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HISTÓRIA, CATOLICISMO

E EDUCAÇÃO
Pedro Vilarinho Castelo Branco
Maria Dalva Fontenele Cerqueira
Organização

HISTÓRIA, CATOLICISMO
E EDUCAÇÃO

2019
Reitor
Prof. Dr. José Arimatéia Dantas Lopes

Vice-Reitora
Profª. Drª. Nadir do Nascimento Nogueira

Superintendente de Comunicação
Profª. Drª. Jacqueline Lima Dourado

HISTÓRIA, CATOLICISMO E EDUCAÇÃO

© Pedro Vilarinho Castelo Branco • Maria Dalva Fontenele Cerqueira

1ª edição: 2019

Revisão
Francisco Antonio Machado Araujo

Editoração
Francisco Antonio Machado Araujo

Diagramação
Wellington Silva

Capa
Mediação Acadêmica

Editor
Ricardo Alaggio Ribeiro

EDUFPI – Conselho Editorial


Ricardo Alaggio Ribeiro (presidente)
Acácio Salvador Veras e Silva
Antonio Fonseca dos Santos Neto
Wilson Seraine da Silva Filho
Gustavo Fortes Said
Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz
Viriato Campelo
Ficha Catalográfica elaborada de acordo com os padrões estabelecidos no

19 módulos
Código de Catalogação Anglo-Americano (AACR2)

H673 História, catolicismo e educação / Pedro Vilarinho Castelo Branco,


Maria Dalva Fontenele Cerqueira, organizadores. – Teresina:
EDUFPI, 2019. 53 módulos

E-book.

ISBN: 978-85-509-0507-5

1. História.  2. Educação.  3. Catolicismo.  4. Escolas


Confessionais.  5. Pesquisas Historiográficas.  I. Castelo Branco, Pedro
Vilarinho (Org.).  II. Cerqueira, Maria Dalva Fontenele (Org.).  III. Título.

CDD: 370.981

Bibliotecária Responsável:
Nayla Kedma de Carvalho Santos CRB 3ª Região/1188
SUMÁRIO
PREFÁCIO 7
CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM
FABRICAE: “NOVAS” REGRAS ARQUITETÔNICAS 17
PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
Natália Maria da Conceição Oliveira

A RELIGIOSIDADE NO PIAUÍ COLÔNIA:


CATOLICISMO ADAPTADO AO MODO DE VIDA 43
Tanya Maria Pires Brandão

DESEJOS E RANCORES: OS DISCURSOS


POR AUTONOMIA ECLESIÁSTICA DA
PROVÍNCIA DO PIAUÍ (1829-1838)
59
João Vitor Araújo Sales
Marcelo de Sousa Neto

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO


TÁTICA EDUCATIVA ULTRAMONTANA NA
DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874) 85
Juarez José Tuchinski dos Anjos

AS ESCOLAS CONFESSIONAIS E AS PRÁTICAS


DE CATEQUESE /EDUCAÇÃO DOS
JESUÍTAS NO PIAUÍ
113
Rafaela da Costa Sousa Sampaio
Pedro Vilarinho Castelo Branco
ANTICLERICALISMO E AS REPRESENTAÇÕES
DA BEATA NA PROSA FICCIONAL 131
DE CLODOALDO FREITAS
Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira
Elizângela Barbosa Cardoso

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A


IMPLEMENTAÇÃO DOS MODELOS FEMININOS 153
MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO
SÉCULO XX
Pedro Vilarinho Castelo Branco

COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA CATÓLICA


E A EDUCAÇÃO ESCOLAR EM PARNAÍBA NA 183
PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX
Maria Dalva Fontenele Cerqueira

CATOLICISMO NA CULTURA ESCOLAR:


O INSTITUTO MONSENHOR HIPÓLITO EM
PICOS-PI SOB INFLUÊNCIA DO 205
ULTRAMONTANISMO (1944-1960)
Lanna Karen Lima Araujo
Francisco de Assis de Sousa Nascimento

INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS CONFESSIONAIS


(1920-2013): O HABITUS RELIGIOSO TECENDO
HISTORIAS E MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO
229
Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA


Antonio Fonseca dos Santos Neto
257
SOBRE OS AUTORES 297
PREFÁCIO
ENTRE CRENÇAS E LIVROS,
A HISTÓRIA

“A imagem de Deus numa sociedade depende, sem dúvida,


da natureza e do lugar de quem imagina Deus. Existe um
Deus dos clérigos e um Deus dos leigos; um Deus dos
monges e um Deus dos seculares; um Deus dos poderosos
e um Deus dos humildes; um Deus dos pobres e um Deus
dos ricos”1. 

O
processo de elaboração e publicação de um
livro remete a uma série de circunstâncias e de
significados aos quais seus autores, organizadores
e editores estão submetidos, sejam os derivados da ordem
econômica – referentes ao acesso aos meios de produção do
livro –; sejam os de natureza técnico-editoriais – que expressam
domínio de saberes e artifícios que possibilitam a fabricação do
livro em sua materialidade; sejam os de caráter autoral (modos
de elaborar o pensamento, a escrita e sua divulgação a partir
de suas manifestações culturais, religiosas, formação escolar e
seu ambiente de leitura e escrita, os grupos sociais aos quais
pertencem, entre tantas outras variáveis), indispensáveis à sua
fabricação.

PREFÁCIO 7
Isso também se aplica à formação do leitor, em sua
apropriação ou recepção do texto, uma vez que se reconhece
que a cultura escrita está carregada de demarcações físicas e
simbólicas, cujos marcos de entendimento e de valoração são
delineados pelas sociedades em suas experiências culturais, ao
elaborarem e atribuírem significados aos textos e aos livros
em sua relação com o espaço e o tempo de sua produção e
circulação, por meio da constituição de sentidos atribuídos ao
vivido, ao escrito e ao lido, em uma contínua imbricação que
essas dimensões carregam consigo, pois, como adverte Roger
Chartier, toda história da leitura representa uma produção de
significados, e assim precisa ser lida: como uma apropriação,
como uma invenção2.
Dessa forma, o livro História, Catolicismo e Educação é
uma coletânea composta por onze artigos, organizada pelos
professores Pedro Vilarinho Castelo Branco e Maria Dalva
Fontenele Cerqueira, e constituída por textos escritos por
experientes e jovens pesquisadores, que socializam suas
pesquisas historiográficas cujas temáticas abordam a relação
entre esses três eixos temáticos. Essa obra precisa ser lida na
configuração histórica de sua elaboração e publicação, sendo
necessário atentar para dois elementos fundamentais: o
cenário acadêmico de expansão das Pós-Graduações no Brasil
ao longo dos anos 2000, mais especificamente, em História e
em Educação – áreas centrais na formulação das problemáticas
abordadas pelos textos aqui compilados - e a expansão do
campo editorial durante esse período histórico, notadamente
o piauiense, que manifestou expressivo crescimento em sua
produção a partir do incremento gerado com a ampliação do
acesso às técnicas de produção. Isso possibilitou um maior
dinamismo na publicação de livros no cenário local, em grande
medida em decorrência dos avanços técnicos, científicos e
tecnológicos alcançados no período.

8 
É oportuno reconhecer que a configuração histórica
brasileira, no século XXI, estimulou e financiou a qualificação
de pesquisas acadêmicas em nível de Pós-Graduação, muitas
das quais passaram a abordar temas diversificados em variados
campos do conhecimento, como nas áreas abordadas nessa
publicação, assim como permitiu um maior dinamismo na
difusão dessas pesquisas, por meio de publicações que, outrora,
mesmo que projetadas, quase não chegavam a ser realizadas,
e/ou quando eram desenvolvidas, sequer chegavam ao
conhecimento do público em geral, pois tinham sua circulação
restrita às páginas de monografias, dissertações e teses – que,
dadas às restrições dos meios de publicação, geralmente eram
arquivadas ou ficavam circunscritas ao lócus de sua produção:
a comunidade universitária, e isso inviabilizava a difusão do
conhecimento científico entre um público mais amplo.
Com a expansão do campo de pesquisa - cenário histórico
que possibilitou a implantação, no Piauí, do Mestrado em
História do Brasil, oferecido pelo Programa de Pós-Graduação
em História3, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), no ano
de 2004 - foi possível a realização e diversificação temática
de pesquisas que, associadas ao maior acesso às técnicas
editoriais, deram condições materiais e intelectuais para que
fosse possibilitada a sua circulação por meio de livros impressos
– e em alguns casos até digitais. Isso em si já evidencia a própria
historicidade da produção historiográfica, pois nos remete ao
cenário histórico vivido no país a partir do primeiro decênio e
meio do século XXI, marcado pelo estímulo ao desenvolvimento
de pesquisas em diferentes áreas do conhecimento, inclusive
no campo das Ciências Humanas, e sua articulação a outras
esferas da vida social, ao vinculá-las ao circuito de expansão
do campo econômico e técnico vivido no Brasil neste período,
que, entre muitas conquistas sociais alcançadas, permitiu um
esboço de dinamismo no mercado editorial no Estado, e isso

PREFÁCIO 9
vem influenciando sobremaneira a expansão dessa atividade no
cenário local, sobretudo por meio da elaboração e circulação
de livros sob a forma de coletâneas de artigos científicos. Essa
forma de organização e divulgação dos textos não é recente,
nem restrita a nosso contexto. Há muitos relevantes exemplos
no campo da historiografia. Um dos mais expressivos, que
muito tem repercutido entre os historiadores, foi a trilogia
organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora, com sua História4.
Esse formato de publicação em coletânea também foi adotado
por outras produções bibliográficas – como a coleção História
da Vida Privada, dirigidas por Georges Duby e Phillipe Aries5,
assim como os livros organizados por Jean Boutier e Dominique
Julia6, ou por Lyn Hunt7, por Jean-Pierre Rioux e Jean-François
Sirinelli8 e tantas outras produzidas entre os séculos XX e XXI,
no cenário internacional.
Esse formato de publicação, sob a forma de coletâneas,
também vem sendo adotado no cenário brasileiro por obras
de expressiva repercussão em nossa historiografia, cuja
influência tem sido decisiva na formação de muitas gerações de
historiadores, com diferentes filiações teórico-metodológicas.
Podemos mencionar várias, mas destacamos as organizadas
por Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas9 e os volumes
da História da Vida Privada no Brasil, dirigidas por Fernando
Novais, em parceria com outros colegas de ofício10.
Esse formato editorial também vem sendo adotado pelos
membros do Programa de Pós-Graduação em História, da
UFPI, para dar visibilidade às pesquisas desenvolvidas em seu
seio. Podemos elencar como exemplos as obras Os itinerários da
pesquisa em História11 e Oficina de Clio12 - que contaram com a
colaboração de docentes e discentes deste e de outros Programas
de Pós-Graduação em História, além de muitas outras
relevantes coletâneas, que têm contribuído para a propagação
das pesquisas desenvolvidas pelos professores-historiadores

10 
da UFPI, em articulação com outros pesquisadores de notório
reconhecimento em nível nacional, como as obras Sentimentos e
Ressentimentos em cidades brasileiras13, História e Arte: teatro, cinema,
literatura14, Torquato Neto: um poliedro de faces infinitas 15, Cultura,
corpo e educação16, entre tantas outras coletâneas que têm
contribuído para fortalecer e consolidar o campo da produção
historiográfica e evidenciar a qualidade das pesquisas.
Com isso, intensificam-se os esforços para publicar as
pesquisas, uma vez que se sabe que o livro, ao possibilitar acesso
às ideias dos autores, pretende também delimitar papéis e
poderes nos muitos meios em que a obra circula, e por extensão,
promover o encontro desses estudos com a sociedade, inclusive
ao definir as temáticas válidas de serem discutidas no ambiente
acadêmico, naquilo que Michel de Certeau denominou de “as
regras do meio”, ao relacionar a operação historiográfica como
sendo uma escrita, substanciada numa prática e num lugar17. Ao
reconhecer isso, a presente coletânea visa a fortalecer a cultura
textual no campo da história, bem como a sua relação com
as concepções de religiosidade – aqui em destaque sobretudo
a de matriz cristã - e suas relações/vinculações com diferentes
instituições sociais, principalmente as instituições educacionais
– seja na condição de entusiasta ou de crítico. Reconhece-se
que a compreensão do que é lido, passa pelo filtro cultural do
sujeito-leitor, conforme as diferentes apropriações que cada um
pode fazer em relação ao texto em apreciação, como preconiza
Roger Chartier18.
Ao estruturar os textos em torno do eixo-temático
História, Catolicismo e Educação, os organizadores e os autores dos
capítulos passam a colaborar com pesquisas que consideram
essas temáticas como válidas de serem reconhecidas pelos
estudos da História, substanciadas em problemáticas que sejam
do interesse de sua área de estudos, pesquisadas e escritas com
adequado embasamento teórico-metodológico, que permita

PREFÁCIO 11
analisar de maneira criteriosa as fontes consultadas, no âmbito
acadêmico, dando-lhes legitimidade e legibilidade.
Com isso, segue-se um percurso já iniciado na
historiografia e mostra-se a gradativa ampliação dos estudos
sobre História e Religiosidade e sobre História da Educação,
em especial atenção para a perspectiva do “Cristianismo” –
uma vez que os autores evidenciam que o interesse temático
dessa obra consiste em estudar a relação mais específica da
História com o Catolicismo e com as propostas educacionais
derivadas dessa percepção religiosa.
Os pesquisadores que colaboram com esta coletânea
seguem as trilhas inicialmente percorridas por Johan Huizinga19
e por Marc Bloch20. O primeiro, ao defender a interdependência
entre religião e a cultura dos povos e as épocas à que pertenciam;
o segundo, ao propor um estudo que objetivou entender as
relações de poder a partir do inovador estudo sobre a crença da
sociedade no poder curativo exercido pelos reis. Várias outras
pesquisas sucederam-nas nesse campo e contribuíram para
a consolidação dessa temática em suas perspectivas teórico-
metodológicas no fazer historiográfico, o que evidencia que
sua pertinência e validade para o campo da História21.
As pesquisas que abordam as temáticas relativas à História
das Religiões ou à História das Religiosidades passaram por
expressivas transformações, uma vez que foram influenciadas
pelas reformulações que revigoraram a historiografia no século
XX, sobretudo as que contribuíram para a ampliação temática
e para o alargamento teórico-metodológico, e permitiram a
diversificação das abordagens, dos problemas e das leituras
realizadas sobre História, Religiosidade e Educação – temas
centrais que norteiam esta obra, respeitando as orientações
daqueles que passaram a defender que o mais recomendado
seria abordar esses temas sob o viés da pluralidade de
perspectivas. Um exemplo muito expressivo, nesse sentido, são

12 
as pesquisas desenvolvidas por Dominique Julia, pesquisadora
que estuda tanto temas relativos à História Religiosa, quanto
à História das instituições escolares – questões centrais das
abordagens constantes nos textos da coletânea aqui analisada.
Seu principal ensinamento, que repercute na produção do
conhecimento histórico - não apenas entre aqueles que
pesquisam temas relacionados à religiosidade ou à educação,
mas à elaboração mesma do conhecimento histórico - é o que
adverte que “a história que se forma nunca é independente do
tempo que a fez nascer”22.
Os autores dos textos aqui publicados, além de expor
um esforço de pesquisas que contemplam tal ensinamento,
apresentam sintonia com os campos temáticos aos quais
se dedicam, apresentando a vitalidade da produção
historiográfica e a relevância cada vez mais acentuada em
publicar as pesquisas que abordam essas questões. Com
esse empenho, ganha a história como área consolidada de
conhecimento; ganham todos os que têm a oportunidade em
fazer dessa leitura uma forma de se apropriar dos estudos aqui
publicados e de entender em que medida estão articuladas
as pesquisas que têm como cerne as temáticas realçadas em
publicação de tal relevância. Os textos aqui apresentados, para
além de sua notória qualidade analítico-reflexiva, possibilitam
perceber o fortalecimento de um campo de pesquisa cada vez
mais vigoroso e pujante no âmago da oficina da História23.

Teresina, julho de 2019.

Profª Cláudia Cristina da Silva Fontineles


Professora Associada da Universidade Federal do Piauí

PREFÁCIO 13
NOTAS

1 LE GOFF, Jacques. O Deus na Idade Média: conversas com Jean-Luc


Pouthier. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 11.
2 CHARTIER, Roger. A aventura do livro. Do leitor ao navegador.
Conversações com Jean Lebrun. 1ª reimpressão. Tradução Reginaldo
Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo/Editora UNESP, 1998.
3 No ano de 2018, a UFPI teve o Doutorado em História aprovado. As
aulas tiveram início no ano de 2019.
4 LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Dir.). História: novos objetos. 4ª ed.
Tradução: Teresinha Marinho; Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995;
LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Dir.). História: novos problemas. 4ª
ed. Tradução: Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995; LE
GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Dir.). História: novas abordagens, 4ª ed.
Tradução: Henrique Mesquita. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
5 ARIÉS, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.). História da vida privada: da
Europa feudal à Renascença. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. v. 2.
6 BOUTIER, Jean; JULIA (Orgs.). Passados Recompostos: cantos e canteiros.
Tradução: Marcella Mortara e Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Ed.
UFRJ/Ed. FGV, 1998. 
7 HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. Tradução: Jefferson Luiz Camargo.
2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
8 RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (Orgs.). Para uma História
Cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
9 CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História:
ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997;
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Novos Domínios
da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
10 NOVAIS, Fernando A. (Dir.). História da Vida Privada no Brasil: Império:
a corte e a modernidade nacional. Companhia das Letras: São Paulo,
1998, v. 2; NOVAIS, Fernando A. (Dir.). História da Vida Privada no
Brasil: República: da Belle Époque à Era do Rádio. Companhia das
Letras: São Paulo, 1998, v. 3; NOVAIS, Fernando A. SCHWARCZ, Lília
Moritz (Dir.). História da Vida Privada no Brasil: contrastes da intimidade
contemporânea. Companhia das Letras: São Paulo, 1998, v. 4.
11 FONTINELES, Cláudia C. S.; MONTEIRO, Jaislan.; CERQUEIRA, Maria
Dalva F. (Orgs.). Itinerários da Pesquisa em História: a polifonia de um
campo. Teresina: EDUFPI, 2014.

