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Introdução

Este ensaio apresenta aos estudantes de filosofia os problemas teorias e argumentos da estética, o que será feito da
seguinte maneira:

1. Em primeiro lugar, procurarei mostrar que a estética é uma disciplina heterogénea, a qual tem sido encarada
como teoria do belo, como teoria do gosto e como filosofia da arte. Direi muito rapidamente em que consiste
cada uma dessas coisas e orientarei o seu interesse para a estética enquanto filosofia da arte, apresentando
razões para isso.
2. Seguidamente, apresentarei as principais noções de base necessárias à discussão crítica dos problemas,
teorias e argumentos da filosofia da arte.
3. Finalmente, apresentarei criticamente, mas de forma abreviada, algumas teorias e argumentos acerca do
problema da definição de arte. A escolha das teorias tem por base o seu carácter intuitivo e a convicção de
que traduzem de maneira organizada o que os alunos pensam de maneira desorganizada. Essas teorias são as
designadas teorias essencialistas: teoria da imitação, teoria da expressão e teoria formalista.

1. O que é a estética?

O ramo da filosofia a que se dá o nome de “estética” inclui um conjunto de conceitos e de problemas tão variado que,
aos olhos daquele que se inicia no seu estudo, pode parecer uma matéria demasiado dispersa e inacessível. Essa
primeira impressão é compreensível, mas ultrapassável. Uma maneira de desfazer tal impressão é começar por
esclarecer que a estética é a disciplina filosófica que se ocupa dos problemas, teorias e argumentos acerca da arte. A
estética é, portanto, o mesmo que filosofia da arte.

Mas há um problema com esta forma de apresentar a estética: o termo “estética” não tem sido sempre utilizado nesse
sentido. E isso não ocorre apenas em relação ao uso comum da palavra “estética”; ocorre também no interior da
própria tradição filosófica.

Na tentativa de desfazer essa dificuldade, a estética é muitas vezes apresentada como a disciplina filosófica que se
ocupa dos problemas e dos conceitos que utilizamos quando nos referimos a objectos estéticos. Só que isso pouco
adianta se não soubermos antes o que se entende por “objectos estéticos”. Podemos, contudo, acrescentar que os
objectos estéticos são os objectos que provocam em nós uma experiência estética. Mas, uma vez mais, ficamos
insatisfeitos, pois teremos agora de saber o que é uma experiência estética. Resta-nos insistir e perguntar: “O que é
uma experiência estética?” Uma resposta possível, mas sem ser circular — sem voltar ao princípio e afirmar que uma
experiência estética é o que resulta da contemplação de objectos estéticos —, é apresentar alguns exemplos daquilo
que consideramos ser juízos estéticos, isto é, juízos acerca de objectos estéticos e que, portanto, exprimem
experiências estéticas.

Eis alguns exemplos de frases que habitualmente proferimos e que qualquer pessoa estaria disposta a reconhecer que
exprimem juízos estéticos:

F1: “Aquela casa é bonita”


F2: “O vale do Douro é belo”
F3: “O nascer do dia naquela amena manhã de Maio no Gerês com o cheiro a terra molhada e os pássaros a chilrear
foi sublime”
F4: “A decoração desta montra está com muito bom gosto”
F5: “O último andamento da 9ª Sinfonia de Beethoven é emocionante”
F6: “O quadro Mulher-cão de Paula Rego é uma verdadeira obra-prima”
F7: “O livro Ulisses de James Joyce é uma obra complexa”

Estas frases parecem trazer de volta a impressão inicial de que os problemas da estética são heterogéneos.

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Assim, frases como F1 e F2 exprimem juízos acerca do que se considera ser bonito ou belo, mas nenhuma das outras
o faz. Talvez F1 esteja também a referir alguma obra de arte (se essa casa for, por exemplo, a casa da cascata, de Frank
Lloyd Wright) o que não acontece com F2.

Por sua vez, frases como F4, F5, F6 e F7 exprimem a opinião de alguém acerca de algo realizado por outras pessoas,
mas enquanto as três últimas referem obras de arte, tal não sucede com F4.

Quanto a F3 e F4 sabemos que não está em causa o conceito de belo nem se refere qualquer obra de arte, mas apenas
o que sentimos em relação a algo que simplesmente nos agrada. Isso é também o que acontece em relação a F5, só
que desta vez a propósito de uma obra de arte.

O que podemos concluir daqui?

Se os nossos exemplos se limitassem a F1 e F2, então a estética seria entendida apenas como teoria do belo, pois o
problema parece consistir em saber o que significa “ser belo”.

Caso pensemos apenas em F3, F4 e F5, o que temos como problema já não é rigorosamente o do significado de “ser
belo” mas o de saber por que razão e sob que condições acabamos por formar esse tipo de juízos, ou seja, juízos de
gosto (nesta perspectiva também F1 e F2 podem simplesmente ser tomados como juízos de gosto).

Finalmente, se pensarmos em F1 (pelo menos em certos casos, como o da referida casa da cascata ), F5, F6 e F7, o
problema com que nos deparamos não é o do belo, nem sequer o do juízo de gosto, mas sim o problema de saber o
que é e como se avalia uma obra de arte.

Estamos, assim, em condições de concluir que a estética pode ser — o que de resto é mostrado pela sua história —
uma de três coisas: teoria do belo, teoria do gosto ou filosofia da arte.

Deveria também ficar claro que a teoria do belo não exclui completamente do seu domínio muitas das obras de arte
e a filosofia da arte não se desinteressa completamente de algumas obras belas, tal como a teoria do gosto se pode
aplicar quer a objectos belos, quer a objectos de arte.

Mas não devemos confundir teoria do belo, teoria do gosto e filosofia da arte. Até porque há obras de arte que não
são belas, como o célebre Urinol, de Marcel Duchamp; há obras de arte de que não gostamos, como acontece comigo
em relação à música dos Madredeus, aos quadros de Júlio Pomar, aos livros de José Saramago e aos filmes de Manoel
de Oliveira; há coisas belas que não são arte, como um pôr-do-sol natural e a planície alentejana; e há coisas de que
gostamos que não são arte nem são belas, como a nossa caminha e melão com presunto.

Isto significa que os objectos que fazem parte da extensão dos conceitos de belo, de gosto e de arte não são os
mesmos, pelo que não estamos a discutir os mesmos problemas quando discutimos cada um desses conceitos.

Em que ficamos, então?

Se bem que a estética tenha sido entendida inicialmente como teoria do belo e só depois como teoria do gosto, é
como filosofia da arte que ela é actualmente entendida. Vale a pena, ainda que brevemente, apresentar algumas
razões para isso:

1. Em primeiro lugar, tanto a teoria do belo como a teoria do gosto dirigiram o seu interesse de forma particular
para as obras de arte. Para além do problema de saber o que é o belo, um dos problemas colocados pela teoria
do belo foi o da distinção entre o belo natural e o belo artístico. No mesmo sentido também os defensores da
teoria do gosto procuraram compreender porque é que a arte está na origem de grande parte dos nossos
juízos de gosto.
2. Em segundo lugar, a teoria do belo e a teoria do gosto não conseguem dar conta de muitos dos problemas
que se colocam com o conceito de arte. É o caso das obras de arte que dificilmente podemos considerar belas
e daquelas de que não gostamos mas não podemos deixar de considerar obras de arte.

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3. Em terceiro lugar, o desenvolvimento da arte consegue levantar problemas acerca dos conceitos de belo e de
gosto que estes não conseguem levantar acerca da arte. Isso torna-se evidente quando, por exemplo, os
gostos e a própria noção de belo se podem modificar à medida que contactamos com diferentes obras de arte
(a ideia de que a arte educa os gostos e influencia a nossa própria noção de belo).

