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OLIVEIRA, Enjolras de. O processo de criação em O Som dos Passos.

Salvador:
Universidade Federal da Bahia. Universidade do Estado da Bahia; professor substituto;
CAPES. Diretor, dramaturgo, ator, contador de histórias e pesquisador musical.

RESUMO – A descrição do processo criativo de uma encenação pode ser realizada, em parte,
através da identificação de questões cognitivas e afetivas nas quais emoções, ideias e
imagens mudam de prevalência durante o percurso de criação de um espetáculo. Dessa forma,
procuramos rever os princípios e procedimentos que nortearam a encenação de O som dos
passos – Footfalls, 1976, de Samuel Beckett, peça dirigida em 2004 pelo autor deste artigo.
Procura-se repensar essa montagem, a partir de seu processo de criação, da sua revisitação
e da sua gênese por meio da crítica genética. Este artigo reflete sobre os rastros, os vestígios
e as reminiscências deixados pela encenação. Faremos um exercício de algumas memórias,
que serão evocadas e documentadas, referentes ao processo criativo da encenação, com fins
de reunir e resgatar o que foi pensado naquele momento.

Palavras-chave: Beckett. O som dos passos. Teatro. Encenação. Crítica genética.

The process of creation in O som dos passos

ABSTRACT - The description of the creative process of a staging can be accomplished, in part
by identifying cognitive and affective issues, in which emotions, ideas and images change
dominance during the creating of the staging. In this way, we seek to review the principles and
procedures that guided the staging of O som dos passos – Footfalls, 1976, by Samuel Beckett,
direct in 2004 by the author of this article. It seeks to rethink this montage, from its process of
creation, its revisitation and its genesis through genetic criticism. This article reflects on the
traces, traces and reminiscences left by staging. We will do an exercise of some memories,
that it will be made and documented, related to the creative process of the staging will be
invoked, in order to gather and rescue what was thought at that moment.

Keywords: Beckett. Footfalls. Theater. Staging. Genetic criticism.

Will you never have done? Will you never have done... revolving it all? [Pause.] It? [Pause.] It all. [Pause.]
In your poor mind. [Pause.] It all. [Pause.] It all1.
Footfalls, Samuel Beckett

O som dos passos2 é uma tradução brasileira da peça Footfalls, escrita em 1976 por
Samuel Beckett e que foi montada em 2004 pelo autor desse artigo. Um texto de um ato para
duas atrizes que versa sobre a memória. O autor criou um texto no qual uma mulher sozinha
labora com o que talvez sejam suas memórias. No que aparentemente seria o enredo, a
personagem Alice não consegue desligar-se do passado; tampouco se relaciona com o mundo
lá fora: vive aprisionada em um lar onde defronta-se com seus fantasmas, caminhando
obsessivamente de um lado para o outro em um corredor bem limitado, apenas ouvindo o som
de seus próprios passos e expressando suas angústias e pensamentos, enquanto traz à tona
fragmentos de memórias que agonizam em sua “cabecinha”. Alice, que dedicou sua vida a
cuidar da mãe, apela para a voz em off, cheia de ressentimentos, desta que, contudo, já está
morta.
Em 1931, Beckett lança um ensaio, Proust, sobre a recém-concluída obra Em Busca do
tempo perdido, do francês Marcel Proust O autor irlandês debruça-se sobre os sete volumes
do romance de Proust e verifica a importância e a construção da memória neles. Segundo
Beckett, Proust chama de “memória involuntária”, quando:

Em casos extremos, a memória está ligada tão diretamente ao hábito que sua palavra ganha corpo e, ao
invés de simplesmente disponível em casos de urgência, entra agora em vigor por força do hábito. [...].
Estritamente falando, só podemos lembrar do que foi registrado por nossa extrema desatenção e
armazenado naquele último e inacessível calabouço de nosso ser, para o qual o Hábito não possuía a
chave [...]. (BECKETT, 2003, p. 30-31)

A memória involuntária pode ser desencadeada por meio de um pedaço de madeleine


(biscoito francês), que Swam, personagem de Proust (1991), no livro Em busca do tempo
perdido, come. Dessa situação, as lembranças aparecem, as recordações vêm a superfície da
consciência ou podem ser abandonadas por tanto tempo que acabam desagregando-se como
nosso passado. Para Proust, é um “ trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de
nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e de seu alcance,
em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem
suspeitamos. ” (PROUST, 1991, p. 50). Beckett refere-se à “memória voluntária” em Proust
como aquela memória que não é propriamente memória, mas como se fosse uma consulta ao
“índice remissivo do Velho Testamento do indivíduo”: “ Esta é a memória uniforme da
inteligência; é de confiança para a reprodução, perante nossa inspetoria satisfeita, daquelas
impressões do passado formadas por ação consciente da inteligência. ” (BECKETT, 2003, p.
32).

