Você está na página 1de 18

Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

A Estruturação de Enredo nos Jogos Digitais

Renato Razzino Ernica


Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês –
FFLCH/USP
renatorazzino@hotmail.com

Resumo

Com base nos trabalhos de Murray (1997) e Ernica (2014a; 2014b), este artigo visa
a apresentar algumas considerações a respeito da estruturação de enredo nos jogos
digitais, com destaque para uma de suas organizações mais populares: a estrutura
de acesso progressivo. A partir da análise do título Resident Evil 2, busca-se
depreender de que maneira a experiência de jogo é formulada em relação ao
conteúdo narrativo que se tenta veicular.

Palavras-chave: semiótica francesa, cibercultura, jogos digitais, narratividade.

Storyline in Digital Games

Abstract

Based on the works of Murray (1997) and Ernica (2014a; 2014b), this article aims to
present some remarks about the structural organization of storytelling in videogames,
focusing on one of the most popular solutions used in the market: the progressive
access structure. From the analysis of Resident Evil 2 we begin to understand in
which way the game experience is organized in relation to the narrative content the
game tries to convey.

Keywords: French semiotics, cyberculture, videogames, narratives.

1
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

Introdução

Este artigo tem por objetivo apresentar algumas considerações a respeito de


uma das modalidades mais comuns e bem recebidas de estruturação de enredo no
universo dos jogos digitais, a organização de acesso progressivo, a qual consiste em
uma apresentação peculiar de um modelo labiríntico baseado na busca contínua
pelo desbloqueio de caminhos, passagens e/ou ambientes dentro de um quadro
maior; com frequência, o objetivo desse tipo de jogo é justamente escapar de uma
área determinada.

Para atingir nosso objetivo, é necessário, em primeiro lugar, revisar a noção


de enredo, palavra bastante recorrente em estudos de narrativa/narratividade, mas
que não tem uma definição precisa que lhe confira operacionalidade. A partir disso,
analisaremos brevemente o caso de Resident Evil 2, um jogo de acesso progressivo,
de modo a entender as imbricações complexas entre conteúdo e expressão que nele
ocorre. A epistemologia que norteia este trabalho é a da semiótica de linha francesa,
mas os estudos de Murray (1997) acerca da cibercultura também foram
incorporados. Nossa investigação se justifica na medida em que a crescente
importância dos jogos digitais na sociedade contemporânea carece de um
investimento maior na pesquisa acadêmica sobre esse objeto, sobretudo em seu
aspecto narrativo; o presente artigo ajuda a preencher essa lacuna.

Revisão do conceito de enredo

Comecemos pelo estudo de Ernica (2014b, p. 71):

Em teoria literária, o termo enredo designa a organização de um


determinado assunto ou tema em uma forma causal e não
necessariamente cronológica; não se trata, portanto, da matéria
efetivamente narrada, designada por fábula. Essa divisão parece ser
suficiente para postularmos que determinada sequência de eventos
narrativos pode ser organizada em mais de um tipo de enredo. Essa
noção pode ser aproximada daquilo que Aristóteles designa por mito
2
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

em sua Poética: determinada matéria narrativa trabalhada e


organizada de acordo com o gênero. Há, portanto, uma distinção
teórica bastante clara entre o que se narra e como se narra, sendo
este o domínio da chamada arte narrativa.

