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TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA E LETRAMENTO LITERÁRIO:

APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS*

Francisco Wellington Borges Gomes (UFPI/UESPI)

1. Introdução
A relação entre literatura e outras formas de expressão não é um fenômeno
recente. De fato, desde os primeiros manifestos literários produzidos ainda na
Antiguidade, após a apropriação da escrita por povos como os sumérios, os egípcios, os
fenícios, os gregos e os romanos, a literatura tem andado lado a lado com os mais diversos
sistemas de representação, tais como o teatro, a escultura e a pintura, dentre vários outros.
As narrativas orais sumérias e gregas, todavia, nos mostram que nem sempre foi
a escrita o principal código associado à produção literária. Presentes em um período
histórico anterior ao advento da escrita e usadas como forma de registro e manutenção do
conhecimento, essas narrativas eram ritmadas para facilitar a memorização e, ao mesmo
tempo, perpetuadas de geração em geração com o auxílio de encenações e de músicas
para prender a atenção da audiência. Essas formas de expressão literária perduraram por
séculos até que pudessem, ainda na Antiguidade, formar as bases para as primeiras obras
literárias escritas das quais se têm registro. De forma semelhante, no Antigo Egito as
narrativas mitológicas para a criação do universo e do próprio homem eram representadas
por meio de uma associação entre caracteres escritos, pinturas (em paredes de templos,
em vasos de cerâmica, em afrescos e em pergaminhos) e esculturas. Isso nos mostra que
a percepção do mundo pelo egípcio da Antiguidade se dava por meio de representações
semióticas diversas e não somente por meio da escrita. Essa também é uma característica
da cultura greco-romana, em que imagens, encenações e a música desempenhavam um
papel importante na construção de narrativas de valor histórico, ideológico e estético.
De modo geral, no mundo ocidental, mesmo após o estabelecimento da cultura
escrita como aquela predominante, outros modos de produzir e de consumir literatura
continuaram vigentes. Shakespeare, um dos grandes nomes da literatura mundial, por
exemplo, produziu boa parte de sua obra narrativa por meio de peças teatrais, dando
continuidade à literatura cênica grega e à tradição trovadoresca da Idade Média.

*GOMES, F. W. B. Tradução intersemiótica e letramento literário: aproximações e


distanciamentos. In: FARIA, M. G. S; ARANHA, M. B. R; ARAÚJO, N. S. Letras em Foco: a
linguagem sob diversos olhares. São Luís: EDUFMA. 2019. p.187-208. ISBN: 978-85-7862-
863-5.
Assim como o teatro, a música também teve uma contribuição histórica
importante na produção e recepção de textos literários ao longo dos séculos. Von Rücket
(1997), ao discutir sobre o papel da música na produção literária universal, por exemplo,
aponta que as duas formas de expressão têm uma origem em comum, já que a primeira
surgiu do canto, que consiste na poesia declamada melodiosamente. Ainda para o autor,
essa afinidade se intensificou na Idade Média por meio dos cantos litúrgicos, que
reproduziam as sagradas escrituras e que são considerados por ele como literatura
produzida com a finalidade de catequizar. Von Rücket ainda aponta a ópera barroca como
um dos principais movimentos de integração entre música e literatura escrita, já que ela
associava encenações e dança ao texto literário tradicional, permitindo-lhe alcançar uma
nova dimensão. Naquela época, também se tornaram populares os libretos, volumes
impressos contendo o texto poético a ser cantado durante a ópera.
Posteriormente, já no século XIX, a opereta, um gênero mais adaptável aos novos
públicos consumidores daquele século, auxiliou na popularização de inúmeras obras
literárias. Embora trouxessem com frequência traduções de outros textos, tanto as óperas
quanto as operetas eram consideradas como obras originais de inegável valor literário.
As operetas foram a inspiração para o surgimento dos musicais ingleses e norte-
americanos no século XX, popularizados mundialmente pelo cinema no período entre
guerras. Elas também moldaram o crescimento do teatro musical contemporâneo. Mais
recentemente o reconhecimento da música como parte universal do tesouro literário foi
confirmado pelo Prêmio Nobel de Literatura de 2016, agraciado a Bob Dylan “por haver
criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição poética americana”1(THE
NOBEL PRIZE, 2019). Esses exemplos nos mostram que a gênese e o desenvolvimento
do fazer literário são consequência da integração de múltiplos modos semióticos de
representação, e não apenas da adoção do texto escrito como suporte para as experiências
estéticas que moldaram os nossos conhecimentos e visões de mundo.
Ainda no Século XX essa relação entre literatura escrita e outras manifestações
literárias2 foi reforçada por fenômenos midiático tais como a TV, o cinema e o

1
“For having created new poetic expressions within the great American song tradition” (Tradução nossa)
2
O objetivo deste trabalho não é discutir o conceito de literatura, uma vez que as inúmeras divergências
teóricas que tratam do tema inevitavelmente levam a pontos de vista distintos e, frequentemente,
conflitantes. Mesmo assim, é inegável assumir que a literatura se manifesta por outros meios e textos que
não somente os escritos.

