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IV

A modernidade

Assim vai, corre, procura. Que procura ele? Com


toda a certeza, este homem, tal como o representei, este
solitário dotado de uma imaginação activa, sempre via­
jando pelo grande deserto de homens, possui um objec­
tivo mais elevado do que o de um puro jlâneur, um
objectivo mais geral, que não o do prazer fugitivo da
circunstância. Ele procura aquela qualquer coisa que
nos permitiremos chamar a modernidade, pois não existe
melhor palavra para exprimir a ideia em questão. Trata­
-se, para ele, de retirar da moda aquilo que ela pode
conter de poético no histórico, de extrair o eterno do
transitório. Se lançarmos um olhar sobre as nossas ex­
posições de quadros modernos, notaremos a tendência
geral dos artistas para vestir todos os indivíduos com
fatos antigos. Quase todos se servem das modas e dos
móveis da Renascença, como David se servia das mo­
das e dos móveis romanos. Há no entanto uma dife­
rença: tendo David escolhido temas particularmente gre­
gos ou romanos, não podia senão vesti-los à antiga,
enquanto os pintores actuais, escolhendo temas de uma
natureza geral aplicáveis a todas as épocas, obstinam-se
em mascará-los com fatos da Idade Média, da Renas­
cença ou do Oriente. É evidentemente sinal de uma
grande preguiça, pois é muito mais cómodo declarar
que tudo é absolutamente feio no vestuário de uma
época, do que aplicar-se a extrair a beleza misteriosa
que nele pode estar contida, por mínima ou ligeira que
seja. A modernidade é o transitório, o fugitivo, o con­
tingente, a metada da arte, cuja outra metade é o eterno
e o imutável. Existiu uma modernidade para cada pintor
22 Charles Baudelaire

e o imutável. Existiu uma modernidade para cada pintor


antigo; a maior parte dos belos retratos que nos ficaram
de tempos anteriores estão revestidos de vestuário da
sua época. São perfeitamente harmoniosos porque o
fato, o penteado e mesmo o gesto, o olhar e o sorriso
(cada época tem o seu porte, o seu olhar e mesmo o seu
sorriso) formam um todo de uma completa vitalidade.
Este elemento transitório, fugitivo, cujas metamorfoses
são tão frequentes, não tendes o direito de o desprezar.
ou de o dispensar. Ao suprimi-lo, caireis forçosamente
no vazio de uma beleza abstracta e indefinível, como a
da única mulher antes do primeiro pecado. Se
substituírdes o vestuário da época, que necessariamente
se impõe, por um outro, cometereis um contra-senso,
que só terá desculpa no caso de uma mascarada preten­
dida pela moda. As deusas, as ninfas e as sultanas do
século xvm são assim retratos moralmente semelhantes
É sem dúvida excelente estudar os mestres antigo�
para aprender a pintar, mas se o vosso objectivo for o de
compreender o carácter da beleza presente, tal não pode
ser senão um exercício supérfluo. Os panejamentos de
Rubens ou de Veronese não vos ensinarão a fazer moiré
antigo, cetim real ou qualquer outro tecido das nossas
fábricas, armado, ondulado pela crinolina, ou as saias de
musselina engomada. A tecitura e a textura não são as
mesmas das dos tecidos da antiga Veneza ou daqueles
que eram usados na corte de Catarina. Acrescente-se
ainda que o corte da saia e do corpete é abs�Jutamente
distinto, que ·as pregas são dispostas num novo sistema,
e enfim, que o gesto e o porte da mulher actual dão ao
seu vestido uma vida e uma fisionomia que não são as
mesmas das da mulher antiga. Numa palavra, para que
toda a modernidade seja digna de tomar-se antiguidade,
é preciso extrair dela a beleza misteriosa que a vida
humana coloca involuntariamente nela. É a�sta tarefa
que o Sr. G. particularmente se dedica.
Acabei de di�er que cada época tem o seu porte, o
seu olhar, o seu gesto. É sobretudo numa vasta galeria
o pintor da vida moderna 23