A ideia de que o enredo relaciona-se muito mais à organização da expressão do que


ao conteúdo em si contribui para nosso estudo na medida em que a estruturação
particular de formas narrativas em formato de jogo diz respeito justamente a uma
questão relativa à linguagem dos jogos digitais em si mesma e não propriamente a
uma mudança drástica no conteúdo. Com efeito, é possível vislumbrar a partir do
seguinte exemplo de Ernica (2014b, p. 78), explorado com base na semiótica
francesa, a adequação dos jogos digitais aos conteúdos narrativos mais tradicionais
do ocidente:

A progressão lúdica em sua forma mais básica compreende uma


encenação das relações lógico-formais do nível narrativo do percurso
gerativo do sentido, as quais foram formuladas a partir de uma
simplificação da morfologia proppiana dos contos maravilhosos. São
abundantes os exemplos de enredos organizados a partir de duas
situações, uma inicial e outra final, apresentadas em forma de
cutscenes (cenas não-jogáveis, muitas vezes compostas por
diálogos) que "ensanduícham" o jogo-de-fato, em que o jogador
segue em linha reta derrotando inimigos e adquirindo poderes para
prosseguir. Os momentos de manipulação, ação e sanção aparecem
representados de maneira bastante óbvia: a cutscene inicial
figurativiza o estado de conjunção problematizado em que o sujeito é
manipulado; o saber e o poder figuram em simultaneidade à
realização da performance que consiste em passar pelas fases sem
perder todas as "vidas"; e, por fim, a sanção positiva corresponde à
cutscene final que não poucas vezes é encerrada com a clássica
frase "The End".

Esse tipo de jogo, denominado como jogo de progressão pura a partir da


dicotomia entre progressão e emergência explorada por Juul (2005), consiste
basicamente na encenação das provas e obstáculos proppianos, os quais podem
3
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

ser vistos abundantemente na cultura ocidental, seja em contos de fada, seja em


filmes de ação e aventura, como os de super-heróis. O diferencial do jogo digital é a
inserção da vivência: os jogadores devem agir e não meramente acompanhar de
modo distanciado o que ocorre na história contada; em suma, trata-se da
organização de uma experiência narrativa cujo centro estaria na agência.

Murray (1997, p. 126) define agência da seguinte maneira:

When the things we do bring tangible results, we experience the


second characteristic delight of electronic environments – the sense
of agency. Agency is the satisfying power to take meaningful action
and see the results of our decisions and choices. We expect to feel
agency on the computer when we double-click on a file and see it
open before us or when we enter numbers in a spreadsheet and see
the totals readjust. However, we do not usually expect to experience
agency within a narrative environment.

A ideia de fazer com que um jogo conte uma história (ou seja, narre um evento
qualquer) está, portanto, centrada na criação de um evento no qual não só se possa
agir, mas a partir do qual o jogador sinta que suas ações têm algum sentido, isto é,
que elas contribuam de alguma forma para que a história se desenvolva.

Organizar isso em um jogo não é simples e muito tem sido feito desde as
décadas de 70 e 80 para elaborar um modo coerente de estruturação narrativa ludo-
digital. É interessante ver como essa fase de experimentação não é exclusiva dos

jogos digitais; como afirma Murray (Idem, p. 28)

In 1455, Gutenberg invented the printing press – but not the book as
we know it. Books printed before 1501 are called incunabula; the
word is derived from the Latin for swaddling clothes and is used to
indicate that these books are the work of a technology still in its fancy.
It took fifty years of experimentation and more to stablish such
conventions as legible typefaces and proof sheet corrections; page
numbering and paragraphing; and title pages, prefaces, and chapter
4
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

divisions, which together made the published book a coherent means


of communication. The garish videogames and tangled Web sites of
the current digital environment are part of a similar period of technical
evolution, part of a similar struggle for the conventions of coherent
communication. Similarly, new narrative traditions do not arise out of
the blue. A particular technology of communication – the printing
press, the movie camera, the radio – may startle us when it first
arrives on the scene, but the traditions of storytelling are continuous
and feed into one another both in content and in form.