*GOMES, F. W. B. Tradução intersemiótica e letramento literário: aproximações e


distanciamentos. In: FARIA, M. G. S; ARANHA, M. B. R; ARAÚJO, N. S. Letras em Foco: a
linguagem sob diversos olhares. São Luís: EDUFMA. 2019. p.187-208. ISBN: 978-85-7862-
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computador. Se, inicialmente, a literatura era a fonte para a produção teatral e musical,
no último século ela se associou à produção cinematográfica e televisiva. Com isso, ela
tem deixado, gradualmente, de se ver como um sistema fechado em si mesmo para andar
lado a lado com outras formas de expressão igualmente dotadas de valor literário. Desse
modo, hoje muitas vezes é o cinema e a TV que servem de motivos para a criação de
textos literários impressos. Assim, nos dias de hoje é difícil falar de literatura adotando
a visão limitadora de que ela está associada apenas à cultura escrita tradicional, já que
outros sistemas de signos (visual, sonoro, táctil etc.) também atuam na constituição e na
divulgação de textos literários.
Apesar disso, muitos dos discursos que tratam da literatura na contemporaneidade
(seja por meio da produção acadêmica universitária ou das práticas escolares de formação
de leitores) não valorizam o potencial estético-literário de obras produzidas ou traduzidas
em outros meios semióticos que não o escrito e o impresso. Isso é perceptível facilmente
quando se observa que a leitura do livro ainda é vista como a forma natural de contato
com o texto literário, enquanto que outros modos de expressão narrativa e poética
(notadamente as audiovisuais) ainda são majoritariamente associadas a outras áreas como
o entretenimento, recebendo, como isso, conotações que as identificam como
manifestações artísticas inferiores ou menos dignas. Dentro dessa perspectiva, filmes,
programas de TV, músicas, videoclipes, desenhos animados, dentre outros sistemas de
expressão multissemióticos são vistos com frequência como mecanismos secundários de
promoção de contato com textos literários. Ao contrário do que acontecia com as operas
e as operetas dos séculos XVIII e XIX, os textos da mídia moderna, notadamente aqueles
produzidos a partir de outros textos anteriores, tendem a ser vistos como obras não
originais, ou meras traduções sem “alma” ou criatividade e, consequentemente, com
menor valor literário e artístico.
Essa perspectiva encontra força por meio do uso do termo “adaptação” para
descrever esses “textos secundários”. Prenhe de uma carga semântica negativa, o
vocábulo “adaptação” sugere algo que não é original ou autônomo, trazendo consigo uma
conotação de inferioridade a algo que é, por sua vez, autêntico e original (geralmente o
texto literário impresso). Em parte, isso se deve ao fato de que ao longo da história a
escrita sempre assegurou àqueles que a dominavam uma posição de prestígio e poder em
determinados grupos sociais, especialmente sobre aqueles que não se apropriaram dela.

*GOMES, F. W. B. Tradução intersemiótica e letramento literário: aproximações e


distanciamentos. In: FARIA, M. G. S; ARANHA, M. B. R; ARAÚJO, N. S. Letras em Foco: a
linguagem sob diversos olhares. São Luís: EDUFMA. 2019. p.187-208. ISBN: 978-85-7862-
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Segundo Soares (2004), no processo histórico de diferentes culturas letradas, o caráter
civilizatório ocorreu com a instituição de uma língua e, posteriormente, a introdução da
escrita, com características próprias e singulares daquela comunidade, para consolidar sua
identidade política e cultural. Dessa forma, devido a uma tradição sociocultural que
enfatiza o letramento como sinônimo de empoderamento, tendemos a valorizar o escrito
e o impresso nos mais diversos contextos e áreas do saber, inclusive no que diz respeito
ao conhecimento literário. Entretanto, a adoção desse ponto de vista exclui,
inevitavelmente, outras formas de expressão estética e de cultura, especialmente nos dias
atuais, em que textos multissemióticos e multimidiáticos se popularizam rapidamente e
começam, em alguns contextos, a se tornarem mais relevantes que os meios de
representação verbais escritos.
Contudo, em oposição à visão de inferioridade dos textos veiculados em outros
suportes e códigos, encontra-se a crescente popularização de discussões que adotam a
perspectiva da Tradução Intersemiótica nos estudos literários. Definida por Jakobson
(1959) como a interpretação de sinais verbais por meio de sinais não verbais, ou vice-
versa, a Tradução Intersemiótica adota a visão culturalista de que a transposição de
sentidos de um meio semiótico para o outro envolve processos complexos de autoria e
criatividade, dando ao texto traduzido o status de texto original. Com isso, ela se liberta
da noção de adaptação com conotações inferiorizadoras. Da mesma forma, a adoção da
Tradução Intersemiótica como uma teoria de análise literária sugere que a literatura está
presente nos mais diversos tipos de textos e suportes, sejam eles impressos, digitais,
imagéticos, tácteis, sonoros ou audiovisuais, expandindo o contato literário a públicos
que, por inúmeros motivos, não estão imersos em uma cultura estritamente verbo-letrada.
Para Diniz (1999), dentre os argumentos a favor da originalidade e da igualdade
entre o texto audiovisual e o texto escrito impresso está o fato de que os “filmes ditos
adaptados” não se limitam a traduzir apenas uma fonte primária, tampouco visam
meramente a transferência literal de sentidos do texto escrito. Dessa forma, mesmo que
a narrativa nos dois meios fosse a mesma, na tradução intersemiótica a presença de
elementos como a fotografia, a trilha sonora, a cenografia, o figurino, a montagem, dentre
outros aspectos característicos dos textos audiovisuais garantiriam sua originalidade.
Esses argumentos, expõem, ainda, algumas das contradições que envolvem a
supervalorização da literatura verbal e a negação do valor literário do audiovisual:

