais
noções não contemplam inteiramente o universo das danças urbanas. Por isso, opto agora por
termos como djaing, mix, remix, sampling, cross fader, mash up, scratching, próprios ao
universo dos DJs e por conseguinte das Danças Urbanas para continuar a definir o que é o
Corpo Remixado.
71
21
Everything is a Remix é um documentário sobre a cultura do remix como a nova forma de se criar. Disponível
em: <<https://www.youtube.com/watch?v=SAfCvMNgLjg>>. Acesso em: 02 set. 2018.
72
Bourriaud (2009) aponta para os anos de 1990, como o momento em que o os artistas
produziram ou utilizaram produtos culturais disponíveis ou obras realizadas por terceiros.
Essa fase faz da remixagem uma nova forma de fazer arte. Ele intitula esse ato de Pós
Produção e coloca como um termo técnico utilizado no mundo do áudiovisual, televisão,
cinema e vídeo como:
Bourriaud afirma que esses artistas não lidam com uma matéria-prima. Para eles não
interessa utilizar uma forma original na criação, ou seja, fazer a partir do nada, mas sim
buscar formas dadas por outrem e reutilizá-las em outro contexto. Desta forma, Bourriaud
destaca o DJ como uma das figuras que encabeçam essa ideia e que simboliza essa forma de
fazer arte a partir de reprogramação de obras existentes ou habitando estilos e formas que
tenham uma história; usando imagens; ou utilizando a sociedade como um repertório de
formas; além de recorrer à moda e os meios de comunicação.
Esse processo não tem parada é livre e constante. “Não é mais um ponto final: é um
momento na cadeia infinita das contribuições” (p.17). Bourriaud, exemplifica bem esse
fenômeno no trabalho do DJ que é:
[...] apropriar-se de músicas, criar uma playlist e mostrar seu itinerário pessoal no
universo musical e encadear esses elementos numa determinada ordem, cuidando
tanto do encadeamento quanto da construção de um ambiente (ele trabalha ao vivo
sobre a multidão dançante e pode reagir a seus movimentos). Além disso, ele pode
agir fisicamente sobre o objeto utilizado, praticando scrating ou lançando mão de
todo um repertório de ações (filtros, regulagem dos parâmetros na mesa de
mixagem, acréscimos sonoros etc) (BOURRIAUD, 2009, p.39).
73
O pesquisador Eduardo Navas analisa o remix como discurso, em que estão em jogo
arte, música, mídia e cultura. Mostra que o remix no início do século XXI informava o
desenvolvimento da realidade material dependente da reciclabilidade constante do material
com a implementação da reprodução mecânica. Esta reciclagem é ativa tanto no conteúdo
como na forma. Por esta razão, Navas discute o ato de remixar em termos formais e
conceituais. A cultura do remix, como movimento, está principalmente preocupada com a
livre troca de ideias e sua manifestação como produtos específicos.
Navas (2012, p.15) coloca que o remix tem suas raízes nas explorações musicais dos
DJs de hip-hop. Estes DJs tomaram o beatmixing e transformaram-no em malabarismo:
tocavam com batidas e sons, e repetindo (loop) em duas plataformas giratórias para criar
composições momentâneas exclusivas para audiências ao vivo. Isso é conhecido hoje como
turntablism. Esta prática entrou no estúdio de música como amostragem e, finalmente, na
cultura em geral, contribuindo para a tradição de apropriação.
De um modo geral, a cultura remix pode ser definida como uma atividade global que
consiste na troca criativa e eficiente de informações tornadas possíveis pelas
tecnologias digitais. Remix é apoiado pela prática de cut / copy e paste. O conceito
de Remix informa que a cultura do remix deriva do modelo de remixes musicais que
foram produzidos em torno do final dos anos 1960 e início dos anos 70 em Nova
York, com raízes na música da Jamaica. Durante a primeira década do século XXI,
Remix (a atividade de tirar amostras de materiais pré-existentes para combiná-las em
novas formas de acordo com o gosto pessoal) é omnipresente na arte e na música;
Desempenha um papel vital na comunicação de massa, especialmente na nova mídia
(NAVAS, 2012 p.65).
