Você está na página 1de 11

KUEHN, Frank M. C.

Anais do XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em


Música (ANPPOM), Uberlândia, MG, 2011. Disponível em: http://unesp.academia.edu/fmc

Heinrich Schenker e The Art of Performance: uma análise de incongruências


resultantes da sua tradução e uma proposta de resolução

Frank Michael Carlos Kuehn (UNIRIO)


Resumo: Considerando o centenário da primeira redação do esboço de The Art of Performance, este
paper prestigia a pertinência das reflexões de Schenker e reconhece os esforços que tornaram suas
anotações finalmente acessíveis a músicos-intérpretes e pesquisadores. Uma leitura criteriosa da versão
inglesa, no entanto, revela diversos problemas provenientes da tradução de termos distintos para
performance, podendo encobrir a real intenção de seu autor e representar um obstáculo na compreensão
de conceitos fundamentais da prática musical. O objetivo principal, contudo, não é apenas apontar
problemas – que, de forma não muito diferente, emergem também para o leitor de língua portuguesa – e
sim propor uma solução para o impasse.
Palavras-chave: Heinrich Schenker, The art of performance, teoria da interpretação musical, Escola de
Viena; práticas interpretativas.

Heinrich Schenker and The Art of Performance: an analysis of the incongruences resulting
from its translation and a proposal on how to solve these

Abstract: Considering the centennial of the writing of the draft of The Art of Performance, this paper aims
to emphasize the pertinence of Schenker’s reflections and pay homage to the efforts which have rendered
his annotations finally accessible to musician-interpreters and researchers. A careful reading of the
English version, however, reveals several conceptual problems stemming from the translation of discrete
terms for performance, and may mask the real intention of its author and represent an obstacle in the
understanding of basic concepts of musical practice. The main objective, however, is not only pointing to
the problems – which, in a not much different form, also emerge for the Portuguese language reader – but
rather propose a solution to the impasse.
Keywords: Heinrich Schenker, The Art of Performance, theory of musical interpretation, Viennese
School; interpretative practice.

Schenker argues that much of contemporary performance practice is


rooted in the nineteenth-century cult of the virtuoso, which has resulted
in an overemphasis on technical display. To counter this, he proposes
specific ways to reconnect the composer’s intentions and the musician’s
performance (SCHENKER, 2000, citação da contracapa).

1. Apresentação do problema

No mês de julho de 2011, completaram-se exatamente cem anos em que o


teórico, compositor, pianista e musicólogo austríaco Heinrich Schenker (1868-1935)
esboçou um projeto para o qual tinha previsto o título Die Kunst des Vortrags [A arte da
exposição ou apresentação musical]. Originalmente concebido como uma espécie de
compêndio de instruções, princípios e regras gerais redigidos para o músico-intérprete
concertista, em particular para o pianista, o texto nunca chegou a ser editado em vida. É
preciso, portanto, ter sempre em mente que se trata de uma obra inacabada, esboçada

1
KUEHN, Frank M. C. Anais do XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM), Uberlândia, MG, 2011. Disponível em: http://unesp.academia.edu/fmc