Pode-se ler, nas entrelinhas dessa publicação na qual Samuel Beckett versa sobre o
tempo, o hábito e a memória como matéria da vida humana na obra proustiana, a defesa de
sua própria poética vindoura. Também podemos estabelecer uma relação com as memórias
relacionadas ao processo criativo de O Som dos passos, elas podem ser voluntárias ou
involuntárias.

Sabemos que a memória é fio condutor, leitmotiv do adentramento nos escritos de


Samuel Beckett, assim como um tema de grande valor em leituras literárias, musicais, fílmicas,
televisivas, visuais, arquitetônicas, entre outras. Beckett representa a expressão do absurdo
da vida e do homem num universo ilógico, irracional, sem sentido. Em face dessa falta de
sentido da vida, o homem beckettiano procura reconstruir sua memória, fazendo submergir
obsessões, sonhos e imagens encontradas no inconsciente. Também tenta existir juntando os
vestígios, os cacos e os resquícios de memórias, que estão sempre se esvaindo, e procura
manter uma certa lucidez num mundo estúpido, cruel, em desmemória. Uma memória que
sempre falha, que vive de fragmentos, de restos, de lampejos e de imagens do passado.

Podemos criar um paralelo dessa tentativa do homem beckettiano de unir tudo que é
capaz de esvair-se no tempo e de juntar as memórias deixados pela peça citada, para
abordarmos o processo criativo da montagem de O som dos passos3 (nome dado a Footfalls,
em português pelo tradutor). Propomos o exercício de reunir memórias, lembranças e imagens
do espetáculo realizado há 15 anos e que não ficaram perdidas no tempo. Essa estratégia
procede da necessidade de repensar a sua concepção poética e alinhar a memória da
montagem.
Samuel Beckett foi um dos artistas dos quais sabemos que registraram parte de suas
concepções e métodos no processo criativo em cadernos de direção, notabilizando-se por sua
severidade quanto à fidelidade a suas palavras e rubricas (MARFUZ, 2013). Foi a partir de
1975 que Beckett passou a dirigir suas próprias peças e eram seus assistentes que anotavam
todas as indicações do processo criativo, fornecendo, assim, a documentação de uma
memória dessas mises-en-scène. Após essa experiência, Beckett passou a escrever suas
peças com orientações e determinações rígidas na rubrica ou nos seus cadernos de direção,
nos quais se encontram indicações de como algumas peças deveriam ou poderiam ser
representadas. Seguir ou não o que alguns críticos consideram, em Beckett, formalismo, acaba
levando o artista cênico a uma situação insólita: como essas determinações de quando Beckett
passou a dirigir suas próprias peças possam ser traduzidas em leituras pessoais?

Para nós, artistas e/ou pesquisadores, uma forma de analisar os documentos


pertencentes ao processo de criação e o fazer artístico acontece por meio da crítica genética,
que é um caminho para compreender as escolhas tomadas pelo artista para chegar à
finalização de uma obra e entender o seu ponto de partida. Cecilia Almeida Salles (1998)4
afirma que uma obra costuma nascer de um investimento de tempo, energia, persistência,
dedicação e disciplina da parte do artista, além das transformações que sofrerá desde sua
gênese até sua finalização provisória ou definitiva, passando por processos de desistências,
correções, abandonos, crises, entre outros. O que a autora considera como gesto inacabado
é quando a obra é entregue para apreciação pública, sendo que a partir daí a obra pode passar
por interferências, ser permeada por leituras, como desse a impressão de estar pronta, embora
finalizada pelo artista. Os documentos do processo, que serão analisados para compreender
o processo criativo, podem ter uma origem recente ou distante, como na própria gênese da
construção da obra. Para O som dos passos, o trabalho torna-se um pouco insólito por causa
da distância de quinze anos da sua encenação.

Luiz Marfuz traz um questionamento sobre qual tempo Beckett está propondo – “ [...] se
é a ação da memória para fugir do esquecimento ou se é o esquecimento que é acionado para
atrair a memória. ” (MARFUZ, 2013, p. 58) – por conta de que o presente se apresenta como
uma sucessão de eventos que impossibilitam definir qual é o tempo de que se está falando. A
força do pensamento que ainda se faz presente para, de alguma forma, marcar uma existência.
As personagens lembram e rememoram para dar a impressão de que existem. Também
podemos imaginar que a personagem anda apenas para ouvir o som dos próprios passos e,
assim, preencher o vazio de sua existência, ou que as passadas fazem parte de um jogo para
passar o tempo, como em outras peças de Beckett.