Para Navas (2012), a busca por entender remix como um fenômeno cultural deve
começar por esclarecer sua definição na música. Um remix de música, em geral, é uma
reinterpretação de uma música pré-existente, o que significa que a aura espetacular do original
será dominante na versão remixada. Navas diz que existem três tipos remix: o primeiro,
estendido, que é uma versão mais longa da composição original contendo longas seções
instrumentais para torná-lo mais misturável para o DJ do clube. O segundo é seletivo, que
consiste em adicionar ou subtrair material da composição original. O terceiro reflexivo, que
alegoriza e estende a estética da amostragem, onde a versão remixada desafia a aura
espetacular do original e reivindica autonomia mesmo quando carrega o nome do original.
Materiais podem ser adicionados ou excluídos, mas as faixas originais são largamente
deixadas intactas para serem reconhecíveis.
Dito isso, pretendo associar o conceito de Navas ao centro da minha pesquisa e
mostrar que essa remixagem musical que o autor propõe, também pode acontecer no corpo de
quem dança. Logo o dançarino (a) que remixa necessita de um foco de atenção visual e
74
auditivo sensível. Além disso, precisará de um ambiente propício para a remixagens diversas.
Os dançarinos (as) precisam ter a percepção de movimento, peso, resistência e posição do
corpo, provocado por estímulos do próprio organismo de forma visceral. Utilizo as três
formas de remix citadas à cima para a mesma lógica.
O remix corporal, assim como o musical, parte sempre de um repertório de
movimentos de base. Na proposição de remix corporal, a minha base é tudo o que foi descrito
nos capítulos acima, ou seja, a mistura de referências como as brincadeiras de criança,
capoeira, imitação de MJ, as festas black, a aeróbica, as aulas de danças e o estudo
aprofundado das danças urbanas. A partir dessa base, esboço uma relação entre os 3 tipos de
remix propostos por Navas e o que chamo de remix corporal.
PONTO REMIX
Confissão 7
Penso que somos DJs de nós mesmos, carregamos nas nossas pick-ups movimentos,
sensações, experiências e selecionamos playlist de gestos do nosso fluxo. Controlamos
através do nosso crossfade o que será misturado, colocamos efeitos de cut, breake, scratch
criando estruturas internas. Pode ser numa roda, numa cypher, numa festa, num palco ou na
rua. Gravamos nas nossas miofibrilas o mixtape de movimentos dançantes que combinados,
formam nossa identidade, diante do universo da dança, cultura e arte. Busco compreender a
técnica que não engessa, o estilo que não aprisiona e que liberta para o improviso
consciente. Penso que um Dançarino Remixado é autoral, autêntico, crítico, imprevisto,
sendo o resultado dos cruzamentos constantes que lhe cabem. Reflito que uma boa analogia
seria imaginar um peão em constantes giros, que se parar de girar ele cai. Dançar é assim,
movimento imparável e mutante constante.
palco, na sala de dança ou até mesmo na roda. Um ótimo exemplo são os festivais de dança
que “carregavam o fardo de conferir aos produtores de dança sua consagração ou seu fracasso,
bem como de incitar mudanças no trabalho dos artistas ao fornecerem “dicas” do que deveria
ser melhorado” (GUARATO, 2014 p. 3). Este autor abre a luz para essa busca por legitimação
dizendo:
Por esse viés, diversas formas de dança sofreram e ainda sofrem impactos
socioformais ao se integrarem com a ordem social mais ampla presente nos festivais.
As alterações de ordem formal são, basicamente, resultado da busca por uma
preparação estética cada vez mais “apurada”, exigida no âmbito dos festivais.
Diversos grupos se viram compelidos a promover alterações em sua prática dançante
ao almejar certo acabamento, sincronia, técnica, enfim, elementos apontados naquele
tempo, como necessários para que um grupo ou companhia de dança fosse aceito
como bom (GUARATO 2014 p.3).