2. Estética e filosofia da arte

É, pois, como filosofia da arte que a partir de aqui irei falar de estética. A filosofia da arte é, por sua vez, formada por
um conjunto de problemas acerca da arte, para a resolução dos quais concorrem diferentes teorias. Algumas dessas
teorias e os argumentos que as sustentam serão aqui discutidos, nomeadamente aquelas teorias que têm um
conteúdo aparentemente mais intuitivo, isto é, aquelas que colhem a adesão espontânea de grande parte das pessoas
que se defrontam pela primeira vez de forma directa com o problema. São também as teorias mais antigas e que,
embora com um menor poder explicativo, gozam de uma popularidade assinalável.

2.1. O problema da definição de “obra de arte”

O primeiro problema que qualquer teoria da arte tem de enfrentar é o problema da própria definição de “arte” ou de
“obra de arte”. Como podemos então definir “arte”? Para o saber temos de perceber antes o que é definir algo.

Tipos de definições

Há quem defenda que definir um conceito é dizer em que consiste e caso não saibamos defini-lo dessa maneira
também não estamos em condições de o utilizar adequadamente. Defender isto é o mesmo que dizer que há apenas
uma forma de definir conceitos, o que não é o caso. Ao contrário do que é vulgar pensar, não existe apenas um tipo
de definições. Sabemos utilizar perfeitamente o conceito “azul” sem que, no entanto, o possamos definir dessa
maneira. Não o saber definir dessa maneira não é o mesmo que o não poder definir. Para compreendermos isso é
preciso distinguir dois tipos de definições: definições explícitas e definições implícitas.

Diz-se que uma definição é explícita quando apresentamos as condições necessárias e suficientes do conceito a definir.
Mas o que são condições necessárias e suficientes? Oferecemos uma condição necessária de X se apresentarmos uma
propriedade que qualquer objecto tem de ter para ser X. Por exemplo, se dissermos que uma mãe é alguém que já
teve filhos, estamos apenas a referir uma condição necessária para alguém ser mãe (de facto ninguém pode ser mãe
se não tiver tido pelo menos um filho); só que isso não é suficiente, pois há pessoas que já tiveram filhos, como é o
caso dos homens com filhos, e que não são mães. A condição necessária aplica-se a todas as mães, mas não tem de se
aplicar só às mães. Temos, pois, de definir “mãe” de tal maneira que a definição inclua as mães e só as mães, o que se
faz indicando a condição suficiente. Uma condição suficiente de X é uma característica tal que se um qualquer objecto
a possui, então esse objecto é X. Isso indica-nos que se trata de uma característica de X e apenas de X. A condição
suficiente de X não nos garante, pois, a inclusão de tudo o que queremos incluir na definição de X. Para dar um
exemplo, é condição suficiente viver no Algarve para viver em Portugal, embora essa não seja uma condição
necessária. Afinal de contas, as pessoas que vivem no Minho também vivem em Portugal. Voltando ao meu primeiro
exemplo, se quisermos dar uma definição explícita de “mãe” teremos de dizer qualquer coisa como isto: “alguém é
uma mãe se, e somente se, é do sexo feminino e já teve filhos”. Ser do sexo feminino e ter tido filhos são em conjunto
propriedades suficientes para alguém ser mãe; mas cada uma delas em separado é apenas condição necessária.

Já numa definição implícita não temos de oferecer as condições necessárias e suficientes de um conceito. Exigir, por
exemplo, as condições necessárias e suficientes do conceito de azul, é fazer uma exigência que não pode ser satisfeita.
Penso que o mesmo acontece também com o conceito de filosofia. Daí o embaraço do professor de filosofia quando
o aluno lhe pede que defina a disciplina que lecciona. Significa isso que não podemos definir tais conceitos? Se
estivermos a pensar numa definição explícita, é claro que não. Mas é perfeitamente possível dar uma definição
implícita, que é o que fazemos com as crianças quando lhes queremos ensinar as cores (e com os alunos quando nos
perguntam o que é a filosofia) e o que provavelmente teríamos de fazer se nos aparecesse por aí algum extraterrestre
interessado em compreender o que dizemos. Assim, para dar uma definição de X, usamos esse conceito em situações
diferentes de tal modo que, ao fazê-lo, estamos a exemplificar as propriedades dos objectos que com X queremos
identificar. Diríamos, então, ao extraterrestre que o céu (poderíamos até apontar) é azul, que o mar é azul, que as
camisolas do Belenenses são azuis, e por aí em diante.
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Definições e caracterizações

Mas acontece, ainda assim, que muitas das nossas definições implícitas nos deixam insatisfeitos. Precisamos de saber
algo mais acerca dos conceitos definidos. Algo que seja relevante para a compreensão do conceito e que nos informe
acerca das propriedades mais importantes dos objectos que fazem parte da sua extensão. Para isso é que servem as
caracterizações, isto é, a apresentação das principais características daquilo que os conceitos referem. No caso da
filosofia, o professor pode apontar exemplos de problemas, teorias e argumentos filosóficos. Estará assim a dar uma
definição implícita de filosofia. Mas pode e deve ir mais longe, fazendo acompanhar a sua definição de uma
caracterização. Nesse sentido, poderá referir o que distingue os problemas filosóficos dos problemas científicos e
religiosos; as teorias filosóficas das teorias científicas, religiosas e artísticas, etc. É claro que tal caracterização nunca
irá ser exaustiva nem pacífica, mas, concordemos ou não com ela, sempre clarifica aquilo que se tem em mente quando
se usa tal conceito.

Utilização classificativa e valorativa de “arte”

Retomando o problema da definição de “arte”, quero desde já esclarecer que o termo “arte” ou a expressão “obra de
arte” são frequentemente usados em dois sentidos diferentes: o sentido classificativo e o sentido valorativo. No
primeiro destes dois sentidos não se tem em conta se uma determinada obra de arte é boa ou não, mas apenas se cai
ou não debaixo da extensão do conceito de arte. Pretende-se apenas estabelecer se um certo objecto deve ser
classificado como obra de arte. Ao classificarmos um veículo como automóvel nada dizemos acerca do seu valor como
automóvel. Mas, às vezes, proferimos frases como “isto sim, é um automóvel”, em que o significado de “automóvel”
não é o mesmo que o apontado anteriormente. Estamos, neste caso, perante um exemplo da utilização valorativa de
“automóvel”, uma vez que com esta expressão queremos manifestar de forma positiva a nossa apreciação do veículo
em causa, tal como o fazemos em relação a uma obra de arte ao afirmar “este quadro sim, é uma obra de arte”. Aqui
não estamos a classificá-la como obra de arte, mas a avaliá-lo como obra de arte boa. Estes dois usos são
frequentemente confundidos e é imprescindível tê-los em mente quando se discutem as diferentes teorias da arte.

2.2. Definições explícitas de “arte”: as teorias essencialistas

Irão ser aqui brevemente discutidas três teorias da arte essencialistas. Trata-se de teorias que defendem uma ideia de
arte intuitivamente partilhada por muitas pessoas, apesar das dificuldades que, como iremos ver, revelam quando são
criticamente avaliadas.