V5 – [...] Até que uma noite, ela ainda era uma criança, ela chamou a mãe dela e disse, Mãe, isso não
basta. A mãe pergunta: Não basta? Alice – esse era o nome dado à criança – Alice diz: Não basta. A mãe:
O que é que você quer dizer com isso, Alice, o que é que você quer dizer, não basta? E Alice: Eu (es)tou
dizendo, Mãe, que eu quero ouvir os meus passos, por menor que seja o som. A mãe: O movimento só
não basta? E Alice. Não, Mãe, o movimento só não basta, eu quero ouvir os passos, por menor que seja o
som.6 (BECKETT, 2013, p. 03)

A construção dos passos dados pela encenação analisada depende do modo como
memórias voluntárias e involuntárias, esquecimentos, elipses e lacunas no tempo permitam
realizarem-se as conexões necessárias para a construção da crítica genética do espetáculo,
sendo sempre movediço um tal percurso. Para Salles (2008), a Crítica Genética procura tecer
o fio da história ao tentar reconstruir os passos criativos; encontrar o fio de Ariadne ao
enveredar pelos labirintos da criação. Quando procuramos resgatar as memórias e
acompanhar os rastros da criação, estamos procurando retirar a obra do inexplicável ou
ininteligível, ao tentar se aproximar dos meandros de um processo de criação.

A Crítica Genética não consegue abarcar todo o percurso criativo, porque não tem acesso
ao processo inteiro. Por isso, também recorremos à memória para poder ampliar ideias,
concepções, teorias e justificativas sobre o processo de criação. Para Yates, as memórias
costumam ser reativadas através da “[...] imaginação em lugares da construção que foram
memorizados. Isso feito, tão logo a memória dos fatos precise ser reavivada, percorrem-se
todos esses lugares sucessivamente e pede-se a seus guardiões aquilo que foi depositado em
cada lugar. ” (YATES, 2007, p. 19). Nossa memória é seletiva: nem tudo é lembrado, nem tudo
é guardado. Podemos não lembrar de todas as memórias, nem todas são realmente memórias,
somos capazes de inventar e criar certas lembranças que correspondem a falsas memórias.
Também podemos incluir novos elementos numa memória antiga ou deturpá-la.

Com relação a Footfalls, Beckett especifica os detalhes do conjunto de iluminação, som,


movimentos e falas no caderno de direção, pois não estavam definidas nas rubricas. Por
exemplo, ele delimitou, em sete segundos, o som dos sinos, assim como os movimentos de
intensificação e eliminação da luz. Beckett indica nas rubricas que deve haver o som de um
sino na abertura da peça, na segunda parte, quando inicia o monólogo da mãe, na terceira
parte, quando começa o monólogo da filha, e ao fim da peça. Esse som da badalada foi
adaptado em nossa montagem de O som dos passos para três toques, que poderiam ser
remetidos às três clássicas batidas no início de um espetáculo de teatro.

A partir desse texto, o dramaturgo torna-se flexível quanto à importância que dava às
suas indicações. Ele escreve ou reescreve “... a cena diretamente no palco, ciente das
limitações e condições específicas desta escritura”. (RAMOS, 1999, p. 86). Outra mudança
significativa de Beckett: ao escrever o texto delimitou em sete passos a movimentação da atriz
no corredor de luz, mas ao dirigir a peça, percebeu que sete passos não seriam suficientes, e
acrescentou-lhe mais dois passos. Essa escolha fez com que Beckett reescrevesse o texto
com nove passos.

Por esse motivo, podemos inferir que o Beckett encenador também se rebelava contra o
Beckett dramaturgo, o das rubricas precisas. O encenador poderá eventualmente sentir-se
livre para procurar soluções que melhor convertam o texto em prática cênica. Numa possível
tentativa de compreensão da mudança na indicação referente à quantidade de passos feita
por Beckett, pode-se estimar a porção de espaço percorrido pela atriz e a duração do percurso
para cada lado, assim como decidir quanto aos efeitos de iluminação produzidos sobre o corpo
da atriz. A contagem de passos e segundos poderia também sugerir ao encenador pensar
mais sobre sua relevância do que sobre sua quantidade.

Para criar o som produzido por seus passos, eu e as atrizes refletimos sobre quais seriam
os sapatos que uma delas usaria para fazer o papel da filha, como seriam as suas pisadas e
locomoção sobre o tablado. A atriz Iami Rebouças trouxe uns sapatos e teve a ideia de adaptá-
los com placas de madeira e pregos no solado, como aqueles produzidos para aulas de
flamenco ou sapateado a fim de produzir o som pretendido audível para o público (Figura 01).
Ensaiamos com esses sapatos que faziam o som necessário para que o público pudesse ouvir
os passos. Os nove passos então foram audíveis e reproduziram o som que queríamos. Numa
das apresentações, houve um espectador, amigo pessoal da atriz, que ouviu apenas oito
passos. A explicação que demos na época, para a situação dele não ter ouvido os nove
passos, era o fato de que a barra do casaco, que se arrastava ao chão, ficou por baixo do
sapato numa das pisadas.