14 
12 FONTINELES, Cláudia C. S.; CASTELO BRANCO, Pedro V.; CRUZ,
Marcelo Silva. (Orgs.). A oficina de Clio: História, Cidades e Linguagens.
Teresina: EDUFPI, 2016.
13 NASCIMENTO, Francisco Alcides do (Org.). Sentimentos e ressentimentos
em cidades brasileiras. Teresina: EDUFPI/Imperatriz (MA): Ética, 2010.
14 NASCIMENTO, Francisco de Assis de S.; SILVA, Jaison C.; FERREIRA,
Ronyere. (Orgs.). História e Arte: teatro, cinema, literatura. Teresina:
EDUFPI, 2016.
15 CASTELO BRANCO, Edwar de A.; CARDOSO, Vinícius. A. (Orgs.).
Torquato Neto: um poliedro de faces infinitas. Teresina: EDUFPI, 2016.
16 MATOS, Maria Izilda S. de.; CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho.
(Orgs.). Cultura, corpo e educação: diálogos de gênero. São Paulo:
Intermeios/Teresina: EDUFPI, 2015.
17 CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2ª ed. Tradução: Lourdes
Meneses. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
18 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador.
Conversações com Jean Lebrun. Tradução Reginaldo Carmello Corrêa
de Moraes. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/
Editora UNESP, 1998.
19 HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify,
2010.
20 BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder
régio. França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
21 MATA, Sérgio da. História e Religião. Belo Horizonte: Autêntica Editora.
2010; MASSENZIO, Marcello. A História das Religiões na Cultura Moderna.
São Paulo: Hedra, 2005.
22 JULIA, Dominique. A religião: História religiosa. In. LE GOFF, Jacques;
Nora, Pierre. História: novas abordagens. Tradução: Henrique Mesquita,
4ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 121.
23 BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique, op cit, 1998.

PREFÁCIO 15
CARLOS BORROMEU E AS
INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS”
REGRAS ARQUITETÔNICAS PARA
A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO
SÉCULO XVI

Natália Maria da Conceição Oliveira

INTRODUÇÃO

E
ste capítulo, produto da dissertação de mestrado
intitulada: Uma análise das Instructionum fabricae
et supellectilis ecclesiasticae de Carlos Borromeu,
realizada na Pontíficia Universidade Gregoriana em Roma, em
2018, que teve como como objeto de estudo as Instructionum
fabricae et supellectilis ecclesiasticae libri II, publicadas em 1577, de
Carlos Borromeu, e reeditadas no ano 2000.
A investigação apresentou como objetivo geral
compreender a instituição das Instructiones fabricae e seu lugar na
história da Igreja, pois influenciaram e continuam influenciando
a Religião Católica na questão da construção dos edifícios
sacros e do cuidado com os objetos litúrgicos.

CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS” REGRAS 17


ARQUITETÔNICAS PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
Este estudo tem, vale dizer, como corte cronológico
o período que vai de 1538 até 1610, período no qual Carlos
Borromeu nasceu, tornou-se cardeal, participou da reabertura
e finalização do Concílio de Trento e exerceu seu episcopado na
Diocese de Milão. Nessa fase da história, as Instructiones fabricae
foram elaboradas e executadas na diocese em 1577, por ocasião
do III Concílio Provincial.
Utilizaram-se como fontes de pesquisa documentos
impressos: as Instructiones fabricae; os decretos tridentinos;
escritos de Lutero; textos de Roberto Belarmino; biografias
de Carlos Borromeu, discursos, dentre outros. Por meio da
análise desse acervo, verificou-se a grande manifestação de
documentos existente sobre o arcebispo milanês. O método
utilizado no decorrer dessa pesquisa consistiu na conexão entre
as fontes documentais e bibliográficas coletadas ao longo do
processo de escrita, associada ao aporte teórico e às referências
bibliográficas.

Carlos Borromeu, o autor

A formação inicial de Carlos Borromeu, do ponto de vista


social pode ser caracterizado como provinciana. Nascido em
dois de outubro de 1538 no castelo de Arona, terceiro filho de
Gilberto e de Margarida Médici, irmã de Pio IV, em uma família
de nobreza média, porém, com ligações com a elite social da
época e com o governo seja civil, seja eclesiástico. Aos sete anos,
em treze de outubro de 1545, foi agregado ao clero milanês.
Com a idade de nove anos perdeu a mãe. Quando havia doze
anos, recebeu a abadia de São Graciano e Felino em Arona.
Carlos viveu seus primeiros anos entre Angera e Pávia.
Depois dos primeiros estudos realizados em Milão, foi inscrito
na Universidade de Pávia, esta era menos expressiva que outros
centros universitários do momento, como Pádua e Bolonha.

18  Natália Maria da Conceição Oliveira


Durante os anos de estudo acadêmicos perdeu o pai, em 27 de
julho de 1558. Até os seus vinte anos, não saiu deste horizonte,
de relações e rotina simples. Como era de costume, o pai
confiou o filho, destinado a carreira eclesiástica, a orientação
de Tomás Landriani e de Túlio Albonese.
Carlos Borromeu, na segunda fase de sua vida, como
cardeal, surge como o protagonista de uma transição na qual
tradição e novidade encontram uma expressão criativa. A eleição
de Pio IV, como sucessor de Paulo IV, constituiu uma reviravolta
na vida de Carlos. Apenas eleito, uma grande quantidade de
parentes do novo pontífice se dirigiu a Roma, buscando cargos
e vantagens. Dentre estes, estava Carlos Borromeu, conforme
Pastor, um dos favoritos (PASTOR, 1943, p. 82).
Sobre essa temática, Armando Guidetti, apresenta
a imagem de um jovem cardeal que conduzia uma vida de
príncipe, em um «splendore plane regio». Afirma que Carlos
participava de festas, banquetes, com príncipes e damas da
corte, das mais nobres famílias, não somente da Itália. Estes
eventos aconteciam nos vários palácios e vilas dos nobres do
período (GUIDETTI, 1984, p. 13-14). Neste tempo, mesmo
diante da pouca idade e de anseios comuns aos demais cardeais
do renascimento, de acordo com Pastor, o Papa Pio IV teria
encontrado no sobrinho tudo o que ele necessitava: um auxílio
abnegado, perseverante, assíduo e paciente para seguir as suas
instruções (PASTOR, 1943, p. 82).
Os meses iniciais foram muito intensos para Carlos,
porque ele era inexperiente no que se refere ao funcionamento
do aparato da cúria, não havia conhecimento sobre os grandes
problemas europeus, tampouco, sobre as grandes questões
relativas a reforma da Igreja.
Outra fase significativa, se estende do período que vai da
publicação da bula de reconvocação do Concílio, Ad ecclesiae
regimen, de 1560 até a reabertura da assembleia a Trento em

CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS” REGRAS 19


ARQUITETÔNICAS PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
dezoito de janeiro de 1562. Nesse meio tempo, ocorreu a morte
repentina do seu irmão Frederico Borromeu, no final de 1562.
Esse momento, também é marcado pelos primeiros contatos
com os jesuítas romanos; durante o verão daquele ano ele
iniciou uma relação espiritual com o padre Ribeira. Além disso,
foi neste ano que teve início a Academia das Noites Vaticanas.
Nesta fase o evento mais significativo para os biógrafos
de Carlos Borromeu, foi a morte de seu irmão, pois, segundo
estes, nesse momento trágico ocorreu a sua “conversão”. Diante
dessas afirmações, pode-se refletir sobre um acúmulo de fatos,
que somados a morte repentina do irmão provocaram uma
mudança nos ideais do jovem cardeal. Dentre estes, aparece a
influência dos jesuítas e as reuniões nas Noites Vaticanas. Estas
reuniões da Academia das Noites Vaticanas, foram iniciadas
em vinte de abril de 1562.
Michel De Certeau, descrevendo essa “conversão”,
também compartilha da ideia quando afirma que vários
elementos influenciaram essa decisão. Ele cita a morte do
irmão, mas acrescenta as relações pessoais com os jesuítas e
com os teatinos. Além disso, faz referência ao encontro com
o português Bartolomeu Martyribus. Por desejo de Pio IV, o
prelado português encontrou Carlos e, a partir desse momento,
surgiu uma intensa troca de experiências, especialmente devido
a apresentação de seu texto: Stimulus pastorum. (CERTEAU,
1977, p. 263).
No contexto do seu empenho episcopal, manifestou-se um
empenho ascético. A partir de 1564, Carlos Borromeu iniciou
uma série de mudanças em seus hábitos, que influenciaram
diretamente a vida de sua família cardinalícia. A corte se
mostrou insatisfeita, por esse motivo alguns o definiram como
uma “pessoa friíssima” (PASCHINI, 1958, p. 107-123).
Além da “conversão”, outro tema presente nos textos
hagiográficos e de outra natureza, é o da participação ativa de

20  Natália Maria da Conceição Oliveira


Carlos Borromeu no Concílio de Trento. Mezzadri, por exemplo,
afirma que: “cumprindo as tarefas de Secretário de Estado, se
empenhou pela reconvocação e a feliz conclusão do Concílio de
Trento, desenvolvendo de Roma um papel importante na sua
parte final”1 (Tradução nossa).
Carlos com o avançar dos meses e dos anos adquiriu
experiência e maturidade, formou uma visão pessoal dos
problemas afrontados no Concílio de Trento, encontrou
coragem de aconselhar o papa e de fazê-lo refletir sobre algumas
decisões repentinas. Porém, segundo Fois (1989) as decisões, a
vontade programática não era sua. Ele transmitia as decisões
do papa. (FOIS, 1989, p. 10).
Diante dessas discussões, há necessidade de prudência
crítica, pois pensá-lo como um personagem imprescindível
para a conclusão do concílio, remonta a uma ideia simplória.
Porém, aderir a visão negativa de Jedin que afirma que Carlos foi
passível diante das decisões de seu tio (JEDIN, 1971, p. 09-10),
é igualmente ingênuo. Diversamente, é necessário refletir se a
posição de Carlos Borromeu passiva ou ativa, tenha suscitado
nele uma experiência conciliar, que futuramente seria relevante
para a sua ação pastoral na Diocese de Milão.
Sendo assim, em vinte e cinco de março, ele comunicou
a Diocese de Milão a sua decisão de convocar um concílio
provincial, como previa o Concílio de Trento. Diante disso,
percebe-se que o desejo do serviço episcopal em Carlos era algo
que começava a consolidar-se. Nesse período ele anunciou o
nome de seu vigário, Nicolau Ormaneto2, sacerdote da Diocese
de Verona. (CERTEAU, 1977, p. 263).


1
“Espletando le mansioni di segretario di Stato, si prodigò per la
riconvocazione e la felice conclusione del Concilio di Trento, svolgendo
a Roma un ruolo importante nella sua parte finale”. MEZZADRI, 2006,
p. 10.

2
Michel De Certeau, citando a figura de Ormaneto, destaca que ele fez

CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS” REGRAS 21


ARQUITETÔNICAS PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
Uma terceira fase na vida de Carlos Borromeu, 1566 a
1584, inicia-se com a decisão de exercer na Diocese de Milão,
de forma concreta, o seu episcopado. A sua vida era orientada
por preocupações eclesiológicas, pela experiência ascética e
por intensa atividade pastoral.
Partindo desse pressuposto, Alberigo ressalta que Carlos,
iniciava uma experiência não somente nova para ele mesmo,
mas inédita para a Igreja (JEDIN; ALBERIGO, 1964, p. 127).
Sob o mesmo ponto de vista, Jedin defende que ele entrou
para a história da Igreja, não por ser sobrinho de Pio IV, mas
justamente por sua atividade como arcebispo de Milão (JEDIN,
1971, p. 13).
Carlos entrou na Diocese de Milão em setembro de 1565,
era chegada a hora de confrontar-se com a diocese. Após
a morte do tio, em nove de dezembro de 1565, sairá da sua
diocese em raras ocasiões: conclaves, peregrinações e visitas
a Suíça e Veneza. Foram dezoito anos empenhados no serviço
pastoral daquela província eclesiástica. O bispo, neste contexto
demonstrava, mediante suas ações, uma consciência a respeito
da necessidade de uma organização coerente da sua diocese,
especialmente para poder resistir diante das interferências do
poder temporal. Partindo desse pressuposto, percebe-se que o
seu objetivo era transformar o clero em um “corpo”, articulando
uma organização e uma ideologia religiosa mobilizadora,
o primeiro elemento deveria ser uma administração eficaz,
o outro seria a pregação com autoridade. Através desses
elementos, ele foi capaz de promover uma conexão entre gestão
institucional e uma capacidade de crer e de fazer com que o
povo a ele confiado, também cresse.

milagres na Diocese de Milão, pois organizou um sínodo diocesano,


com um programa de aplicação dos decretos tridentinos. No entanto,
Carlos Borromeu conduzia juntamente com ele essas ações pioneiras,
mesmo estando a Roma.

22  Natália Maria da Conceição Oliveira


A pastoral de Carlos Borromeu se consolidou através dos
sínodos, estes foram cerca de onze, dos concílios provinciais
(1565, 1569, 1573, 1576, 1579, 1582), das visitas apostólicas
realizadas nas dioceses sufragâneas (Cremona, Bergamo,
Vigevano e Brescia), da centralização milanesa e da restauração
do rito ambrosiano. Todos esses elementos propiciaram uma
unificação do território.
Para a organização da diocese, inicialmente foi necessário
estabelecer um poder local, para que ele pudesse realizar a
reforma da cúria e da diocese. Para isso, Borromeu solicitou e
obteve dos papas que se seguiram (Pio IV, Pio V, Gregório XIII)
as concessões para poder alcançar o seu objetivo.
Borromeu foi construindo uma imagem que o fez ser
“temido e admirado”, seja pelos conflitos com o governo
espanhol, seja a propósito do rito ambrosiano ou por quaisquer
de suas decisões a frente de seu governo episcopal. Sobre
isso, Carlos Bascapé, um de seus biógrafos e colaboradores,
descrevendo a ação inicial de Borromeu, afirmou que muitos
de seus amigos eram preocupados com a reforma de costumes
que ele propunha, pois era vista como extraordinária para
aquele tempo. Estes temiam que tais ideais fossem frustrados,
pois, eram vistos como muito difíceis de serem colocados em
prática (BASCAPÉ, 1965, p. 74-75).
Certeau chama atenção para a caridade e a dedicação
extraordinária de Carlos, durante a peste de 1576, demonstrando
que o bispo adquiriu uma popularidade em resposta ao serviço
em relação ao povo. Essa notoriedade não era tanto devido a
sua pessoa, mas fazia referência a sua função e as suas atitudes
(CERTEAU, 1977, 267).
Partindo dessa perspectiva, pode-se perceber como
Carlos Borromeu, através de seus gestos, até mesmo de
piedade, conseguiu suprimir certos bailes e “superstições”. A
sua religião era unida com a espiritualidade italiana, que não

CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS” REGRAS 23


ARQUITETÔNICAS PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
era abstrata, mas se manifestava na piedade popular. Sendo
assim, quando ele guiava procissões de relíquias, professava-
se devoto de santos, realizava peregrinações, conseguia atingir
os seus diocesanos mediante essa integração da religiosidade
popular.
O cardeal, que não passaria despercebido pela história
da Igreja, deu início a seus passos finais em outubro de 1584,
quando se encontrava a Sacro Monte de Varallo para os seus
exercícios espirituais. Sofrendo de ataques de febre, em vinte e
oito de outubro inaugurou o Colégio Papio, no dia primeiro de
novembro celebrou sua última missa a Arona e no dia seguinte
foi transportado para Milão. Sua morte ocorreu no dia seguinte,
foi sepultado no dia sete de novembro próximo ao altar maior
da catedral de Milão. No entanto, a sua vocação ainda iria
ser levada adiante, pois posteriormente seria canonizado em
1610, e ao longo dos séculos sucessivos, seria relembrado como
um modelo de bispo, exigente e vigoroso, que levou a frente a
reforma da Igreja em tempos difíceis.

As Instructiones fabricae, “novas” regras para a construção das


igrejas

As Instructiones fabricae de Carlos Borromeu lançadas


em um período posterior ao Concílio de Trento3, porém, é
profundamente marcado pelas discussões ocorridas nesta
assembleia conciliar. Portanto, antes de realizar uma análise
crítica sobre essa fonte e seu uso, é necessário conhecer o
cenário eclesiástico que a gerou.


3
Os decretos aprovados na segunda fase do Concílio de Trento
encontram-se em G. Alberigo – et al., Conciliorum oecumenicorum decreta,
2013.

24  Natália Maria da Conceição Oliveira


Esta assembleia, foi convocada pelo papa Paulo III em treze
de dezembro de 1545, ela teve início aparentando uma certa
fragilidade, devido as circunstâncias difíceis e contraditórias,
como a constante tensão entre imperador e pontífice, a
oposição ativa dos protestantes, um certo ceticismo da parte
das Igrejas nacionais, todos estes receios foram sentidos pela
Cúria romana (PROSPERI, 2001, p. 44-50).
O primeiro período tridentino (1545-1548) foi
caracterizado por dez sessões iniciais, nas quais foram discutidos
os decretos sobre a doutrina católica que aborda a inspiração
da Sagrada Escritura, o valor da tradição, o pecado original,
a justificação e os sacramentos, em particular o batismo e a
crisma. Com a morte do papa Paulo III, assume o pontificado
Júlio III, que guiou o segundo período tridentino (1551-1552).
Durante a sessão XVI, movidos pela insegurança que a situação
política da Alemanha gerou, decidiu-se suspender os trabalhos
pelos próximos dois anos, ou até que se estabelecesse a paz nas
terras alemãs.
Com a morte de Júlio III, depois do breve pontificado
de Marcelo II, assume, como novo Papa, Paulo IV. Ele, depois
de ter tentado reformar a Igreja com o trabalho de comissões
reunidas em Roma, sobretudo em função antiprotestante, teve
que reconhecer que o cenário político mudava e tornava mais
difícil a reforma da Igreja, mesmo tendo sido ativo na reforma
dos costumes dos eclesiásticos e do povo, pouco pode fazer
para a reconvocação do Concílio.
Pio IV, sucessor de Paulo IV, comandou o terceiro e último
período do Concílio de Trento (1561-1563). Na Páscoa de 1561
o pontífice convocou novamente para a cidade de Trento o
Concílio, com a bula Ad Ecclesia regimen, depois de enfrentar a
resistência do imperador da França. Enquanto nos períodos
anteriores, houve uma grande influência da Alemanha, nessa

CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS” REGRAS 25


ARQUITETÔNICAS PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
terceira fase foi a França, motivada pelo calvinismo e ação de
Catarina Médici, que interferiu em várias circunstâncias.
No entanto, mesmo diante da convocação papal para a
primavera de 1561 e a presença de seus delegados em Trento,
devido os vários conflitos com a coroa francesa e espanhola,
os trabalhos da assembleia conciliar tiveram início somente em
janeiro de 1562; esta fase compreendeu as sessões XVII - XXV. O
terceiro período foi aberto com as discussões em torno do Index
librorum prohibitorum (Índice dos livros proibidos) de Paulo IV.
A última sessão do concílio deveria ocorrer na metade de
dezembro, mas com a chegada da notícia da doença de Pio
IV, ela foi celebrada entre o dia três e quatro de dezembro de
1563. Aprovados os decretos tridentinos em junho de 1564, no
mesmo ano foi lançado o Index librorum prohibitorum.
Os estudiosos que abordam a temática do Concílio
de Trento, mesmo que façam um juízo positivo ou negativo,
não ignoram o grande impulso que os decretos tridentinos
propiciaram a vida católica nas várias igrejas locais, tanto da
Europa como em outros países.
Partindo desse pressuposto, pode-se perceber que com
os seus numerosos decretos de reforma, o Concílio de Trento
reforçou a prática cristã dos sacramentos, a autoridade dos
bispos e declarou necessária a formação do clero e a exigência
de uma nova conduta moral. Sérigio Pagano, afirma que essa
assembleia conciliar teria criado o primeiro núcleo substancial
daquilo que seria a identidade católica diante das Igrejas
reformadas (PAGANO, 2014, p. 416).
Ao abordar uma temática ampla como o Concílio de
Trento, bem como, as suas decisões e aplicação, é necessário
compreender como as Instructiones fabricae de Carlos Borromeu
surgiram nesse contexto, observando que dentre os vários
decretos tridentinos, não há um específico para a construção
das igrejas.