*GOMES, F. W. B. Tradução intersemiótica e letramento literário: aproximações e


distanciamentos. In: FARIA, M. G. S; ARANHA, M. B. R; ARAÚJO, N. S. Letras em Foco: a
linguagem sob diversos olhares. São Luís: EDUFMA. 2019. p.187-208. ISBN: 978-85-7862-
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Enquanto para uns os textos audiovisuais parecem ser marcados pela falta de
originalidade, para outros é a originalidade do audiovisual o grande problema, pois ela
ameaçaria o valor estético do texto original, corrompendo-o.
Nesse caso, é preciso considerar que os textos escritos também são produzidos a
partir de outros textos anteriores, da mesma forma que compartilham elementos
recorrentes entre si, tais como as características e temáticas preferidas por cada autor.
Isso, contudo, não parece diminuir o valor literário dos textos escritos, tampouco faz com
que sua originalidade se apresente como um problema. Por que, então, seriam esses os
pontos negativos das obras traduzidas para o cinema e a TV? Na verdade, vemos que a
questão repousa menos sobre o valor do texto literário em si e mais sobre o fato de que
os textos traduzidos se manifestam por meios semióticos aos quais tradicionalmente se
tem atribuído pouco prestígio.
Ao partir dessa problemática, esse texto busca refletir sobre o papel das mídias e
da tradução audiovisual no contato com textos literários divulgados na
contemporaneidade. Para isso, analisamos o conceito de Letramento Literário a partir de
uma perspectiva multiletrada, ou seja, que valoriza igualmente as mais diversas formas e
produção e recepção de conhecimentos, considerando as necessidades da era da
informação digital. Apresentaremos, ainda alguns exemplos de traduções audiovisuais
que contribuem para a promoção do contato com textos literários e a formação de leitores
para defender o ponto de vista de que textos audiovisuais traduzidos a partir de textos
escritos ao invés de distanciar aproximam a literatura de um público contemporâneo
acostumado à integração de múltiplos meios semióticos nos textos que consomem.

2. Letramento Literário e as demandas atuais de formação de leitores

O conceito de Letramento (no singular) tem sido usado no Brasil desde a década
de 1980 para descrever as práticas sociais decorrentes da apropriação de leitura e da
escrita. De forma resumida, podemos dizer que ele descreve o modo como a apropriação
da leitura e da escrita operam mudanças na vida (nos mais diversos aspectos) daqueles
que se tornam seus usuários competentes. Nesse sentido, textos verbais são vistos como
instrumentos de empoderamento social por meio do qual os indivíduos podem mudar a
sua realidade. Ser letrado, entretanto, implica na não passividade e está longe de

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distanciamentos. In: FARIA, M. G. S; ARANHA, M. B. R; ARAÚJO, N. S. Letras em Foco: a
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representar somente a capacidade de ler textos. É preciso saber ler (decodificar), avaliar
a leitura criticamente e saber produzir textos por meio dos quais se busca a ação, seja ela
ideológica, social ou estética. Aliás, são essas duas últimas dimensões do letramento que
diferenciam o seu conceito do de alfabetização. Enquanto a alfabetização transforma
indivíduos em codificadores/decodificadores de textos, o letramento os transforma em
indivíduos capazes de serem agentes sociais por meio do estímulo à crítica, à reflexão e
à produção de conteúdo. Juntos, esses três elementos podem permitir ao indivíduo
assumir posturas e operar mudanças tanto no âmbito social, quanto cultural e econômico.
O lado social do letramento está presente já em uma das obras inaugurais do
conceito, proposto por Brian Street, nos Estados Unidos em 1984. No contexto brasileiro,
a primeira menção ao termo não demorou muito a surgir. A partir da obra de Mary Kato
(1986), uma perspectiva nacional para os estudos do letramento foi cada vez mais sendo
construída, especialmente nos trabalhos subsequentes de Tfouni (1988); Kleiman (1995),
Soares (1998), dentre vários outros. Para as autoras, tornar-se letrado é, na verdade, um
processo amplo, cabendo ao indivíduo adquirir a capacidade reflexiva sobre o sistema
simbólico da escrita e compreender que este não é estável, mas mutável, em constante
processo transformador, efetuado pelo indivíduo letrado e pela sociedade que se
reformula constantemente.
O Letramento Literário, por sua vez, é um conceito relativamente recente que
busca compreender as práticas de leitura do texto literário, em oposição às práticas
escolarizadas tradicionais de ensino de literatura. Apesar da sua relação com o termo
Letramento, ele deriva diretamente do termo “Multiletramentos”, criado em 1994 pelo
Grupo de Nova Londres (NEW LONDON GROUP, 1996), que discutia formas de se
repensar as práticas de letramento em meio a um contexto escolar cada vez mais
influenciado pelas tecnologias da informação e da comunicação. Para isso, seus membros
propuseram uma pedagogia de multiletramentos, ou seja, a expansão e aplicação dos
princípios de letramento às mais diversas áreas do conhecimento como forma de integrar
práticas sociais às ações educacionais que emergiam nos anos 90, tais como os uso do
computador e de multimídias. Na prática, eles expandiam o termo, dando a ele uma
conotação plural ao mesmo tempo em que reafirmavam seu lado social.
Para Baleiro (2011), embora letramento e literatura tenham, durante muito tempo,
feito parte de construtos teóricos distintos, eles têm, na verdade, muita coisa em comum,

