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BIBLIOTECA DE DIVULGAÇÃOCULTURAL

EXPRESSÃO
DRAN4ATICA
.4 zz2)cessão l)
Desta l4 edição de
foramtirados,fora de comércio,
vinte POR
linho
exemplares especiais em papel de
tV'esterpost. RUGGERO JACOBBI

Í .:1.31,.}OTECA
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s9s' .,/.à
-..---(.'D.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA


INSTITUTO NACIONAL DO LIVR.O
1 956
162 RU GG ERO JACOBBI
F
l
Já o segundoato perdeum poucoda unidadede
inspiração e de estilo do primeiro. O examedos candi. l
patos, realizado pelo metropolíta Nicolau ; as duas cenas ESPER.ANDO GODOT }

l
de amor entre os jovells casais (deliciosa a primeira.
caIU a narração de como se processou o noivado) ; as
longas tiradas de Marcos, o mensageiro -- representam
quatro s#o' s separados, enxertadas à fôrça dentro l
do pequenoanuladode Paula Scala, que continua sendo
o núcleo da peça, a sua substâncialírica. Mauriee Nadeau tem toda a razão quando afirnta
O último ato, então,é francamenteo pior, por ser que, lendo as obras de Samuel Beckett, o conhecedor
inteiramente dominado por ll:r. Boble e por suas abs- das letras modernas tem.vontade de colocar, Comoepí-
tratas ideologias. Os tipos do Médico e do Comandante grafe de qualquer livro, de qualquer página dêssesin-
caemnuilla forma de humorismomuito inferior à das gular escritor franco-irlandês, a frase categórica e niilis-
}iassagens câmieas dos primeiros aros. E o .próprio Ale- ta de Lautréamont: "C'est un homme ou une pierre
xandre, pez'sonagemnova, ocrlpa por demais o tempo do ou un arbrequi va eommeneer
le quatriêntechant"
ato, prejudicando a ação principal. llá, porém, neste Clomefeito, o reino de Beckett é o domínio do indife-
terceiro ato, um gi'ande momento poético : a aparição renciado,o Nadacaóticoe fluido, a ausência
total de
da menina Corria, com suas H.istóríab -- mentiras. ,alteres, onde os esquemas de nosso mundo comum são
talvez?-- patêticamenteatiradas ao rosto de INl:r.Boble reduzidos a nomes, quase ecos desfigurados por uma
agonizante. nlelnória . impossível ; .fZaf2ós uoois, ausência. Becl(ett,
Com todos seus defeitos, e dentro dos limites de que foi secretário de um grande destruidor colhoJoyee,
um gênero teatral já em franco processo de esgotamento. já deixou até de possuir a tumultuosa dralnaticidade
]/t'. .BobZe é: entretanto, o original estrangeiro de eoln a qual o autor de PZisses conduzia a psicologia
maior valor literário apresentado entle nós nos últimos e a cultura milenárias do Ocidente à beira do Nada.
tempos. reduzindo-asao amálgama original'ío das línguas e dos
]952
a mitos. Eln Beckett, tudo é Calma, imutabilidade, na.
mesmamedida em que tudo é tensão. Estamos diante
dü tragédia de uma ruína intelectual, como se uma
bomba H tivesse destruído o mundo inteiro. deixan(]o
estúpidos os sobreviventes, reduzidos pràticamente &
DIRÁ faculdade : falar. Mas ngo falar para expres a
sentimentos ou estruturar pensamentos : falar, apenas.
Falar porque R bôcaainda pmsui umn carga do FRIA:
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Trás, que precisam ser cuspidas, escarpadas fora, in-