26  Natália Maria da Conceição Oliveira


Em alguns cânones, por exemplo, os que se referem ao
sacramento da Eucaristia, os padres conciliares chamaram
atenção para a necessidade de preocupar-se com a dignidade
do lugar onde se realiza os ofícios divinos. Os cânones V e VII,
emanados durante a XXI sessão, defendem a necessidade de
que as igrejas sejam mantidas em uma condição decorosa,
além disso, incentiva os bispos a repararem e restaurarem as
igrejas paroquiais que estivessem em ruínas.
Para tanto, é preciso perceber a importância do decreto:
De invocationes, veneratione et reliquiis sanctorum, et de sacris imaginibus
(A invocação, a veneração às relíquias dos santos e as imagens
sacras). Este foi emanado na última sessão do Concílio e,
impulsionou a arte, mas também a arquitetura. Os padres
conciliares, respondendo a objeções antigas e reformistas,
precisaram que a natureza de tal veneração, afirmando que, esta
não ocorria porque se cresse que elas fossem uma divindade,
mas para honorar aqueles que as imagens representam.
Em um contexto posterior as Instructiones fabricae, em
1582, o bispo de Bolonha, Gabriel Paleotti, confirmando o
posicionamento iconográfico da Igreja, produziu uma obra
intitulada: “Discurso em torno às imagens sacras e profanas”.
Essa obra traduz as disposições conciliares tridentinas sobre a
exposição de imagens sacras nas igrejas para a veneração dos
fiéis, porém, inspirado na obra Borromaica. Um texto que
respirava os temores de uma época, e por isso, concentrou sua
atenção sobre os abusos iconográficos.
De acordo com Francisco Repishti, se para Carlos
Borromeu o seu objetivo era proclamar a exaltação da
magnificência das igrejas em todos os seus aspectos, uma das
questões mais duramente atacadas pelos protestantes, Paleotti
destacava e legitimava sobretudo o aspecto doutrinal da
pintura, procurando na história da igreja as justificações para
essas escolhas (PALEOTTI, 2002, p. 36). Diante disso, pode-

CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS” REGRAS 27


ARQUITETÔNICAS PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
se observar que o concílio obteve uma grande influência sobre
a arte europeia. Mesmo diante dos decretos gerais emanados
pelos padres conciliares sobre o uso das imagens, a arte do
século XVI sentiu as mudanças religiosas, especialmente a nova
pastoral.
Conforme Fabiola Giancotti, o Concílio de Trento teria
dado a Borromeu indicações gerais, formais; nas suas instâncias
conclusivas, havia dado critérios sobre aquisições teóricas,
questões práticas, exigências organizativas. Tudo isso diante
do perigo da reforma, e, o cardeal mediante essas informações
teria sido em grau de articular, promover a escrita e publicar as
Instructiones fabricae em modo indireto, mas eficaz (GIANCOTTI,
2010, p. 161).
Nesse contexto, segundo Anthony Blunt (1966), Carlos
Borromeu foi o único autor que aplicou ao problema da
arquitetura o decreto tridentino. Ele apresenta as Instructiones
fabricae como algo extraordinário, pois tratou meticulosamente
todos os problemas relativos ao edifício eclesiástico. Segundo
este autor, estas instruções se embasaram nas características
da contrarreforma, que no século XVII assumiria um significado
ainda mais importante. Ele ainda destaca que para Carlos
Borromeu era muito importante a colaboração entre sacerdotes
e artistas, esse princípio foi impresso pelo Concílio (BLUNT,
1966, p. 138).
Quando Borromeu inicia sua vida eclesiástica em Roma,
o contexto ainda era marcado pelos problemas cruciais que a
Reforma Protestante colocava diante da teologia, da dogmática,
da eclesiologia e da pastoral católica. Os protestantes, fazendo
uso da imprensa atingiram uma grande difusão da sua
mensagem, pode-se dizer que são dois fenômenos modernos
que se reforçaram: a reforma e a imprensa.
Quando Paulo III convocou o Concílio de Trento, alguns
membros da Igreja pensaram que a assembleia conciliar seria

28  Natália Maria da Conceição Oliveira


uma resposta à Reforma, e que através das suas decisões,
mostraria a força da Igreja Católica diante do protestantismo.
No entanto, existia uma minoria na hierarquia católica que
acreditavam em um entendimento com os protestantes, mesmo
diante de pontos delicados como a Sagrada Escritura e a
justificação. Estes desejavam um concílio que não fosse apenas
uma resposta a teologia reformada. No entanto, prevaleceu a
parte “romana” com um bom número de bispos espanhóis,
italianos e franceses.
O primeiro período do concílio enfrentou forte pressão
dos protestantes que queriam defender as suas ideias e tentar
proclamar a superioridade do concílio sobre o papa. Da outra
parte, Roma desejou uma assembleia conciliar que traçasse
uma clara linha de demarcação entre a ortodoxia católica e a
“heresia protestante” (PAGANO, 2014, p. 404).
Contudo, a legislação conciliar e as ideias que ela
produziu não foram capazes de impedir a forte influência que
as teses reformadoras exerciam sobre os leigos e eclesiásticos.
Depois do Concílio, por quase todo o século XVI o pensamento
luterano continuou a exercitar fascínio em países como França,
Alemanha, Países Baixos e Itália.
Em relação a prática iconoclasta, Lutero defendia a função
didática da arte, se não houvesse o desejo de idolatria. Calvino,
opostamente, negou qualquer tipo de imagem sacra. Catarina
de Médici, diante dessa controvérsia promoveu em 1562, um
debate entre católicos e calvinistas sobre as imagens sacras. O
debate não resolveu a problemática, mas as decisões serviram
de referência para o decreto tridentino sobre as imagens.
Conforme Anthony Blunt (1966), mediante a crítica aos
abusos da Igreja, os protestantes correram o risco de negar
qualquer tipo de valor da arte religiosa, pois viam em todas as
imagens e pinturas a idolatria, assim como, na decoração das

CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS” REGRAS 29


ARQUITETÔNICAS PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
igrejas e nos solenes rituais da missa uma atmosfera mundana.
(BLUNT, 1966, p. 116-117)
Deste modo, pode-se dizer que o Concílio procurou dar
uma resposta a Reforma, antes de tudo no campo dogmático
com os cânones específicos, sobre os sacramentos e a sua
eficácia, o valor da fé e das obras em relação a justificação e a
salvação eterna, a doutrina do purgatório, o valor da Sagrada
Escritura e do magistério da tradição, o culto dos santos. No
que se refere ao campo pastoral, a aplicação da legislação
tridentina em todas as dioceses, desde as menores paróquias até
os monastérios e conventos, construiu aquilo que é conhecido
como “disciplina” tridentina (PAGANO, 2014, p. 413)
As Istructiones fabricae foram publicadas por Carlos
Borromeu em Milão, no norte da Itália. Este lugar vivenciava
um problema comum, a fronteira entre as convicções católicas
e protestantes que se opunham e se relativizavam. Elas também
estavam inseridas em um mundo intermediado por algo que
desaparecia e algo que iniciava. Essa situação gerava uma
sensação de incerteza e insegurança, portanto, pode-se dizer
que elas foram elaboradas em um contexto de passagem. As suas
indicações para a construção dos templos, bem como, o zelo
pelos objetos eclesiásticos definidos nos mínimos detalhes, são
fixadas em angústias e desejos inseparáveis da influência social.
Após um reconhecimento minucioso da Diocese de Milão
realizado por Carlos Borromeu, apresentados nos sínodos e
concílios provinciais, o texto das Instructiones fabricae et supellectilis
ecclesiasticae, composta por dois livros, transcritos por Ludovico
Moneta durante as convocações provinciais de 1572 e 1576,
revistos e traduzidos em latim por Pedro Galesino, foram
publicadas em 1577.
As Instructiones fabricae4 possuem duas partes, a primeira
é composta por trinta e quatro capítulos que, se referem a

Cf. Borromeo, Carlos. Instructionum fabricae et supellectilis ecclesiasticae,


4

libri II in Monumenta Studia Instrumenta Liturgica, vol. VIII, Milano: Editrice

30  Natália Maria da Conceição Oliveira


construção das igrejas e os objetos necessários: posição da
igreja; sua forma; os muros externos; o átrio, pórtico; o teto;
o pavimento; as portas; as janelas; a escada e os degraus da
igreja; a capela mor; o altar mor; o coro; o tabernáculo; capelas
e altares menores; elementos comuns às capelas e altares
maiores e menores; os lugares e vasos nos quais são colocados
as relíquias; as imagens e as pinturas sacras; as lâmpadas e o
lampadário; o batistério; o sacrário; pia para água benta; o
ambão e o púlpito; o confessionário; a divisão da igreja; o posto
para as mulheres; os campanários e os sinos; os sepulcros e os
cemitérios; a sacristia; um lugar para guardar objetos diversos;
o oratório onde às vezes se deve celebrar a missa; os oratórios
onde não se celebra a missa; a igreja das monjas; o monastério
feminino; algumas precauções sobre o edifício eclesiástico.
A segunda parte refere-se as alfaias eclesiásticas, ou
seja, os objetos necessários para os sacros ministérios, ela é
composta de cinco capítulos: a alfaia da igreja catedral; alfaia
da igreja colegiada; alfaia da igreja paroquial; a alfaia da igreja
simples e da sua sacristia; homogeneidade dos paramentos e
dos ornamentos; a forma das alfaias.
Em síntese, pode-se dizer que as Instructiones fabricae
iniciam com a recomendação que a Igreja seja construída
em um lugar elevado, em todo caso que seja munida de uma
escalinata de acesso para que possa se sobrepor em relação
ao seu em torno imediato (I capítulo). A fachada deve ser
adornada de figuras de santos e de modestos ornamentos. (III
capítulo). No interno, se deve dar muita atenção ao altar mor,
que deve ser elevado e haver degraus (X capítulo) e situado
em um presbitério bastante espaçoso para que o sacerdote
possa realizar os ofícios divinos dignamente (XI capítulo). A
sacristia deve estar ligada com a parte principal da igreja, não

Vaticana, 2000.

CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS” REGRAS 31


ARQUITETÔNICAS PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
diretamente com presbitério, para que o sacerdote possa realizar
uma verdadeira e própria procissão em direção ao altar mor
(XVIII capítulo). Os transeptos podem ser transformados em
capelas com outros grandes altares para funções particulares
(II capítulo). Ricos paramentos sacerdotais devem acrescentar
dignidade a função religiosa (II livro) e, porque essa deve ser
convenientemente iluminada, os vitrais da igreja necessitam em
geral serem munidos de vidros não coloridos (VIII capítulo).
Tudo deve ser obtido com meios apropriados, sem uma pompa
vã e sobretudo sem nada de profano ou pagão (XXXIV capítulo).
Tudo deve estar em consonância com a tradição cristã: a planta
da igreja deve ser em forma de cruz, não circular segundo o uso
pagão. (II capítulo).
Para a execução destas prescrições, o arcebispo de Milão
possuía entre os seus colaboradores: pintores, escultores,
arquitetos, musicistas, teólogos, históricos, tradutores,
linguistas, diplomáticos e muitos outros. Conforme Fabíola
Giancotti, se Carlos não tivesse convocado todos estes
profissionais, muitos edifícios não teriam sido construídos.
Para esta autora, as Instructiones fabricae não são um tratado de
arquitetura, mas um dispositivo para o trabalho. (GIANCOTTI,
2010, p. 163).
Os construtores deviam seguir as normas e as indicações
para que estes objetivos fossem atingidos. Todos estes
profissionais contribuíram para a magnificência dos edifícios
sacros, e, para a manutenção do bom andamento das obras,
pois uma questão não articulada, um problema reenviado,
poderia comprometer todo o projeto. Recomendações úteis,
simples no seu uso. Quem sabia ler encontrava, indicações
para a oração, para o acolhimento, quem não sabia ler, se
surpreendia diante de uma pintura, de uma estátua, que fazia
refletir sobre os mistérios da fé, além disso, reconhecia-se os
lugares dos sacramentos.

32  Natália Maria da Conceição Oliveira


Stefano Della Torre, também rebate a ideia que as
Instructiones fabricae sejam um tratado de arte, mesmo que seu
conteúdo trate da “fabricae ecclesiasticae” e faça referência a
escritos de arquitetura. Segundo este autor, um bispo redigir
instruções voltadas para seu clero era algo previsível e coerente
com a ideia do bispo, que depois de Trento, passou a ocupar-se
da sua diocese (DELLA TORRE, 1997, p. 218).
Carlos Borromeu, teria publicado instruções práticas,
destinadas ao clero e a pastoral. Com base nas Instructiones
fabricae, pode-se refletir sobre uma ideia de liturgia, de teologia,
subordinada a ela, estaria uma ideia do papel que a arquitetura
pode desenvolver no serviço pastoral, enfim, uma ideia dos
modos em que as potencialidades da arquitetura podem ser
colocadas em exercício. A obra borromaica deve suscitar a
leitura a partir de várias perspectivas, uma destas deve ser a
constatação que sua primeira finalidade era prática, ou seja,
constituir-se um ponto de referência para o exercício da visita
pastoral, um modelo comum.
O objetivo do arcebispo de Milão converge para a
arquitetura enquanto lugar de celebração litúrgica reformada
pelo espírito tridentino. A leitura do texto em si, porta a
percepção de um conjunto extremamente consistente de
princípios e normas que, ao visarem a funcionalidade da
ordem do culto, criam consequentemente uma maior clareza
e ordenação do espaço eclesiástico para o desenvolvimento
dos ritos. No entanto, trata-se de um texto simples, em virtude
da pouquíssima formação cultural, que a maioria do clero,
possuía em 1577.
As visitas pastorais realizadas por Carlos, juntamente
com outros fatores, estão na gênese destas indicações, pois a
observação sobre estes atos induz ao reconhecimento de um
dos principais objetivos da reforma da “fabricae ecclesiasticae”: a
concessão de um mínimo de decoro as igrejas.

CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS” REGRAS 33


ARQUITETÔNICAS PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
De acordo com Della Torre, os casos mais frequentes eram
aqueles em que o edifício sacro era absorvido, pela união entre
a prática econômica e a natureza: paredes cobertas de árvores
trepadeiras, que muitas vezes, produziam frutos; os cemitérios
serviam de passagem para os animais; existiam estábulos,
poleiros, curral de porcos, tudo isto anexado às igrejas. Além
disso, muitas delas eram infestadas de ninhos de passarinhos
e serviam de depósito para mercadorias diversas ou redes de
pesca. As visitas, por outro lado, ainda demonstram que muitos
antigos edifícios sacros estavam em ruínas, com o teto por terra
e as paredes em estado de alerta (DELLA TORRE, 1997, p. 218).
Com base nisso, pode-se dizer que muitas das instruções de
Carlos Borromeu são referências a um nível de gestão racional,
ou seja, uma tecnologia. Porém, observá-las somente do ponto
de vista prático é, de certo modo, redutivo.
As relações das visitas pastorais, bem como, seus decretos
demonstram a situação em que se encontravam as igrejas
da Diocese de Milão no século XVI. Em suas visitas ele pode
constatar como o culto, e o edifício onde este se realizava, em
algumas áreas encontrava-se em situação lastimável.
Sendo assim, pode-se dizer que para entender as
Instructiones fabricae é necessário observar vários elementos,
como: as visitas, a liturgia ambrosiana, a celebração dos
sacramentos, a celebração da missa, as cartas pastorais, as
indicações aos confessores.
A construção da igreja é circundada por várias questões
que envolvem a celebração eucarística. Por consequência,
os pontos mais significativos deste documento são aqueles
que se referem a relação entre a nave e o presbitério, a
conformidade entre o altar e o tabernáculo. No centro das
atenções é colocado o altar, não tanto como monumental na
sua forma, quanto a sua união com o tabernáculo, pois este,
era custode permanente da eucaristia. Por isso, esta fusão é

34  Natália Maria da Conceição Oliveira


um dos elementos caracterizantes dos templos. A estrutura
que acolhe, deveria ser integrada com o que ocorre; Carlos
Borromeu era defensor e guardião da ideia de que na igreja,
ocorria um milagre. Portanto, tudo que cercava a celebração
devia provocar essa percepção.
As obras dos pintores, escultores, arquitetos, pregadores,
não deviam somente recordar o milagre, mas propô-lo na sua
unicidade. Essas ações surgiram no contexto das polêmicas
entre católicos e os protestantes, discutidas no Concílio de
Trento, que não aceitavam a doutrina da transubstanciação,
que defendiam a consubstanciação, ou os sacramentais - ideia
calvinista. Além disso, existiam entre os católicos aqueles que
eram contrários a comunhão frequente (PROSPERI, 2001, p.
117).
Danilo Zardin, abordando a temática da fé de Carlos
Borromeu, enfatiza que esta possuía duas finalidades: reafirmar
a sua centralidade, porém, destacando a superioridade do
poder sacerdotal em relação a sociedade cristã que, naquele
contexto, absorvia a pluralidade das instituições e dos âmbitos
jurisdicionais, através da dialética entre espaço sagrado e
momento profano (ZARDIN, 2010, p. 25).
Partindo dessa perspectiva, é relevante ressaltar que na
igreja, como edifício, se reflete a hierarquia da Igreja como
instituição, de tal forma que, se distingue o povo do clero, mas
também, os fiéis dos catecúmenos: determinada pela posição
do batistério. A igreja pós-tridentina se torna um espaço
unitário, o lugar da celebração eucarística, e as divisões entre
suas várias partes não devem impedir ao fiel de contemplar a
celebração e de escutar a pregação.
Além do aspecto prático e litúrgico, do mesmo modo,
é relevante observar os elementos simbólicos presentes no
texto, pois algumas destas instruções, demonstram um retorno
as tradições: a planta em cruz latina, o pórtico em fachada,

CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS” REGRAS 35


ARQUITETÔNICAS PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
a cobertura em bronze, o teto aconselhado tem como base
as antigas basílicas. O convite a inspirar-se nos vestígios dos
antigos edifícios sacros, presente no fim da página introdutiva,
é um dos elementos mais caracterizantes do texto Borromaico
(ACKERMAN, 1986, p. 577).
O impacto da reforma de Carlos Borromeu foi expressivo,
mesmo que os decretos não fossem prontamente executados,
e a sua influência foi decisiva. Existia uma veneração pelos
antigos testemunhos de culto, em especial pelas basílicas dos
tempos antigos.
O arquiteto que percebe os anseios de Borromeu, não
era um milanês, mas de Bolonha, conhecido por suas obras de
arte: Pellegrino Tibaldi, chamado comumente como Pellegrino
Pellegrini.
Partindo desse pressuposto, é válido destacar que apesar
da racionalidade que guiou a obra de Carlos Borromeu na
reforma dos edifícios sacros, deve-se recordar que seu gosto
artístico foi formado em Roma como cardeal de Pio IV. Ali,
pôde ter contato com eclesiásticos e homens de cultura, foi
quando surgiu uma admiração pelas obras de Michelangelo.
Conforme Della Torre, é notório que Borromeu, ao confiar a
Pellegrino a realização de tantas obras e o escolhendo como
arquiteto pessoal, pensasse nele como o homem capaz de
reviver o esplendor de Michelangelo nas terras lombardas
(DELLA TORRE, 1997, p. 224).
Para Della Torre (1994), Carlos Borromeu foi o principal
incentivador de Pellegrino, sendo este conhecido pela crítica
como o “arquiteto de São Carlos”, devido ao fato que, os dois
personagens teriam vivenciado uma sintonia, aproximados ora
pela severa introspecção, ora pela busca comum de inovar em
contraste com modelos mundanos, ora somente pelo projeto
de uma imagem persuasiva do poder religioso (DELLA TORRE,
1994, p. 317).