Mas antes de avançar precisamos de esclarecer em que consiste uma teoria essencialista da arte. As teorias
essencialistas defendem que existe uma essência de arte, ou seja, que existem propriedades essenciais comuns a todas
as obras de arte e que só nas obras de arte se encontram. Ora as propriedades essenciais são diferentes das
propriedades acidentais. Uma propriedade é essencial se os objectos que a exemplificam não podem deixar de a
exemplificar sem que deixem de ser o que eram. Uma propriedade é acidental se, apesar de ser realmente
exemplificada pelos objectos, poderia não o ser. Isso significa que as propriedades essenciais da arte são aquelas
propriedades que não podem deixar de se encontrar nas obras de arte. São, portanto, exemplificadas por todas as
obras de arte, reais ou meramente possíveis. Mas uma definição essencialista exige também que tais propriedades
sirvam para distinguir a arte de outras coisas que não são arte. Daí que se procurem apenas identificar as propriedades
essenciais que sejam individuadoras da arte. Por exemplo, uma propriedade essencial das obras de arte é a de terem
um autor (pelo menos). Mas ter um autor não é uma propriedade individuadora da arte porque outras coisas que não
são arte têm também essa propriedade essencial, como é o caso dos artigos de opinião dos jornais. Não seria por aí
que iríamos identificar as obras de arte. Ora, se há propriedades comuns a todas as obras de arte e individuadoras das
obras de arte, é então possível dizer quais são as suas condições necessárias e suficientes; quer dizer, é possível
fornecer uma definição explícita de arte. Contudo, é preciso reconhecer que nem todas as definições explícitas são
essencialistas.

Teoria da arte como imitação

Esta é uma das mais antigas teorias da arte. Foi, aliás, durante muito tempo aceite pelos próprios artistas como
inquestionável. A definição que constitui a sua tese central é a seguinte:

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 Uma obra é arte se, e só se, é produzida pelo homem e imita algo.

A característica própria desta teoria não reside no facto de defender que uma obra de arte tem de ser produzida pelo
homem, o que é comum a outras teorias, mas na ideia de que para ser arte essa obra tem de imitar algo. Daí que seja
conhecida como teoria da arte como imitação.

Vários foram os filósofos que se referiram à arte como imitação. Alguns desprezavam-na por isso mesmo, como
acontecia com o conhecido filósofo grego Platão que, ao considerar que as obras de arte imitavam os objectos
naturais, via essas obras como imagens imperfeitas dos seus originais. Ainda por cima quando, no seu ponto de vista,
os próprios objectos naturais eram por sua vez cópias de outros seres mais perfeitos. Já o seu contemporâneo
Aristóteles, mantendo embora a ideia de arte como imitação, tinha uma opinião mais favorável à arte, uma vez que
os objectos que a arte imita não são, segundo ele, cópias de nada.

O que agora nos interessa, mais do que saber quem defendeu esta teoria, é avaliar o seu poder explicativo. Vejamos
então os principais pontos que perecem favoráveis a ela:

 Adequa-se ao facto incontestável de muitas pinturas, esculturas e outras obras de arte, como peças de teatro
ou filmes imitarem algo da natureza: paisagens, pessoas, objectos, acontecimentos, etc.
 Oferece um critério de classificação das obras de arte bastante rigoroso, o que nos permite, aparentemente,
distinguir com alguma facilidade um objecto que é uma obra de arte de outro que o não é.
 Oferece um critério de valoração das obras de arte que nos possibilita distinguir facilmente as boas das más
obras de arte. Neste sentido, uma obra de arte seria tão boa quanto mais se conseguisse aproximar do objecto
imitado.

Um aspecto geral desta teoria mostra-nos que é uma teoria centrada nos objectos imitados. Ela exprime-se
frequentemente através de frases como “este filme é excelente, pois é um retrato fiel da sociedade americana nos
anos 60”, ou como “este quadro é tão bom que mal conseguimos distinguir aquilo que o artista pintou do modelo
utilizado”.

Mas será uma boa teoria? Para isso temos de testar cada um dos aspectos atrás apresentados que são favoráveis à
teoria, começando pelo primeiro.

Como o que é afirmado no primeiro ponto é do domínio empírico, não precisamos de procurar muito para
percebermos que, apesar de muitas obras de arte imitarem algo, são inúmeras aquelas que o não fazem. O que
constitui a sua refutação inequívoca. Obras de arte que não imitam nada encontramo-las tanto na pintura como na
escultura abstractas ou noutras artes visuais não figurativas. De forma ainda mais notória encontramo-las na literatura
e na música. Em relação à música é até bastante improvável que haja alguma obra musical que imite seja o que for,
apesar de haver quem se tenha batido pela música programática (música que conta uma história, ilustra um
acontecimento ou evoca um cenário natural). Até porque evocar ou ilustrar com sons não é o mesmo que imitar, a
não ser indirectamente. Conscientes disso, os defensores mais recentes da teoria da arte como imitação, acabaram
por substituir o conceito de imitação pelo conceito mais sofisticado de representação. Assim já poderíamos dizer que
as quatro primeiras notas da 5.ª Sinfonia de Beethoven não imitam directamente a morte a bater à porta, mas
representam a morte a bater à porta. O mesmo se passaria com a literatura, da qual talvez não se possa dizer que
imita mas que representa sempre algo que acontece no mundo. Mas, ainda assim, podemos perguntar: o que
representam a pintura Composição (1946) de Jackson Pollock ou as Suites para Violoncelo Solo de Bach? Dificilmente
diríamos que representam algo. Ficamos, deste modo, com uma teoria que não observa os requisitos anteriormente
expostos acerca do que deve ser uma definição explícita, pois defende que uma condição necessária para algo ser arte
é imitar, e isso não acontece com todas as obras de arte. Trata-se de uma definição que não inclui tudo o que deveria
incluir, deixando assim muito por explicar.

Em relação ao segundo aspecto, esta teoria deixa também muito a desejar. O que referi acerca do ponto anterior
acaba também por desconsiderar o critério de classificação apresentado. Convém, portanto, realçar que o critério de
classificação de arte proposto por esta teoria não pode ser bom, pois ficamos insatisfeitos ao verificar que há obras
que são reconhecidamente arte e não são classificadas como tal. A conservar este critério, seriam as obras de arte que
deveriam conformar-se à definição de arte e não o contrário. Mas acontece que nem esta nem nenhuma outra
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definição de arte disponível é suficientemente forte para nos fazer abandonar as nossas intuições de que certas obras
são arte, ainda que tais definições as não classifiquem como tal.

Finalmente, o terceiro ponto também é muito discutível. Apesar de ficarmos muitas vezes positivamente
impressionados com a perfeição representativa de algumas obras de arte, o seu critério valorativo falha porque muitas
outras obras de arte não poderiam ser consideradas boas nem más, já que não imitam nada. Mas falha ainda por haver
obras que imitam algo sem que nos encontremos alguma vez em condições de saber se a imitação é boa ou má. Basta
pensar em obras que imitam algo que já não existe ou não é do conhecimento de quem as aprecia. Como podemos
saber se A Escola de Atenas, de Rafael, reproduz com perfeição as figuras de Platão e Aristóteles ou o ambiente da
Academia? Pior, como sabemos que o Jardim das Delícias, de Bosch, imita bem aquelas figuras estranhas e
inverosímeis, admitindo que algo está a ser imitado? Como podemos saber se O Nascimento de Vénus, de Botticelli, é
uma boa imitação, se é que, mais uma vez, algo é imitado? E não será abusivo afirmar que qualquer pintura figurativa
tecnicamente apurada é melhor do que o tosco Auto-Retrato com Chapéu de Palha, de Van Gogh, ou do que todas as
obras impressionistas? Segundo este critério Picasso seria, com certeza, um artista menor e teríamos de reconhecer
que a fotografia é a mais perfeita de todas as artes. Só que não é isso que acontece. Vemos, assim, que também em
relação ao critério valorativo esta teoria está longe de dar resposta satisfatória a todas as objecções que se lhe
colocam.

Teoria da arte como expressão

Insatisfeitos com a teoria da arte como imitação (ou representação), muitos filósofos e artistas românticos do século
XIX propuseram uma definição de arte que procurava libertar-se das limitações da teoria anterior, ao mesmo tempo
que deslocava para o artista, ou criador, a chave da compreensão da arte. Trata-se da teoria da arte como expressão.
Teoria que, ainda hoje, uma enorme quantidade de pessoas aceita sem questionar. Segundo a teoria da expressão

 Uma obra é arte se, e só se, exprime sentimentos e emoções do artista.