Figura 01. Os sapatos da atriz Iami Rebouças.

Foto: Márcio Lima.

O som dos passos inicia com a atriz Iami Rebouças em cena. Quando a operadora de
som, Isabela Silveira, tocava o sinal para a entrada do público, a atriz estava estática na ponta
do corredor de luz. Ela permanecia todo o tempo imóvel até o terceiro sinal (Figura 02) e se
movimenta apenas após a seguinte rubrica de Beckett: “Sobe o pano. Palco em black-out. Um
único sino distante. Pausa até que o eco do som do sino desapareça. Luz fraca na faixa da
caminhada. O resto no escuro. Vê-se M caminhando para a esquerda. Meia-volta à esquerda.
Caminha mais 3 percursos. Pára voltada para a direita. Pausa.”7 (BECKETT, 2013, p. 01). Uma
mudança realizada foi referente à indicação do dramaturgo quanto à uma única batida.
Usamos três toques de sino como referência às três batidas do teatro e também por causa do
efeito de sua sonoridade sobre o silêncio na cena.

Figura 02. Atriz Iami Rebouças no início do espetáculo.


Foto: Márcio Lima.

A atriz levava em média dezesseis segundos para dar os noves passos e, assim,
realizava um percurso de forma contínua, sem interrupção. Podemos verificar também, no
vídeo da peça, que a atriz desliza o sapato, no sexto passo, ao fazer o quarto percurso. Após,
ela para nessa primeira trajetória e chama pela mãe. As duas personagens tentam conversar
e estabelecer um diálogo que pode tanto ser um fio de uma experiência vivida, onde podemos
compreender o que se passou com a filha, desde quando ela começou a andar de um lado
para o outro, ou tudo que é dito não é mais que fruto da imaginação. Inicialmente, o público
não percebia a presença da mãe, pois o refletor só era ligado após o primeiro chamado da
filha:

M – Mãe. [Pausa. Mesmo Volume] Mãe.


V – Diga, Alice.
M – A Senhora (es)tava dormindo?
V – Profundamente. [Pausa] Eu te ouvi no meu sono profundo. [Pausa] Nenhum sono é tão profundo que
eu não possa te ouvir. [Pausa. M volta a caminhar. Quatro percursos. Após o primeiro, em sincronia com
os passos.] Um dois três quatro cinco seis sete oito nove meia-volta um dois três quatro cinco seis sete
oito nove meia-volta. [Quarto percurso livremente.] Por que você não tenta dormir um pouquinho? [M pára
voltada para a direita. Pausa.]8 (BECKETT, 2013, p. 01).

A luz sobre a mãe era mínima. Ela estava quase todo o tempo sob o efeito de uma
iluminação que deixava sua imagem meio irreal. O som dos passos poderia ser realizado como
um monólogo. A filha apenas ouviria a voz da mãe, enquanto anda de um lado ao outro.
Segundo a indicação de Beckett, “WOMAN’S VOICE (V) from dark upstage” (1990, p. 399), a
mãe não se faz presente na cena, sua voz surge em off e deve aparecer como se fosse do
alto. Houve uma encenação, nos EUA, que mostrava a cabeça da mãe numa parte mais alta
do espaço cênico; já em outra, por um erro técnico, um refletor acendia e apagava, criando um
equívoco e um acerto, pois os críticos viram como uma grande ideia para simbolizar a mãe
ausente. Diante da relação de poder, que faz parte de outras peças de Beckett, a voz da mãe
tornou-se extremamente forte para não ser materializada. Diante disso, nessa montagem de
2004, o diretor decidiu pôr a mãe (interpretada pela atriz Sonia Rangel) em cena como se
estivesse viva.

Rompemos com as indicações criadas pelo Beckett dramaturgo/diretor, essa torna-se um


forma de se gerar diversos olhares sobre a visão da sua obra. Assim, é possível alimentar uma
profusão de concepções em relação ao que se vê e ao que se acredita que sua obra revela.
Cada diretor pode apresentar um novo olhar sobre o mesmo autor; e esse desvio pode ser
justificado pelos próprios passos do Beckett artista, na medida em que o mesmo modificava o
texto a partir do que produzia no palco.