36  Natália Maria da Conceição Oliveira


As igrejas paroquiais eram objetos de cuidado dos bispos,
por isso, não se tratava somente de verificar a execução da
norma, mas também de promover o decoro e a funcionalidade
necessária. Nesse sentido, Borromeu, na conclusão do primeiro
livro, afirma que: “os prefeitos das fábricas e os arquitetos, antes
de iniciar os trabalhos, consultarão todas estas prescrições,
mas sobretudo será responsabilidade do Bispo velar para que
esses, na construção da igreja, não cometam aqueles erros”5
(Tradução nossa).
As Instructiones fabricae se distinguem em duas esferas
de competência, deixando ao arquiteto a sua especificidade
disciplinar, enquanto se evoca ao controle da ordem
eclesiástica os aspectos práticos e, em parte, também aqueles
simbólicos. Sendo assim, em primeiro lugar, a autoridade
religiosa deveria estar atenta, para evitar que coisas profanas
estivessem efetivamente dentro dos templos, o modelo deveria
ser encontrado no cristianismo primitivo. Essas indicações
disciplinares, colocava em jogo a competência do artista. De
acordo com Della Torre aquilo que Carlos Borromeu queria era
o panorama da segunda Roma, reformando-a, concretizá-la
em Milão (DELLA TORRE, 1997, p. 225).
Diante de todas as questões observadas até o momento,
deve-se continuamente questionar-se se é correto utilizar a
figura de Carlos Borromeu e suas Instructiones fabricae, como
um denominador único de uma época, de uma sociedade, de
um fenômeno histórico. Contudo, existe a consciência que a
sua ação reformadora encontrou fortes resistências e muitos
colaboradores, e que, no final, tornou-se aceitável pois não


5
I prefetti della fabbrica e gli architetti, prima di iniziare i lavori, si
consulteranno su tutte queste prescrizioni, ma soprattutto sarà cura
del Vescovo sorvegliare che essi, nella costruzione della chiesa, non
incorrano in simili errori. (Borromeo, 2000, p. 195)

CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS” REGRAS 37


ARQUITETÔNICAS PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
refutou por completo a cultura de seu tempo, logo porque, ele
era um homem dentro de um sistema social que se transformava.
Diante disso, é relevante retomar um outro personagem
desse período que, assim como Borromeu abordou a
problemática da construção dos templos e das artes sacras,
Roberto Belarmino, teólogo da reforma pós-tridentina, que
realizou várias disputas em defesa da fé católica. Entretanto,
diferentemente do arcebispo de Milão que apresentou à sua
diocese soluções práticas em forma de decreto, ele deu claras
prescrições dogmáticas para justificar o culto aos santos, o uso
das imagens, a construção dos templos e o seu ornamento.
Para realizar essas discussões, fez um retorno as fontes do
cristianismo.
Das questões que foram levantadas por Belarmino,
aquilo que interessa a esta pesquisa é o terceiro livro, da quarta
disputa: As coisas com as quais a Igreja peregrina sobre a terra rende culto
a Jerusalém Celeste. Dividido em seis capítulos que tratam: dos
erros que se referem aos templos; se se devem erigir os templos;
da sua forma; do seu objetivo; da dedicação e consagração das
igrejas; dos ornamentos dos templos.
Com base nestas observações, pode-se dizer que existem
mudanças e retornos a formas antigas, existe uma pluralidade
dos tempos. Partindo dessa perspectiva, percebe-se que há um
distanciamento entre as decisões e o ritmo da vida social que
as acolhe e interpreta. No século XVI as autoridades do mundo
católico, aqui representados por Borromeu e por Belarmino,
demonstram a busca por um retorno a uma forma originária,
todavia, isso também foi realizado por Lutero, Calvino e outros
reformadores. Além disso, demonstram elementos comuns
presentes em uma sociedade marcada pelo movimento de
incertezas e dúvidas.

38  Natália Maria da Conceição Oliveira


CONCLUSÃO

As Instructiones fabricae operam a comunicação dos homens


de hoje com elas pela recuperação que se faz do passado. Elas
juntamente com seu autor são as imagens de uma troca entre os
vivos. Elas, como objeto desta pesquisa puderam demonstrar
toda uma latência, presente na sua idealização, publicação e
aplicação, que muitas vezes não aparece explicitamente, pois é
uma interlocução que salta fora do discurso emitido.
Nesse sentido, pode-se perceber que as Instructiones fabricae
adquiriram um papel importante para a Igreja, sobretudo para
o sistema social em que elas foram publicadas, pois aparecem
como um ponto no qual se ramificam as artes, a arquitetura,
a economia, as disputas religiosas e políticas. Elas fazem parte
de um contexto de trocas simbólicas, que influenciadas pelos
novos ares que fomentavam desejos de ordenação e superação
dos conflitos vivenciados no período, desenvolveram um
cenário de disciplinamento da sociedade, o que ajudou a alterar
não somente as estruturas físicas, mas as tradições e relações
pessoais.
Contudo, pode-se concluir que a interferência da
Instructiones fabricae na Diocese de Milão, por meio de seu
arcebispo, não se resumiu à questão religiosa, mas se estendeu
ao cotidiano e às suas subjetividades. Diante disso, percebe-se
estas orientações como uma marca que se estende no tempo,
especialmente a partir das suas reedições, pois ela passou a
ser vista como referência para a liturgia e arquitetura religiosa
tanto do período como dos tempos atuais. Diante disso, esta
pesquisa anseia contribuir para o conhecimento de uma face
da história, de igual modo, incitar os seus leitores a perceber
as Instructiones fabricae não como um objeto isolado, mas que
interage com o passado e com o presente.

CARLOS BORROMEU E AS INSTRUCTIONUM FABRICAE: “NOVAS” REGRAS 39


ARQUITETÔNICAS PARA A CONSTRUÇÃO DAS IGREJAS NO SÉCULO XVI
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42  Natália Maria da Conceição Oliveira


A RELIGIOSIDADE NO PIAUÍ
COLÔNIA: CATOLICISMO ADAPTADO
AO MODO DE VIDA1

Tanya Maria Pires Brandão

N
a recente historiografia religião e religiosidade
constituem objetos próprios do campo de
investigação vinculado às representações e
ao cotidiano. É nesta abordagem que historiadores vêm
trabalhando estes temas no âmbito do Brasil colônia. No
entanto em relação ao universo do sertão nordestino, no
mesmo período, sobressaem-se os estudos no campo da história
eclesiástica. Resulta daí, como constatou Eduardo Hoornaert,
a necessidade de se “conhecer melhor o modo pelo qual o povo
nordestino foi formado ideologicamente e religiosamente, pois
acerca da catolicidade própria do povo nordestino sabemos
coisas genéricas” (Apud. SILVA, 1988, p. 54).


1
Texto publicado na Clio – n. 22/2004 - Revista de pesquisa História do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Pernambuco.

A RELIGIOSIDADE NO PIAUÍ COLÔNIA: CATOLICISMO 43


ADAPTADO AO MODO DE VIDA
No que diz respeito ao Piauí colônia não há dúvidas quanto
à religião de seus moradores: eram católicos. Porém, quanto
à religiosidade dos mesmos pouco se tem conhecimento. Os
estudos até então desenvolvidos sobre a difusão da religião
católica. Compreendem descrições cronológicas dos governos
episcopais nesta região, mas o comportamento religioso da
população local não é objeto de atenção desses historiadores
(CARVALHO Jr. 1980; MELO, 1991).
Convém ressaltar que os estudos sobre a Igreja no Piauí
colônia têm por base a documentação da administração
eclesiástica. Este conjunto não se caracteriza pela riqueza de
informações sobre o sentimento religioso ou a prática cotidiana
da religiosidade. Aliás, são ainda pouco conhecidas as fontes
comumente trabalhadas na pesquisa sobre a religiosidade no
Brasil colônia. A documentação paroquial, por exemplo, que
contempla a celebração dos sacramentos é de difícil localização.
São ainda desconhecidas as confissões inquisitoriais dos
colonos piauienses. Quanto aos testamentos, fonte onde os
pesquisadores encontram registros de devoção, da relação com
o sagrado e o divino, dos temores e arrependimentos bem como
das práticas religiosas, são poucos os disponíveis no Arquivo
Publico do Estado do Piauí.
Em face disto, para se construir o conhecimento sobre
a religiosidade faz-se necessário buscar e analisar indícios em
fontes diversas. Partindo- se da premissa de que a religiosidade
aflora no modo de viver, na atuação social e política, nas
maneiras de agir e pensar, nas posições existenciais dos devotos,
os processos de inventário de bens particulares permitem
elucidar a questão. Isto porque a descrição do patrimônio
contém informações que são esclarecedores sobre os costumes
e a mentalidade em determinada sociedade.
A religião católica chegou ao Piauí com os primeiros
conquistadores e colonizadores. Em geral estes eram

44  Tanya Maria Pires Brandão


precedentes de áreas de colonização consolidada. Até o final
do século XVII, os povoadores do Piauí pouco contaram com a
participação dos representantes da Igreja em suas práticas da
religião. A estrutura eclesiástica só começou a ser implantada
na região nos últimos anos da década de 1690.
Como em outras áreas da Colônia, o catolicismo
no Piauí certamente apresenta especificidades. Muitas
destas decorreram principalmente da união entre interesses
político-administrativos e religiosos verificada no processo
de colonização da região. Resultou daí o fato da estrutura
eclesiástica só ser implantada em terras piauienses quando
houve interesse da Coroa em estabelecer o controle do corpo
social que nelas se formava.
Por esta razão, no século XVI não havia definição quanto
à jurisdição eclesiástica do território que hoje compreende
o estado do Piauí. Vale salientar que nessa época o projeto
colonial não se estendia até aquela região. Isto apesar das
notícias sobre este sertão fornecidas pelos desbravadores.
Mesmo na segunda metade do século XVII, quando
o povoamento colonial já se efetivava nos vales piauienses,
principalmente nos dos rios Longá e Poti, as autoridades
coloniais ainda desconheciam o interior do Nordeste. Foi
por este motivo que a delimitação das áreas de jurisdição das
dioceses do Maranhão e de Pernambuco, bem como a da
arquidiocese da Bahia permaneceu por muito tempo restrita
à zona litorânea. Em face dessa, a anexação das terras que
iam sendo conquistadas e ocupadas nos sertões era feita
às unidades administrativas religiosas e civis mais próximas
conhecidas pelos requerentes de título sesmarial (MELO, 1991,
p. 19).
Portanto, de forma autônoma, sem a presença das
autoridades constituídas, eclesiásticas e civis, os colonizadores
do Piauí foram estabelecendo suas relações sociais, seu código

A RELIGIOSIDADE NO PIAUÍ COLÔNIA: CATOLICISMO 45


ADAPTADO AO MODO DE VIDA
de moralidade e sua relação com o sagrado. Por muito tempo
a assistência religiosa aos habitantes das fazendas e sítios era
prestada de forma esporádica. Até o final do século XVII era
feita pelos jesuítas que transitavam nos “sertões de dentro”.
A missão da Ibiapaba, a partir da década de 1660, foi
importante ponto de partida de incursões missionárias para a
ação catequética em terras do Piauí. Em 1696, por exemplo, o
Pe. Ascenso Gago, Superior dos Jesuítas daquela missão, por
dezoito dias celebrou missas e administrou sacramentos junto
aos moradores do Longá.2
Ao que se sabe, até 1697, não havia uma única igreja
ou capela canonicamente erigida em todo o território do
Piauí. Certamente estas não resultavam apenas das decisões
administrativas do governo, nem também do comportamento
dos proprietários e moradores da região. Muitos sesmeiros,
como dona Leonor Pereira Marinho senhora de grande extensão
de terras no Piauí, não permitiam construções de igrejas em
seus domínios (MELO, 1991, p. 27).
Outro fato indicativo da resistência dos habitantes à
implantação da Igreja nesta região é a demolição da primeira
igreja de Nossa Senhora da Vitória, edificada no Brejo da
Mocha, em 1697, matriz da primeira freguesia criada no Piauí.
Na época o Pe. Miguel de Carvalho foi incumbido pelo Bispo
de Pernambuco para providenciar a instalação desta freguesia.
No cumprimento de sua missão, visitou todas as fazendas e
sítios. Em seguida realizou reunião com os “homens bons
de todos esses brejos” quando foi definido o local da igreja,
bem como a participação dos fiéis na construção da mesma
e manutenção da freguesia. Desta reunião não participaram
alguns dos senhores convocados. Estas pessoas nem mesmo


2
Sobre a atuação dos jesuítas da Ibiapaba no Piauí ver NUNES, Odilon.
Pesquisas para a história do Piauí. Rio de Janeiro; artenova, 1975. vol.
I, capítulos I e II.

46  Tanya Maria Pires Brandão


mandaram representantes. Em razão desta atitude lhes é
atribuído o comando na ação que culminou com a destruição
da recém-construída igreja e dos ranchos do canteiro de obras
(CARVALHO, 1938).
Este tipo de comportamento também ocorreu em 1711.
Na ocasião estava sendo instalada a freguesia de Santo Antônio
do Surubim. Seguindo o mesmo procedimento adotado em
Mocha, o Pe. Tomé de Carvalho reuniu os principais senhores da
região do Longá. Tinha por objetivo decidir de comum acordo o
local e a construção da matriz da nova freguesia. Nesta ocasião
a manifestação contrária ao projeto foi menos agressiva do
que a enfrentada pelo Pe. Miguel na Mocha. Limitou- se a um
pedido de desculpas vindo das pessoas presentes à reunião por
não participarem da obra. Suas alegações eram que tinham
poucos escravos e que os mesmos estavam ocupados nas
fazendas cujos donos residiam na Bahia (MELO, 1991, p. 47).
Até meados do século XVIII grande parte dos proprietários
de terras na Capitania do Piauí era formada por senhores
absenteístas. Esta atitude frente á construção de igrejas talvez
fosse a forma de evitar qualquer autoridade externa em seus
domínios, inclusive dos clérigos. Mas, como a resistência à
instalação de párocos não se limitava aos senhores e seus
delegados, é possível que este comportamento também tivesse
relação com as atitudes dos padres.
Talvez os habitantes locais entendessem que o objetivo
primeiro dos religiosos não era o encaminhamento de sua
espiritualidade. Isto porque na intensa luta pelo domínio da
terra os padres também disputaram e adquiriram sesmarias
onde edificaram suas fazendas. Em 1681, Domingos de Oliveira
se tomou o primeiro padre fazendeiro no Piauí. Mesmo o Pe.
Tomé de Carvalho, vigário da freguesia de Nossa Senhora da
Vitória na passagem do século XVII para o XVIII, um devotado à

A RELIGIOSIDADE NO PIAUÍ COLÔNIA: CATOLICISMO 47


ADAPTADO AO MODO DE VIDA
instalação da Igreja no Piauí, formou uma fazenda no valor de
doze mil cruzados (MELO, 1991).
É possível que o fato dos padres serem mais fazendeiros
do que pastores de almas fosse a causa principal dos constantes
conflitos e tensões entre a população e os clérigos. Na década
de 1780, por exemplo, o Pe. Dionísio, vigário da Mocha, teve
sérios atritos com seus paroquianos. Foi denunciado perante a
Rainha de Portugal e declarado culpado. No processo oriundo
em queixas dos habitantes ele foi descrito como “um pároco
poderoso que põe sua confiança na repartição do grande
cabedal que ajuntou e tem extorquido em mais de vinte anos”
(CARVALHO Jr, 1980, p. 45). Em outro incidente o envolvido
foi Frei Cosmo Damião da Costa. Segundo Cláudio Melo,
“embora religioso, este sacerdote esqueceu o voto de pobreza.
Preocupou-se em juntar bens, adquirindo sesmarias onde situou
os seus gados. Contraiu débitos em São Luis; foi denunciado
por não querer pagá-los” (MELO, 1991, p. 40).
Fica evidente que os interesses econômicos e políticos dos
representantes da Igreja no Piauí dificultavam o encaminhamento
da religiosidade dos moradores sob a orientação de sacerdotes.
Até mesmo a ação dos jesuítas, apontados como os principais
evangelizadores no Brasil Colônia, apresentou limites no Piauí.
Embora fossem dedicados à catequese, estes padres não
tiveram missões estabelecidas no Piauí. Eles atuaram como
evangelizadores dos colonos de forma descontínua, quando
penetravam na busca de nativos.
No Piauí os discípulos de Loyola se estabeleceram
efetivamente só em 1711. Chegaram como administradores das
fazendas e sítios deixados em testamento por Afonso Mafrense
de Sousa. Como tais, dedicavam se a esse patrimônio de cuja
renda saia o sustento do colégio da Bahia e do seminário
de Jequitiáia. Contudo, apesar de serem sempre em número
pequeno, foram estes religiosos administradores mas também