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uma vez que ambos estão preocupados com os processos de produção de significados e
com as reações individuais e coletivas a diversos tipos de textos. Nesse sentido, as
recentes discussões sobre o letramento literário buscam novos olhares sobre a forma como
leitores leem e interpretam textos literários, motivados tanto por escolhas individuais
quanto contextuais.
Igualmente, para Frederking et al. (2012), até pouco tempo, por causa do caráter
artístico e da ambiguidade do texto literário, poucas abordagens teóricas buscavam
descrever os processos de construção do sentido do texto literário pelo leitor, o que
ocasionou um distanciamento entre as pesquisas sobre leitura e aquelas relacionadas à
literatura. Entretanto, para os autores, o surgimento de teorias voltadas para os processos
de leitura e produção de textos aplicadas aos textos literários são importantes para que se
possa refletir e compreender os processos de construção de significados nos textos
literários, dentro e fora da escola.
No ensino de literatura, práticas como a ênfase excessiva na abordagem histórica
levaram à mecanização e consequente desfavorecimento da reflexão e crítica por meio do
contato com o texto literário. Ao criticar essa postura mecanicista na aula de literatura,
na década de 80, Lajolo (1982, p. 15) nos diz que “ou o texto dá sentido ao mundo, ou ele
não tem sentido nenhum. E o mesmo se pode dizer de nossas aulas”. Igualmente, ao
criticar a ausência do ensino de literatura voltado para o desenvolvimento do leitor crítico,
Zilberman, (1989, p. 49) nos diz que "raramente a escola se preocupa com a formação do
leitor. Seu objetivo principal consiste na assimilação, pelo aluno, da tradição literária,
patrimônio que ele recebe pronto e cujas qualidades e importância precisa aceitar e
repetir".
Posteriormente, com o surgimento de novas perspectivas teóricas sobre o ensino
de leitura, percebeu-se a improdutividade de práticas didáticas que viam o ensino como
mecanismo meramente técnico. Essas práticas didáticas, por sua vez, afetavam
diretamente a forma como as novas gerações de leitores lidavam com os textos literários.
A leitura e a literatura passaram, então, a ser ensinadas em uma perspectiva social,
seguindo os pressupostos dos letramentos/multiletramentos. Foi difundida a visão de que
a escola deveria ensinar a ler para que as pessoas pudessem atingir diferentes objetivos,
fossem eles adquirir conhecimentos, interagir socialmente, avaliar e selecionar a

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informação criticamente, agir de forma a mudar sua situação socioeconômica, dentre
outros.
Dentro dos estudos literários do letramento, tem se discutido com afinco a
formação de leitores de textos literários e as práticas escolares que levaram ao
afastamento da literatura por prazer. Entre as principais causas para esse afastamento,
são geralmente citadas a abordagem histórica adotadas pelas escolas, a pouca relação dos
textos escolares com a realidade dos alunos e o uso de outras ferramentas que não o texto
literário verbal, que para alguns distancia o leitor do contato com a literatura real e
autêntica. Com isso, apesar de um aparente viés crítico, percebe-se uma discussão mais
voltada para a promoção de uma leitura que tenha como objetivo predominante a
apreciação estética da obra literária e pouco se vê de reflexões sobre como o contato com
a literatura pode contribuir para a formação de leitores críticos, conscientes de seu papel
no mundo e capazes de mudar a realidade social em que estão inseridos.
Com isso, o conceito de Letramento Literário toma um rumo próprio, marcado
pela desassociação ideológica do termo com a multiplicidade de formas de expressão e
significação que caracterizam a linguagem e a cultura. Isso acaba representando uma
forte negação aos fatores que motivaram a adoção dos multiletramentos por outras áreas
do conhecimento. Em geral, é possível perceber que um número considerável de autores
que trabalham com o conceito de Letramento Literário apoia a ideia de que ele é
decorrente somente do contato com a obra original impressa. Nessa perspectiva, as
tecnologias da informação e comunicação (computador, cinema, TV, internet, etc.) são
instrumentos que promovem o afastamento do leitor da obra literária e não a sua
aproximação. Essa, contudo, não é a visão defendida por outras perspectivas de
letramento, como a de Letramento Multimodal, a do Letramento Visual, a do Letramento
Digital, a do Letramento Crítico, a do Letramento Informacional, dentre outras correntes
teóricas que também surgiram a partir da concepção de multiletramentos. Essa postura,
entretanto, parece natural se buscarmos entender que o Letramento literário tem sido
adotado como uma proposta de mudança das práticas tradicionais de leitura literária na
escola, que durante muito tempo priorizou o estudo de períodos literários em detrimento
do contato com obras que fossem mais significativas para os jovens leitores em formação.
Isso, entretanto, acabou levando a uma supervalorização do contato com o que se acredita