cessantemente,sem que delas ninguém saiba o signifi- rc de Campina. Sei'á bom que Beckett, o homeiü Samuel
Beckett, faça figas -- está às voltas com dois refinados
cado, e sem que o próprio problema da existêiieia ou
necessidadede algum significado exista. Esta parábola abutres. Mas Antonirt .Artaud, que também. conheceu
é: rigorosamente lufada até o fím, no decorrer da Car- o manicómio,
estáaí para demonstrarque o loucode
talento é muitas vêzes um sw cddé (Ze Za soc é#é; o que
reira de Beckett como romancista. ãft(2'p/bg poderia e'oloca, imediatamente, Beckett fora 'de perigo. Para
ajuda autorizar uma lUteI'pretação na. base do 7tl+ll&owr.
mesmo do à2it Olr tloir; em iUoZioy e enl Ã/aZo?te Becketb nenhuma sociedadepràticamente existe; não
7?telef'f sobrevive unia vaga resistência de énrêdo, do tem contra o que se revoltar, não tem por .quem ser
personagem, de símbolo, uma pseudo-lógica, no sentida
punido. Não pode ir para um nlanicõlniõ, porque já
de Kafka. Iras diante de um livro como .Z)T?nommable. está na indiferença entre i'azão e irracional; já está,
não há mais nada a fazer: percebe-sea fragilidade de se quiser'em, num ntanicânlio : ou, pior ainda, eln unl
todas aquelasreferências; percebe-seque o caminho de mundo -- ou m tll.a atü8êKcüde lnunclo -- onda nem
ao, .Hienas o tema da loucura tei'ia sentido. E? o 13ada.
Beckett era êste,só êste,único e típico -- êste que
agora o leva conscientemente a um beco sem saída. o .vácuo, uma. ba?tc/a beal&fe de palavi'as gélidas e
Diante de Z'JK%omtmableos dois melhores eríticog de notui'nas, toro'enciais e matemáticas ao mesmo t.empa.
Beckett =- e Blanchot -- denunciam a própria A história é cancelada: I'esta a natureza,o est.adoani-
posição já nos títulos de suas crónicas: "La derniêro ntal, dentro dc sua l)alga.gelamais antiga: : o caos.
tentativa cle Beckett'.', diz Nadeau, e põe a palavra Êste niilisnto (mas já a ronda is/ilo.-é demais.
der%êre entre aspas. Blanchot alinha uma série de no. caso de\ Beckett, porquanto indica urna tendência, l
interrogativos assustadores : " OÜ maintenant ? Qui main-
tenant? Quand maintenant?"
unia intenção)
Blancllot
desperta eul honleils como.;Nadeau :e
ecos profundos ; acai'leia o baGA-gf'oz]wd ]lJe- 1.
{:afísico -- em Blanchot -- ou ttnarquista . eni Nadeau
As conclusões dos dois críticos são claras : .trata-se
-- das duas respectivas cu]ttu'as. ]3]anchot não acredita
de um caso-limite.. Depois disso, ou o silêncio (é a
na história, c tende a fazei' da literat.urà o espelho,cada
profecia lógica de Nadeau) ou a reabilitação da obip- x'cz dais secreto, de uma condiz:ão humana absoluta e
tividade not'mal . (escrevendo Pois eg como pretendia eterna. Nadeaufina'e acreditar no amaina.,uln amanhã
Lautréamont; indo para a África, dedicando-se ao eo,
místico-libei,bário que mais se parece com o üz.fe.»}das
méi'eio e ao contrabando, :como R.imbaud).. alas esta
religiõesbaseadas
no mito da Idade do"Oui'o,ou com
segunda hipótese não ag'Fada às mentalidades ntetafí-
o passe de mágica da tradição esotérica. Não é jor-
sicas e apocalípticas dos dois críticos : no fundo, prefe- nada que a lutei'atura francesa de hoje se apaixona pelo
riam para '.:Beekett a outra. saída, &, mais gnomoa: lado secreto do romantismo alemão, espeeialmehtepelo
o mnnio6mio de Nietzscbo e de Van Gogb, de Hoeldarlin
idealismo mágico; .não é por nada que sê multiplicam
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em Pai'is os discípulos das doutrinas orientais tiPO


Zen e os sequazesdaquele charlatão encantador e ge.
mal que foi Gurdjeff. Artaud dedicou os últimos anos
de sua vida a; estudos sabre a simbologia dos fal'ofg.
as cartas mágicasdos alquimistas, cujos primeiros dele:
lhos remontam à tradição dos Rosa-Clruz. Ora, que
deveremosfazer nós, pobres racionalistas, histol'icistas e
humanistas, diante dêste Grande Oriente desencadeado
sabre nossa cultura vulgaríssima, burguesíssima, alérgica
às metafísicas? Nossahuluildade é g'lande. Nossacon-
fusão é paiol-.
Nossa obrigação, porém, embora g't'osseirae despre-
zíx'el,existe. Trata-seda obrigaçãode mostrar até que
ponto aquilo que nos é api'esentadocolho absolutoa
atei'no na realidade é histórico, concreto e trausitório.

11

O teatro clevanguardada primeira geraçãofutu-


rista!, dadaísta e surrealista, era um teatro alegre, irre-
verente, cheio de afirmações vitais. Compare-se uni .r

Apollinaire com um Beckett, um R.ibemont-Dessaignes


comum Adamov, um b41arinetticom uni Schebadé,
um
;

Tzara com ulu lonesco, um lvan Goll com um Pichette.