Ernica (2014a, p. 59) apresenta um exemplo da evolução das maneiras de narrar em


relação à forma e ao gênero; segundo ele, no caso do romance,

a divisão em capítulos era uma exigência imposta aos romances


folhetinescos pelas próprias condições específicas de produção e
circulação dos textos literários no século XIX; o uso de desfechos
impactantes ou misteriosos no final de cada capítulo servia à
necessidade de manter o leitor curioso e atento à trama, para que
evidentemente continuasse a acompanhar a obra. Nos dias atuais,
os livros não são mais vendidos “aos pedaços”, mas a organização
em capítulos segue moldes parecidos e, portanto, o conteúdo
também é estruturado de modo similar: há um estilo romanesco de
escrever e os leitores esperam que os romances sejam escritos de
uma determinada maneira, e não de outra – como bem demonstra o
sucesso comercial de romances como O Código Da Vinci, de Dan
Brown. Isso é o que Achcar denomina, a partir do termo “composição
genérica” de Francis Cairns, “codificação da prática intertextual”,
definida como “uma forma particular de ‘arte alusiva’: um poema
toma do repertório tradicional uma série de lugares-comuns e,
juntamente, a maneira de organizá-los, derivando daí sua pertinência
genérica.” (p. 18) O gênero, sobretudo na prática letrada anterior ao
século XIX, é a chave de leitura principal para qualquer texto.

A transformação de um meio expressivo, seja ele qual for, em um meio de


comunicação capaz de contar histórias é, portanto, feita em "laboratório", com
sucessivas tentativas a partir das quais convenções serão criadas. A organização
progressão pura que mencionamos acima é uma delas.
5
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

Diversos jogos mais antigos, como Captain Commando (Capcom, 1991),


Sonic The Hedgehog (Sega, 1991) e Metal Slug: Super Vehicle SV-001 (SNK, 1996)
– e até mesmo alguns novos, como God of War (SCE Studios Santa Monica, 2005)
e Uncharted: Drake's Fortune (Naughty Dog, 1997) –, fazem uso dessa estruturação.
Ela acolhe muito bem, como demonstramos, conteúdos narrativos simples,
baseados em uma temática de busca linear permeada por obstáculos e provas pelos
quais se precisa passar para conquistar o objeto de valor desejado. Ela não é tão
eficaz, no entanto, quando o conteúdo é mais complexo, repleto de imbricações e
com maior densidade narrativa – em suma, qualquer coisa que fuja do esquema
"andar de um lugar ao outro derrotando inimigos para salvar a princesa" (ou demais
figurativizações similares) acaba não se encaixando bem nessa formulação.

Com o passar dos anos, diversas delas acabaram sendo desenvovildas,


umas mais populares que outras. Excederia os limites de um artigo tratar de todas
as formulações de enredo possíveis para um jogo digital – ainda hoje não se
explorou todo o potencial narrativo do meio –, portanto nos limitaremos a trabalhar
com um deles, o qual denominamos jogo de acesso progressivo. Após definir o que
se entende por esse tipo de organização, comentaremos brevemente um título
bastante famoso lançado para o console Playstation: Resident Evil 2 (Capcom,
1998).

Os jogos de acesso progressivo

Ernica (2014b, p. 84) define esse tipo de jogo da seguinte forma:

Esse modelo [de acesso progressivo] corresponde a jogos que não


se baseiam necessariamente em uma sucessão de estágios lineares,
mas na criação de um ambiente subdivivido em diversas áreas,
demarcadas por nome ou não, às quais o jogador não tem acesso
total no início do jogo. É preciso que se explore cuidadosamente os
espaços disponíveis em busca de itens ou dicas que possibilitem a
progressão, em uma organização que é, muitas vezes, labiríntica.

6
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

A associação do labirinto como uma das possibilidades de navegação


prazerosa por ambientes digitais já foi feita por Murray (1997, p.130), que a associa
a narrativas de perigo e salvação. Além disso, a autora argumenta que a estrutura
labiríntica não precisa, necessariamente, estar ligada a uma figurativização explícita
de um labirinto (p. 131):

In the right hands a maze story could be a melodramatic adventure


with complex social subtexts. For instance, instead of a fairy tale
palace it could be set in a Kafkaesque city where the secret police are
rounding up and deporting citizens with the wrong kind of papers. The
protagonist role would be to save them, a task that would require
navigation through the corridors of power and through underground
hiding places, elaborately conducted negotiations, clever
manipulation of bureaucrats, and split-second timing.