Quando coloquei a mãe em cena, tive a noção que estava mexendo com um cânone e
poderia receber muitas críticas em relação a isso. Mas o desejo de mexer com alguma
indicação cênica de Beckett, tornava-se atrativo porque era uma mudança na forma, uma
transformação visual, mas o espírito e a atmosfera da sua obra artística propunha deixá-la
intocável. Isso é o que mais desejava. No processo criativo, procuramos trabalhar com
movimentos mínimos, tendendo à imobilidade, mas que tivessem a densidade, a força e a
beleza da poética beckettiana.

A mãe quase imóvel, sentada numa cadeira, era uma forma, também, de se fazer uma
referência a Cantiga de ninar [no original Rockaby, outro monólogo de Beckett] onde uma
mulher rememora sua existência numa cadeira de balanço que foi da sua mãe, da sua avó e
agora é sua (Figura 03). Esse tipo de escolha na encenação levou-me a reforçar certas
imagens do universo beckettiano, e proporcionou a Iami Rebouças um diálogo em que se
constata o desconforto, o esvaziamento e o “ [...] o joguete de situações que [a personagem]
não controla e das quais emergem as falas [...] ” (MARFUZ, 2013, p. 24).

Figura 03. Atriz Sonia Rangel.


Foto: Márcio Lima.

A personagem de Sonia Rangel só fala nos momentos em que está imóvel em cena. Há
uma grande contenção nos gestos da atriz. Eles são quase mínimos, tornam-se plenos de
lirismo, diante da delicadeza com que a atriz Sonia Rangel movia-se na sua quase imobilidade.
Não há construção de movimentos, gestos ou ações quando ela fala. Os movimentos só
surgem nos momentos em que Alice ouve a voz da mãe ou nos seus tempos de silêncios.

M – Continuação [Pausa. Começa a caminhar. Ainda mais devagar. Após 2 percursos pára voltada para a
direita. Pausa.] Continuação. Um pouco depois, quando ela já tinha quase esquecido, ela começou a –
[Pausa] um pouco depois, como se ela nunca tivesse sido, isso nunca tivesse sido, ela começou a
caminhar. [Pausa] 9 (BECKETT, 2013, p. 03)

Beckett confere força e forma a uma obra carente de apelos de trama e conflito. Footfalls
é uma peça atemporal, cheia de silêncios, sons e respirações. Um delicado drama repleto de
imagens sonoras, líricas e misteriosas, numa encenação ritualística que se concentra no poder
das imagens citadas, provocando uma experiência estética desafiadora, para quem faz e para
quem assiste. Há uma religiosidade presente, uma referência ao Filho que veio sofrer em nome
do Pai, reforçando o sofrimento da personagem. “Fugia ao cair da noite e entrava na igrejinha
pela porta de trás, sempre trancada naquela hora, e caminhava, de um lado pro outro, de um
lado pro outro, nos braços crucificados Dele.” (BECKETT, 2013, p. 03).

Outra questão que a escrita de diálogos levanta é a relação entre palavra e ação.
Podemos pensar a partir do autor/diretor/professor Luiz Marfuz (2013) que examina os
procedimentos de Beckett como autor e encenador. Marfuz defende a ideia da “poética da
implosão em Beckett” justificando-a nas escolhas do dramaturgo/diretor ao zombar da ação -
onde ela deveria existir - por meio da inércia, gestos minimalistas para contradizer o
movimento, o silêncio que se instala quando não há mais voz, entre outros. Beckett desmonta
os alicerces da dramaturgia clássica na proposição do seu novo teatro. “Entenda-se a noção
geral de implosão como um conjunto de pequenas explosões que, combinadas, direcionam
seus efeitos para um ponto central, fazendo com que determinada estrutura entre em colapso
e debate; com isso, o todo se fragmenta e se transforma em ruínas ao atingir o solo.”
(MARFUZ, 2013, p. XXIII).

Como os personagens beckettianos recorrem ao uso contínuo da memória como uma


tentativa de restabelecer uma conexão com um mundo sujeito a mudanças constantes,
percebemos, nos diálogos, como o dramaturgo evita o estabelecimento de uma situação
dramática convencional: não há conflito, não há exposição, não há troca de informação para
estabelecer um diálogo que mova a intriga. O campo comunicacional não leva a movimentar
a ação por uma perda completa de sentido nas palavras, a própria instituição dramática do
diálogo desmorona. Uma fala não exerce ação dramática sobre a outra, e, também fugindo ao
cânone do diálogo, as falas, após algumas modificações, poderiam ser emendadas numa
única sequência de monólogo, como num fluxo de consciência.