48  Tanya Maria Pires Brandão


evangelizadores. Construíram pequenas capelas em suas
unidades de produção nelas rezavam missas e administravam
os sacramentos.
As dificuldades identificadas na assistência espiritual
continuada e efetiva dos habitantes do Piauí decorriam ainda
do próprio comportamento social dos habitantes. Este tinha
caráter arredio, individualista e autônomo devido a maneira
como se processou o povoamento colonial da região. A
exceção dos escravos, os que buscavam estas paragens tinham
por objetivo construir seu espaço geográfico e social em novas
áreas. Neste processo enfrentaram a rusticidade da região e das
atividades econômicas que desenvolviam. Somava-se a esta a
violenta luta pela conquista e domínio de terra. Os métodos
violentos adotados nos diferentes tipos de combate vitimavam
e intimidavam até os missionários católicos.
Observa-se que mesmo passada a fase heroica da
conquista, o contato entre clérigos e os habitantes continuou
sendo difícil. Por exigência da pecuária desenvolvida e das
características climáticas da região, a população achava-
se predominantemente na zona rural, distribuída de forma
esparsa e rarefeita em área muito extensa. Certamente esta
característica demográfica foi um elemento importante no
distanciamento entre padres e fiéis.
Como admite Mary Del Priore (1994, p. 5) “a religião
se configura num conjunto de formas de conhecimento e de
crenças que religa as experiências concretas das pessoas ao
significado que elas lhes atribuem, ao sentido que dão à vida
e à morte”. Desta forma, certamente a maneira de viver e as
formas de convivência estabelecidas na sociedade colonial
no Piauí interferiram na religiosidade dos habitantes locais.
Os depoimentos de padres e de autoridades governamentais
referentes ao século XXVIII deixam clara esta possibilidade.
Quando se referiam ás dificuldades em ser mantido o controle

A RELIGIOSIDADE NO PIAUÍ COLÔNIA: CATOLICISMO 49


ADAPTADO AO MODO DE VIDA
social desejado, estes agentes do Estado sempre apontavam
como principal impedimento o fato dos moradores não serem
cristãos praticantes.
Certamente que isto era verdade. De acordo com as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, o cristão
deveria ouvir missas aos domingos e dias santificados, dedicar-
se no aprendizado da doutrina e ter a vida regida pelos
sacramentos do batismo, da penitência, do matrimônio e
da extrema-unção. Porém viver a religião católica cumprindo
esses preceitos era quase impossível para os moradores do
Piauí colônia. A exigência de sua presença constantemente
nas fazendas e a grande distância entre estas e a Paróquia
dificultavam a assiduidade aos cultos religiosos.
Estes mesmos motivos impediam os moradores do
Piauí de receberem os sacramentos como mandava a Igreja:
o batismo até o oitavo dia de vida e o matrimônio antes do
casal levar vida marital. Assim, batizados e casamentos eram
em geral celebrados por ocasião das visitações e desobrigas, o
que significava fora do prazo definido pela Igreja. Em relação
ao sacramento da extrema-unção, entretanto, o enfermo só era
atendido se houvesse visitação próxima a sua residência pouco
antes de sua morte.
Formou-se então na mentalidade das pessoas deste sertão
que os casais, mesmo levando uma vida em pecado, poderiam
um dia reparar pela via do matrimônio. O mesmo pensamento
era reservado ao batismo das crianças saudáveis. Estas
poderiam esperar pela visita do padre. Quanto aos enfermos,
tratando-se de crianças não batizadas ou de adultos carentes
da extrema-unção, restavam as orações de leigos piedosos e de
rezadeiras para encaminhar suas almas.
A religiosidade no Piauí se aproximava daquela
identificada por Laura de Mello e Souza no Brasil colônia:
“oscilava do ceticismo à vontade de crer, do materialismo à

50  Tanya Maria Pires Brandão


reverência ante as forças sobrenaturais” (MELO e SOUZA, 1986,
p. 100). Isso é possível ser observado a partir das informações
constantes nos inventários e testamentos de moradores da
região. Por exemplo, nas descrições de bens pertencentes aos
moradores de Jerumenha e Valença não há referência a capelas.3
Entretanto, no mesmo período da feitura destes documentos,
foram construídas várias destas por iniciativa de fazendeiros da
região. Apesar de estarem em áreas privadas essas capelas eram
de uso comunitário, ponto de desobriga sacerdotal onde eram
celebrados casamentos, batizados e missas.
Algumas das capelas construídas no interior do Piauí
foram obras de pessoas comuns. Um exemplo é a de Bom Jesus
da Boa Sentença, na região de Parnaguá. Tinha as paredes
de taipa e era coberta com palha. Seu único adorno era uma
pequena imagem de Jesus Crucificado. Foi obra de um preto
velho e forro e de gente simples como ele. Achava-se edificada
em terra devoluta (MELO, 1991, p. 90) Também foram
edificadas igrejas em pagamento a promessas. Os irmãos
Manuel e José Dantas foram dois portugueses patrocinadores
da construção de uma igreja na região de Piracuruca no início
do século XVII. Cumpriram uma promessa à Vigem do Monte
Carmelo por escaparem com vida do ataque e da prisão dos
índios que encontraram quando da instalação de seu curral
(MELO, 1991).
Talvez o comportamento dos clérigos, mais preocupados
com seus interesses pessoais ou envolvidos em conflitos com
as forças políticas locais e até em disputas jurisdicionais entre
freguesias, tenha motivado a construção de Capelas e Oratórios
por particulares. Entretanto, quando estes solicitavam
autorização às autoridades para a construção dos mesmos, a
justificativa era sempre a distância entre a área indicada para


3
Inventários e Testamentos de Jerumenha e Valença, 1762 - 1822.
Arquivo Público do Estado do Piauí: Sala do poder Judiciário.

A RELIGIOSIDADE NO PIAUÍ COLÔNIA: CATOLICISMO 51


ADAPTADO AO MODO DE VIDA
a edificação e a sede da Matriz. O argumento do pedido de
licença feito por João Lopes de Carvalho para levantar uma
capela em sua fazenda Flores, por exemplo, foram as 34 léguas
que a separavam da sede paroquial da freguesia do Gurguéia.
Essa prática de levantar por conta própria igrejas, capelas
e oratórios evidencia o significado dos mesmos na religiosidade
dos piauienses. Demonstra o reconhecimento de que eram
estes os locais apropriados à prática da religião, com ou sem a
presença de padres. Também se observa que entre os moradores
do Piauí as igrejas, particulares ou não, eram entendidas como
Campo Santo. Isto porque nos testamentos a indicação do local
de enterro era sempre uma igreja. O interessante é que em geral
eles escolhiam a Matriz da paróquia sem observar a distância
entre esta e o local de sua residência, também parece que nesta
escolha não havia preocupação com o comportamento do
pároco.
Nos testamentos também há outro tipo de registro que
expressa a religiosidade dos moradores do Piauí. Trata-se do
desejo de ter por mortalha o hábito do Santo de Devoção.
Entre os testamenteiros de Jerumenha e Valença a preferência
era o de São Francisco. Na falta deste bastava que o corpo
fosse embrulhado em pano branco. Muitos indicavam que este
lençol deveria ser de linho. A opção de ser enterrado vestido
de São Francisco, um santo da Igreja que fez voto de pobreza,
tendo a humildade e a piedade como princípio de vida pode
ter o significado de uma declaração de desapego aos bens
materiais. Talvez acreditassem os testamenteiros que desta
forma garantiam entrada no Céu.4
Estas declarações testamentais são evidências de que seus
autores concebiam a morte como o momento para declarar


4
Cf. MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Os franciscanos e a
formação do Brasil. Recife: Universidade Federal de Pernambuco.
1976. Capítulo I.

52  Tanya Maria Pires Brandão


arrependimento pelas faltas cometidas em vida. O momento
do ajuste de contas e de garantir o perdão Divino. A partir
dessas disposições percebe-se que os testamenteiros tinham
conhecimento de princípios da religião católica como a crença
na vida eterna e a existência do inferno. Reconheciam que a
igreja e a religião católicas eram as únicas vias de salvação da
alma.
Contudo através destas declarações observa-se um
certo pragmatismo nos desejos mesmo estes sendo expressos
quando vislumbravam a morte. Na indicação do número de
missas a serem celebradas após sua morte, os testamenteiros
de Jerumenha e Valença não extrapolaram o total de cinquenta.
Provavelmente tinham consciência das dificuldades no
cumprimento de uma solicitação mais ampla. Também não
se observa, mesmo nos testamentos de grandes senhores, a
doação de esmolas à Igreja, aos santos ou a pessoas pobres. Eles
reservavam seu quinhão aos seus herdeiros que podiam ser até
filhos ilegítimos. Percebe-se a concepção de que o patrimônio
deixado era de caráter familiar e a importância deste para as
novas gerações.
Estas constatações também são feitas nos processos de
inventários da mesma região. Mesmo quando se tratava de um
patrimônio mais rico as despesas relativas aos funerais indicam
a preferência por cerimônias simples. Isto pode significar que
o momento do enterro não era muito valorizado. Também se
observa que o pagamento destas despesas era feito em dinheiro,
objetos em ouro e prata ou em gado. Nas partilhas os escravos
e os bens de raiz, principalmente as propriedades rurais, eram
exclusividade dos herdeiros outros aspectos da religiosidade
dos piauienses são ainda possíveis de serem identificados nos
autos de inventario. Um deles diz respeito à vocação sacerdotal.
Levando-se em consideração a já apontada escassez de
religiosos, bem como o difícil relacionamento entre habitantes

A RELIGIOSIDADE NO PIAUÍ COLÔNIA: CATOLICISMO 53


ADAPTADO AO MODO DE VIDA
e os párocos, pode-se presumir que seria interessante aos
habitantes do Piauí poder contar com sacerdotes de origem
local. Por sua vez os dados demográficos da Capitania indicam
que havia condições favoráveis para isso. Segundo os censos os
habitantes do sexo masculino predominaram quantitativamente
na população do Piauí até a década de 1770. No entanto, na
fase colônia poucos piauienses ingressaram no sacerdócio.
Esse pouco interesse dos piauienses pela vida sacerdotal
pode ser observado a partir do conjunto de ascendentes e
descendentes dos inventariados de Jerumenha e Valença. Nele
se constata que as pessoas solteiras correspondiam a apenas
7,24% e dentre estas, 62,94% eram jovens e adultos em idade
de casamento. Entre os homens que não haviam casado o
percentual de sacerdotes era de 13,3%. Não foram identificadas
religiosas entre as mulheres jovens e adultas solteiras.
Conclui-se a partir desta amostra que a opção de formar
família era mais atraente do que a opção pelo celibato ou seguir
a vida eclesiástica.
Convém salientar que a ordenação de padres entre os
moradores do Piauí só veio acontecer no século XVIII. O primeiro
surgiu em Parnaguá entre 1723 e 1725 com a ordenação de José
da Cunha de Eça em São Luís. Era um português cuja família
possuía fazendas na região e residiam em uma delas. Como
indicam os dados apontados, embora em número reduzido, as
famílias de elite formavam seus padres. Tomando-se por base
as informações constantes nos trabalhos sobre a história da
Igreja no Piauí, verifica-se que estes religiosos desenvolviam
suas atividades nas áreas onde sua família era hegemônica.
Por exemplo, na década de 1760, foram ordenados dois
descendentes de José Francisco de Figueiredo e de sua mulher
Maria da Cunha, ricos fazendeiros na região do Gurguéia. Ambos
trabalharam na freguesia de Jerumenha, sendo Francisco Xavier
de Figueiredo o pároco. Pela freguesia de Surubim passaram

54  Tanya Maria Pires Brandão


os padres Borges Leal e Manoel da Cunha. Ambos pertenciam
à família Castelo Branco, proprietária de várias sesmarias
e de muito gado na região central da Capitânia. Este último
foi figura muito marcante na vida política desta área. O mais
representativo desses padres foi o Pe. Marcos de Araújo Costa.
Pertencia à poderosa família no Piauí. Em sua fazenda tinha
uma escola onde ensinava os filhos de ricos e pobres. Neste
mesmo local havia um Oratório onde os moradores recebiam
doutrinação e os sacramentos. Contudo sua atuação de maior
destaque foi como político, cujo prestígio se estendeu ao
período de consolidação do Império Brasileiro (MELO, 1991,
p. 57-123).
Quanto às peculiaridades do catolicismo entre os
habitantes do Piauí colônia elas são ainda evidenciadas nas
descrições de bens constantes nos testamentos e inventários.
Observa-se nestes registros, mesmo quando fazem parte do
patrimônio mais rico, que são raras as indicações de objetos
como imagens, rosários, terços, oratórios domésticos e textos
bíblicos ou religiosos. Entre os bens descritos aqueles que podem
ser entendidos como expressão concreta da religiosidade,
predominam as medalhas com imagem de santo, as figas e os
“agnus dei”, geralmente em ouro e prata.
Estes objetos, todos de uso individual, significam que para
essas pessoas a relação com o divino se estabelecia de forma
direta. Que o sagrado protegia individualmente os homens. E
que para o solitário sertanejo esses amuletos eram a garantia
da proteção divina na difícil vida terrena.
Provavelmente ocorreu com os piauienses o princípio
observado por Franziska Rehbein: “a forma de vida influencia
a prática religiosa e a atitude religiosa influencia a forma e o
estilo de vida”.5 Talvez essa religiosidade adaptada ao modo de


5
Apud. SIQUEIRA, Sônia A. História da espiritualidade brasileira: a
espiritualidade afro do candomblé. In: ANAIS da XXI Reunião da

A RELIGIOSIDADE NO PIAUÍ COLÔNIA: CATOLICISMO 55


ADAPTADO AO MODO DE VIDA
vida identificada no Piauí colônia seja a gênese do catolicismo
popular, leigo e devocional com emergência dos ermitões
que Eduardo Hoomaert identificou nos sertões do Nordeste
pecuarista (HOORNAERT, 1992).

REFERÊNCIAS

CARVALHO Jr. Dagoberto de. História Episcopal do Piauí.


Teresina: Academia Piauiense de Letras, 1980.

CARVALHO, Miguel de, Pe. Descrição do Sertão do Piauí


remetida ao Ilm°. e Revm°. Sr. Frei Francisco de Lima de
Penambuco. In: ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares:
subsídios para sua história. [S.b]. Brasiliana, 1938, p. 370-
389.

MELO, Cláudia Pe. Fé e civilização: Teresina: 1991

MELO e SOUZA, Laura de. O diabo e a terra de Santa Cruz.


São Paulo:
Companhia das Letras, 1986.

MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Os franciscanos


e a formação do Brasil. Recife: Universidade Federal de
Pernambuco. 1976.

NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Rio de


Janeiro; artenova, 1975. vol. I, capítulos I e II.

Priori, Mary Del. Religião e religiosidade no Brasil colonial.


São Paulo; Ática, 1994.

Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica - SBPH. Rio de Janeiro.


2001. p. 323.

56  Tanya Maria Pires Brandão


SILVA, Caetano Costa. Uma leitura missionária da seca
nordestina. In: SILVA, Severino Vicente (Org.). A Igreja e o
controle social nos sertões nordestinos. São Paulo: Paulinas,
1988. p. 54.

SIQUEIRA, Sônia A. História da espiritualidade brasileira: a


espiritualidade afro do candomblé. In: ANAIS da XXI Reunião
da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica - SBPH. Rio de
Janeiro. 2001.

A RELIGIOSIDADE NO PIAUÍ COLÔNIA: CATOLICISMO 57


ADAPTADO AO MODO DE VIDA
DESEJOS E RANCORES: OS
DISCURSOS POR AUTONOMIA
ECLESIÁSTICA DA PROVÍNCIA
DO PIAUÍ (1829-1838)

João Vitor Araújo Sales


Marcelo de Sousa Neto

Introdução

E
m geral, as disputas pelo poder expõem as mais
variadas contradições dos indivíduos (WOLKMER,
2003). São nos momentos de tensão e de conflito
que se afloram os sentimentos de reafirmação. Contudo, a
reafirmação pressupõe uma identidade, um reconhecimento
sobre si que se constrói a partir de outra referência. Desta
relação de confronto pode-se perceber a alteridade, ou ainda,
a outridade. Esta construção sobre si permite entender as
inconsistências de determinado indivíduo ou instituições,
especialmente, quando colocado em perspectiva histórica, o
que se pretende fazer no presente estudo, atento aos devidos
recortes e mediações.

DESEJOS E RANCORES: OS DISCURSOS POR AUTONOMIA 59


ECLESIÁSTICA DA PROVÍNCIA DO PIAUÍ (1829-1838)
Ao ser analisada a dinâmica que desencadearia na criação
de um bispado no Piauí, separado da diocese do Maranhão,
depara-se com interesses de uma elite piauiense em ter em seu
território uma estrutura capaz de, literalmente, sacramentar
suas alianças sociais, que se consolidavam pelo matrimônio,
unindo, assim, famílias, negócios e prestígios, o que acabaria
por refletir, portanto, no acesso as estruturas de poder local
(SOUSA NETO, 2016).
A estrutura desejada já existia, era a diocese do Maranhão,
com sede em São Luís. Esta era formada por outra elite,
eclesiástica e política, maranhense, que se somava ao bispo,
autoridade preposta que representava também interesses de
outras partes do Império, exercendo jurisdição sobre aquela
diocese e sobre o governo espiritual do Piauí.
Ora, se tal estrutura desejada já existia, onde, pois, residia
o problema? O imbróglio encontrava-se na falta de controle da
elite piauiense sobre esta estrutura. Uma vez externa à província,
dificultava a concretização imediata de suas alianças, tolhendo,
desta forma, seu alcance político pela tutela do bispado do
Maranhão, que num contexto de insuficiente subvenção estatal,
utilizava-se da prerrogativa exclusiva de aliançar parentes em
matrimônio para angariar algum recurso para sustentação da
Igreja, particularmente naquela província (MELO, 1993).
Em um contexto histórico marcado por um padroado
imposto à força, sem reconhecimento da Santa Sé (VIEIRA,
2007), com características típicas de um regalismo que se
autolegitimava e que conhecia poucos limites à atuação do
Estado sobre a Igreja, os traços de alteridade e desejo de
autonomia eram perceptíveis nos órgãos que agregavam a
elite piauiense, quais sejam, o Conselho Geral de Presidência
da Província, o Conselho Geral de Província, e o órgão que o
sucedeu, a Assembleia Legislativa Provincial do Piauí.