Vejamos o que parece concorrer a favor dela:

1. São muitos e eloquentes os testemunhos de artistas que reconhecem a importância de certas emoções sem
as quais as suas obras não teriam certamente existido. Mais do que isso, se é verdade, como parece ser, que
a arte provoca em nós determinadas emoções ou sentimentos, então é porque tais sentimentos e emoções
existiram no seu criador e deram origem a tais obras.
2. Também nos oferece, como a teoria anterior, um critério que permite, com algum rigor, classificar objectos
como obras de arte. Com a vantagem acrescida de classificar como arte todas as obras que não imitam nada,
o que acontece frequentemente na literatura e sempre na música e na arte abstracta.
3. Mais uma vez oferece um critério valorativo: uma obra é tanto melhor quanto melhor conseguir exprimir os
sentimentos do artista que a criou.

Uma teoria como esta manifesta-se frequentemente em juízos como “Este é um livro exemplar em que o autor nos
transmite o seu desespero perante uma vida sem sentido” ou como “O autor do filme filma magistralmente os seus
próprios traumas e obsessões”.

Mas também ela se irá revelar uma teoria insatisfatória. As razões são semelhantes às que apresentei contra a teoria
da arte como imitação, pelo que tentarei aqui ser mais breve.

O primeiro ponto apresenta várias falhas. Desde logo, é também empiricamente refutado porque há obras que não
exprimem qualquer emoção ou sentimento. Podemos até admitir que o emaranhado espesso de linhas coloridas do
quadro de Pollock exprime algo ao deixar registados na tela os seus gestos (é geralmente incluído na corrente artística
conhecida como expressionismo abstracto). Mas podemos dizer o mesmo da maior parte dos quadros de Yves Klein,
Mondrian ou de Vasarely? O grande compositor do nosso século, Richard Strauss, autor de vários poemas sinfónicos,
como o célebre Assim Falava Zaratustra, esclarecia que as suas obras eram fruto de um trabalho paciente e minucioso
no sentido de as aperfeiçoar, eliminando desse modo os defeitos inerentes a qualquer produto emocional. E que dizer
da chamada música aleatória (música feita com o recurso a sons produzidos ao acaso)? Além disso, mesmo que uma

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obra de arte provoque certas emoções em nós, daí não se segue que essas emoções tenham existido no seu autor. Se
a ingestão de dez copos de vinho seguidos provocam em mim o sentimento de euforia, daí não se segue que o
vinicultor que produziu o vinho estivesse eufórico. Trata-se, portanto, de uma inferência falaciosa. Tal como na
definição de arte como imitação, o mesmo se passa aqui, pois acaba por não se verificar a condição necessária segundo
a qual todas as obras de arte exprimem emoções. É, assim, uma má definição.

A deficiência em relação ao critério de classificação é praticamente a mesma apontada à teoria da imitação. A única
diferença é que, neste caso, uma maior quantidade de objectos podem ser classificados como arte. Mas nem todas as
obras de arte são, de facto, classificadas como tal.

Sobre o critério de valoração, também as objecções são idênticas às da teoria da imitação. Se observarmos este
critério, então as obras de arte que não podem ser consideradas boas nem más são inúmeras. Como podemos nós
saber se uma determinada obra exprime correctamente as emoções do artista que a criou, quando o artista já morreu
há séculos? Na tentativa de apurar até que ponto uma obra de arte é boa, muitos estudiosos defensores desta teoria
lançaram-se na pesquisa biográfica do artista que a criou, pois só assim estariam em condições de compreender os
sentimentos que lhe deram origem. Alguns deles, como o famoso pai da psicanálise, Sigmund Freud, até se
aventuraram a sondar as profundezas da psicologia do artista, sem o que uma correcta avaliação da obra não seria
possível. Freud foi ao ponto de o fazer com um artista morto há séculos, como é descrito no seu livro Uma Recordação
de Infância de Leonardo da Vinci. Supondo que, como já tem acontecido, a obra em causa tinha sido erradamente
atribuída a outro autor, essa obra deixaria de poder ser considerada obra-prima? E as obras de autores anónimos ou
desconhecidos não são boas nem más? E como avaliar uma obra de arte colectiva ou a interpretação de uma obra
musical? O que conta aqui são as emoções do artista criador ou as do artista intérprete (ou dos artistas intérpretes,
como sucede com a interpretação da Segunda Sinfonia de Mahler, a qual chega a exigir perto de 250 intérpretes em
palco)? Enfim, todas estas perguntas são demasiado embaraçosas para a teoria da expressão.

Teoria da arte como forma significante

Verificando que a diversidade de obras de arte é bem maior do que as teorias da imitação e da expressão fariam supor,
uma teoria mais elaborada, e também mais recente, conhecida como teoria da forma significante (abreviadamente
referida como “teoria formalista”), decidiu abandonar a ideia de que existe uma característica que possa ser
directamente encontrada em todas as obras de arte. Esta teoria, defendida, entre outros, pelo filósofo Clive Bell,
considera que não se deve começar por procurar aquilo que define uma obra de arte na própria obra, mas sim no
sujeito que a aprecia. Isso não significa que não haja uma característica comum a todas as obras de arte, mas que
podemos identificá-la apenas por intermédio de um tipo de emoção peculiar, a que chama emoção estética, que elas,
e só elas, provocam em nós. Por esta razão a incluo nas teorias essencialistas. De acordo com a teoria formalista de
Clive Bell

 Uma obra é arte se, e só se, provoca nas pessoas emoções estéticas.

Note-se que não se diz que as obras de arte exprimem emoções, senão estar-se-ia a defender o mesmo que a teoria
da expressão, mas que provocam emoções nas pessoas, o que é bem diferente. Se a teoria da imitação estava centrada
nos objectos representados e a teoria da expressão no artista criador, a teoria formalista parte do sujeito sensível que
aprecia obras de arte. Digo que parte do sujeito e não que está centrada nele, caso contrário não seria coerente
considerar que esta teoria é formalista.

Tendo em conta a definição dada, reparamos que a característica de provocar emoções estéticas constitui,
simultaneamente, a condição necessária e suficiente para que um objecto seja uma obra de arte. Mas se essa emoção
peculiar chamada “emoção estética” é provocada pelas obras de arte, e só por elas, então tem de haver alguma
propriedade também ela peculiar a todas as obras de arte, que seja capaz de provocar tal emoção nas pessoas. Mas
essa característica existe mesmo? Clive Bell responde que sim e diz que é a forma significante.

Frases como “Este quadro é uma verdadeira obra prima devido à excepcional harmonia das cores e ao equilíbrio da
composição”, ou como “Aquele livro é excelente porque está muito bem escrito e apresenta uma história bem
construída apoiada em personagens convincentes e bem caracterizadas”, exprimem habitualmente uma perspectiva
formalista da arte.
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Para já, esta teoria parece ter uma grande vantagem: pode incluir todo o tipo de obras de arte, inclusivamente obras
que exemplifiquem formas de arte ainda por inventar. Desde que provoque emoções estéticas qualquer objecto é
uma obra de arte, ficando assim ultrapassado o carácter restritivo das teorias anteriores.

Mas as suas dificuldades também são enormes.