Os personagens perdem o sentido do que dizem, repetem as falas por esquecimento de


que já foram proferidas anteriormente ou julgam não terem sido ouvidos, levando-os a uma
constante repetição. E essa aparente incompreensão do que é dito, e do que é levado ao palco
torna-se um desafio para a direção e para o elenco. Trabalhamos a repetição em O som dos
passos por meio de um exercício intenso de como cada frase repetida seria pronunciada.
Resolvemos esquecer certas pontuações para mudar certos tempos e ritmos da frase. Por
exemplo, na frase “ Quero, mas agora não. ”, trocou-se a vírgula de lugar a cada vez que a
atriz respondia à personagem da filha. Sonia Rangel, a mãe, enfatizou, na interpretação, cada
palavra de forma diferente, fragmentando a frase e deslocando a pontuação para outro lugar
diverso do que havia sido feito antes.

É possível interferir na construção beckettiana de uma forma que não se trai a obra do
dramaturgo. O ritmo, a intensidade, a musicalidade dada à palavra é designada por indicações
precisas de Beckett em seus cadernos de direção. Mas a leitura pode ser pessoal, e existem
tantas outras possíveis, tantos outros olhares que se debruçam sobre cada fala e cada gesto
a sua maneira, sem tirar o sentido ou os sentidos que a obra propõe.

M – A senhora quer que eu lhe dê outra injeção?


V – Quero, mas agora não. [Pausa]
M – A senhora quer que eu mude a sua posição de novo?
V – Quero, mas agora não. [Pausa]
M – Quer que eu ajeite os travesseiros? [Pausa] Que eu mude o lençol? [Pausa] Que eu te dê a aparadeira?
[Pausa] A bolsa de água quente? [Pausa] Quer mudar os curativos? [Pausa] Um banho? [Pausa] Molhar
os lábios? [Pausa] Quer que eu reze com a senhora? [Pausa] Pela sua saúde? [Pausa] De novo. [Pausa]
V – Quero, mas agora não. [Pausa]10 (BECKETT, 2013, p. 01-02)

A filha Alice está presa a uma faixa do espaço cênico em que ela só pode dar nove
passos, ida e volta, nesse corredor de luz. Apenas fala enquanto caminha, fala apenas por
falar, como se isso a ajudasse a se sentir viva. Consegue estabelecer uma relação com a
memória e o passado – a mãe. Os passos e tudo que remexe na sua cabecinha tornam-se
uma forma de criar um falso diálogo com a mãe e consigo mesma.

A fala em Beckett torna-se anteparo para a ação, ao mesmo tempo que a nega. A fala
torna o personagem inerte para que ele apenas fale; a fala entra no lugar do gesto e do
movimento. Percebemos a partir dessa hipótese defendida o quanto Beckett, nos seus “modos
de fazer e des-fazer”, cria antagonismos entre palavra e ação, mas que mantém o controle de
toda a cena. Beckett retoma o poder que tem a palavra e decompõe a personagem, levando a
uma construção de “ diálogo às avessas ” (MARFUZ, 2013).

Pensar esse jogo de palavra e ação e tentar traduzi-lo para a cena, levou-me a um
exercício constante de como poderia se realizar a encenação de O som dos passos (Figura
04). Nesse jogo de palavra e ação, em que uma não corresponde imediatamente e
especificamente à outra, podemos ainda constatar na argumentação de Marfuz que “ a fala
não se integra necessariamente à ação como recurso para progressão do diálogo nem
tampouco se traduz em enunciado que legitime o enunciador. ” (MARFUZ, 2013, p. 23). O
autor diz que não se pode tomar como verdade aquilo que é dito por meio das falas dos
personagens.

Figura 04. As atrizes Iami Rebouças e Sonia Rangel.

Foto: Márcio Lima.

Segundo Beckett, Footfalls é "teatro de câmara" e deve ser realizado como tal. Ele
concebe “ ... o texto como partitura musical em que as palavras são notas, as quais têm seus
ritmos sublinhados ou reafirmados por meio de ecos sonoros ou visuais. ” (RAMOS, 1999, p.
84). A musicalidade impressa no som dos passos, do sino, da repetição de frases e palavras,
as interrupções, as pausas e longos silêncios convergem em uma possível melodia, cheia de
imagens sonoras e líricas. Na concepção desse espetáculo, procuramos enfatizar esse
“concerto” através da musicalidade das palavras, que se fazia presente de forma determinante
como a mudança das batidas de sino. Também com a movimentação corporal das duas
atrizes. Iami Rebouças, no corredor de luz, cansava-se aos poucos, seu corpo ia se curvando
e seus passos ficavam mais lentos e Sonia Rangel com sua movimentação minimalista quase
como em um Teatro Nô. Suas mudanças eram gradativas de acordo com o som dos sinos e a
luz que diminuía.

