Você está na página 1de 4

FICHA DE TRABALHO - 12.

º ANO

UNIVERSO POÉTICO PESSOANO: ENTRE A SINGULARIDADE E A PLURALIDADE

1. Identifica, nos excertos abaixo, a voz poética que assume o discurso lírico (Pessoa ortónimo, Alberto Caeiro,
Ricardo Reis ou Álvaro de Campos), registando o seu nome na primeira coluna.
1.1. Aponta, preenchendo a coluna da direita, traços (temáticos, formais, estilístico-discursivos) que sustentem essa
identificação.
“EU” Fragmentos poéticos Traços identitários da voz poética

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois


Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.

Anjos ou deuses, sempre nós tivemos,


A visão perturbada de que acima
De nós e compelindo-nos
Agem outras presenças.

Esta velha angústia,


Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Aceito por personalidade.


Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de querer compreender demais,
Nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência,
Nunca ao defeito de exigir do Mundo
Que fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo.

Não sei quantas almas tenho.


Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos


E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.

Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.

Pobre velha casa da minha infância perdida!


Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.

Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver


Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as cousas,
Perante as cousas que simplesmente existem.

Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!

Procuro dizer o que sinto


Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.

1
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Nada sou, nada posso, nada sigo.


Trago, por ilusão, meu ser comigo.
Não compreendo compreender, nem sei
Se hei de ser, sendo nada, o que serei.

Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.


Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,


Que felicidade há sempre!

Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.


São felizes, porque não são eu.

Quem bate à minha porta


Tão insistentemente
Saberá que está morta
A alma que em mim sente?

Cansa ser, sentir dói, pensar destrui.


Alheio a nós, em nós e fora,
Rui a hora, e tudo nela rui.
Inutilmente a alma o chora.

Temos todos duas vidas:


A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Tudo, menos o tédio, me faz tédio.


Quero, sem ter sossego, sossegar.
Tomar a vida todos os dias
Como um remédio,
Desses remédios que há para tomar.

Bem sei que há ilhas lá ao sul de tudo


Onde há paisagens que não pode haver.
Tão belas que são como que o veludo
Do tecido que o mundo pode ser.

Não me importo com as rimas. Raras vezes


Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra,
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior.

Sofro, Lídia, do medo do destino.


Qualquer pequena coisa de onde pode
Brotar uma ordem nova em minha vida,
Lídia, me aterra.

Meu coração é um pórtico partido


Dando excessivamente sobre o mar.
Vejo em minha alma as velas vãs passar
E cada vela passa num sentido.

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio


E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Antes isso que ser o que atravessa a vida


Olhando para trás de si e tendo pena...

2
Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Não tenhamos melhor conhecimento


Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.

Meu velho Walt, meu grande camarada, evohé!


Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus
sonhos,
[…]

Com que ânsia tão raiva


Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.

E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!


Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, coletores, válvulas;
Caí por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão! […]

Mares, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar!


Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh eh-eh! Tudo canta a gritar!

EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!

Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.


Senti demais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim.
[…]
E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim.

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. […]

(Come chocolates, pequena;


Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas


Seu prazer posto, nenhum dia nega
A natural ventura!

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: –


As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.

3
Onde pus a esperança, as rosas
Murcharam logo.
Na casa, onde fui habitar,
O jardim, que eu amei por ser
Ali o melhor lugar,
E por quem essa casa amei -
Deserto o achei,
E, quando o tive, sem razão para o ter

A vida é pouco e cerca-a


A sombra e o sem-remédio.
Não temos regras que compreendamos,
Súbditos sem governo.

Circunda-te de rosas, ama, bebe


E cala. O mais é nada.

Poder rir, rir, rir despejadamente,


Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.

Como se cada beijo


Fora de despedida,
Minha Cloe, beijemo-nos, amando.

E um só momento nos sentimos deuses


Imortais pela calma que vestimos
E a altiva indiferença
Às coisas passageiras

A criança que fui chora na estrada.


Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

A recordação é uma traição à Natureza,


Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

Multipliquei-me, para me sentir,


Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

Ah, na minha alma sempre chove.


Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuto, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim...

Sinto uma alegria enorme


Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

A espantosa realidade das coisas


É a minha descoberta de todos os dias.

Você também pode gostar