60  João Vitor Araújo Sales • Marcelo de Sousa Neto


Desta forma, tomando como lastro a documentação
produzida no âmbito destes órgãos, discute-se a construção
narrativa das justificativas de construção de um autogoverno
espiritual no Piauí, descolado do governo espiritual do
Maranhão, e que deixou marcas na memória coletiva da
província, marcas percebidas espraiadas por todo o século
XIX e ainda presentes quando da, enfim, criação da diocese
independente, em 1901.

O bispado desejado: os discursos pela criação da diocese do


Piauí

Nos registros das discussões travadas no interior dos


órgãos de legislação e controle da província transpareciam as
marcas de alteridade entre o Estado e a Igreja, delimitados ao
Piauí, todavia, mediados por interesses de outras províncias.
Através dos discursos da atuação institucional, diversos pontos
de contato são percebidos, marcados pela construção de si, a
partir do outro, em que preponderam cicatrizes de uma relação
que não preza pelo “estranho” (BAUMAN apud NAXARA, 2012,
p. 242), mas por sua hostilidade.
Essa relação de estranhamento ao outro tornou-se
mais evidente ao ser analisado os aspectos que unia jurídico-
religiosamente as duas províncias, percebido como abusivo,
pelo Piauí, e necessário, pelo viés do Maranhão.
Perceptivelmente, a memória foi operacionalizada
pelas elites políticas piauienses em prol de argumentos que
os acompanhavam há algum tempo nos seus discursos1,


1
As tentativas de criação um bispado independente no Piauí remete,
inicialmente, ao ano de 1822, nas Cortes de Lisboa, por representação
do deputado Miguel Borges. A partir daí, vários anos se sucederam
com discussões nas instâncias de poder local, sendo remetidas em
requerimentos a Sua Majestade, o Imperador, a Assembleia Geral do

DESEJOS E RANCORES: OS DISCURSOS POR AUTONOMIA 61


ECLESIÁSTICA DA PROVÍNCIA DO PIAUÍ (1829-1838)
onde, dados os reiterados insucessos na criação de um
bispado piauiense, configuraram-se, paulatinamente, em
ressentimento. É neste sentido que as figurações de cada um
deles se construíram, isto é, a memória ressentida que se deixou
escapar nos documentos da época, expuseram as profundas
feridas existentes entre as províncias do Maranhão e do Piauí.
De fato, a Província do Piauí, por longos períodos esteve
subordinada a províncias melhor inseridas no modelo colonial
português (MARTINS, 2002). Sobre essa condição, lembra-
se que ao ser criada, ficou sob a jurisdição de Pernambuco,
todavia, pelas inúmeras disputas entre sesmeiros e posseiros da
localidade, fez-se necessária a intervenção da Coroa portuguesa
no intuito de diminuir o poder privado, especificamente da casa
da Torre da Bahia, e dos sertanistas paulistas que lhe detinham
a posse da terra (VILHENA, 2016). Neste contexto, a Província
do Maranhão, mais próxima, e fora do Estado do Brasil (no
qual estavam inseridos Pernambuco e Bahia) passou a deter a
jurisdição sobre o território destes sertões.
Primeiramente, o gérmen de atrito com o Maranhão
remonta a tempos coloniais pelo poder secular, uma vez que,
o Piauí era dependente politicamente de São Luís (MEIRELLES,
1980). Foram as interferências governamentais2 sobre o Piauí

Império e a título de consulta, ao bispo do Maranhão que estivesse em


exercício, que se colocava contra a proposta, sobretudo, pelas perdas
financeiras que decorreriam deste ato, o que é compreensível, tendo
em vista os escassos recursos de subvenção estatal. Cf. GONZAGA,
1907; MELO, 1993; PACHECO, 1968.

2
O Governador e Capitão-General do Estado do Maranhão e Piauí,
D. José Tomaz de Meneses (1809/1811) “praticou o excesso” de
suspender do cargo o Govenador da Capitania do Piauí, Carlos
Cesar Burlamarque, mando-o como cativo à fortaleza de Alcântara.
Percebendo a violência e arbitrariedade com que agia o Governador
do Estado, cuidou a Corte em soltar Burlamarque e enviá-lo ao Rio.
Além de substituir imediatamente Tomaz de Meneses, mandou que
se punissem os cúmplices do destemperado Governador, como o

62  João Vitor Araújo Sales • Marcelo de Sousa Neto


que fizeram o Rei de Portugal separar a administração civil
nesta região, em 1811. A questão eclesiástica viria com maior
força posteriormente, por ocasião das Cortes Constitucionais
de Lisboa, em 1822, subjacente à questão política.
A partir da emancipação política do Brasil, passaram a
ser recorrentes os pedidos de uma jurisdição eclesiástica com
maior autonomia emanados de diversas províncias (MELO,
1993), o que não foi diferente no Piauí. No caso deste, os
pedidos foram marcados pela atuante oposição do governo
imperial, notadamente da Assembleia Geral e do governo
espiritual maranhense, que não viam tal demanda como
empreendimento que atendesse a seus interesses utilitaristas.
O desejo da independência religiosa era latente
naquela sociedade, especialmente no interior da elite recém
enquadrada na burocracia imperial, que viam sua atuação
diminuída e interesses contrariados pela sujeição eclesiástica
ao Maranhão, impactando diretamente na organização social
e política piauiense. Neste sentido, o incômodo piauiense, em
relação àquele contexto que consideravam de sujeição, era
externado por meio das decisões e escritos produzidos pelos
representantes do estado, a exemplo do que pode ser verificado
no seguinte fragmento:

A Comissão especial é de parecer que passe como nova


proposta a Resolução sobre a Dignidade Prelatícia, a fim
de que fiquemos livres da jurisdição dos Bispos do Maranhão,
principalmente do atual, que é muito avarento, e por isso
oferece a seguinte resolução [...]. (grifo nosso) (PIAUÍ.
CGPPI, 1832a).3

desembargador José de Mota Azevedo, que presidiu o inquérito contra


Burlamarque. (MEIRELES, 1980).

3
Todas as citações documentais foram adaptadas apenas quanto à
ortografia, para melhor compreensão do leitor.

DESEJOS E RANCORES: OS DISCURSOS POR AUTONOMIA 63


ECLESIÁSTICA DA PROVÍNCIA DO PIAUÍ (1829-1838)
A expressão em destaque é emblemática. A finalidade de
criação de uma Dignidade Prelatícia, resultava da necessidade
“de que fiquemos livres”, autônomos deste outro indesejado,
independente de seu dirigente. Derivava deste desejo a expressão
“dos Bispos”, no plural, mesmo que tal cargo só permita um
titular, generalizando, assim, a todos aqueles que ocuparam ou
que viessem a ocupar aquele cargo.
A ênfase da fala do representante piauiense entre seus
pares denota ser um pensamento compartilhado, o “nós”
oculto, o que inclusive lhe encorajou à tamanha franqueza.
Logo, o “nós”, aqueles que desejavam, colidem-se ao “eles”,
aqueles que se opunham, simbolizado pelos bispos do
Maranhão, personificado àquele instante em Dom Marcos,
qualificado mesmo como “avarento”. O foco, é por ser este,
representante do Maranhão símbolo do passado herdado de
sujeição histórica piauiense, confundido com o parasitismo
econômico, especialmente pelo escoamento do comércio pelo
rio Itapecuru até Caxias e pelo porto de São Luís, e a tutela
maranhense sobre a Justiça, rememorado e direcionado à
tutela religiosa. Neste aspecto não-dito, agregamo-nos a Ansart
(2004, p. 29) que observa que “(...) quando não se trata não
somente de analisar os ódios, mas de compreender e explicar
aquilo que precisamente não é dito, não é proclamado; aquilo
que é negado e que se constitui, entretanto, como um móbil
das atitudes, concepções e percepções sociais”.
Se em janeiro de 1832 o discurso é desenvolvido a partir
da noção que os piauienses têm dos maranhenses, no final
do mesmo ano, tem-se situação contrária, mas, do mesmo
ponto de vista. Desta vez, a noção que os piauienses pensam
ter os maranhenses a seu respeito é destacada no documento
público, que ressaltava,

Requeiro a leitura da Proposta, que já passou à Resolução

64  João Vitor Araújo Sales • Marcelo de Sousa Neto


do Conselho, respeito a[o] Bispo, ou Dignidade Eclesiástica
para esta Província, para que novamente se peça, ainda que
se nos deem gargalhadas, pois uma hora virá em que possa
mas melhor ser atendidos. (grifo nosso) (PIAUÍ. CGPPI,
1832b).

“Ainda que se nos deem gargalhadas”, ou, para melhor


compreensão, ainda que de nós deem gargalhadas, ou seja,
por mais risível, debochador, ridículo que possa parecer aos
maranhenses que analisarão a proposta dos piauienses. Essa
seria a figuração piauiense, a partir do seu próprio olhar, sobre
o parecer daqueles, isto é, eivado de depreciação.
A premeditada negativa maranhense encontraria efeito
proporcional e contrário dos representantes piauienses.
A cada nova solicitação aglutinavam novos argumentos e
recrudesciam-se de suas convicções, não demonstrando sinais
de enfraquecimento diante dos insucessos, encontrando
semelhança, ao que destaca Ansart (2004, p. 31), ao afirmar
que “o indivíduo não esquece os fatos dos quais foi ator ou
vítima (...)”, típico da causa do bispado do Piauí, que assim se
colocava como vítima, mentalidade ainda presente também no
fim do século XIX.
A verificação das fontes confirma a insistência piauiense.
De fato, várias foram as solicitações de um bispado independente
do Maranhão ao longo de quase todo século XIX, seja por
um bispado de anel, seja plenamente por uma diocese, seja
pelas “simples” faculdades especiais a um padre local. O que
interessava, entretanto, mais do que “livrar-se” da incômoda
sujeição ao bispado do Maranhão, eram as articulações
familiares que o matrimônio endogâmico propiciaria, e sua
projeção sobre a sociedade, de prerrogativa do bispo ou
sacerdote autorizado. Na maioria dos requerimentos de
autonomia eclesiástica, tal argumento estava presente (SOUSA
NETO, 2011).

DESEJOS E RANCORES: OS DISCURSOS POR AUTONOMIA 65


ECLESIÁSTICA DA PROVÍNCIA DO PIAUÍ (1829-1838)
Entender esta conjuntura exige a compreensão do
contexto oitocentista. No século XIX, análogo aos anteriores,
o casamento constituía a unidade básica das relações sociais.
Em todas as instâncias, a família, unida pelo casamento, ou
melhor, oficializada e sacramentada pelo matrimônio católico,
era a célula do tecido social. Neste sentido, todo e qualquer ato
que lhe dissesse respeito afetaria uma rede de relações muito
maior do que o próprio núcleo familiar (SILVA, 1984), logo,
todos os cuidados deveriam ser tomados no sentido de lhe
fortalecer enquanto instituição angular da sociedade.
Desta forma, a união entre um homem e uma mulher
resultava numa série de direitos e obrigações que poderia elevar
ou diminuir sua posição social, bem como de sua parentela.
Logo, os candidatos a nubentes deveriam ser selecionados
cuidadosamente, visando, em grande medida, a manutenção
do patrimônio familiar. Assim, o casamento entre pessoas da
mesma família constituiu-se como solução possível, tornando
mais espessa a trama das redes familiares locais e evitando a
divisão de seus patrimônios (BRANDÃO, 2012).
Contudo, existia um forte empecilho, sobretudo para as
famílias da elite econômica e política local, conseguir as bênçãos
da Igreja. No Piauí, desde seu período colonial, a família
conjugal ganhou especial importância, visto que o casamento,
em particular para as famílias da elite, representava ato social
com implicações econômicas e políticas, desempenhando
destacado papel na sociedade como dispositivo de articulação,
cujo sentido era a mediação entre o indivíduo e a sociedade.
Dessa forma, o sacramento do casamento para a sociedade
representava mais que a união de dois cristãos diante de
Deus, era também rito social que marcava ao mesmo tempo
a união de famílias, instrumento fundamental na composição
das redes familiares, encontrando maior espaço entre os
grupos de maiores posses, em que, por meio do sacramento

66  João Vitor Araújo Sales • Marcelo de Sousa Neto


do matrimônio, imprimia-se um caráter divino e legal as uniões
entre as famílias (SOUSA NETO, 2013).
A importância da família conjugal ainda se fazia sentir
pela legitimidade que conferia aos seus herdeiros, “nomeando
os controladores do nome da família e herdeiros natos do
patrimônio dos pais” (BRANDÃO, 2001). Em face disso,
o casamento representava instrumento de manutenção e
ampliação do patrimônio privado e, como dito, para evitar a
dispersão dos bens, em que as gerações mais novas herdavam
os bens materiais, prestígio e poder de seus ascendentes com
a tarefa de mantê-los e/ou ampliá-los por meio das alianças
matrimoniais.
A escolha do cônjuge, portanto, deveria atender a
critérios, sobretudo, políticos e econômicos, feitos, em geral,
dentro de um círculo limitado de sujeitos que atendiam aos
padrões e normas determinados. Entretanto, como o número
de pessoas de projeção social4 manteve-se sempre reduzido, até
o século XIX, o mercado nupcial interno também se apresentou
limitado para a elite local. Como a escolha de cônjuge deveria
ocorrer entre “iguais”, nesse grupo da sociedade piauiense,
predominaram os casamentos entre pessoas de um pequeno
conjunto de famílias, formando estreitas redes familiares de
natureza endogâmica, que predominaram no exercício do
controle do poder político no Piauí (BRANDÃO, 2012).
Em meio aos interesses desses grupos familiares, destacava-
se o papel da Igreja na conformação dos arranjos familiares

Cf. SOUSA NETO (2013), na sociedade do Piauí oitocentista,


4

representavam pessoas de projeção social os proprietários de bens


como terra, gado e escravos, os membros da administração, bem como
portugueses que no Piauí se estabeleceram. Durante o século XVIII,
formaram-se ali os primeiros grupos familiares. Esses tiveram a seu
favor a possibilidade de se estruturar e formar patrimônio constituído
de terras, gado e escravos, o que lhes garantiram domínio e prestígio
no conjunto da sociedade local no século seguinte.

DESEJOS E RANCORES: OS DISCURSOS POR AUTONOMIA 67


ECLESIÁSTICA DA PROVÍNCIA DO PIAUÍ (1829-1838)
desejados que, por sua vez, para sacramentar as uniões, não
admitia a prática da relação conjugal entre parentes5, o que
poderia ser caracterizado por incesto ou prática que o valha.
A solução encontrada foi, a chamada, dispensa matrimonial.
Concedida apenas pelo Papa, ou, na delegação deste para os
bispos, desejava o Piauí que lhe fosse estendida a prerrogativa,
como pode ser observado no fragmento seguinte:

[...] apresentou uma indicação requerendo [que] se


renovasse a proposta feita em trinta de janeiro de mil oito
centos e trinta reiterada em trinta de janeiro de mil oito
centos e trinta e três, em que se pede um Bispo; ou uma
Dignidade Prelatícia para esta Província independente do
Maranhão pelos inconvenientes que se encontram no Diocesano
sempre que haja pretensões principalmente em matérias de dispensas
Matrimoniais [...]. (grifo nosso) (PIAUÍ. CGPPI, 1834).

Como descrito, as dispensas matrimonias faziam


parte do cotidiano daquela sociedade, gerando, inclusive,
“inconvenientes”, de modo a ganhar voz no Conselho de
Província pela gravidade que cercava os casamentos, como já
exposto. Diante de tal dificuldade, requeriam a presença de um
bispo, que resolvesse o nó que estava formado a partir da rede
tecida pelo casamento parental.
De fato, uma das maiores utilidades na autoridade
episcopal residia na faculdade de dispensas matrimoniais,
como bem percebiam os representantes piauienses à época, ao
destacarem,


5
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia eram bastante
amplas em definir não apenas consanguinidade, como também o
parentesco espiritual, isto é, os compadrios e afilhamentos adquiridos
nos sacramentos. Cf. VIDE (1853).

68  João Vitor Araújo Sales • Marcelo de Sousa Neto


[...] feita sobre a indicação do Senhor Silva, para que
fique esta Província ereta em Bispado independente do
Maranhão, criando-se uma Dignidade Prelática com a
Côngrua de 1:600#000 rs: lido até o 1º artigo pediu a
palavra o Secretario, e disse votava contra a Proposta em
discussão, não por que uma autoridade Prelática faça
mal algum; bem que todavia não lhe conheço outra vantagem,
ou utilidade mais do que a de dispensar algum parentes para
casamento, porém porque as circunstancias presentes da
Província (quero dizer as suas finanças) não o permitam
presentemente, havendo outras muitas coisas de mais
urgência o que se deve acudir [...]. (grifo nosso) (PIAUÍ.
CPPI, 1833).

O que nos chama atenção é a identificação do episcopado


com a dispensa de “algum parentes para casamento”, num
utilitarismo, muito provavelmente, compartilhado por todos ali
presentes, mas que não lhes interessava admitir, considerando
a inconveniência dessa realidade matri-patrimonialista que se
consolidaria com a união sacramental, parâmetro para todo
e qualquer direito naquela sociedade. O fato é que o único
contrário à criação da diocese, por admitir sua inviabilidade
face a outras questões sociais, foi solenemente ignorado.
Note-se, portanto, que não é unânime a ereção de um
bispado no Piauí. Todavia, percebe-se uma comunhão de
ódios, como diria Ansart (2004), nas disputas políticas no
âmbito eclesiástico entre Piauí e Maranhão. Neste aspecto, o
ódio comum faz esquecer as disputas internas, isto é, daquela
elite reunida em assembleia, ao mesmo tempo que assegura
a união pela oposição à submissão de questões tão caras aos
piauienses nas mãos de estranhos. Logo, o desprezo à única
oposição interna expressa entre a elite piauiense, oposição
pragmática, atesta a adesão da maioria dos representantes
piauienses à criação do bispado independente ao Maranhão,
enraizando ainda mais o desejo coletivo e externando rancores,

DESEJOS E RANCORES: OS DISCURSOS POR AUTONOMIA 69


ECLESIÁSTICA DA PROVÍNCIA DO PIAUÍ (1829-1838)
pois, como observado por Ansart (2004, p.24), “a ideologia
política [genericamente falando], designando claramente os
alvos do ódio e do desprezo, pode fornecer aos membros do
coletivo um reforço da autoestima e da segurança interior”.
Para além disso, temos que, de fato, o casamento não
endogâmico já era dispendioso e, por isso mesmo, elitizado,
como se observa nas práticas cotidianas destacadas no
fragmento:

[...] represente- se ao Governo da Província, para este


mandar executar o Decreto de 3 de Novembro de 1827, em
que manda que os Vigários não recebam coisa alguma de
casarem, ou assistirem os Casamentos dos seus Fregueses,
cuja Lei não tem tido execução nesta Província, e antes
os Vigários têm exigido de cada um quatro mil reis [...].
(PIAUÍ. CPPPI, 1832).