A simplicidade é um grande mote para o trabalho com essa peça em um ato de Beckett.
Como ser simples, aqui e agora, é o desafio de cada versão de um texto beckettiano, sendo
necessário pensar em questões muito complexas para atingir tal despojamento. O desejo de
seguir trabalhando com Beckett alimenta-se de sua extrema simplicidade, da sisuda beleza de
suas cenas e palavras e da economia de signos que acontece em seus textos teatrais.
O processo criativo, assim como o recurso à crítica genética, leva em conta as memórias
afetivas que tenham perdurado e as mais relevantes no desenvolvimento do trabalho. Eu,
como artista e pesquisador, pretendo tornar o movimento do processo criativo legível e revelar
alguns dos sistemas responsáveis pela geração da obra, quando procuramos refazer, com o
material que possuímos, a gênese da obra e também quando descrevemos os mecanismos
que sustentam essa produção. Esse pensamento perpassa pelas ideias que Salles(1998)
levanta sobre o processo de criação. Portanto, quando o pesquisador é o próprio construtor da
obra, eu tenho que lidar com as questões afetivas, as memórias e as falsas memórias, os
lapsos e os esquecimentos que fazem parte da tentativa de reunir o processo da montagem
de O som dos passos. De acordo com Izquierdo (2013), o aspecto que mais se sobressai da
memória é o esquecimento, pois podemos acessar lembranças por meio dos vestígios, além
de criarmos memórias falsas e deformações do que conseguimos lembrar.

Para nós artistas, o processo de criação não acontece sempre de uma mesma forma ou
com etapas lineares, por métodos que permitem arquivar, escrever, registrar as ideias
sistematicamente que ocorrem durante a trajetória criativa. A descrição do processo criativo
de uma encenação pode ser realizada, em parte, através da identificação da “malha afetiva e
cognitiva”, na qual as emoções, ideias e imagens integram uma constelação que muda de
dominância durante o percurso (RANGEL, 2009). Faremos uma seleção do que fará parte da
crítica genética registros que foram possíveis e memórias voluntárias e involuntárias que vão
ocorrendo durante a tessitura da obra.

Há várias questões envolvidas que se tornam limitantes para estruturar os rastros de uma
obra e a sua crítica genética, podemos citar a dificuldade de registro durante o percurso
criativo, como a efemeridade que ocorre as encenações teatrais para podermos registrá-las
de todas formas possíveis. Desde a criação de protocolos, diários, relatórios, roteiros, planos
de trabalho, correspondências, esboços, gráficos, rascunhos, anotações, registros
fotográficos, cadernos de direção, entre outros. Tais elementos deveriam favorecer uma rica
experiência e documentação sobre o processo de um artista, mas nem sempre acontece como
se deseja. Ao tentar reunir esses documentos, criamos uma possibilidade de reafirmar ou
voltar a vivenciar um processo criativo, “[...], pode-se afirmar, com certa segurança, que,
vivendo os meandros da criação, quando em contato com a materialidade desse processo,
podemos conhecê-lo melhor. Essa é a nossa proposta” (SALLES, 1998, p. 12).

Ao verificar os rastros de O som dos passos, procuramos refletir sobre como os vestígios
e as reminiscências podem ecoar no fazer teatral, numa distância temporal em que a minha
poética como artista e diretor tenha se modificado. Precisamos considerar que uma produção
não deve ser vista de forma estanque, que deveríamos alimentar novas camadas
interpretativas, ressignificações e releituras de uma obra de arte, como um modo de mantê-la
viva. Podemos contar com a memória, como grande aliada nessa trajetória. A memória faz
parte desse mergulho na busca dos rastros deixados por um espetáculo para tentarmos
compreender o seu processo de criação e não é possível tocá-la sem haver esquecimentos.

REFERÊNCIAS

BECKETT, Samuel. Proust. Tradução: Athur Nestrovski. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
103 p. Tradução: Proust.
_____. The complete dramatic works. Londres: Faber&Faber, 1990. 476 p.

IZQUIERDO, Ivan. Tempos de memória: vestígios, ressonâncias e mutações. Organização


Marta Isaacsson et al. In.: Anais do VII Congresso da ABRACE – Associação Brasileira de
Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas, Porto Alegre, AGE, p. 17-31, out., 2013. 254 p.

MARFUZ, Luiz. Beckett e a implosão da cena: poética teatral e estratégias da encenação.


São Paulo: Perspectiva; Salvador: PPGAC/UFBA, 2013. 248 p.

PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: no caminho de Swann. 14. ed. Tradução:
Mário Quintana. Revisão de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Globo, 1991. 409 p. Tradução:
A la recherche du temps perdu.

RAMOS, Luiz Fernando Ramos. O parto de Godot e outras encenações imaginárias: a


rubrica como cena poética. São Paulo: Hucitec, 1999. 191 p.

RANGEL, Sonia. Olho Desarmado: objeto poético e trajeto criativo. Salvador: Solisluna
Design, 2009. 132 p.