A valaguarda de hoje é tristonlla, desanimada, azeda o í'f;

(no ntáximo) Cínica. Os versos inesquecíveis do prólogo


das .Wü?teZZes
de Tdré8imsãot]]]] verdadeirohino de
amor à vida: ;'.alegria volúpia virtude -- pai'a. suas;i-
tuir êsse pessimismo velho de muitos séculos. . . -- ó ])ú-
blieo -- sê a tocha ardente do fogo novo":' Nesta mesma.
linha estão os melhores resultados cle llaiakovski. as J

obrasmais livres de Ghelderode


e, aqui no Brasil, o
]G8 RUGGE'RO JACOBBI
A 'EXPRESSÃO: DRAaIÁTICA 169

elevação,é a mais passiva entre tôdas is al'tes que o


]iomem já conheceu : é um âto de obediência a um cego
determinismo social, que já se tornou psicológico, e que
um N,eidadeiro
ato de vontadepoderiaquebrar e sub-
vci'ter.
O teatro, porém, resiste..a essasviolências. O pró-'
l)rio Beckett hão conseguefazei' no palco algulrta coisa
que corresponda a Z'Jlü?!027 ntabie,; isto na verdade seria
impensável. O teatro contil)tla exigindo, e obtendo, e Lucky são uma representaçãosimbólica,onírica, das
mesmode Beckett, um lliínimo de elli'êdo e umas solu- relações entro patrões e escravos; quer saber se 3]stragon
lll'as de personagens.E, ]llesnlo que não os t.ivesse,a e wladimir são realmente dois vagabundos,que se tor-
pt'esença física do ater, a existência material de um naram loucos, aéreos, Inconiseqüentes:pela fome pela
público, ci-ia.riam tais realidades pol' si ; iriatn alémJ:;cla solidão, por estarem desligados do resto da humanidade.
intenção do autor, elnpi'estai(lo ao io 1.crise um sen-
tido. 'Será un] sentido gubjetivo, ou seja, aquela..ülspi-
I'anãoque o autor i'ealmentetinha e de .queêle niesnlo
não sc dava conta.; será ulu sentido objet.ivo, ou seja,
t. descoberta do que realmente a. peça acaba por dizei'
e; ensinai' â f'e.t;ciíü ou â ci{.gfa. do autor; luas, êJn
t.ocos os casos;,lla.da clo que se )ltatetializa cjn homens
i'Cais coi\segue ser ])i'acedido, algêbricatnente, pelo ])ul'o
c sintples sinal mt.altos; o atou' é uma ci'natura ]iistó-
i'ica., portador' dc uma cultura, e os espectador'es são
um fi'agl)!eito, umã ainosti'a, de tõ(]a uuxa sociedade. se espera, algo que devemos e podemos ser, nós mesmos.
13astaisso para. que o cspetáculo sir'ça principalmente Em ambosos casos,em todos os casos esta obra de arte
])ara redescobt'ir, no autor tambÉjm, o llomeln histót'ico, } a não coüseguil'á do espectador uma contemplação
$eusubsolode.ctlltura, sua existênciadentro da coleti- estética desintezescada, porque seus próprios enigmas
vidade de uma é])oca. $ua pa]avl'a deixa (]e sel' uma nua falta de valoresobjetivos, criam interrogações,'obri-
l evelação univei'sal,

tico, Chega a se tornar,


contrária é impossíx'el
tox'na-sç um documento,
deter'minado. Parque só o real, alcançando o valor esté-
i'elativo

de cel'to modo, eterno ; a operação


: o absoluto,.passando
pela filtra-
e

i ll:BIH.B=Ç'hÍ=Hj$
pidamente estética,porquanto impõe à atençãoa forma
11
h. 170 RUaanüO gJACOBBt
l
êlu que aquêle conteúdo está expressado ; a forma, graças
à qual ela é arte.
A apresentação de Beckett no Brasil, que devemos,
mais uma vez, à corageme à inteligência de .Alfredo
Mesquita, va.le como contribuição cultural e pelos pro-
blemas que levanta. Apenas, direi que, pessoalmente,
saindo do Godaf, tenho vontade de ir assistir a. tlm
velho melodrama. Não se admirem: saindo da Bienal,
sempre vou dai' umas voltas pelas lojas de quadros
comerciais,espalhadaspela Cidade,e chegoaté a como-
ver-me com certas peras que parecem peras, com certas
nuvens que andam mesmo,brancas e solenes,através
do honestocéu do mau gôsto.

CEDER.NO SECRETO

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