1. Em primeiro lugar, podemos mostrar que algumas pessoas não sentem qualquer tipo de emoção perante
certas obras que são consideradas arte. Quer dizer que essas obras podem ser arte para uns e não o ser para
outros? Nesse caso o critério para diferenciar as obras de arte das outras de que serviria? Teríamos, então,
obras de arte que não são obras de arte, o que não faz sentido. Também não é grande ideia responder que
quem não sente emoções estéticas em relação a determinadas obras não é uma pessoa sensível, como sugere
Bell, o que parece uma inaceitável fuga às dificuldades.
2. Uma outra dificuldade é conseguir explicar de maneira convincente em que consiste a tal propriedade comum
a todas as obras de arte, a tal “forma significante”, responsável pelas emoções estéticas que experimentamos.
Clive Bell refere, pensando apenas no caso da pintura, que a forma significante reside numa certa combinação
de linhas e cores. Mas que combinação é essa e que cores são essas exactamente? E em que consiste a forma
significante na música, na literatura, no teatro, etc.? A ideia que fica é que a forma significante não serve para
identificar nada. Não se trata verdadeiramente de uma propriedade, pois a forma significante na pintura
consiste numa certa combinação de cores e linhas, mas na música, na literatura, no cinema, etc., já não podem
ser as cores e linhas a exemplificar a forma significante. Não temos, assim, uma propriedade mas várias
propriedades. É certo que diferentes propriedades podem provocar o mesmo tipo peculiar de emoções nas
pessoas, mas chamar a diferentes propriedades “forma significante” é de tal forma vago que não se imagina
o que poderia constituir uma contra-exemplo a esta definição. Também a resposta de que a forma significante
é a propriedade que provoca em nós emoções estéticas, depois de dizer que as emoções estéticas são
provocadas pela forma significante é não só inútil mas decepcionante, já que se trata de uma falácia: a falácia
da circularidade.

E agora?

Pelo que se viu, nenhuma das teorias aqui discutidas parece satisfatória. Tendo reparado nas insuficiências das teorias
essencialistas, alguns filósofos da arte, como Morris Weitz, abandonaram simplesmente a ideia de que a arte pode ser
definida; outros, como George Dickie, apresentaram definições não essencialistas da arte, apelando, nesse sentido,
para aspectos extrínsecos à própria obra de arte; outros ainda, como Nelson Goodman, concluíram que a pergunta “O
que é arte?” deveria ser substituída pela pergunta mais adequada “Quando há arte?”. Serão estas teorias melhores
do que as anteriores? Aí está uma boa razão para não darmos por terminada esta tarefa.

Aires Almeida
Trabalho realizado no âmbito da Acção de Formação “O Pensamento Crítico e a Tradição Socrática na Sala de Aula”,
leccionada por Desidério Murcho.

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ISSN 1749-8457

Crítica
5 de Outubro de 2005 Estética

Teorias da arte
Cláudio F. Costa
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As teorias da arte têm por objetivo explicar a natureza da obra de arte em geral. Alguns críticos consideram
essa tarefa inevitavelmente fadada ao fracasso. Segundo eles, a arte é um fenômeno demasiado diversificado
para que possa ser encontrada uma essência comum a todas as suas manifestações, o que equivale a dizer que
não podemos encontrar condições necessárias e suficientes para a sua identificação, ou seja, condições que
uma vez presentes nos garantam que estamos diante de obras de arte. O que há de comum, afinal, entre o teto
da capela Sixtina e as caixas de supermercado Brillo de Andy Warhol? Muito pouco.

Essa objeção toma uma forma articulada na sugestão, feita por Morris Weitz, de que o conceito de arte não
pode ser definido em termos de condições necessárias e suficientes por se tratar de um conceito caracterizado
pelo que Wittgenstein chamava de semelhanças de família, tal como os conceitos de jogo, número e religião1.
Tais conceitos parecem possuir uma essência comum a todas as suas aplicações, mas na realidade apresentam
apenas semelhanças parciais entre uma e outra aplicação, nada possuindo de relevante que seja comum a todas
as aplicações. As similaridades entre as aplicações são, em uma metáfora de Wittgenstein, como as cerdas
trançadas de um mesmo fio, que apenas parecem percorrer toda a sua extensão2.

Essa objeção pode bem ter a sua importância. Mas é importante notar que a noção de semelhanças de família,
se interpretada como exigindo apenas que os objetos de aplicação do conceito possuam semelhanças quaisquer
entre si, é incoerente. Qualquer coisa é, em algum aspecto, semelhante a qualquer outra coisa. Como já se
notou, o edifício do Empire State e um alfinete são semelhantes no tocante ao fato de serem feitos de material
inorgânico e de serem pontudos, o que não nos qualifica a dizer que o Empire State é um alfinete3. Se as
semelhanças não forem por algum critério limitadas, conceitos com semelhanças de família tornam-se
ilimitadamente aplicáveis, perdendo a sua função classificatória e deixando de fazer qualquer sentido. Um
meio de delimitar as semelhanças sem fazer apelo a uma essência comum consiste em estabelecer um
paradigma, que consiste um uma série de propriedades para a aplicação do conceito, e no estabelecimento de
uma regra criterial exigindo uma compartilhamento mínimo entre as propriedades de um objeto e as
propriedades descritas no paradigma. Dessa forma, dois objetos podem não possuir nenhuma propriedade
comum e mesmo assim compartilharem suficientemente das propriedades descritas no paradigma para cairem
sob o mesmo conceito. Esse poderia ser o caso, por exemplo, do conceito de religião4.

Contudo, se nós considerarmos as coisas dessa maneira, as teorias da arte voltam a fazer sentido, se não como
teorias que visam estabelecer condições necessárias e suficientes ou essências comuns, ao menos como teorias
que devem estabelecer o paradigma daquilo que chamamos de arte, além das margens de similaridade entre o
objeto e o paradigma a serem requeridas para que ele possa ser chamado de obra de arte. O importante passa
a ser que essas teorias sejam capazes de iluminar dimensões importantes da obra de arte, as quais constituem
o paradigma, além das relações sistemáticas eventualmente existentes entre elas.
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Mas há uma outra maneira (não necessariamente conflitante com a que acabo de expor) de se abordar a
questão. Um conceito com aplicações muito diversificadas pode ser muitas vezes analizado como um conceito
formado por subconceitos variadamente assemelhados entre si. Sendo assim, mesmo que um certo conceito
geral não possua uma essência comum a suas aplicações, isso não significa que os subconceitos que o
constituem, se considerados individualmente, não possuam essências comuns a suas aplicações ainda mais
específicas. Além disso há subconceitos que são mais fundamentais e que importa mais analisar. Considere,
por exemplo, a conceito de verdade, que se subdivide em dois subconceitos, o da verdade como antônimo da
falsidade, e da verdade como antônimo da mentira — o primeiro é certamente mais fundamental, só vindo
associado ao segundo pelo fato de mentirosos dizerem coisas falsas.

Se assim for, uma teoria da arte pode esclarecer a essência comum ao que pertence a uma espécie importante
de arte, sendo essa uma tarefa mais relevante do que a de estabelecer uma regra criterial capaz de delimitar
nossas aplicações da palavra “arte” em circunstâncias nas quais a busca de uma essência comum revelou-se
uma miragem.

No que se segue quero expor e discutir brevemente algumas teorias mais influentes acerca da natureza da arte
em algumas de suas variantes, em busca do que possa parecer mais esclarecedor.

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1. Representacionalismo
O representacionalismo é a mais antiga concepção sobre a natureza da arte, sugerindo que a sua função é a de
representar alguma coisa. Platão e Aristóteles concebiam a arte como imitação ou mímese, ou seja, uma
representação naturalista da realidade. Assim, a pintura imita a natureza, o drama imita a ação humana. Essa
concepção já era problemática na antiguidade. A música instrumental, por exemplo, não parece imitar coisa
alguma. E a pintura moderna tornou essa concepção ainda menos plausível. Um quadro que intenta copiar a
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realidade é chamado pejorativamente de Trompe D'oeil e geralmente visto como alguma coisa sem valor
estético. Esse juízo não pode ser generalizado. A série dos auto-retratos de Rembrandt, nos quais ele honesta
e corajosamente retrata a sua própria decadência, são obras de arte. Mas grande parte da pintura, da literatura,
quase toda a música, não são certamente cópias literais de coisa alguma.