SALES, Cecília Almeida. Crítica genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o
processo de criação artística. 3. ed. São Paulo: EDUC, 2008. 140 p.

______. Gesto inacabado: processo de criação. São Paulo: Annablume, 1998. 186 p.

YATES. Frances A. A arte da memória. Tradução: Flavia Bancher. Campinas: Editora da


Unicamp, 2007. 499 p. Tradução: The art of memory.

1 Você nunca vai parar? [Pausa] Você nunca vai parar de... remexer isso tudo? [Pausa] Isso? [Pausa] Isso tudo.
[Pausa] Na sua cabecinha. [Pausa] Isso tudo. [Pausa] Isso tudo. O som dos passos, Samuel Beckett.

2 BECKETT, Samuel. O som dos passos (Footfalls). Tradução de Henrique Santos. Salvador: 2013. 05 f.

3O som dos passos foi um espetáculo de 2004, estrelado pelas atrizes Sonia Rangel e Iami Rebouças, como
peça de formatura em direção teatral de Enjolras de Oliveira pela Universidade Federal da Bahia/UFBA, sob
orientação de Edwald Hackler. O texto foi adaptado por Henrique Santos. A iluminação do espetáculo esteve a
cargo de Eduardo Tudella. Houve duas temporadas da peça: de 05 à 08 de maio de 2004 no teatro do Instituto
Goethe-Institut Salvador/ICBA (a estreia no primeiro dia e nos demais com duas apresentações por noite) e nos
dias 15 e 16 de agosto do mesmo ano na Sala V da Escola de Teatro da UFBA. O som dos passos foi a peça
de abertura do encontro I Pará em Cena – As Dramaturgias na cidade de Belém/PA. A intérprete Iami
Rebouças foi indicada a melhor atriz pelo Prêmio Braskem 2014 (premiação anual do teatro baiano).

4Salles é professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo e coordenadora do Centro de Estudos de Crítica Genética. Figura entra os
pioneiros da pesquisa em Crítica Genética no país. Autora dos livros Crítica genética: fundamentos dos estudos
genéticos sobre o processo de criação artística, de 2008(terceira edição); Gesto inacabado: processo de
criação artística, de 1998; Crítica Genética: uma (nova) introdução, de 2000 e Redes da Criação: construção da
obra de arte, de 2006.

5Na tradução de Henrique Santos, V é a voz da mãe e M é a voz da mulher (Beckett usa dessa forma no texto
original). O nome da personagem da filha é Alice.
6Till one night, while still little more than a child, she called her mother and said, Mother, this is not enough. The
mother: Not enough? May – the child’s given name – May: Not enough. The mother: What do you mean, May,
not enough, what can you possibly mean, May, not enough? May: I mean, Mother, that I must hear the feet,
however faint they fall. The mother: The motion alone is not enough? May: No, Mother, the motion alone is not
enough, I must hear the feet, however faint they fall. (BECKETT, 1990, p. 401).

7Curtain. Stage in darkness. Faint single chime, Pause as echoes die. Fade up to dim on strip. Rest in
darkness. M discovered pacing towards L (left). Turn as R (right). Paces three more lenghts, halts, facing front at
R. (BECKETT, 1990, p. 399)

8 M: Mother. [Pause. No louder.] Mother.


V: Yes, May.
M: Were you asleep?
V: Deep asleep. [Pause.] I heard you in my deep sleep. [Pause.] There is no sleep so deep I would not hear you
there. [Pause. M resumes pacing. Four lenghts. After first lenght, synchronous with steps.] One two three four
five six seven eight nine wheel one two three four five six seven eight nine wheel. [Free.] Will you not try to
snatch a little sleep? [M halts facing front at R (right). Pause.] (BECKETT, 1990, p. 399).
9M: Sequel. [Pause. Begins pacing. Steps a little slower still. After two lenghts halts facing from at R (right).
Pause.] Sequel. A little later, when she was quite forgotten, she began to – [Pause.] A little later, when as though
she had never been, it never been, she began to walk. [Pause.] (BECKETT, 1990, p. 402)

10M: Would you like me to inject you again?


V: Yes, but it is too soon. [Pause.]
M: Woul you like me to change your position again?
V: Yes, but it is too soon. [Pause.]
M: Straighten your pillows? [Pause.] Change your drawseet? [Pause.] Pass you the bedpan? [Pause.] The
warming-pan? [Pause.] Dress your sores? [Pause.] Sponge you down? [Pause.] Moisten your poor lips?
[Pause.] Pray with you? [Pause.] For you? [Pause.] Again.
V: Yes, but it is too soon. [Pause.] (BECKETT, 1990, p. 400).

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