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linguagem sob diversos olhares. São Luís: EDUFMA. 2019. p.187-208. ISBN: 978-85-7862-
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ser um texto literário autêntico e à negligência de que a autenticidade e a originalidade,
especialmente na literatura, são conceitos relativos.
Cosson (2009, p.23) chama a atenção para a necessidade de promoção do
letramento literário no ambiente escolar. Para o autor, “o letramento literário é uma
prática social e, como tal, responsabilidade da escola”. É por meio dele que cidadãos-
leitores críticos são formados. Por sua vez, ao compararem o conceito tradicional de
letramento à noção de letramento literário, Cosson e Souza (2011, p. 102) nos dizem que:
O letramento literário faz parte dessa expansão do uso do termo
letramento, isto é, integra o plural dos letramentos, sendo um dos usos
sociais da escrita. Todavia, ao contrário dos outros letramentos e do
emprego mais largo da palavra para designar a construção de sentido em
uma determinada área de atividade ou conhecimento, o letramento
literário tem uma relação diferenciada com a escrita e, por consequência,
é um tipo de letramento singular.

Embora apresente uma forte filiação teórica com a perspectiva social de


letramento, para que o letramento literário seja desenvolvido, os autores sugerem quatro
etapas didáticas a serem trabalhadas na aula de leitura. São elas: a motivação para a
leitura, a apresentação do autor e da obra, a leitura do texto em si e a interpretação da obra
de acordo com os construtos sociais e culturais de cada comunidade de leitores. Vemos,
contudo, que apesar de identificar o letramento literário com as práticas sociais de leitura,
acepção emprestada da linguística, os autores defendem que o contato com o texto
literário deva ocorrer única e somente por meio do texto original, sem a mediação de
resumos, filmes, minisséries, dentre outros, afastando-se ao mesmo tempo de uma filiação
à perspectiva dos multiletramentos (que consideram toda e qualquer forma de expansão
humana como uma atividade potencialmente letrada). Como já mencionamos, a premissa
por trás dessa postura é a de que as traduções de obras literárias, incluindo-se aquelas para
os meios audiovisuais, proporcionariam, de um lado, somente um contato superficial com
a obra e, de outro, o contato com traduções que fugiriam à fidelidade do texto original.
Esse, entretanto, é um ponto passível de controvérsias. Nunes (2006, p.11), por
exemplo, afirma que a tradução de obras literárias para outros suportes, como a TV e o
cinema, por exemplo, pode gerar dois efeitos: tanto o de distanciar o leitor da obra
literária original, quanto o de aproximá-lo dela. Sobre as diferenças entre obra original e
obra midiática traduzida, a autora esclarece que os novos significados e sentidos
alcançados pelas traduções da mídia são inerentes às mudanças dos meios de

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comunicação, tal como aconteceu quando a imprensa foi substituída pelo rádio e o cinema
pela TV. Nesses casos, novos meios midiáticos inevitavelmente provocam mudanças nas
características dos textos por eles divulgados. A autora ressalta ainda que cada suporte,
em seu processo criativo, tem suas próprias regras e por isso muitas vezes passam a
construir novas obras, que podem ou não reproduzir os sentidos e ideologias da obra
original.
De fato, alterações do texto literário decorrentes de mudanças do suporte em que
ele é publicado não é algo característico apenas das mídias audiovisuais. No século XIX,
por exemplo, quando romances deixaram os livros e passaram a ser publicados em jornais
para atender a novos hábitos de um público ávido pela leitura, a fragmentação do texto e
a sucessividade da narrativa nas edições seguintes visavam tanto instigar o apetite e
curiosidade do leitor quanto o aumento da tiragem dos jornais. Nadaf (2009, p. 123), ao
discutir sobre as primeiras décadas do romance-folhetim no Brasil, nos diz que “o
folhetim se constituiu, em sua quase-totalidade, de traduções dos clássicos do romance-
folhetim, de novelas curtas e do romance tradicional francês.”
Guimarães (1996, p. 192), por sua vez, ao discutir o papel da TV na divulgação
literária no Brasil a partir da década de 50, nos diz que “jamais existiu entre nós uma
literatura popular de alcance nacional”. Segundo o autor, foi a televisão que recentemente
passou a satisfazer a necessidade de ficção e poesia de grande parte da população
brasileira. Nas palavras do autor:
A recorrência à literatura, portanto, atravessa a história da TV brasileira
em adaptações de textos literários realizadas por diversos tipos de
programa. De 1952 a 1994, foram 223 novelas adaptadas de textos
literários, o que corresponde a mais de um terço de todas as telenovelas
produzidas nesse período.