Uma segunda versão de representativismo é a teoria representacional propriamente dita. A obra de arte não
precisa ser uma cópia ou imitação da realidade, ou seja, uma representação naturalista. Ela pode ser uma
representação puramente convencional ou simbólica. Assim, um quadro cubista, embora pareça muito pouco
com aquilo que representa, não deixa por isso de ser considerado uma obra de arte. Essa versão do
representativismo é, mesmo assim, insuficiente. O que dizer da pintura realmente abstrata, como o Número
32 de Pollock, ou de objetos achados, como o pissoir de Marcel Duchamp (intitulado A Fonte), ou de músicas
puramente orquestrais como a Sétima Sinfonia de Beethoven? Convencionalmente, essas obras não
simbolizam nada.

A terceira versão do representativismo é o que já foi chamado de neo-representacionalismo5. Nessa versão


não é mais exigido que a obra de arte represente nada, mas que seja sobre algo, que possua um tema, um
assunto, um significado, que nos diga algo de alguma coisa. Mais tecnicamente: uma obra de arte precisa ter
algum conteúdo semântico. Com efeito, toda obra de arte admite ser interpretada, e se ela admite ser
interpretada é porque ela nos diz algo, e se ela nos diz algo é porque possui algum conteúdo semântico. Esse
conteúdo semântico não costuma ser convencionalmente estabelecido, o que o torna aberto, polissêmico.
Mesmo uma obra de arte que pretenda ser sem significado algum paradoxalmente acaba por tematizar algo,
qual seja, a sua ausência de significado; ela significa a ausência de significado.

Uma objeção possível seria a seguinte: se uma música apenas exprime um sentimento, por exemplo, a tristeza,
ela não pode ser sobre o sentimento que exprime, sendo errado dizer que ela possui conteúdo semântico. Mas
essa objeção não é convincente. Se alguém bate com a cabeça na porta de um armário e diz “Ai!”, esse
proferimento possui função expressiva, ele exprime expontaneamente a sensação de dor. Mas nem por isso
(pace Wittgenstein) a palavra proferida deixa de ter uma referência, pois ela é sobre a dor que a pessoa sente,
sendo este o seu conteúdo semântico. O mesmo talvez possa ser dito da música: o fato dela exprimir um
sentimento não impede que ela seja sobre o sentimento que ela exprime.

Pode ser que a teoria neo-representacional da arte seja aplicável a toda e qualquer manifestação artística.
Mesmo assim, ela é bastante pobre como meio de esclarecer o que é arte, pois o que ela oferece é apenas uma
condição necessária e não uma condição suficiente para a identificação da obra de arte, posto que muita coisa
que possui conteúdo semântico não é arte. Tudo o que escrevi nos parágrafos acima, por exemplo, possui
conteúdo semântico, mas obviamente não é arte.

2. Formalismo
Segundo as teorias formalistas, o que caracteriza a obra de arte é a sua forma e não o seu caráter representativo.
Um paradigma do formalismo é a teoria proposta por Clive Bell em 1914 com o objetivo de defender o neo-
impressionismo de pintores como Paul Cézanne6. Para Bell o que caracteriza as artes plásticas e talvez a
música é a presença da forma significante. O conceito de forma significante é simples, não podendo ser
definido. Mas na pintura ele resulta da combinação de formas, linhas e cores. Considere, por exemplo, a
Composição em Vermelho, Amarelo e Azul de Mondrian. O que faz a singularidade dessa pintura é a
inesperada harmonia entre as cores puras, as formas e dimensões de seus retângulos, o que deve constituir
uma forma significante. Característico da forma significante é que ela produz uma emoção estética em pessoas
com sensibilidade para a arte.

A teoria da forma significante foi útil como defesa da pintura abstrata ou semi-abstrata surgida desde o final
do século XIX. Mas ela possui defeitos sérios. Para Bell a representação e o contexto não possuem relevância.
Mas não é difícil encontrarmos exemplos de obras de arte nas quais o elemento representacional ou o contexto
são importantes. Considere os auto-retratos de Rembrandt, ou ainda, o quadro de Géricault, A Jangada do
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Meduza. A composição do quadro é importante, mas o que ele representa também. Nele estão retratados alguns
náufragos à beira da morte, em uma jangada perdida no oceano, no momento em que é divisada a salvação. A
pintura foi inspirada por um acontecimento verídico. Sentimos que esse quadro potencializa o drama e a
esperança humanos para além da simples representação naturalista de um acontecimento. Certo é que não é
só a composição, mas também o conteúdo simbólico que aqui se somam na produção do sentimentos estético.

A dificuldade maior com a teoria de Bell consiste, no entanto, em sua falta de conteúdo. Para a questão “O
que é forma significante?”, a melhor resposta parece ser: aquela que tende a produzir no auditório um
sentimento estético. À pergunta “O que é o sentimento estético?”, a resposta parece ser: aquele que é produzido
pela forma significante. A teoria beira a vacuidade e a circularidade.

3. Teoria institucional
A teoria institucional da arte surgiu na década de sessenta, tendo sido sustentada por George Dickie7. Essa
teoria enfatiza a importância da comunidade de conhecedores de arte na definição e ampliação dos limites
daquilo que pode ser chamado de arte. Dickie define a obra de arte como um artefato que possui um conjunto
de aspectos que lhe conferem o status de candidato à apreciação das pessoas da instituição do mundo da arte.
A importância disso pode ser ilustrada pela obra de Alfred Wallis8. Wallis era um marinheiro que nada
entendia de arte e que aos 70 anos, após a morte da esposa, decidiu pintar barcos na madeira para afugentar a
solidão. Casualmente, dois pintores de passagem pelo lugar gostaram de suas telas e o descobriram como
artista. Como resultado as obras de Wallis podem ser hoje vistas em vários museus ingleses. Como disse um
crítico, Wallis tornou-se um artista sem sequer saber que era.

Há duas objeções principais à teoria institucional. A primeira é que ou os entendidos em arte decidem o que
deve ser considerado uma obra de arte com base em razões ou o fazem arbitrariamente. Se eles o fazem com
base em razões, essas razões constituem uma teoria da arte que não é a teoria institucional. Assim, alguém
poderá dizer que os quadros de Wallis apresentam excelentes combinações de cores aliada a simplicidade
formal. Mas essa é uma maneira de dizer, por exemplo, que eles possuem forma significante. Nesse caso a
teoria institucional colapsa em outras concepções acerca do que é a arte. Suponhamos agora que os entendidos
em arte decidam o que deve ser considerado obra de arte arbitrariamente. Ora, nesse caso não fica claro porque
devemos dar qualquer importância à arte. Uma objeção adicional seria a de que a teoria institucional é
viciosamente circular. Obras de arte são definidas como objetos que são aceitos como tais pelas pessoas que
entendem de arte; e as pessoas que entendem de arte são definidas como as que aceitam certos objetos como
sendo obras de arte.

4. Collingwood e a teoria da arte como expressão


Segundo as teorias expressivistas, a arte é expressão de emoções. As teorias expressivistas da arte são mais
novas, embora sinais dela já pudessem ser encontrados na antiguidade, como na teoria aristotélica da função
catártica da obra de arte como purgação das emoções. Para o expressivistas a arte é para o mundo interior das
emoções como a ciência para o mundo exterior. A ciência tem como objeto eventos físicos enquanto a arte
tem como objeto as emoções humanas que ela exprime.