Ao necessitar da dispensa matrimonial, prerrogativa de


número reduzido de autoridades eclesiásticas, tal união tornava-
se menos acessível comparativamente as que não necessitavam
das mesmas. Podemos dizer, então, que a situação era grave,
incorrendo inclusive em sanções pela desobediência da norma
em vigor, como dos sacerdotes piauienses que ousaram
transgredi-la:

[...] é acusado o Pároco da freguesia do Senhor Bom


Jesus do Gurgueia, Padre Lourenço Candido Ribeiro
de Brito, de haver celebrado diversos casamentos entre
parentes, sem que precedessem, segundo se supõe, as
necessárias dispensas de impedimento. Em resposta cabe-
me comunicar a V. Exª. que nesta data tenho expedido as
convenientes ordens para que se proceda a sindicância e
se instaure os respectivos processos, cujo resultado em
tempo oportuno levarei ao conhecimento de V. Eª. (PIAUÍ.
PEDMA, 1870).

70  João Vitor Araújo Sales • Marcelo de Sousa Neto


Como remete a situação do Pe. Lourenço de Brito,
o casamento “entre parentes” exigia as “dispensas de
impedimento”, situação que marcou profundamente,
sobretudo, a elite piauiense, que se utilizava desse artifício para
consolidação e ampliação de alianças. Em geral, atuantes na
política, como no Conselho de Governo da Presidência, no
Conselho Geral da Província e o que lhe sucedeu, a Assembleia
Legislativa Provincial, aquela elite carregava a marca da
subordinação à outra elite, eclesiástica, do Maranhão.
Argumentavam, pois, que aquela sociedade de gênese isolada e
de poucos habitantes, ao defrontar-se à norma, gerava o caos
social:

Seguem agora os antigos, a pesadíssimos vexames das


dispensas matrimoniais, que nesta Província se olham
como o mais rigoroso flagelo da cólera Celeste. Releva
advertir que os primeiros povoadores desta Província,
sendo dotado de grandes faculdades políticas, famílias
existem que contam mais de duas mil pessoas ligadas em
grau de parentesco, que requer dispensa para se casarem.
Estas famílias entrelaçadas por afinidades, sucede, que
apenas se possa efetuar um casamento para o qual senão
exija dispensa.
Necessário é portanto de todas as Freguesias expedir se
inumeráveis correios para o Maranhão, os quais devem
percorrer duzentas, e trezentas léguas de distância, e ir
munidos de ordens francas para agenciar de passagem
com rio em sempre delongas, e embaraços nos despachos
expedem-se dois, e três expressos, um após outros para
aplanarem as dificuldades: lançando-se afinal pesadas
multas pecuniárias sobre os contraentes, algumas de
quatrocentos mil reis, [?] muitos de duzentos, e inumeráveis
de menores quantias, sempre pagas antes de se obter a
graça. (PIAUÍ. ALEPI, 1838).

DESEJOS E RANCORES: OS DISCURSOS POR AUTONOMIA 71


ECLESIÁSTICA DA PROVÍNCIA DO PIAUÍ (1829-1838)
Podemos elencar, a partir das questões levantadas
pela Assembleia, mais maduras do que as demais, dada a
discussão do assunto no transcorrer do tempo, os principais
argumentos para que um bispado fosse criado no Piauí, sob
a voz institucional das representações políticas piauienses,
cujo centro estava na questão matri-patrimonial, o qual
sempre retorna como discurso modal, intensificado por outros
elementos, como: a distância (150 léguas de Oeiras à São Luís),
que pode ser exponenciada pelo percurso difícil, tornando-se
mais oneroso pelos gastos com despachantes, além de outras
taxas, como relataram:

[...] alguns casamentos, que se não realizaram por causa da


demora da sentença da dispensa, que alcançada a custo de
grandes quantias, tem aqui chegado depois da morte dos
contraentes: e de outros que não tiveram lugar, por falta
de dinheiro, que inteirasse o que se exige no Maranhão,
a título de obras Pias, ou por falta de Procuradores que
tivessem amizade na Câmara Eclesiástica [...]. (PIAUÍ.
CPPPI, 1829).

O vagar dos recursos administrativos-eclesiásticos


relativos ao matrimônio e os seus respectivos gastos são
lembrados, onde o discurso inflama-se ao nível hiperbólico,
o que é compreensível pela relação animosa que se arrastava
historicamente, de trazer um fato que carrega, provavelmente,
um exagero intencional, isto é, das dispensas chegarem após a
morte dos requerentes (MELO, 1993).
Esses são alguns dos aspectos que evidenciam uma
depreciação dos piauienses em relação ao governo espiritual
do Maranhão. Há um outro fato que se soma aos anteriores e
que evidencia um outro tipo de alteridade, marcada de forma
positiva a ressoar no psicológico daquela elite do Piauí que
entendia, sobre os caminhos tomados por outras províncias,

72  João Vitor Araújo Sales • Marcelo de Sousa Neto


que “se eles podem, nós também podemos”. Esta projeção de
si mesmo sobre um outro conhecido ou vislumbrado, para o
Piauí, foram as prelazias de Goiás e Cuiabá, como foi lembrado
em 1829:

[...] Resolveu- se, que se pedisse a Sua Majestade, O


Imperador, pela Secretaria de Estado dos Negócios
da Justiça, a Graça de Mandar Expedir Sua Imperial
Determinação, a fim de que o Reverendo Bispo do
Maranhão, subdelegue ao Vigário Geral desta Província do
Piauí as mesmas faculdades, que benefício dos Povos foram
dadas pelo Reverendo Bispo do Rio de Janeiro ao Vigário
Geral que teve em Goiás, e ao Vigário da Vara de Cuiabá.
Quando estas Províncias eram do seu Bispado, para que
se concluam aqui mesmo os autos que se processam nos
casos de impedimentos para casamentos, que tem sido até
agora remetidos, para serem sentenciados na Cidade do
Maranhão; devendo-se esperar que, mediante a Soberana
Proteção de Sua Majestade Imperial, sendo concedida a
dita subdelegação, sessarão os gravíssimos inconvenientes
que tanto impedem o bem espiritual dos habitantes
da mesma Província, e o progressivo aumento da Sua
população [...]. (PIAUÍ. CPPPI, 1829).

O espelhamento nas prelazias de Goiás e Cuiabá


marcou tenazmente a lógica argumentativa dos
piauienses. Neste aspecto, será sempre uma lembrança
rememorada, e desta forma, atualizada. Assim, 11 anos
após a elevação das duas prelazias a dioceses, relatavam:

Em a Província de Goiás, cuja população possui mais ou


menos igual a do Piauí, se a de Mato grosso, que talvez
não contém metade dos habitantes desta Província, já
obtiveram há muitos anos a criação de Prelazia em seu
território, o Piauí, Augustos, e Digníssimos Senhores,
também tem [?] a esperar que suas reiteradas súplicas
não sejam sempre olhadas com indiferença pelos

DESEJOS E RANCORES: OS DISCURSOS POR AUTONOMIA 73


ECLESIÁSTICA DA PROVÍNCIA DO PIAUÍ (1829-1838)
Representantes da Nação Brasileira. E nós fazemos votos,
e dirigimos preces aos Céus, para que iluminem nossos
Legisladores, e lhes inspirem algum feliz arbítrio, com que
possam salvar esta Província da conquista do barbarismo,
e da irreligião, que ameaça invadi-la, e subjuga-la. (PIAUÍ.
ALEPI, 1838).

Há clara busca por reforçar as similaridades entre Piauí


e Goiás, no caso do comparativo populacional, o intuito
era demonstrar o tratamento desigual entre entes iguais nos
aspectos que consideravam fundamentais. Não obstante,
destaca a superioridade populacional do Piauí em relação
à prelazia de Mato Grosso, deduzindo um tratamento
desigual apesar das condições mais favoráveis ao Piauí. Em
outras palavras, o maior número populacional piauiense lhe
colocaria, ao menos, em “pé de igualdade” com a realidade
que se almejava, já ocorrida na figuração positiva, como aqui
chamamos Cuiabá e Goiás.
De tal forma apegaram-se à imagem daquelas jovens
prelazias, que ignoravam, ou esforçavam-se por esquecer que
eram situações bem diferentes, inexoralvelmente determinantes
para a elevação das mesmas à categoria de prelazia e, daí,
em dioceses. O caso das jovens prelazias é emblemático para
a compreensão, dentre outras coisas, de como o Estado
instrumentalizou a Igreja a seu serviço, e ainda, de como a
Igreja aproveitou-se desta tutela em seu favor.
No contexto de elevação daquelas prelazias à condição
de dioceses, foi enviado a Roma, o Ministro Mons. Francisco
Correa Vidigal, com o dever de obter do sumo Pontífice: o
reconhecimento da independência do Brasil; concordata
concedendo ao Imperador e seus herdeiros o gozo dos direitos
do padroado; uma nunciatura no Brasil; e a elevação das
prelazias de Goiás e Mato Grosso, à condição de bispados

74  João Vitor Araújo Sales • Marcelo de Sousa Neto


(indicando o nome dos candidatos ao cargo) (VIEIRA, 2007;
LIMA, 2001).
De fato, a Santa Sé estava ciente do risco que corria em
conceder o Padroado ao Governo brasileiro, face a situação
regalista vivido pela Igreja. Assim, o Papa foi diplomático, e
em gestos graduais, reconheceu Dom Pedro como imperador
e admitiu confirmar os candidatos apresentados por esse,
suposto que fossem dignos, pela bula Quam íntima, em 14 de
abril de 1826. Para Núncio Apostólico, e restabelecimento das
relações diplomáticas entre Brasil e Santa Sé, designa Dom
Pedro Ostini, a 23 de junho de 1829.
A elevação das prelazias de Cuiabá e Mato Grosso a
dioceses, em resposta à solicitação feita pelo Governo Imperial,
veio em 1827, pela Bula Soliccita Catholicae Gregis Cura, indicando
também a criação e manutenção dos cabidos e seminários,
bem como nomeava vigários dos cabidos diocesanos, sendo
um estrangeiro, e fixava os seus benefícios6.
Este mesmo processo era querido e espelhado por aqueles
que buscavam provincializar a Igreja no Piauí. Mas, os contextos
eram bem diferentes. Goiás e Cuiabá eram zonas mineiras,
de potencial econômico, e de posição fronteiriça estratégica
(CORBALAN, 2006). A economia piauiense, do contrário, era
voltada para o abastecimento do mercado interno, sobretudo,
através da pecuária (VILHENA, 2016), o que não era o tipo


6
Contudo, por força da Constituição de 1824, artigo 102, o poder
Executivo consultou a Assembleia Legislativa antes de conceder ou negar
o beneplácito ao documento, pois este continha disposições gerais
sobre a Igreja no Brasil. Ao passar pelo crivo da Comissão Eclesiástica
(composta por clérigos) , e pela Comissão da Constituição (composta
por leigos), ambas, aprovaram a ereção, extensão e limite das dioceses,
discordando, entretanto, da indicação de seus bispos, bem como
da nomeação de vigário estrangeiro, julgando sem nenhum efeito as
orientações dadas quanto ao cabido e ao Seminário Episcopal. A esse
respeito ver: SILVA, 2012, p.97.

DESEJOS E RANCORES: OS DISCURSOS POR AUTONOMIA 75


ECLESIÁSTICA DA PROVÍNCIA DO PIAUÍ (1829-1838)
de dinâmica que estimulava o Governo a colocar sua máxima
estrutura eclesiástica, vista, então, como investimento7.
Outra vantagem que foi em favor aos interesses
estatais, assumindo a Igreja como elemento de dominação
e territorialização do Império, dizia respeito à localização
geográfica de Goiás e Cuiabá, que poderia trazer negociações
favoráveis a Portugal, em detrimento da Espanha (CORBALAN,
2006).
É neste sentido que resta o exercício de reflexão provisória
acerca dos elementos que orbitavam e se opunham a autonomia
espiritual da Província do Piauí, e que se pode ressaltar,
primeiro, estaria a Província do Piauí, por sua elite política,
ciente das realidades econômicas distintas entre Piauí e as
recém dioceses de Cuiabá e Goiás, estando seus argumentos,
a todo tempo, indissociáveis desta realidade, e, justamente
por deterem este conhecimento, insistiram na criação de um
bispado que atendesse ao núcleo populacional. Minorando
a questão econômica, detém-se as suas necessidades sociais
básicas, oriundas da organização social a partir do matrimônio,
o que parece ser a hipótese mais acertada.
Segundo, outra possibilidade da escolha dos referenciais
discursivos tomados pelos representantes piauienses dar-se-ia
pelo total desconhecimento destes em relação às condições
econômicas das regiões de Goiás e Mato Grosso, o que,
antecipadamente, demonstra não ser verdadeiro, como a
documentação da época dá a entender.


7
Observando as dioceses criadas no Império, elencamos como motivos
práticos de ereção de um bispado: a pacificação (diplomacia)
e definição territorial, caso de São Pedro do Rio Grande do Sul
(1848) (SANTIROCCHI, 2015), e o dinamismo econômico, caso de
Diamantina (FERNANDES, 2005) e Fortaleza (REIS, 2005), dioceses
criadas em 1854; o que não excluem a demanda pastoral que, no geral,
era precária em todas as províncias.

76  João Vitor Araújo Sales • Marcelo de Sousa Neto


E, por fim, para os piauienses era indiferente a condição
econômica das províncias, já que se tratava de um tema de
caráter religioso, pouco importando a dinâmica financeira e
territorial, o que parece não ser provável quando se fala da
elite política do Império, pouco apta a diferenciar, pela própria
estrutura civil-eclesiástica, as fronteiras entre religião e Estado,
dado seu espírito regalista.
Dessas, para o presente trabalho, não interessa partir em
defesa de nenhuma. Cabe, no entanto, perceber a profunda
referenciação do discurso piauiense ao caso de Goiás e Cuiabá,
estabelecendo uma relação de imediata dedução, discurso este
que atravessou boa parte dos documentos produzidos sobre o
assunto ao longo do século XIX.
Uma vez aberto o precedente pelo Governo em criar
bispados para poucas almas, não demoraria até que as elites
do Piauí percebessem a oportunidade de se contrapor a lógica
utilitária do Governo, tomando pontos tangencias a seu favor,
como o número populacional, as distâncias e a burocracia e
ainda, o principal motivo, a autonomia para conceder dispensas
matrimoniais, isto é, sacramentar alianças familiares e políticas
fundamentais para a dinâmica social local.

Considerações finais: alteridade e discursos que se lançam no


tempo

Piauí e Maranhão, por todo o século XIX, defrontaram-


se no binômio dominação-autonomia em relação ao governo
espiritual da província do Piauí. As noções de alteridade,
preservadas nos documentos, indicam uma atitude reflexiva,
onde, em primeiro plano o bispado maranhense é demonizado,
face às necessidades piauienses, portanto, eleito o outro
negativo, de quem se busca libertar por sua ineficiência. Na
verdade, mesmo que eficiente fosse, acredita-se que outros

DESEJOS E RANCORES: OS DISCURSOS POR AUTONOMIA 77


ECLESIÁSTICA DA PROVÍNCIA DO PIAUÍ (1829-1838)
motivos seriam alegados para que se provincializa-se uma Igreja
local, pelo poder que isto lhes proporcionaria.
O sistema monárquico, pois, encarnado no bispado
do Maranhão, reforçou os sentimentos de impotência dos
piauienses, colocando-os numa ruminação rancorosa, fazendo-
os dependentes e passivos de uma sociedade estamental
(ANSART, 2004, p. 23), na medida que seus reclames não eram
ouvidos nas instâncias representativas.
Seguidamente, num movimento também reflexivo, lançam
inspirar-se positivamente em Cuiabá e Goiás, reconhecendo
nestas marcas de si mesmos, à medida que encontravam
pontos de contato, que lhes servissem de suporte para almejada
independência. Neste aspecto, indiretamente, buscaram forçar
um espelhamento entre a diocese do Maranhão e a diocese do
Rio de Janeiro que, através de seu “Reverendo” bispo, concedeu
gradual independência às antigas prelazias de Goiás e Mato
Grosso, até finalmente serem livres de sua jurisdição.
A conflituosa relação entre as Províncias do Piauí e
do Maranhão, especificamente em suas relações eclesiais
evidenciou-se, como colocado, numa perspectiva de figuração
do outro. Reflexivamente, os piauienses construíram seus ideais
de organização religiosa distante dos seus ditos opressores, os
maranhenses. Ao mesmo tempo, aspiravam uma condição
similar a Goiás e Cuiabá, num espelho “mágico”, que lhe
antecipa o futuro de realizações, tamanho deslumbre que a
autonomia religiosa lhes concederia ao serem, finalmente, em
tese, livres.
Observa-se, então, que a disputa que ocupou espaço
razoável das discussões políticas do Piauí, especialmente nos
palanques do Conselho Geral de Província e da Assembleia
Legislativa Provincial, além do Conselho de Governo da
Presidência, decorriam de antigas cicatrizes da rebeldia entre
aquele que detinha a jurisdição, e aquele que se inferiorizava

78  João Vitor Araújo Sales • Marcelo de Sousa Neto


por estar sendo subordinado por tanto tempo, enquanto
outros, de aparente condição semelhante, eram aparentemente
autônomos. O que se deixa perceber, é que a diocese do
Piauí, na ótica utilitarista do Governo Imperial em relação
à Igreja, não passou de uma quimera, como demonstrou a
própria a criação desta diocese ocorrer, apenas, após o fim
do regime monárquico, com a separação entre Igreja e Estado,
desencadeando não apenas o bispado do Piauí, como de vários
outros Estados da jovem República brasileira.

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Sessão, de 3 de janeiro de 1832. Códice nº 519.

PIAUÍ. APEPI. Atas de Registro do Conselho Geral de Província


do Piauí (CGPPI). 1825- 1831. f. 170. 17ª Sessão, de 20 de
dezembro de 1832. Códice nº 519.

PIAUÍ. APEPI. Atas de Registro da 28ª Sessão do Conselho


Geral de Província do Piauí, de 18 de janeiro de 1834. Atas do
Conselho Geral da Província do Piauí (CGPPI). 1825- 1831. f.
250 (verso). Códice nº 519.