de retratos (a de Versalhes, por exemplo) que se toma


fácil verificar esta proposição. Mas podemos levá-la
mais longe ainda. Na unidade a que se chama nação, as
profissões, as castas, os séculos introduzem a varie­
dade, não apenas nos gestos e nas maneiras mas tam­
bém na forma positiva do rosto. Tal nariz, tal boca, tal
fronte, preenchem o intervalo de uma duração que não
pretendo determinar aqui, mas que pode ser certamente
submetida a um cálculo. Tais considerações não são
suficientemente familiares aos retratistas; e o grande
defeito do Sr. lngres, em particular, é o de pretender
impor, a cada tipo que posa sob o seu olhar, um aper­
feiçoamento mais ou menos despótico, emprestado ao
repertório das ideias clássicas.
Nesta matéria, seria fácil, e mesmo legítimo, racio­
cinar a priori. A correlação perpétua daquilo a que
chamamos alma com aquilo a que ·chamamos corpo
explica muito bem de que modo tudo aquilo que é
material ou emanação do espiritual representa e repre­
sentará sempre o espiritual de onde deriva. Se um pin­
tor paciente e minucioso, mas de uma imaginação me­
díocre, se inspira (é a palavra consagrada), para pintar
uma cortesã do tempo presente, numa cortesã de Ticiano
ou de Rafael, é infinitamente provável que faça uma
obra falsa, ambígua e obscura. O estudo de uma obra­
-prima desse tempo e desse género não lhe ensinará a
atitude, nem o olhar, nem a expressão, nem o aspecto
vital de uma dessas criaturas que o dicionário da moda
foi sucessivamente classificando sob os títulos grossei­
ros ou ligeiros de impuras, mulheres teúdas e
manteúdas, lolas e gatinhas.
Esta mesma crítica pode rigorosamente aplicar-se
ao estudo do militar, do dandy, do animal mesmo, cão
ou cavalo, e de tudo o que compõe a vida exterior deste
século. Infeliz aquele que estuda no antigo algo mais do
que a arte pura, a lógica, o método geral! Ao deixar-se
mergulhar nele fundo de mais, perde a memória do
presente; abdica dos valores e dos privilégios forneci-
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dos pela circunstância, pois quase toda a nossa origina­


lidade nos vem da marca que o tempo imprime nas
nossas sensações. O leitor compreende de antemão que
eu poderia verificar facilmente as minhas asserções em
numerosos outros objectos para além da mulher. Que
diríeis, por exemplo, de um pintor de marinhas (levo a
hipótese ao extremo), o qual, tendo que reproduzir a
beleza sóbria e elegante do navio moderno, cansaria os
olhos a estudar as formas sobrecarregadas, rebuscadas,
a ré monumental do navio antigo e o velarne complica­
do do século XVI? E que pensaríeis de um artista que
tivésseis encarregado de fazer o retrato de um puro­
-sangue, célebre nas solenidades do turf, se esse artista
confinasse as suas contemplações aos museus, e se
contentasse em observar o cavalo nas galerias do pas­
sado, em Van Dyck, Bourguignon ou Van der Meulen?
O Sr. G., dirigido pela natureza, tiranizado pela
circunstância, seguiu uma via completamente diferente.
Começou por contemplar a vida, e só tarde exercitou o
seu engenho na aprendizagem dos modos de exprimir a
vida. Daí resultou uma originalidade marcante, na qual
aquilo que permanece de bárbaro e de ingénuo aparece
como uma prova nova de obediência à impressão, como
uma lisonja à verdade. Para a maior parte de nós, sobre­
tudo para a gente de negócios, aos olhos de quem a
natureza não existe a não ser nas suas relações de utili­
dade com esses negócios, o fantástico real da vida en­
contra-se particularmente enfraquecido. O Sr. G. absor­
ve-o incessantemente; tem dele a memória e os olhos
cheios.

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