Murray também afirma que a história está intimamente ligada à navegação no


espaço em contextos labirínticos (Idem, p. 132): "As I move forward, I feel a sense of
powerfulness, of significant action, that is tied to my pleasure in the unfolding story.
In an adventure game this pleasure also feels like winning."

Para Murray (Ibidem), autora interessada nas possibilidades narrativas do


ciberespaço (e não propriamente dos jogos digitais), o ponto fraco dessa estrutura é
a existência de uma solução única, limitada. No nosso caso, isso não representa um
problema, posto que a própria ideia de jogo, baseada em um evento cujo término
depende da obtenção de uma vitória ou uma derrota, não acolhe confortavelmente a
abertura muito grande e a impossibilidade de finalização 1.

Ernica (2014b, p. 88) afirma que o gênero Survival Horror, do qual Resident
Evil 2 faz parte, é um exemplo de jogo de acesso progressivo:

1
Cf. a definição e tipologia de jogo presente em Juul (2005) e Ranhel (2009).

7
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

Survival Horror é o termo que designa um gênero (ou talvez


subgênero) de jogos de acesso progressivo. Determinado não só por
sua estrutura procedural, mas também por suas por características
temático-figurativas, a ideia básica de um jogo como esse é "sair
vivo" de uma situação de terror.

As considerações de Murray (1997) acerca do labirinto expostas anteriormente


corroboram a postura de Ernica (2014b), na medida em que sobreviver à situação é
o tema que garante a relação da estrutura labiríntica e a "roupagem" particular de
um Survival Horror. Vejamos como isso se dá em Resident Evil 2.

O resumo dos acontecimentos iniciais do jogo, retirado do site Wikipedia, é o


seguinte:

O jogo se passa dois meses após os acontecimentos do primeiro


jogo, Resident Evil, e um dia após os eventos de Resident Evil 3:
Nemesis na cidade Raccoon City, localizada no centro-oeste dos
Estados Unidos. Quase todos os cidadãos foram transformados em
zumbis por um surto do T-vírus, um novo tipo de arma biológica
secreta desenvolvida pela empresa farmacêutica Umbrella
Corporation. Os dois protagonistas do jogo são Leon S. Kennedy, um
policial novato em seu primeiro dia de trabalho, e Claire Redfield,
uma estudante universitária à procura de seu irmão Chris. Tendo
acabado de chegar na cidade, Leon e Claire fazem o seu caminho
para o "Departamento de Polícia de Raccoon", buscando a proteção
da população mutante.2

Boa parte do jogo se passa na delegacia de polícia de Raccoon City, onde jogador e
personagem devem descobrir o que levou à situação de calamidade em que a
cidade se encontra. Há, no entanto, diversos elementos que têm por objetivo

2
Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Resident_Evil_2 para maiores informações sobre o jogo.

8
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

dificultar a progressão, gerando uma experiência sufocante e aterradora que condiz


com o gênero de terror ao qual o jogo pertence.

Ernica (2014b, pp. 93-4) menciona, em sua análise de Resident Evil, que a
impossibilidade de carregar muitos itens ao mesmo tempo é um desses elementos:

Essa característica procedural obriga o jogador a fazer uso dos baús


localizados em pontos estratégicos [...] para guardar itens que não
são necessários no momento; apesar de ser possível acessar todo o
inventário armazenado a partir de qualquer um deles, o acesso
progressivo impede muitas vezes que se possa chegar à sala que
contém o baú mais próximo, obrigando o jogador a retroceder os
passos ou tomar rotas alternativas dentro da mansão. Como a
escassez de recursos (munição e itens curativos) impede que se
eliminem todos os inimigos, a necessidade de passar várias vezes
pelos mesmos lugares aumenta os riscos e cria um clima de tensão
crescente – sobretudo se o jogador encontra-se despreparado para
lidar com eventuais crises.