pelo autor para, um dia, se tornar livro. Depois do falecimento do autor, a tentativa de
publicar os manuscritos e anotações oriundos do espólio passou por diversos reveses até
que, no ano de 2000, a parte mais elaborada do material chegou a ser editada sob o
título The Art of Performance.1
Uma leitura minuciosa de textos teóricos redigidos por Richard Wagner
(1813-1883), Heinrich Schenker, Arnold Schönberg (1874-1951), Rudolf Kolisch
(1896-1978) e Theodor Adorno (1903-1969), contudo, revela que esses autores
costumavam empregar os termos Vortrag (exposição, apresentação), Aufführung
(apresentação no palco, evento artístico), Ausführung (execução), Wiedergabe e
Reproduktion (reprodução, sendo o primeiro o correspondente germânico do segundo,
de raiz latina), Interpretation (interpretação) e Improvisation (improvisação) para
designar os diferentes aspectos da prática musical. No início do século XX, entretanto, o
termo Vortrag, aplicado ao campo de música, caiu em desuso, sendo hoje somente
empregado em sentido de palestra, discurso ou declamação. Dos termos arrolados,
apenas o significado de Aufführung chega próximo a performance, denotando todo tipo
de representação artística no palco. Por conseguinte, a primeira incongruência já emerge
na escolha do título da versão inglesa, pois o termo alemão Vortrag, recorrente na época
de Schenker, só corresponde parcialmente a performance.
Em contrapartida, o termo performance se disseminou, nas últimas décadas,
em campos bem distintos, da filosofia ao esporte. Também no meio musical, o elemento
performativo está cada vez mais no centro das atenções.2 A enorme difusão, contudo,
também fez com que os termos interpretação e performance fossem empregados de
maneira bastante confusa. Existem, portanto, fortes evidências de que as incongruências
da versão inglesa da “arte da performance” sejam um resultado da tradução
indiscriminada de termos distintos da prática musical por um único termo de grande
abrangência – o de performance. Ainda que a tradução de Irene Schreier Scott seja boa
como um todo, a não distinção de conceitos fundamentais da prática musical vienense
como de interpretação, reprodução e performance pode encobrir a real intenção de seu
autor e representar um obstáculo para a sua compreensão. Daí a sugestão que o título “A
arte da interpretação musical” (The Art of Interpretation) ou “A arte da reprodução
musical” (The Art of Musical Reproduction) teria sido mais apropriado para o projeto de
Schenker.

2
KUEHN, Frank M. C. Anais do XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM), Uberlândia, MG, 2011. Disponível em: http://unesp.academia.edu/fmc

A necessidade de uma equação do problema não passou despercebida pelos


autores de um dos primeiros artigos em língua portuguesa que prestigiou a Arte da
Performance no Brasil. Apesar de estar confinado a uma nota de rodapé apenas, vale
reproduzi-la na íntegra:

Optamos por manter no título da obra de Schenker o termo performance, embora estejamos
de fato tratando de interpretação. A opção pelo anglicismo tem como intuito afirmar o
aspecto performático desta atividade. O termo interpretação, apesar de mais abrangente,
não implica necessariamente na execução de uma obra por um instrumentista. Utilizaremos
ambos, interpretação e performance, conforme nos pareça conveniente ao longo do artigo
(BARROS; GERLING, 2007: 142, nota 2).

Todavia, percebe-se também em Barros e Gerling certa inconsistência, pois


uma vez que mantiveram “no título da obra de Schenker o termo performance”, muito
embora esteja “de fato tratando de interpretação”, pode se indagar porque o mantiveram
no título de seu artigo (Análise schenkeriana e performance) – já que o problema foi
prontamente identificado e assinalado. Urge, portanto, persuadi-lo com mais rigor.
Nessa tarefa, entramos primeiro no mérito da questão, para depois apresentar uma
proposta concreta de como resolver o impasse. Durante o desenvolvimento da pesquisa
irei me referir reiteradamente a três trabalhos, cuja leitura é recomendada para
contextualizar o questionamento feito neste paper: um é de BARROS e GERLING
(2007), os outros são de minha autoria (KUEHN, 2010 e 2011, no prelo). Um investiga
a noção de prática musical na tradição clássico-romântica vienense, enquanto o outro
aprofunda a questão, demonstrando como os termos reprodução, interpretação e
performance diferem em sentido e fim. O resultado é uma revisão conceitual do modelo
das práticas interpretativas no Brasil.3 Já o principal objetivo deste paper está na
aplicação criteriosa dos conceitos interpretação, reprodução e performance a tópicos da
Arte da Performance, de Heinrich Schenker. Certo dilema, contudo, devo assumir
porque, por diversos motivos, não foi possível consultar os manuscritos originais de
Schenker. Ainda assim, uma vez evidentes, os problemas da versão inglesa serão
assinalados por meio de interpolações no corpo do texto principal e das citações.