3. O contato literário por meio de traduções audiovisuais.

O surgimento de novos artefatos tecnológicos sempre provocou efeitos na


produção e divulgação de textos literários. Das tábuas de argila do século VII a. C.,
passando pela invenção da prensa, no século XV, indo até o surgimento das narrativas
visuais no cinema, na televisão e na internet, no século XX, temos visto profundas
modificações no modo de produzir e consumir textos literários.

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distanciamentos. In: FARIA, M. G. S; ARANHA, M. B. R; ARAÚJO, N. S. Letras em Foco: a
linguagem sob diversos olhares. São Luís: EDUFMA. 2019. p.187-208. ISBN: 978-85-7862-
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Dentre elas está a conexão entre literatura e cinema, que frequentemente se
reinventa, como é o caso da crescente tradução para o cinema de obras literárias que
durante muito tempo foram consideradas como inferiores aos textos literários
tradicionais, dentre elas as HQs e livros infanto-juvenis. Esse também é o caso de livros
inspirados/traduzidos a partir de filmes, subvertendo a relação de superioridade-
inferioridade entre obra literária original e produção cinematográfica traduzida, tal como
ocorreu com a produção cinematográfica “O Discurso do Rei”, filme britânico lançado
em 2010, e o livro quase homônimo “O Discurso do Rei: como um homem salvou a
monarquia britânica”, publicado em 2011 a partir da ideia original cinematográfica.

FIGURA 01: Mudanças na relação cinema – literatura: à esquerda, cartaz do filme de 2010; à direita, capa
do livro de 2011.
Fontes: http://www.ccine10.com.br/wp-content/uploads/2013/05/O-DISCURSO-DO-REI.jpg
http://blooks.com.br/wp-content/uploads/2011/02/o-discurso-do-rei.png

Assim como o cinema, a TV (criada na década de 20 e popularizada no Brasil a


partir da década de 50 com a importação de 200 aparelhos por Assis Chateaubriand),
mantém uma relação muito próxima com a literatura. Barbosa (2010, p. 19), ao citar
trechos do Discurso de Chateaubriand na cerimônia de inauguração da primeira
transmissão televisiva no país, em 18 de setembro de 1950, nos mostra como a visão
daquele novo artefato tecnológico, àquela época, já indicava uma aproximação com a
literatura. Nas palavras da autora:

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A televisão era uma ‘máquina’ capaz de influenciar a opinião pública
e, ao mesmo tempo, uma “máquina” que diminuía distâncias e
possibilitava a exacerbação da imaginação fantasiosa de um mundo
provável e possível. ‘Uma máquina que dá asas à fantasia mais
caprichosa’ e capaz de ‘juntar os grupos humanos mais afastados’.

Para Pereira (2002, p. 165-166), no Brasil o texto televisivo é, de longe, o veículo


de comunicação com maior força de penetração em todo o conjunto da população, seja
pelo modelo de massa, ou TV aberta, que difunde um patrimônio de informação para
públicos vastos e diversificados, seja pelo modelo segmentado, ou TV fechada, voltado
para um público de maior poder aquisitivo, com demandas mais particularizadas. Em
ambos os casos, ela tem tido um papel essencial na divulgação de valores, hábitos e estilos
de vida, assim como na formação de uma opinião pública de âmbito nacional. Ainda
segundo o autor, nas últimas décadas foi ela a responsável pela construção e/ou reforço
de uma identidade, de um sentimento e de uma imagem nacionais.
Igualmente, para Cesário (2008), embora a literatura escrita, o cinema e a televisão
ocupem diferentes posições valorativas no âmbito da sociedade, na cultura
contemporânea elas convivem no imaginário do público consumidor. Para ela, o fato de
que, no Brasil, adaptações literárias para a TV são em grande parte baseadas na literatura
nacional aproxima o leitor/expectador de sua identidade cultural local. Ainda, as
diferenças entre o texto literário e a obra audiovisual refletem, ao invés de um
distanciamento, uma aproximação de caráter essencialmente intertextual por meio de uma
cadeia infinita de referências a outros textos. Essa intertextualidade, por sua vez, colabora
para o enriquecimento tanto do texto na TV e no cinema quanto do próprio texto literário
tradicional, aproximando-o de novos públicos. Nas palavras da autora:
A repercussão de uma obra literária ganha novo impulso quando ela é
adaptada para televisão ou o cinema, podendo ainda gerar novos textos
literários, criados a partir das filmagens, como os roteiros e livros de
fotos. A apropriação e a ressignificação de produtos culturais pelos
meios de comunicação de massa projetam as obras para diferentes
públicos e atribuem às mesmas novos significados e sentidos. Quando
uma obra literária é adaptada para um meio audiovisual, ela ganha nova
força. (CESÁRIO, 2008)