O mesmo pode ser dito a respeito de Resident Evil 2; independente da personagem


escolhida pelo jogador, a quantidade de itens que se pode carregar é bastante
limitada, como pode ser visto nas imagens abaixo (Figuras 1 e 2).

9
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

Figura 1: Inventário de Leon.

Figura 2: Inventário de Claire.

A delegacia é construída de modo claustrofóbico, com cenários majoritariamente


fechados e corredores estreitos:

10
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

Figuras 3 e 4: Ambientação da delegacia.


Uma parte da salas exploráveis pode ser vista nos mapas abaixo (Figuras 5 e 6),
cujas cores indicam quais salas estão trancadas, quais delas foram exploradas e até
mesmo as localizações de escadas:

11
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

Figuras 5 e 6: Mapa da delegacia.

A coleta de chaves e itens, bem como a resolução de enigmas são as únicas


maneiras de avançar. Na sequência de imagens abaixo (Figuras 7 a 13), pode-se
ver esse processo:

12
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

Figuras 7 e 8: O jogador vasculha uma das salas e encontra uma medalha.

13
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

Figuras 9 a 12: O jogador insere a medalha na fonte da delegacia e recebe uma


chave.

14
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

Figura 13: A chave é usada e o jogador ganha acesso a uma nova área.

Os dados da história vão sendo acessados pouco a pouco pelo jogador, seja
por meio de cenas que ocorrem quando determinadas áreas são finalmente
acessadas, seja pela leitura dos documentos espalhados pelo cenário (Figura 14) –
o aspecto hipermidiático do jogo digital aparece, aqui, de maneira bastante clara.

Figura 14: Um dos documentos que podem ser encontrados pelo jogador.

A informação não é transmitida de maneira linear e pode ser acessada de


múltiplas formas, expandindo a ideia tradicional de narratividade: há relação entre
qualquer elemento presente no enredo do jogo (elementos de expressão) e a
organização narrativa do conteúdo. Observemos o exemplo abaixo, relativo ao uso
da maquiagem no filme Star Trek (2009), retirado de Ernica (2014a, p. 61):

o enredo [de Star Trek] é centrado na instituição ficcional


denominada Frota Estelar, responsável por explorar a galáxia para
estudar novas formas de vida, estabelecer relações com diferentes
povos e demais tarefas do gênero. Alguns tipos de alienígenas são
nomeados e têm papel importante no desenrolar da trama (os
Vulcanos e os Romulanos, por exemplo), mas há diversos outros não
nomeados dos quais o espectador tem conhecimento por
comparação de tons de pele (verdes, azuis) ou traços físicos (chifres,
15
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

formatos de crânio) de personagens que destoam daqueles mais


comuns aos humanos representados no filme. Isso amplia
consideravelmente o universo ficcional de Star Trek, pois permite ao
espectador pressupor vários eventos não expostos, os quais teriam
como foco o estabelecimento de relações entre os diversos povos
apresentados visualmente. Nesse sentido, a maquiagem utilizada é
um dos elementos de composição que ampliam a quantidade de
informação narrativa veiculada pelo filme.

Apesar de haver um problema com a noção de enredo apresentada no trecho acima


– diferentemente de Ernica (2014a), consideramos a maquiagem como parte
integrante do enredo de um filme e não algo exterior a ele –, o argumento ainda é
válido: as diferenças visuais proporcionadas pelas mais diferentes formas de
maquiagem veiculam, elas mesmas, informação narrativa.