3
KUEHN, Frank M. C. Anais do XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM), Uberlândia, MG, 2011. Disponível em: http://unesp.academia.edu/fmc

2. Proposta de como solucionar o problema

Antes de tudo, a premissa fundamental é que o processo reprodutivo da


música – isto é, a reprodução musical propriamente – ocorra por basicamente duas vias:
a) pela interpretação, e b) pela performance. O momento de uma reprodução é, portanto,
também o da performance, assim como literalmente o da interpretação de uma
composição musical (para um maior esclarecimento acerca destes conceitos, vide
KUEHN, 2011, 2012 e 2013).

Como princípios ativos, formam, em conjunto, as três categorias


fundamentais da prática interpretativa. Sendo a da reprodução musical também a mais
abrangente, abarca em si as outras categorias, como ilustra a figura 1:

REPRODUÇÃO

INTERPRETAÇÃO PERFORMANCE

Figura 1: Esquema das três categorias fundamentais da prática interpretativa.

2.1 Schenker e o conceito de reprodução musical


O termo “reprodução musical” (Reproduktion, reproduction e Wiedergabe,
rendition) é atinente à apresentação ou exposição musical (Vortrag) de uma obra com
base em sua partitura, momento em que o músico-intérprete transforma ou “converte”
os sinais gráficos do texto por mimese (ou ação mimética) em som musical.
No século XIX, a produção (compositiva) e a reprodução (interpretativa)
passaram a constituir dois eventos espacial e temporalmente distintos. Uma vez
afastados seus principais atores, a prática musical adquiriu uma dimensão histórica que
antes não existia. Paralelamente, as novas técnicas de composição, o surgimento do
virtuose, o advento do mercado editorial e finalmente também o da gravação
fonográfica tornaram a prática reprodutiva da música uma tarefa muito mais complexa,
levando uma série de compositores e teóricos a discutir como o seu repertório deveria
ser reproduzido corretamente. É nesse contexto que Schenker emprega o termo

4
KUEHN, Frank M. C. Anais do XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM), Uberlândia, MG, 2011. Disponível em: http://unesp.academia.edu/fmc

“reprodução” (HS: 3, 4), e tudo indica que a variante alemã do termo (Wiedergabe) por
ora tenha sido traduzida também por rendition (HS: 3, 4, 77). Devido à situação da
época que Schenker formula a sua crítica ao papel que a prática interpretativa estava
ocupando no meio musical de seu tempo, “em flagrante contraste com as verdadeiras
origens”. Ao reivindicar uma “reprodução verdadeira”, Schenker se opunha a tendências
exibicionistas da sua época que estavam exagerando em modo e medida de suas
performances (HS: 4, 81-82).4 Nesse sentido, Schenker também expressa certa
preocupação com as correntes positivista e pragmática de seu tempo, ocasião em que
formula sua crítica não apenas a Czerny como também a “Strauss, Reger, Mahler etc.”
(HS: 42, 73).
É logo na abertura do primeiro capítulo de a Arte da Performance, que
Schenker – conhecido por suas posições radicais – expõe uma questão controvertida que
afasta a noção tradicional, calcada na prática especificamente interpretativa, das
concepções contemporâneas, calcadas na dimensão performativa da prática musical
como evento artístico e social. Uma vez colocada no contexto, reparemos então na
inconsistência da versão inglesa quando, na verdade, dever-se-ia ler “reprodução” no
lugar de “performance”:

Basicamente, a composição não precisa da performance para existir. A leitura silenciosa de


uma partitura já é suficiente para provar a sua existência; basta o som surgir de forma
apenas imaginada na mente. A realização mecânica de uma obra de arte musical pode,
desse modo, ser considerada supérflua (HS: 3).5