Uma versão ingênua da teoria expressivista é tipicamente atribuída a Leon Tolstoy9. Primeiro o artista precisa
ter um sentimento: Tolstoy foi à guerra e voltou cheio de sentimentos. Ele produz então uma obra de arte
destinada a expressá-los, digamos, Guerra e Paz. Por sua vez, a obra evoca no leitor os mesmos sentimentos
que o artista teve ao passar pela guerra. O esquema é simples: emoções no artista obra de arte mesmas emoções
no auditório. A obra de arte é apenas um veículo de transmissão de emoções. Essa versão do expressivismo é
ingênua porque não é capaz de distinguir a obra de arte de qualquer coisa que transmita um sentimento. Uma
notícia de jornal sobre a guerra pode ter profundo efeito emocional, mas isso não a torna uma obra de arte. Se
uma pessoa está se afogando em um rio e grita por socorro, ela expressa um sentimento de desespero pela

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asfixia, enquanto a pessoa que o ouve entende muito bem o que ela está sentindo. Mas isso não faz de seus
gritos obras de arte!

Há, no entanto, versões mais sofisticadas do expressivismo, a melhor delas sendo talvez a do filósofo inglês
R. G. Collingwood em seu livro The Principles of Arts. O que esse filósofo quis fazer foi desenvolver uma
teoria da grande arte, da arte séria, por ele chamada de arte própria (art proper) e que ele distingue da má arte,
que se encontra a serviço do que ele chama de corrupção da consciência, ou daquilo que passa por arte sem
realmente sê-lo, a arte “assim chamada” (so called). A arte assim chamada, por sua vez, pode ser para
Collingwood de dois tipos: a arte como mágica e como entretenimento. A arte como mágica é a que tem uma
função utilitária. Um hino patriótico, por exemplo, pode ter a função de incitar sentimentos cívicos nas
pessoas. A arte como entretenimento é a que tem uma função hedonista. Um filme de horror de má qualidade,
por exemplo, objetiva produzir na audiência certas emoções canalizadas, que nada fazem no sentido de ampliar
a consciência emocional do espectador e no final podem mesmo produzir um sentimento de frustração e tédio.
Seria pedante negar que a arte como entretenimento possa ter um lugar. Mas uma sociedade na qual as pessoas
acreditam que o único objetivo da existência humana é a diversão é, para Collingwood, uma sociedade inferior
ou decadente. Finalmente, nada impede que a arte própria venha misturada com a arte mágica ou com a arte
como entretenimento. A cantata Meine Seufzer Meine Tränen, de Bach, e a trilogia A Crucificação Rósea, de
Henry Miller, exemplificam, respectivamente, uma e outra coisa. O que essas distinções nos sugerem é que,
embora não possamos encontrar uma essência relevante do conceito de arte em geral, dividindo-se esse
conceitos em seus subconceitos, podemos distinguir o subconceito mais relevante, o de arte própria, e se
formos capazes de analisar a sua essência, talvez em termos de condições necessárias e suficientes, já teremos
tudo o que buscamos.

Para Collingwood, que era uma pessoa com experiência pessoal da criação artística, ao contrário do
expressivismo ingênuo, antes do artista produzir a sua obra ele ainda não possui a emoção estética que a sua
obra produzirá na audiência e em si mesmo. O que ele possui é uma “excitação emocional”, um sentimento
indefinido e incompreensível. Na medida em que ele utiliza a sua imaginação e pensamento planejando e
produzindo a obra de arte, ele consegue reconhecer melhor a natureza de suas emoções, defini-las, refiná-las,
clarificá-las e articulá-las em sua relação com seus objetos. Essas emoções assim clarificadas são, por sua vez,
imaginativamente reconhecidas enquanto tais pela audiência capaz de apreciar a obra de arte. Podemos
considerar como exemplo o painel de Picasso intitulado Guernica. A cidade de Guernica foi criminosamente
bombardeada pelos nazistas para efeito de experiência militar. Tendo sido informado acerca disso, o artista,
movido por emoções, pintou Guernica. Mas as emoções que o painel suscita em nós e no próprio pintor foram
transformadas. Elas são emoções estéticas, muito superiores à emoção bruta que cada um de nós poderia ter,
digamos, ao ler em um jornal sobre o bombardeio de Guernica. Podemos sintetizar essa teoria no seguinte
esquema10:

Para Collingwood a imaginação e o pensamento são na produção artística no mínimo tão importantes quanto
a expressão de emoções. É pela imaginação que o artista refina e articula os seus sentimentos, e é também
pela imaginação que o auditório interpreta e compreende os sentimentos expressos na obra de arte. Como
resultado, a obra de arte é capaz de produzir no auditório e no próprio artista uma compreensão maior de seus
próprios sentimentos, e com isso uma ampliação e regeneração de seu autoconhecimento e consciência.
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É nessa ampliação e regeneração da consciência que Collingwood vê a função da arte. Nossas emoções
freqüentemente deixam de ser associadas a certas idéias, posto que tais associações nos desagradam e
assustam. O resultado disso é o que Collingwood chama de corrupção da consciência, a qual pode se estender
à toda uma sociedade, fazendo com que ela entre em decadência. A arte verdadeira, por promover uma
compreensão mais autêntica de nossa vida emocional, serve de medicina contra a corrupção da consciência.
Como escreve Collingwood, a arte não é uma luxúria, e a má arte não é tolerável, pois “conhecer a nós mesmos
é a fundação de toda a vida que se desenvolve além do nível de experiência meramente físico. Uma consciência
verdadeira dá ao intelecto uma fundação firme; uma consciência corrompida força o intelecto a construir sobre
areia movediça”.11 Por isso o artista deve ser um profeta,

...não no sentido de prever coisas que virão, mas no sentido de que ele conta à sua audiência, sob o risco do
desagradá-la, os segredos de seus próprios corações. A razão pela qual ela precisa dele é que nenhuma
comunidade conhece o seu próprio coração; e por falhar em conhecê-lo, uma comunidade engana-se a si
mesma sobre uma matéria em relação a qual a ignorância significa morte... A arte é a medicina comunitária
para a pior doença de mente, que é a corrupção da consciência.12

Assim, quando James Joyce sob o personagem de Stephen Dedalus, em O Retrato do Artista Quando Jovem,
afirmou que a sua intenção como artista seria a de forjar, no âmago de sua alma, a incriada consciência de sua
raça, e que as únicas armas que ele se permitiria usar para isso seriam silêncio, exílio e sutileza, ele estava
manifestando poeticamente o mesmo ponto que Collingwood buscou articular filosoficamente anos mais
tarde.

A teoria de Collingwood é, ou assim me parece, a que mais se aproxima do intento de definir a espécie mais
relevante de arte. Ela chega próximo de estabelecer condições suficientes para a definição de arte própria, ou
seja, das condições que constituem a essência comum à arte no sentido da palavra que realmente importa
considerar. Quero fazer algumas considerações adicionais.

A primeira é sobre a enorme variedade de emoções de grande complexidade e sutileza cuja existência é
sugerida por uma teoria como a de Collingwood. O sentimento de alegria e regozijo produzido pelo Magnificat
Anima Mea de Bach é diferente do sentimento de alegria da dança dos camponêses em Don Giovanni, de
Mozart, o qual é ainda muito diferente da alegria produzida pela música Camisa Listada, cantada por Carmen
Miranda. O sentimento evocado pela interpretação de Björling de uma ária de Puchini, por sua vez, é mais
profundo e sutil do que o produzido pela interpretação de Caruso, embora sem a modulada (e por vezes
excessivamente sentimental) suavidade de do canto de Beniamino Gigli.