Sejam quais forem as instâncias de controle, elas atuam dentro do que chamo de
limitante criativo, no qual o normal é manter o estado das coisas, não transformar, seguir as
regras e uma norma vigente, um professor, um grupo, um método ou um local institucional. O
limitante criativo é percebido nessas situações de poder, na qual aquele que detém a
informação, a instituição e o conhecimento, determina como, quando e de que forma será
dançada a dança e de que forma o corpo pode ou não se apresentar. Percebe-se que há muito
mais em jogo, uma questão econômica inserida nesse contexto de domínio do mais forte sob o
mais fraco economicamente, é uma delas. Por muitas vezes vivenciei atos de controle,
higienização estética da dança, regras sem sentido e julgamentos que me levaram a forjar uma
dança que não era a minha para poder ser aceito em locais artísticos. No entanto, Guarato
(2014) acredita que não é um ato isolado só de cima para baixo, mas também inverso, mesmo
que de forma mais pontual o popular age na mão contrária.
Tanto a dança popular como o campo artístico criam regras internas numa dinâmica
de desenvolvimento “sistêmico”. São pressupostos de uma elaboração de formas
específicas no interior de uma forma geral que incluem gestos, movimentos, espaço,
deslocamentos; ações iniciadas por artistas dentro de uma prática que se tornam
convenções ao estabelecer relações com o público que aceita ou aprende a lidar com
suas propostas (GUARATO 2014 p 17).
É importante deixar bem claro aqui, que não sou contrário à técnica precisa, a
fundamentos de base ou organização corporal, a coreografias bem sincronizadas e definidas,
nem a busca pela consagração em meios fora do contexto popular. No entanto, com essa
pesquisa busco encontrar caminhos de equilíbrio, pois sou favorável às pessoas utilizarem
todo o seu arsenal de experiência, movimentos, oportunidades e criarem a sua própria forma
82
autoral de dançar sem serem julgadas se estão ou não dançando corretamente o estilo que
alguém determinou. Por isso, o Corpo Remixado pode ser uma alternativa inovadora na
criação de novas possibilidades dentro de pressupostos artísticos e metodológicos,
organizando estratégias que tragam uma forma mais aberta do corpo dançante.
Enfim, acredito que a grande contradição está em equilibrar dois pesos: de um lado
da balança está a espontaneidade, o improviso, a imprevisibilidade e o aprendizado misturado,
informal e compartilhado em comunidade; do outro, estão nossos locais legitimados pela
sociedade (os festivais de dança, escolas, editais de dança, eventos de dança, o mercado e a
mídia), que buscam a categorização, a consagração, a comercialização e a segurança como
ferramentas de trabalho. Não julgo se um é mais importante que o outro e sim coloco em
mesmo pé de convívio, pois ambos estão ligados. E é aqui que entra o grande desafio
pedagógico, a estratégia de quem pretende passar a informação adiante, ministrar aulas,
dançar, criar coreografias e espetáculos, a saber: não cair em regras muito rígidas,
fundamentos inquebráveis e conhecimentos fechados.
Cabe inovar formas de criações e de ensino que não sejam tão fixas e sim mais
voláteis, que percebam a diferença, a diversidade de corpos, os rápidos processos de
transformação sócio-político-cultural, as inovações tecnológicas e as inventivas proposições
do ponto de vista das Danças Urbanas. Marques (2004 p. 158), diz em seu artigo que a falta
de metodologia no ensino de dança é preocupante, pois não basta só a experiência artística
para ensinar é necessária uma abordagem metodológica “diferente e diferenciada das que hoje
conhecemos”. Por isso, procuro ter uma visão mais remixada, crítica e consciente das
questões que envolvem o mundo, a dança e o aprendizado.
Confissão 8
A certa altura, já como professor uma aluna me disse que pediram para ela dançar
numa festa da família E ELA NÃO CONSEGUIU. Questionada pelos parentes, ela ficou meio
sem saber o que dizer, porque não tinha música da coreografia pra dançar. Sendo assim, ela
não dançou! Naquela hora pensei: o que eu estou fazendo? Que tipo de aluno estou criando?