Sobre esse enriquecimento da literatura por meio das mídias audiovisuais, Bessa
(2006) nos diz que nesta relação complexa e abrangente entre TV e literatura, as
produções televisivas buscam dar validade cultural a suas criações, utilizando-se, para
isso, de aproximações e afastamentos com o texto literário. Como exemplo, o autor cita

*GOMES, F. W. B. Tradução intersemiótica e letramento literário: aproximações e


distanciamentos. In: FARIA, M. G. S; ARANHA, M. B. R; ARAÚJO, N. S. Letras em Foco: a
linguagem sob diversos olhares. São Luís: EDUFMA. 2019. p.187-208. ISBN: 978-85-7862-
863-5.
as inúmeras edições produzidas pela TV do Sítio do Pica-Pau Amarelo, cada uma
ancorada em um contexto que reflete o período e os valores culturais vigentes na época
de sua produção.
A obra de Monteiro Lobato, por sinal, é um bom exemplo de como a tradução
intersemiótica atua na divulgação da literatura. Os personagens, que nos livros de Lobato
habitavam o Sítio do Pica-Pau Amarelo, são, no Brasil, amplamente conhecidos por
pessoas de todas as idades e contextos sociais, culturais e econômicos. Esse
conhecimento, entretanto, se deve, em sua grande maioria, pelo contato com as produções
televisivas, ao invés da leitura do texto literário escrito em si.
A seguir, podemos observar as imagens de 5 edições do programa de TV,
veiculadas em diferentes momentos da história da TV brasileira. Juntas, elas colaboraram
para a incorporação dos personagens e de alguns temas e narrativas à cultura popular de
massa.

FIGURA 02: 5 momentos do Sítio do Pica-Pau Amarelo na TV brasileira.


Fonte: http://infantv.com.br

Outro exemplo da aproximação entre literatura e a tradução intersemiótica pode


ser encontrado no conto de José Saramago, A Maior Flor do Mundo. Publicado
originalmente pelo autor em 2001, a obra é uma narrativa para crianças. Nela, Saramago
brinca com a possiblidade de escrever uma história infantil ao dizer que não tem as
qualidades necessárias para escrever esse tipo de história, mas se as tivesse, ela seria a
história mais bela do mundo. Assim, o autor vai, em metalinguagem, narrando como um

*GOMES, F. W. B. Tradução intersemiótica e letramento literário: aproximações e


distanciamentos. In: FARIA, M. G. S; ARANHA, M. B. R; ARAÚJO, N. S. Letras em Foco: a
linguagem sob diversos olhares. São Luís: EDUFMA. 2019. p.187-208. ISBN: 978-85-7862-
863-5.
menino, ao cuidar de uma flor, acabou cultivando a maior flor do mundo e o afeto de
todos na vila onde morava.
A partir do texto de Saramago, Juan Pablo Etcheberry produziu, em 2006, um
breve vídeo de animação contendo a narrativa do autor português. Com 10 minutos de
duração, o vídeo conta com a participação de próprio Saramago, que tanto narra os
eventos, quanto é representado como um dos personagens do texto audiovisual. A seguir,
podemos observar a imagem da capa do livro ao lado do pôster promocional do curta-
metragem.

FIGURA 03: A Maior Flor do Mundo (Imagem editada).


Fontes: http://animacao-digital.blogspot.com
https://www.fnac.pt

A maior flor do mundo ilustra o fato de que literatura escrita e produções


audiovisuais assumem cada vez mais relações de complementariedade entre si. Embora,
como discutirmos anteriormente, essa relação não seja nova, o recente avanço e
popularização das tecnologias audiovisuais e digitais provocam cada vez mais o
estreitamento entre esses dois domínios de representação. Ao menos nesse aspecto, o
conceito de letramento literário se reconcilia com os princípios fundadores do letramento
e dos multiletramentos, já que para esse conjunto teórico, hoje em dia, não somos mais
apenas consumidores de textos audiovisuais, mas produtores ativos desse tipo de texto.
Inevitavelmente, isso faz com que os textos audiovisuais (literários ou não) se