Particularmente interessante é que Arnold Schönberg parece dialogar


literalmente com o seu conterrâneo (e desafeto) Heinrich Schenker, ao questionar: “Is
performance necessary? (not the author, but the audience only needs it)”
(SCHÖNBERG apud KOLISCH, 1983: 9). Também nesse caso certamente teria sido
mais apropriado empregar o termo “reprodução” (reproduction, Wiedergabe ou
rendition) no lugar de performance. Noutra referência, Schönberg nos fornece a
resposta para a sua indagação: “A interpretação é necessária para dar conta da lacuna
entre a idéia do autor e o ouvido contemporâneo” (SCHÖNBERG, 1984: 328).6 Nota-se
aqui um dos raros momentos em que Schönberg emprega de maneira inequívoca o
termo “interpretação”, o qual, por diversos motivos, evita em seus ensaios.

5
KUEHN, Frank M. C. Anais do XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM), Uberlândia, MG, 2011. Disponível em: http://unesp.academia.edu/fmc

Sendo assim, a “obra de arte” – isto é, a partitura de uma determinada


composição musical – constitui para Schenker uma espécie de entidade ontológica
inviolável que, sagrada, “nunca deve ser sacrificada em favor da sala, do público, ou dos
dedos” (HS: 3).7 É nesse contexto que Schenker formula também as suas críticas ao
virtuose, a quem considera, no fundo de suas intenções, um artista “degenerado” (HS:
83-84) – um vocábulo na época de Schenker muito empregado em sentido difamatório,
como em campanhas de propaganda política da ala ultranacionalista.8 Especificamente
nesse ponto, Schenker não estava em boa companhia. Schenker também não acalenta
uma visão muito encorajadora para os praticantes vindouros desta arte (destaque para a
tradução certeira do termo “reprodução”): “Para cada obra de arte [musical] existe
apenas uma única reprodução verdadeira – própria e peculiar” (HS: 77).9 Destarte,
coloca-se para o músico-intérprete a priori uma questão intrigante que não é tão fácil de
se responder quanto possa parecer à primeira vista: o quê exatamente “reproduzir”,
tendo como base um determinado texto musical, e o porquê da sua reprodução.

2.2 Schenker e a interpretação musical


É atinente a interpretação (Interpretation, interpretation). Ao decodificar os
sinais gráficos do texto, o intérprete transforma ideias musicais de maneira mais fiel em
som. “Interpretar” significa, portanto, trazer à luz não apenas o que está escrito, como
também o que está nas entrelinhas. Sua tarefa está em desvelar sentido e conteúdo da
obra a ser reproduzida. Por conseguinte, “interpretar” está diretamente ligado à tarefa de
compreensão, processo em que o músico-intérprete experimenta tanto uma imersão
contemplativa no texto da obra quanto um processo cognitivo que transforma todos
esses elementos em som musical.
Para a tradição vienense, toda interpretação envolve inexoravelmente uma
análise criteriosa de todos os elementos da notação musical, constituindo o texto uma
espécie de imagem da obra. Schenker particularmente chama atenção para o “modo de
notação musical” (o título do segundo capítulo, Mode of notation and performance ou,
melhor, Modo de notação e sua interpretação), recomendando ao intérprete sempre
quando possível recorrer ao manuscrito original do compositor, pois os traçados da sua
ortografia guardam detalhes que passariam despercebidos numa edição impressa

6
KUEHN, Frank M. C. Anais do XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM), Uberlândia, MG, 2011. Disponível em: http://unesp.academia.edu/fmc

mecanicamente (HS: 86). Reparemos, na citação a seguir, também na tradução certeira


do termo “interpretação”:

O erro fatal na interpretação de uma obra musical está na visão geral que se tem do sentido
atribuido ao modo da notação de um compositor [...] o fato de que a nossa notação
dificilmente represente mais do que meramente neumas deve fazer com que o intérprete
procure o sentido por trás dos símbolos [...] o modo de notação do compositor não fornece
as indicações para a sua interpretação, representando, em sentido mais profundo, os efeitos
que este enseja obter [...] Uma interpretação literal impediria, portanto, que tal efeito possa
ter lugar (HS: 5).10