Essa tese pode parecer controversa: não haveria um limite muito mais estreito para a variedade das emoções?
Afinal, como poderia ser notado, o movimento final do bolero de Ravel pode ser uma explosão de gozo, mas
também pode ser uma explosão de cólera. Como decidir? Uma resposta seria que como a linguagem carece
de símbolos capazes de designar a enorme variedade de estados emotivos únicos, temos a impressão de que
eles não existem13. O mesmo acontece, por exemplo, com as sensações. Ficamos surpresos quando vemos que
provadores de vinhos conseguem adivinhar a marca de um vinho pelo gosto, odor, aspecto. Sendo assim
também com os sentimentos, torna-se compreensível que a arte seja capaz de refinar e ampliar o nosso
universo emocional.

Refletindo essa maneira de ver, Susanne Langer concluiu que a função essencialmente pedagógica da arte é a
de educação do sentimento:

A maioria das pessoas anda tão imbuida da idéia de que o sentimento é uma amorfa excitação, totalmente
orgânica, em homens como em animais, que a idéia de educar o sentimento, de desenvolver-lhe o raio de ação
e a qualidade, se lhes afigura fantástica, se não absurda. De minha parte creio que constitui realmente o próprio
cerne da educação pessoal.14

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Um ponto ainda mais importante a ser notado é que, embora a teoria de Collingwood chegue a uma
caracterização da essência da grande arte, ela o faz de uma maneira alusiva e limitada. A emoção individuada,
esclarecida e refinada que a obra de arte evoca seria a emoção propriamente estética. Mas como caracterizá-
la e distingui-la das emoções mais comuns? Em que consiste essa ampliação da consciência produzida pela
emoção estética? Como ela pode inibir ou curar a corrupção da consciência?

A vaga e tentativa hipótese que me passa pela mente apela para algumas categorias que tomo de empréstimo
da metapsicologia freudiana. As produções simbólicas constitutivas da obra de arte (palavras, sons, formas,
cores...) são reproduzidas na consciência do auditório na forma de representações possuidoras de alguma
espécie de conteúdo semântico, como pretende a teoria representacional. Também segundo Freud,
representações costumam ter associadas a elas sentimentos, emoções que lhe são próprias, aquilo que ele
chamava de cargas afetivas (Besetzungen), e a tomada de consciência de representações costuma vir
acompanhada de uma descarga das intensidades afetivas a elas ligadas, a qual produz prazer pela diminuição
da tensão endopsíquica. Há duas maneiras gerais pelas quais isso pode ocorrer, que são os processos psíquicos
primário e secundário. No processo secundário (próprio do pensamento científico) as cargas afetivas estão
rigidamente associadas às representações correspondentes. Já no processo secundário (próprio dos sonhos ou
das manifestações artísticas), as cargas encontram-se livres, sofrendo processos de deslocamento e
condensação. Elas deslocam-se de uma representação inconsciente para outra que lhe seja em algum aspecto
semelhante e capaz de se tornar consciente, disso resultando uma liberação das tensões afetivas. Ou então as
cargas afetivas provenientes de múltiplas representações condensam-se em uma só, que é de algum modo
semelhante àquelas e se torna consciente, também produzindo prazer ao liberar tensões afetivas.

Ora, com a introdução dessas poucas categorias podemos ensaiar uma explicação mais precisa para a emoção
estética e para a sua suposta função catártica de, digamos assim, elevação e ampliação da consciência. De que
maneira? Como em algum lugar teria notado Hegel, a arte é a realização sensível do universal. Traduzindo:
emoções estéticas diferem das emoções comuns por possuirem um elemento polissêmico, de universalidade.
Mas em que ele consiste? Primeiro, elas são emoções intrinsecamente dependentes das complexas
representações estéticas que unicamente capazes de expressá-las. Contudo, elas transcendem a essas
representações que lhe são de direito, ligando-se dinamicamente a uma multiplicidade indefinida de outras
representações, como as ondas que se afastam em círculos concêntricos na superfície da água... Essa é a
característica de elevação da emoção estética, indissociavelmente ligada à amplitude. Por exemplo: as
emoções suscitadas pelo painel de Picasso intitulado Guernica são mais elevadas que o fato supostamente
retratado, o que as faz serem capazes de se associar a uma grande variedade de outras representações de
massacres de inocentes com maior ou menor adequação, o que nos permite diferenciá-las valorativamente
umas das outras. Já as emoções épicas suscitadas pela Sinfonia do Destino de Beethoven, embora não possuam
qualquer objeto próprio, podem ser associadas a uma grande variedade de representações de situações de
grandeza dramática, digamos, à revolução francesa, à queda de Roma... Essas associações de cargas afetivas
com um número indeterminado de outras representações explicaria a maior intensidade da emoção estética
pela descarga, pelo espraiamento de intensidades afetivas na consciência, potencializadas pelos mecanismos
de deslocamento e condensação15.

O que acabamos de fornecer são condições necessárias, embora ainda insuficientes para explicar o fenômeno
estético, dado que em geral elas também se aplicam a outros efeitos do processo primário, como o sonho e o
devaneio. A passagem para a condição suficiente na explicação da grande arte se dá ao meu ver pela relação
desses sentimentos com a verdade, ou seja, pelo fato de que a universalidade sensivelmente expressa que
havíamos mencionado no início é apta a aproximar-nos da verdade. Essa seria, creio, a paráfrase mais
aproximada da sugestão alusiva de Collingwood. As emoções estéticas elevam e ampliam a consciência
humana porque, sendo multiplamente associáveis a representações, são capazes de favorecer a associação e
ordenação verídica das inúmeras representações que a elas se podem associar. E quando isso acontece, elas
são emoções pertencentes à arte própria.

Cláudio F. Costa

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Notas
1. M. Weitz: “The Role of Theory in Aesthetics”, em Neil and Ridley (eds.): The Philosophy of Art:
Readings Ancient and Modern (New York: McGraw Hill, 1995).
2. L. Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen (Suhrkamp: Frankfurt, 1984), sec. 67.
3. N. Warburton: The Art Question (Routledge: London, 2002), p. 81. A minha exposição é tributária
dessa excelente introdução.
4. Ver P. W. Alston: Filosofia da Linguagem (Zahar: Rio de Janeiro, 1977), p. 124 ss.
5. Ver A. Danto: The Transfiguration of the Commonplace (Cambridge: Harvard University Press, 1981).
Ver também a introdução de Noël Carroll: Philosophy of Art (London: Routledge, 1999), chap. 1.
6. C. Bell: Art (Oxford: Oxford University Press, 1987 (1914)).
7. G. Dickie: Art and the Aesthetics (Cornell University Press: Ithaca, 1974).
8. N. Warburton: The Art Question, ibid. p. 102
9. L. Tolstoy: “On Art”, in D. E. Cooper (ed.): Aesthetics (Oxford: Blackwell, 1997), pp. 164-76.
10. R. G. Collingwood: The Principles of Art (Oxford: Oxford University Press, 1974 (1938)), cap. VII.
Sobre a teoria de Collingwood, ver Colin Lyas: Aesthetics (London: UCL, 1997). Pontos de vista
semelhantes foram desenvolvidos por Benedetto Croce e Susanne K. Langer.
11. Collingwood: The Principles of Art, p. 284.
12. Collingwood: The Principles of Art, p. 336.
13. M. C. Beardsley & J. Hospers: Estetica: Historia y Fundamentos (trad. Catedra: Madrid 1997), p. 143.
14. S. K. Langer, “A importância cultural da arte”, em Ensaios Filosóficos (trad. Cultrix: São Paulo 1971),
p. 90.
15. Uma explicação mais detalhada desse mecanismo é oferecida em meu ensaio “Processo primário e
emoção estética”, em C. F. Costa: Estudos Filosóficos (Tempo Brasileiro/UFRN: Rio de Janeiro 1999).

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