*GOMES, F. W. B. Tradução intersemiótica e letramento literário: aproximações e


distanciamentos. In: FARIA, M. G. S; ARANHA, M. B. R; ARAÚJO, N. S. Letras em Foco: a
linguagem sob diversos olhares. São Luís: EDUFMA. 2019. p.187-208. ISBN: 978-85-7862-
863-5.
popularizem a uma grande velocidade. Sobre essas mudanças sofridas pela literatura
tradicional em decorrência da popularização de novos suportes, Chartier (2000) nos diz
que a história da leitura é marcada por três revoluções, que motivaram o surgimento de
diferentes modos de ler, gêneros e suportes.
A primeira revolução da leitura, nas palavras de Chartier, é anterior àquela
ocorrida com o desenvolvimento da impressão e consiste no longo processo que leva um
número crescente de leitores a passar de uma prática de leitura necessariamente oral, na
qual ler em voz alta era indispensável para a compreensão do significado, para uma leitura
visual, puramente silenciosa. Nesse caso, vemos como a leitura literária passou a priorizar
certos conjuntos semióticos em detrimento de outros. A popularização e a redução de
custos de produção de livros a partir do século XV fizeram com quem a literatura fosse
associada ao verbal escrito, afastando-se cada vez mais de uma forma de expressão
naturalmente multissemiótica.
A segunda revolução se concretiza a partir do século XVIII, com a criação de
novos gêneros e novas práticas de leitura, como, por exemplo, a mudança da leitura
comunal e respeitosa (textos religiosos impregnados de sacralidade e autoridade) para
uma leitura mais irreverente e desprendida em que “os novos leitores devoravam um
grande número e uma imensa variedade de impressos efêmeros”. Isso contribuiu para a
valorização do livro enquanto um artefato de poder, já que a quantidade de livros lidos
passou a ser um índice da erudição dos indivíduos. Desse período vem a ideia do livro
como um “tesouro” cultural, desejado por todos, mas ainda acessível a poucos.
Curiosamente, essa dicotomia é o que deu à literatura escrita e impressa parte do valor
que ela tem hoje em dia e conduziu à desvalorização de outras manifestações literárias.
A terceira revolução ocorre com a transmissão eletrônica, ou seja, a passagem dos
textos do livro impresso para a tela do computador ou da TV, que provocou alterações na
relação do leitor com o texto. Com o advento dos fenômenos multimidiáticos (a TV, o
cinema e o computador, dentre outros) a literatura impressa gradualmente deixa de ter
um caráter superior para andar lado a lado com outras formas de expressão literária, de
modo que muitas vezes é o cinema e a TV que servem de motivos para a criação de outros
textos literários.
Nesse contexto, hoje em dia é difícil falar de literatura adotando somente uma
visão associada à cultura escrita tradicional, apesar da persistência de muitos nesse ponto

*GOMES, F. W. B. Tradução intersemiótica e letramento literário: aproximações e


distanciamentos. In: FARIA, M. G. S; ARANHA, M. B. R; ARAÚJO, N. S. Letras em Foco: a
linguagem sob diversos olhares. São Luís: EDUFMA. 2019. p.187-208. ISBN: 978-85-7862-
863-5.
de vista. A literatura, desde seu surgimento, é um fenômeno essencialmente humano.
Como tal, ela está inevitavelmente sujeita às mudanças de valores e comportamentos dos
grupos que dela se apropriaram em diferentes épocas e lugares. Desse modo, mudanças
na concepção do que é o texto literário devem acompanhar as demandas reais das
sociedades que o constituem e o consomem de modo que a literatura possa ter significado
para novos públicos leitores já acostumados com a multiplicidades de códigos que
integram os textos audiovisuais da TV e do cinema. Sendo o letramento literário um
conjunto de princípios teóricos que busca relacionar a literatura às práticas sociais
letradas, é de se esperar que ele adote uma perspectiva que abranja, além do texto verbal
impresso e “dito original” outras formas de expressão literária, incluindo-se aqueles de
caráter intertextual, tal como a tradução intersemiótica de outras obras literárias.

4. Considerações Finais
A história nos mostra que em um mesmo momento o que era considerado literário
para um determinado grupo podia não ser visto como tal para outro, da mesma forma
que pessoas de um mesmo lugar, mas em momentos históricos diferentes também
poderiam ter visões distintas acerca do fenômeno literário.
Contudo, como os valores humanos estão naturalmente sujeitos à uma infinidade
de influências, os padrões literários acabaram por se mostrar como parte de um ciclo, em
que estruturas e valores são exaltados e desvalorizados continuamente, por vezes
coexistindo por um certo período. Atualmente, por exemplo, vivemos em um momento
em que a literatura ganha cada vez mais características provenientes de outras formas de
expressão, especialmente aquelas que envolvem elementos audiovisuais como a TV, o
cinema e o computador.
Dentro dos estudos literários, partidários do letramento literário têm discutido com
afinco a formação de leitores de textos literários e as práticas escolares que levaram ao
afastamento da literatura por prazer. Entretanto, acreditamos que a adoção desse conceito
passa por uma maior reflexão acerca do que é ou não literário, assim como o papel da
literatura na formação de leitores preparados para os contextos atuais repletos de
tecnologias e de meios de comunicação cada vez mais dinâmicos. Nesse sentido, é
necessário apontar que o Letramento Literário talvez possa se beneficiar mais de uma
discussão sobre como o contato com a literatura pode contribuir para a formação de

*GOMES, F. W. B. Tradução intersemiótica e letramento literário: aproximações e


distanciamentos. In: FARIA, M. G. S; ARANHA, M. B. R; ARAÚJO, N. S. Letras em Foco: a
linguagem sob diversos olhares. São Luís: EDUFMA. 2019. p.187-208. ISBN: 978-85-7862-
863-5.
leitores críticos, conscientes de seu papel no mundo e capazes de mudar a realidade social
em que estão inseridos do que ao invés de depreender energias em debates e pontos de
vista que apenas perpetuam o distanciamento entre leitores e a leitura literária, tais como
o esforço empenhado em desconsiderar o fato de que boa parte do conhecimento literário
na contemporaneidade provém de outros sistemas semióticos que não os tradicionais
livros impressos, inclusive daquele produzido por meio de traduções intersemióticas.

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