Também o termo Rahmenanschlag – literalmente traduzido por framed


touch – pertence à categoria da interpretação. Diferentemente de BARROS e GERLING
(2007: 145-147),11 entretanto, que o traduziram por “emolduração”, proponho empregar
o binômio “toque diferenciado”, pois tudo indica que se trate aqui de um artifício para o
músico-intérprete equacionar seus problemas técnicos e sublinhar as peculiaridades
estruturais da composição a ser reproduzida. Definido de forma elementar, o “toque
diferenciado” está no realçamento das principais notas da linha melódica, em detrimento
das notas de menor importância (como as repetidas ou de curta duração, as de
embelezamento ou de ornamento), atreladas a outro conceito schenkeriano, a
“diminuição” (diminution). Em suma, o “toque diferenciado” tem por objetivo
proporcionar coerência e unidade à reprodução, razão porque também está associado à
faculdade de “síntese” (HS: xxvi, 20, 45, 87, 90).

2.3 Schenker e a dimensão performativa da prática musical


Os elementos performativos da prática musical são atinentes à representação
no palco, ao hic et nunc da prática musical, à gestualidade e à destreza técnica do
intérprete com relação ao instrumento. Nesse sentido, Schenker costuma empregar o
termo “dissimulação” (dissembling) (HS: 77). A dimensão performativa, portanto,
abrange, em Schenker, as técnicas de como executar, tocar ou “dizer” algo
gestualmente, tarefa em que recorre reiteradamente à retórica (HS: 46, 47, 70) e a
alegorias, como a da prática musical com um orador e seu discurso (HS: 87) e a do
intérprete com a linguagem tanto verbal quanto musical (HS: 46).

7
KUEHN, Frank M. C. Anais do XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM), Uberlândia, MG, 2011. Disponível em: http://unesp.academia.edu/fmc

Embora o termo performance seja bastante antigo – o Houaiss (Objetiva,


2001) data o primeiro registro do termo no século XVI! – a sua denotação de evento
artístico só se disseminou em grande escala apenas na segunda metade do século XX.
Na verdade, é mister considerar que a questão performativa da prática musical não
existia na época de Schenker da forma como ela se coloca hoje em dia, estando em
Schenker limitada a tópicos de técnica e de gestualidade da execução ao vivo de uma
obra. Seu objetivo é oferecer não apenas suporte técnico e sim tratar de demandas tanto
gerais quanto específicas de uma peça que se enseja reproduzir. Com efeito, o fim do
elemento performativo não está em si mesmo e sim nos diversos meios e artifícios
corporais e gestuais que permitem ao intérprete sublinhar certos detalhes estruturais da
obra com mais eficiência em termos técnicos e com maior fidelidade e em termos de
expressão, dinâmica, estilo e forma (HS: 17).
Também a respiração (HS: 6, 68, 82), os movimentos biomecânicos de
mãos e braços (HS: 17, 81), o dedilhado (HS: 14, 34, 77), a gestualidade (vide o
regente) (HS: 5, 8-9, 25), as técnicas de pedal para o pianista (HS: 10-13) e de staccato
e de legato para todos os instrumentistas (HS: 21, 25) fazem parte da grande categoria
do elemento performativo da música. Outrossim, também a compostura física e mental
ou “espiritual” do músico recebe atenção e de modo algum deve ser subestimada (HS:
34, 41). Todos esses elementos – a rigor, todos extramusicais – representam os meios
para que a “dissimulação” de “efeitos” possa ter efetivamente lugar. A dimensão
performativa, na verdade, está, em Schenker, nos artifícios, através dos quais o modo de
notação é realizado. Schenker afirma: “É nisto que reside o verdadeiro segredo da arte
da performance: encontrar os modos peculiares de dissimulação por meio dos quais –
através do efeito - o modo de notação é realizado” (HS: 6).12 Destaque também aqui
para a tradução certeira do termo performance.
Por tudo isso, “dissimular” não significa “encobrir”, como entendem
BARROS e GERLING (: 146-147),13 e sim, por extensão de sentido, “representar” ou
“atuar” junto ao instrumento. Ao “dizer” algo musicalmente de uma determinada (e não
de outra) forma, “dissimular” remete a técnicas de representação musical,
assemelhando-se o intérprete, mesmo que apenas gestualmente, a um mímico ou “ator”.
O objetivo está em tornar os diversos eventos intramusicais mais claros (ou “visíveis”).
Ao integrar também diversos recursos extramusicais em sua reprodução, o intérprete os