Onde está o meu método? Fiz eles dançarem apenas uma coreografia? Só dançam no dia tal,
na hora tal e no lugar tal? Foi um momento de muita reflexão onde eu estava limitando o
poder de improviso dos meus alunos criando apenas coreografias. Chamo de ditadura da
coreografia, determinada por um líder que diz tudo do passo, ao figurino, do ritmo à
expressão facial e corporal. Chamo de dançarinos de coreografias, fixos ao um modelo que
é dado por um líder. Só que eu queria quebrar essas propostas e foi então que comecei a
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“hackear” meu próprio modo de criação coreográfica e meu próprio método de ensino. A
partir dali os movimentos não sairiam apenas de mim, mas de uma criação compartilhada e
horizontalizada da mesma forma como eu aprendi nas ruas, nas festas, olhando vídeos, nas
tentativas de acertos e erros e no jogo.
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e
imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de
comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam
desvinculadas- desalojadas – de tempos, lugares, historias e tradições específicos e
parecem flutuar livremente (HALL, 2006 p. 43).
instantaneidade e superficialidade tornam as ações tão efêmeras a tal ponto que não há como
fugir a esses controles se quisermos estar jogando o jogo.
Deixo a roda com esse Freeze e nessa parada fica implícito que a roda esta aberta para
novas ideias e questionamentos. Abro para espaço para dividir essa minha proposta que é um
campo aberto para novas sugestões, ou seja, agora é com você. Entre na roda e dance!
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ÚLTIMA ENTRADA
Em toda a minha pesquisa parti da seguinte ideia: Como se forma o Corpo Remixado?
Árdua tarefa, pois esse terreno é movediço e inseguro, não se trata de um método passo a
passo, mas sim um processo longo, multifacetado, no qual aponta para esse efeito autoral do
corpo dançante. Logo as definições são imprecisas, tem um conteúdo individual e
diferenciado de cada corpo. Não há como apontar formas mais corretas de atuações ou
definições cabais, já que os processos acontecem aleatoriamente.
Sendo assim, aleatório e de difícil definição, cria-se um grau de resistência e
negação da sua existência no primeiro momento ou a procura por tentativas de simplificar e
categorizar em estilos, formas e métodos mais exatos e conhecidos do bem comum para, desta
forma, visar a comprovação do fato. Normalmente, na tentativa de explicá-lo cairemos em
respostas corriqueiras e terminantes. Todavia, fugindo dessas definições e acreditando que
elas não são tão simples assim, pretendo colocar esse Corpo Remixado dentro do improvável,
subjetivo e abstrato. Aloco a sua expressão artística em questionamentos e provocações para
mostrar o quanto intrincado ela é em nosso mundo moderno, complexo e cada vez mais
rápido e transformado. Logo, a manifestação do Corpo Remixado pode ser imprevisível,
ocasiona resultados impactantes e, após sua ocorrência, inventamos um meio de torná-lo
menos emaranhado. Assim, acredito que os elementos facilitadores que delineei não são a
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explicação do fato, mas a constatação do fato. São os norteadores que indicam a sua
existência.
Através desta pesquisa procurei trazer os elementos que favoreçam para que essas
perguntas sejam respondidas, me colocando como testemunha dos acontecimentos e dando a
minha versão pessoal da história, mas também mostrando o quanto da minha corpografia
urbana e as minhas diferentes temporalidades contribuíram para a construção da minha arte e
me proporcionaram uma atitude diante de todos os ambientes em que tive a oportunidade de
atuar. Hoje sou dançarino, coreógrafo e professor, mas também pesquisador produtor e
empresário, sou várias coisas ao mesmo tempo. Eu busquei mostrar que como a água somos
adaptáveis a situações diversas e aferi os elementos que mais propiciam para ter essa proposta
remixada. O equilíbrio entre auto- expressão e regras estruturadas do mercado está na
inquietude desse corpo remixado, nessa forma de resistir ao estado das coisas e parte de um
debate que já vem acontecendo, com fóruns na internet, vídeos no youtube, tutoriais online,
literaturas, documentos, palestras e mesas redondas em eventos voltados só para as Danças
Urbanas22. Isso ajuda a criar uma rede infinita de novas possibilidades, facilitando assim o
equilíbrio entre as partes. A modulação a cada situação, tempo e local é feita individualmente.
Controlar ou definir o que está sendo feito não é o propósito, porque o futuro é remixar. Pois a
ideia de criar a identidade fixa é, antes de mais nada, egoísta e dominadora, retendo o corpo
dançante em algum lugar, no limitante criativo.