No caso de Resident Evil 2, a vivência da investigação e da luta por


sobrevivência se dá pelo arranjo cuidadoso dos elementos mencionados
anteriormente: inventário limitado, munição escassa, cenários estreitos, resolução de
enigmas e uso de itens para destravar as áreas. A progressão é alinear e labiríntica,
cheia de idas e vindas, exigindo do jogador mais que destreza na hora de combater
eventuais inimigos: é preciso que ele saiba administrar seus recursos e identificar
quando e onde cada item deve ser usado.

A relação entre expressão e conteúdo ocorre justamente nessa espécie de


encenação do evento, a qual produz um "sentir na pele" e não meramente apresenta
uma situação a contemplar. A cada novo passo dentro da delegacia, personagem e
jogador descobrem mais a respeito da situação de Raccoon City, cidade que serviu
de fachada às atividades dorganização farmacêutica Umbrella, produtora de um
vírus que causa mutações genéticas e transforma pessoas em monstros; o
delegado, envolvido no esquema, ajudou a esconder as pesquisas (incluindo a
entrada do laboratório nos esgotos da cidade, local onde o jogo termina). O jogo
como um todo está, portanto, ligado à temática do segredo, do lado oculto e negro
das instituições, públicas e privadas; entrar nesse meio é como entrar em um

16
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

labirinto e a estruturação dos elementos de jogabilidade propicia imersão total do


jogador, que prossegue pelos caminhos tortuosos com espanto e terror.

Considerações finais

Este artigo mostrou, brevemente e em linhas gerais, uma possibilidade de


análise da narratividade nos jogos digitais: verificando-se o modo de organizar os
mais diversos elementos que compõem o jogo (sua estrutura de exploração, as
possibilidades de coleta e utilização de itens etc.) , é possível estabelecer paralelos
entre o narrado e o evento-jogo, do qual o jogador participa ativamente – é sempre
ele quem toma as rédeas e faz o jogo andar. Sendo assim, contar uma história em
formato de jogo é, na realidade, elaborar uma experiência, uma vivência de uma
situação programada, com determinados limites; é justamente na constituição
desses limites que consiste o enredo e é deles que toda e qualquer informação
narrativa deriva em um jogo digital. Diferentemente dos meios narrativos
tradicionais, não se trata de apresentar determinado conteúdo por meio de uma
expressão qualquer, mas de fazer com que a vivência expresse, em ato, um
conteúdo, não mais contemplado e sim sentido, até mesmo no corpo, em toda a sua
extensão.

Referências bibliográficas

ERNICA, R. R. A incompletude narrativa como efeito de sentido nos jogos digitais.


Texto Digital (UFSC), v. 10, p. 46-75, 2014.

____________. Ensaio semiótico sobre a narratividade nos jogos digitais. 2014.


202 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, 2014. Dissertação depositada em 17/10/2014.

JUUL, J. Half-Real: Video Games between Real Rules and Fictional Worlds.
Cambridge: The MIT Press, 2005. Formato E-Book.

17
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ
Volume 5 - No 1 – Janeiro/Junho de 2015

MURRAY, J. Hamlet in the Holodeck: The Future of Narrative in Cyberspace.


Cambridge: The MIT Press, 1997.

RANHEL, J. “O Conceito de jogo e os jogos computacionais”. In: SANTAELLA, L.;


FEITOZA, M. (orgs.) Mapa do Jogo: A diversidade cultural dos games. São Paulo:
Cengage Learning, 2009, pp. 3-22.

Sobre o Autor

Renato Razzino Ernica

Bacharel em Letras pela Universidade de São


Paulo. Atualmente finaliza seu mestrado no
Programa de Estudos Linguísticos e Literários em
Inglês na mesma instituição. Tem interesse por
semiótica francesa, teoria da narrativa, cibercultura
e história da arte.

Revista Hipertexto, Volume 5, No 1, Janeiro/Junho de 2015. ISSN: 2236-515X. Este artigo foi
submetido para avaliação em 17/11/2014 e aprovado para publicação em 7/1/2014.
18
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Comunicação
Laboratório de Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação – LATEC/UFRJ

Você também pode gostar