8
KUEHN, Frank M. C. Anais do XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM), Uberlândia, MG, 2011. Disponível em: http://unesp.academia.edu/fmc

emprega para sublinhar certos elementos intramusicais para o ouvinte-espectador. Não


existindo um meio de anotá-los de maneira inequívoca, a realização do elemento
performativo depende fundamentalmente da experiência, do conhecimento, da
competência e da destreza técnica do intérprete que, nesse caso, também atua em prol de
melhorar o seu (des)empenho.

3. Considerações finais
Os argumentos e exemplos apresentados confirmam a tese de que o
emprego do termo performance necessita de mais ponderação quando for aplicado a
termos distintos da prática musical no contexto da tradição musical vienense.
Representando a dimensão performativa na tradição vienense um aspecto bastante
sublimado, predomina, em sua prática, o elemento interpretativo. Todavia, o fato de que
o elemento performativo esteja subordinado a critérios de interpretação não quer dizer
que também não tenha importância ou que seja um elemento menos produtivo para o
intérprete, o pesquisador ou o crítico musical. Em suma, vista como um todo, a prática
interpretativa designa um processo artístico multiforme e polissêmico, cuja abrangência
conceitual aumenta sensivelmente quando se lhe atribuem a reprodução e a performance
como elementos ativos.
Embora a grande maioria dos exemplos musicais escalonados por Schenker
trate da “arte de interpretar”, estranha que justamente o elemento interpretativo tenha
quase desaparecido do vocabulário da versão inglesa. Por essa razão, uma nota que
justificasse a opção ou que alertasse o leitor desprevenido do problema certamente teria
sido apropriado.

4. Referências bibliográficas
BARROS, Guilherme S. de; GERLING, Cristina C. Análise schenkeriana e
performance. In: Opus. Goiânia, v.13, n.2, p.141-160, dezembro de 2007. Disponível
em: <www.anppom.com.br/opus/opus13/209/09-Barros-Gerling.pdf>, acesso abr.
2011.
ESSER, Heribert. Editor’s note. In: SCHENKER, Heinrich. The Art of Performance.
Tradução de Irene Schreier Scott. Editado por Heribert Esser. Oxford: Oxford
University Press, 2000, p.xi-xxi.

9
KUEHN, Frank M. C. Anais do XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM), Uberlândia, MG, 2011. Disponível em: http://unesp.academia.edu/fmc

KOLISCH, Rudolf. Rudolf Kolisch. Zur Theorie der Aufführung. Ein Gespräch mit
Berthold Türcke. In: METZGER, H.-K.; RIEHM, R. (eds.). Musik-Konzepte, n.º 29,
30. Munique: Edition Text + Kritik, 1983.
KUEHN, Frank M. C. Interpretação – reprodução musical – teoria da performance:
reunindo-se os elementos para uma revisão conceitual do modelo recorrente das
práticas interpretativas. No prelo (junho 2011).
KUEHN, Frank M. C. Reprodução, interpretação ou performance? Acerca da noção de
prática musical na tradição clássico-romântica vienense. In: PRIMEIRO SIMPÓSIO
BRASILEIRO DE PÓS-GRADUANDOS EM MÚSICA (SIMPOM), Rio de Janeiro,
2010. Anais. Pesquisa em música: novas conquistas e novos rumos. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), p.747-757. O paper
também está disponível em: <www.unirio.br/simpom/textos/SIMPOM-Anais-2010-
FrankKuehn.pdf>, acesso abril 2011.
SCHENKER, Heinrich. The Art of Performance. Tradução de Irene Schreier Scott.
Editado por Heribert Esser. Oxford: Oxford University Press, 2000.
SCHÖNBERG, Arnold. Style and Idea. Berkeley: University of California Press, 1984.
SCHREIER SCOTT, Irene. Translator’s introduction. In: SCHENKER, Heinrich. The
Art of Performance. Tradução de Irene Schreier Scott. Editado por Heribert Esser.
Oxford: Oxford University Press, 2000, p.vii-ix.