O Corpo Remixado pode atuar em qualquer ambiente abrindo até mesmo um mercado
de possibilidades na cena artística, sem levar rótulos ou estilos. É possível que surja o
controle, as audições e os regramentos, porém o Corpo Remixado não tem definição, não tem
nem um corpo definido, pois ele é tudo e nada ao mesmo tempo. E isso é o que fascina
quando olhamos alguém dançando e não conseguimos definir exatamente o que dança, cheio
de nuances, mistérios e provocações. A título de exemplo visual e mais emblemático, aponto
o artista, cantor e dançarino Michael Jackson com sua dança marcante, tão pessoal e remixada
que não há como defini-la em um estilo exato. Cito outros exemplos de artistas das Danças
Urbanas, que trazem na sua remixagem corpos que não estão inseridos em nenhum estilo e
mesmo assim ganham força no mundo a fora, exemplos como:
Michael Jackson
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“Painel Danças Urbanas” foi um evento que criei para discutir o mercado e o ensino das Danças Urbanas em
Porto Alegre, contando com três edições.
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https://www.youtube.com/watch?v=Y_3B85387z4
Les Twins (Paris)
https://www.youtube.com/watch?v=tr9GX5Vh8u8
Tiago Montalti (Brasil)
https://www.youtube.com/user/Tiagomontalti
Paris Goebel (Nova Zelândia)
https://www.youtube.com/results?search_query=paris+goebel
Salah (Paris)
https://www.youtube.com/watch?v=NThDZHgNyUE
Gabriela Chultz (Brasil)
https://www.youtube.com/channel/UCFr66TKVXIlfK_7XgWYWdxw
Esses são bons exemplos em mostrar que o estilo autoral pode ser uma forma de estar
no mercado, sem perder suas características através das legitimações que dele provem e
deixar a sua marca registrada nele.
Portanto carrego no meu corpo uma reflexão histórica, uma escrita de mim e do
alegórico dentro de um campo de batalha da incerteza da dança, do tempo, da
imprevisibilidade dos acontecimentos e da capacidade de adaptação. Ser remixado é estar em
conexão com o mundo moderno repleto de improbabilidades. Acredito que dessa trajetória
ficou o desejo de voltar à roda, de completar um ciclo de práticas e trazer para o centro dela as
minhas indagações muitas vezes sem respostas. Dessa maneira deixo aqui o Manifesto do
Corpo Remixado que resume a proposta “livre” de um corpo que expõe tudo. Pode ser
utópico, mas o que é a utopia se não uma forma de nos colocar no jogo e nos impulsionar para
a nossa arte?
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B-Boy/B-Girl– quem dança “break dance” ou faz “b-boying”, abreviatura de break boy
Block Party: é uma festa de rua para todos os residentes do bairro ou vizinhança.
Cross fader – da mesa de mixagem está no meio, os dois trechos tocam juntos. (controle da
mistura),
Cypher - Na cultura da dança é uma espécie de show informal durante uma festa de dança
social. Os dançarinos se revezam mostrando suas melhores performances. A maioria se forma
de forma orgânica e espontânea quando a energia e o humor estão certos.
DJ- Disc Jockey. Artista-técnico que mistura músicas diferentes ou iguais para ser ouvida
e/ou dançada, usando suportes como vinil, cd ou arquivos digitais sonoros.
Freeze – Um dos fundamentos do Breaking que consiste em uma parada o pose súbita no
meio ao final de cada performance do b-boy ou b-girl.
Mixar- Misturar. Na técnica do DJ, significa juntar as batidas de duas ou mais músicas na
mesma velocidade, nas mesmas bpms, buscando uma fusão ou uma passagem de uma música
para a outra.
Remixar - Reeditar uma música em novo estilo, em nova tipo de batida. Fazer nova versão.
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Sample- Trecho retirado (recortado) para posterior colagem a outros trechos (podendo ser
voz, música, imagem...)
Sound System : sistema de som (em português do Brasil) é o nome usado para designar
conjuntos de altifalantes ou caixas de som, amplificadores e gira-discos ou toca-discos que
são utilizados para tocar música, normalmente em espaços abertos.