5. Notas

1
Mais informações sobre o histórico do material e os procedimentos editoriais nas notas
introdutórias da tradutora (SCHREIER SCOTT, 2000) e do editor (ESSER, 2000).
Observações: 1) nas referências bibliográficas da The Art of Performance (SCHENKER, 2000),
também designada apenas de “Arte da Performance”, será usada a sigla “HS”; 2) salvo
indicação em contrário, a tradução das citações para o português, assim como as interpolações
no corpo de texto são de minha autoria.
2
Sendo assim, realmente tudo na vida pode ser encarado sob certa ótica da (ou de uma)
performance.
3
Diferenciemos entre o termo “práticas interpretativas”, no plural, e “prática interpretativa”, no
singular. O primeiro designa a disciplina acadêmica de mesmo nome, enquanto o segundo se
refere à prática musical propriamente.
4
“I claim performances have always taken a shape that has nothing to do with a true
reproduction. Because what ought to be known in order to perform a sonata by Beethoven is not
known, the musical world found it easy to assign a role to reproduction in music that is in
appalling contrast to its real origins” (HS: 4).
5
“Basically, a composition does not require a performance in order to exist. Just an imagined
sound appears real in the mind, the reading of a score is sufficient to prove the existence of the
composition. The mechanical realization of the work of art can thus be considered superfluous”
(HS: 3).
6
“Interpretation is necessary, to bridge the gap between the author’s idea and the contemporary
ear” (SCHÖNBERG, 1984: 328).

10
KUEHN, Frank M. C. Anais do XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM), Uberlândia, MG, 2011. Disponível em: http://unesp.academia.edu/fmc

7
“[…] the instrument that is being played; properties of the hall, the room, the audience; the
mood of the performer [leia-se intérprete], technique etc. […] In other words: those properties
must not given priority. Yet how casually will many an artist sacrifice the work of art – which
never should be sacrified! – to the hall, the audience, to his fingers!” (HS: 3).
8
Escreveu Schenker: “The profession of virtuoso, based on a lie, prevailed and attained the
recognition of artistic justification” (HS: 83).
9
“Each work of art has only one true rendition [leia-se reprodução] – its own, particular one”
(HS: 77).
10
“The most fateful error in the performance [leia-se interpretação] of a musical work is the
general view on the meaning of a composer’s mode of notation [...] the mere fact that our
notation hardly represents more than neumes should lead the performer [leia-se intérprete] to
search for the meaning behind the symbols [...] the autor’s mode of notation does not indicate
his directions for the performance [leia-se interpretação] but, in a far more profound sense,
represents the effect he wishes to attain [...] A literal interpretation robs one of the very means
leading to that effect” (HS: 5).
11
É correto que o vocábulo germânico Rahmen signifique “moldura”. Anschlag, porém, nesse
caso não se refere a “afixar a moldura”, como entendem BARROS e GERLING (: 146), e sim a
“toque” (touch), associado ao modo com que o intérprete se expressa gestual, mímica e
biomecanicamente ao instrumento.
12
“Herein lies the true secret of the art of performance: to find those peculiar ways of
dissembling through which – via the detour of the effect – the mode of notation is realized”
(HS: 6). Destaque para a tradução certeira do termo performance.
13
Schenker sublinha que o músico-intérprete deve ser sempre sincero consigo mesmo e estar em
busca da verdade, contexto em que condena a tendência ao virtuosismo de seu tempo (HS: 34 e
84).

11

Você também pode gostar