82  João Vitor Araújo Sales • Marcelo de Sousa Neto


PIAUÍ. APEPI. Atas de Registro da 27ª Sessão do Conselho
Geral de Província do Piauí, de 10 de janeiro de 1833. Atas do
Conselho Geral da Província do Piauí (CGPPI). 1825- 1831. f.
187 (verso) - 188 (verso). Códice nº 519.

PIAUÍ. APEPI. Atas de Registro do Conselho Geral de


Presidência da Província do Piauí (CPPPI). 1829- 1831. Sala
do Poder Executivo. 20ª Sessão, de 16 de janeiro de 1832. f.
116 (verso)- 124 (frente). Discussão do parecer da Comissão
especial sobre a Representação do cidadão Firmino Valladão.
Códice 520 (ESTN. 05. Prat. 01.).

PIAUÍ. APEPI. Recebimento de Ofício. Acusa o Pároco da


freguesia do Senhor Bom Jesus do Gurguéia, Padre Lourenço
Candido Ribeiro de Brito ter celebrado casamentos entre
parentes, sem as necessárias dispensas de impedimento. Paço
Episcopal Diocesano do Maranhão (PEDMA). 20 de Abril de
1870.

PIAUÍ. APEPI. Sala do Poder Legislativo (ALEPI).1ª Legislatura


(1835-1837). Representação da Assembleia Legislativa da
Província do Piauí solicitando Assembleia Geral a ereção de
uma Prelazia na Província do Piauí separada do Bispado do
Maranhão. Caixa: 121. Avulso. 6 de setembro de 1838.

PIAUÍ. APEPI. Ata da 4ª Sessão do Conselho Geral de


Presidência da Província do Piauí (CPPPI), de 12 de junho de
1829. Sala do Poder Executivo. Atas do Conselho Geral da
Província do Piauí (1829- 1831). Códice nº 520.

DESEJOS E RANCORES: OS DISCURSOS POR AUTONOMIA 83


ECLESIÁSTICA DA PROVÍNCIA DO PIAUÍ (1829-1838)
A CATEQUESE PAROQUIAL E
FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA
ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO
PAULO (1860-1874)

Juarez José Tuchinski dos Anjos

Introdução

N
o decorrer do período imperial, no Brasil, duas
posições religiosas no âmbito católico foram
sendo claramente delineadas: a regalista e a
ultramontana.
A primeira, baseada na doutrina política do mesmo
nome, defendia “uma vinculação mais forte da Igreja local ao
poder do Estado, mediante maior independência em relação
à Santa Sé” (CAES, 2002, p. 81); ou em palavras simples, a
ingerência do poder temporal no espiritual. O regalismo, na
prática, foi reforçado pelo Padroado Régio, o acordo entre a
Coroa e a Santa Sé, segundo o qual, em troca da manutenção
financeira da instituição católica vir custeada pelos cofres
públicos, a nomeação dos bispos e a publicação das bulas

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA 85


ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874)
papais em território brasileiro, por sua vez, tornavam-se um
privilégio do Imperador. Isso, escreve Oliveira Lima, contribuiu
para que a Igreja fosse, “em muitos pontos, serva do Estado,
estando o clero sob sua alçada em matéria da doutrina e do
culto” (OLIVEIRA LIMA, 1986, p. 142).
O regalismo não apenas submetia a instituição eclesiástica,
mas, também, a doutrina religiosa aos seus interesses. Entendia
que esta deveria colaborar para a formação de súditos cordatos
e obedientes às leis e à autoridade, respeitadores dos direitos
alheios e cumpridores dos seus deveres. No regalismo brasileiro
houve, até mesmo, imbricações com o pensamento liberal – ao
menos, aquele tipo de liberalismo tópico (COSTA, 2007) que
era possível de ser praticado numa sociedade escravista –, de
modo que os regalistas e os adeptos do liberalismo político
conseguiram, até quase o fim da década de 1870 (decênio em
que essa aliança ficou seriamente estremecida por conta da
Questão Religiosa, em 1873), conciliar o que, para o Papa Pio
IX, em 1864, fora considerado impossível para si e para a própria
Igreja, a ponto de declarar como um erro grave o pensamento
corrente entre muitos (inclusive os políticos brasileiros!) que “o
Romano Pontífice pode e deve reconciliar-se e tornar-se amigo
do progresso, do liberalismo e da civilização moderna” (PIO IX,
1864, § X, n. 80).
Esse reacionarismo do Sumo Pontífice, por sinal, está
na base da outra posição religiosa que, manifestando-se
discretamente na década de 1840 nas Dioceses do Pará, com
D. Afonso Torres e de Mariana, com D. Antonio Viçoso (AZZI,
1992), ganharia um adepto de peso na década de 1850, na
diocese de S. Paulo, na pessoa de D. Antonio Joaquim de Melo
(WERNET, 1987) e, dali por diante, cada vez mais conquistaria
e requisitaria para si os bispos brasileiros: o catolicismo
ultramontano. Tal posição religiosa, embora só tenha chegado
ao Brasil no Segundo Reinado, era mais antiga e tinha suas raízes

86  Juarez José Tuchinski dos Anjos


mais imediatas em 1789, quando, após a Revolução Francesa,
marcada pela laicização do Estado e enfraquecimento da
autoridade temporal da Igreja na Europa, o Papado deu início
a um processo de reação antimoderna, através da consolidação
dessa doutrina restauradora e conservadora (MANOEL, 2004,
p. 10). As linhas gerais do projeto ultramontano, segundo Ivan
Manoel, eram as seguintes:

...na esfera intelectual, a rejeição à filosofia racionalista


e à ciência moderna; na política externa, a condenação à
liberal democracia burguesa e o concomitante reforço da
ideia monárquica; na política interna, o centralismo em
Roma e na pessoa do Papa e o reforço do episcopado;
na esfera socioeconômica, a condenação ao comunismo
e ao capitalismo e um indisfarçável saudosismo da
Idade Média (...); na esfera doutrinária, a retomada das
decisões fundamentais do Concílio de Trento (1545-1563),
em especial aquelas estabelecidas para o combate ao
protestantismo (...) (MANOEL, 2004, p. 11).

No Brasil, se bem que não rompesse de todo com o


regalismo – por força do mesmo padroado que sustentava com
o dinheiro público a Igreja e o Clero assim como da própria
Constituição, que fazia da religião católica a oficial, coisa que
nem os religiosos nem os regalistas colocavam em xeque –, o
projeto ultramontano, com base nas linhas gerais supracitadas,
mas também trabalhando em cima delas, opunha-se ao Estado
Regalista em, pelo menos, dois pontos fundamentais.
O primeiro ponto de oposição era a defesa que fazia
de uma maior liberdade de ação pastoral para os bispos, o
que implicava em poderem dirigir os assuntos espirituais de
acordo com as diretrizes de Roma, sem precisarem do placet
do Imperador ou de qualquer outro poder político local. Já o
segundo ponto entendia que a doutrina religiosa deveria ser
adequadamente ensinada de acordo com a ortodoxia teológica

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA 87


ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874)
do Concílio de Trento, por meio de manuais e catecismos
aprovados pelos bispos e pelo Papa e, principalmente, que o
ensino da doutrina religiosa deveria ter em mente, primeiro,
formar bons cristãos para somente como consequência disso
e desde que em nada se opusesse à fé e às diretrizes papais,
bons cidadãos (ANJOS, 2015). Para Riolando Azzi, com isso,
a Igreja passou a difundir, tanto na Europa como no Brasil,
duas ideias-força: por um lado a “superioridade do poder
espiritual sobre o poder temporal dos Estados Modernos e, por
outro, a universalidade desse poder ultrapassando as barreiras
nacionais” (AZZI, 2005, p. 399).
Diante desse quadro, não fica difícil perceber por que
tanto o regalismo quanto o ultramontanismo tinham em
grande conta a educação religiosa das novas gerações. Seria
por meio dela que alcançariam os seus objetivos de transmissão
de certos hábitos, condutas e comportamentos, garantindo a
submissão da população à lei e à autoridade (na ótica regalista)
ou a obediência à Roma e suas diretrizes, para a conformação
de uma sociedade cristã católica presidida pela autoridade
universal da Igreja (ótica ultramontana).
Porém, na disputa que aí se instalou no Brasil, o Estado
Regalista possuía uma inegável vantagem: a escola pública
primária, na qual, segundo a lei de 15 de outubro de 1827
(como se sabe, a única lei geral acerca da instrução elementar
sancionada no Império, mas que tornou-se parâmetro
para todas as províncias quando, a partir de 1834, ficaram
incumbidas deste nível de ensino por efeito do Ato Adicional),
uma das matérias ensinadas era “a doutrina da religião católica
e apostólica romana, proporcionados à compreensão dos
meninos” (BRASIL, 1827). Logicamente, ensinada com um
acento nos interesses regalistas. Tanto que um dos manuais
mais utilizados para esta educação religiosa estatal foi o
Catecismo de Montpellier, obra condenada por Roma desde 1721

88  Juarez José Tuchinski dos Anjos


por conter vestígios da teologia jansenista em sua exposição
da doutrina, mas usada sem reservas no Brasil desde as
Reformas Pombalinas e mantida em várias províncias após a
Independência, justamente, por fazer a intransigente defesa da
autoridade terrena sobre a espiritual (ANJOS, 2016).
Já aos bispos reformadores, pelo fato de no Brasil,
como já acontecia em várias partes da Europa, não lhes ser
facultado vigiar e inspecionar o ensino religioso dado nas
escolas públicas – outra coisa que na opinião de Pio IX era um
erro igualmente condenável do século (PIO IX, 1864, §VI, n.
45) – três foram as alternativas que encontraram: 1) Redigir
catecismos que pudessem ser adotados pelo governo das
províncias sob jurisdição de cada diocese e, assim, fossem
aos poucos substituindo o Catecismo de Montpellier e outros
considerados heterodoxos (AZZI, 1977); 2) Incentivar que as
famílias, na pessoa do pai e da mãe, dessem elas mesmas essa
educação servindo-se de tais catecismos ortodoxos e, 3) na
impossibilidade de a família fazê-lo ou mesmo para auxiliá-
la, que os padres – conformando-se ao que já prescrevera o
Concílio de Trento e andava negligenciado na maior parte
do Brasil – reunissem as crianças na igreja da paróquia e, de
novo valendo-se do impresso escrito pelos diocesanos, dessem
aos meninos e meninas a educação religiosa, de orientação
ultramontana, desejada. Essa catequese paroquial, aliás,
teria um objetivo em especial: preparar mais intensamente as
crianças para a recepção da primeira comunhão solene, outra
inovação ultramontana que aos poucos – mas dependente da
catequese para realizar-se a contento – foi sendo implantada
no Império para o incremento da espiritualidade sacramental e
devocional que o catolicismo reformado trazia consigo.
Se, para lermos e interrogarmos esses fenômenos
históricos até aqui delineados recorrermos aos conceitos de
estratégia e tática formulados por Michel de Certeau (1998),

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA 89


ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874)
segundo os quais a estratégia é a arte do forte, que “postula um
lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base
de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de
alvos ou ameaças” (CERTEAU, 1998, p. 99), enquanto que a
tática é a arte do fraco, “a ação calculada que é determinada
pela ausência de um próprio (...), [que] tem que utilizar,
vigilante, as falhas que as conjunturas vão abrindo na vigilância
do poder proprietário (...) cria ali surpresas (...) é astúcia”
(CERTEAU, 1998, p. 100-101), torna-se possível afirmar que
o Regalismo estava num lugar de estratégia, enquanto que os
bispos ultramontanos – apesar de todo respeito e autoridade
que seu “lugar” de prelados, em tese lhes concedia (desde que
alinhados ao regalismo) – estavam num lugar de tática.
Ora, como lembra-nos o próprio Certeau, é o lugar de
enunciação que “permite algumas coisas, torna possível e
proíbe outras” (CERTEAU, 1982, p. 77). O regalismo garantia
para si, em matéria de educação e por força do seu lugar estatal,
um importante canal na sociedade brasileira: a escola pública
que, apesar dos conhecidos problemas que a acompanhavam,
era a instituição à qual o Estado escolheu delegar a formação
das gerações mais jovens e dentro da qual lhes dava, também, o
ensino religioso que julgava o mais adequado, independente da
ação direta da Igreja, já que ali, cabia aos professores ministrar
tal instrução. Já os bispos ultramontanos, nesse momento, não
tinham para si e seu projeto um lugar definido, mas possuíam
condições de conquistarem-no dentro das famílias e dentro do
espaço físico das próprias igrejas (as mesmas que eram mantidas
e financiadas ou pelas irmandades leigas – outra expressão do
catolicismo nacional – ou pelos cofres provinciais e gerais),
desde que trabalhassem com a “astúcia” em seu objetivo.
Desse modo, se o Estado regalista lançava mão de uma
eficiente estratégia educativa, (a escolarização) os ultramontanos
souberam, por dentro do próprio Estado e da sociedade por

90  Juarez José Tuchinski dos Anjos


ele presidida, criar as suas táticas educativas. Mais ainda: antes
de poderem fazer o investimento maciço na abertura de
escolas e colégios confessionais (fenômeno já bem conhecido
e pesquisado pela historiografia, mas que só a partir da
década de 1880 seria larga e homogeneamente empregado na
reforma católica) e diante da crescente impossibilidade de uma
“cristianização” das escolas públicas, fizeram da catequese na
família e na Igreja a sua tática por excelência para a educação das
crianças com vistas à consolidação do projeto ultramontano;
projeto que passava tanto pela formação religiosa almejando a
recepção dos sacramentos como pelo intuito de com ela formar
católicos fiéis e obedientes à Igreja (e somente por meio dela,
ao Estado), para que se tornassem os esteios de uma sociedade
cristianizada, em contraponto àquela de caráter regalista e
liberal, experimentada no Brasil durante o período imperial.
Dada a problemática em tela, o objetivo deste capítulo
é identificar como essa tática educativa foi concebida por dois
prelados em particular – D. Antonio Joaquim de Melo e D.
Lino Deodato Rodrigues de Carvalho – ambos, dois dos bispos
da diocese de S. Paulo no período Imperial1. Embora os seus
governos diocesanos estejam situados, no primeiro caso, entre
1851 a 1861 e no segundo, de 1873 a 1894, o recorte escolhido
para este estudo insere-se no arco temporal de 1860 a 1874.
A primeira baliza cronológica foi escolhida por ser a data na
qual foi publicada a Exposição da Doutrina Cristã para uso dos Fiéis
da Diocese de S. Paulo, o “Catecismo da Diocese”2, escrito por D.


1
No interregno dos dois bispados, governou a mesma Diocese D.
Sebastião Pinto do Rêgo. Porém, em matéria de catequese, parece
ter se limitado a manter o que fora introduzido por seu antecessor,
motivo pelo qual seu governo episcopal não será aqui analisado.
Há controvérsias se era regalista ou ultramontano. Para algumas
informações a seu respeito ver Anjos (2014a).

2
Utilizarei preferencialmente ao longo do trabalho o nome “Catecismo

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA 91


ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874)
Antonio Joaquim de Melo e precedido de uma Carta Pastoral
que o apresentava e recomendava aos fiéis. A segunda balizava
remete ao ano em que uma nova edição do mesmo impresso
foi realizada e com ela, publicada uma nova Instrução Pastoral,
agora de lavra de D. Lino Deodato Rodrigues de Carvalho,
também apresentando o “Catecismo da Diocese” ao clero e às
famílias.
As fontes que escolhi interrogar são, justamente, essas
duas cartas pastorais3, nas quais ambos os titulares da Sé
Paulipolitana discorrem sobre o papel da catequese na Igreja
e na sociedade, seus destinatários e agentes. Note-se que tais
documentos são escritos públicos, onde, de novo, o lugar de
enunciação nem sempre permitiu aos bispos que dissessem
tudo o que pensavam e nem tecessem com o vigor que talvez
desejassem as críticas à realidade social que intentavam
reformar. Mas esse lugar também lhes tornou possível que, ao
fazerem uso do seu múnus magisterial – de ensinar a doutrina
católica da qual o Tridentino os considerava fiéis depositários
e dispensadores – tivessem condições de delinear, senão uma
estratégia educativa – outra coisa que o lugar lhes proibia – ao
menos, as linhas gerais da tática educativa pela qual procurariam,
por dentro da família e por dentro da própria Igreja financiada

da Diocese”, por ser com o qual ficou mais conhecido e referenciado


na época.

3
A primeira Pastoral foi escrita em 1859 e publicada junto do Catecismo
da Diocese em 1860. A versão aqui consultada obra integra o acervo do
Museu Republicano de Itu-SP. A segunda pastoral, também chamada
de “Instrução”, foi redigida em 1874. A versão aqui utilizada é a que
veio publicada no jornal o Apostolo, da Diocese do Rio de Janeiro,
em 1875, disponível no acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional. Para a demarcação cronológica do trabalho considerei as
datas da primeira publicação das fontes (1860-1874), mas, na citação
da Pastoral de D. Lino, indicarei sempre o ano de 1875, que é o da
versão a que tive acesso.

92  Juarez José Tuchinski dos Anjos


pelo Estado, trabalhar em prol da implantação do projeto
ultramontano.
O capítulo está dividido em duas partes. Na primeira,
apresento brevemente D. Antonio Joaquim de Melo e D. Lino
Deodato Rodrigues de Carvalho, com suas atuações pastorais,
dando especial ênfase às preocupações com a catequese por
eles manifestadas, conforme traçadas pela historiografia que
tratou de suas iniciativas reformadoras. Na segunda parte,
procuro identificar e compreender os elementos de que se
compunha a tática que desenvolveram da catequese como meio
de educação da criança com vistas ao alcance de seus intentos
reformadores e ultramontanos. Ao final, encerro com breves
considerações, a modo de conclusão.

D. Antonio e D. Lino: Dois Bispos Reformadores e a Catequese


na Diocese de S. Paulo

No começo da segunda metade do Oitocentos, conforme


identificou Riolando Azzi (2005), o estado espiritual da
Diocese de S. Paulo era considerado precário, tanto no que
dizia respeito à conduta religiosa da população quanto do
clero. Após quase uma década sem a presença de um bispo,
quando foi anunciada a eleição do primeiro paulista a ocupar
esse cargo, havia grandes expectativas de realização de uma
reforma eclesial, mas nas estruturas do catolicismo regalista
imperial. A reforma veio, porém de acordo com os princípios
ultramontanos, através de D. Antonio Joaquim de Melo e,
posteriormente, pela atuação de D. Lino Deodato Rodrigues
de Carvalho.
D. Antonio Joaquim de Melo (1791-1861), que governou
o bispado entre 1851 e 1861, era natural de Itu. Lá, segundo
Augustin Wernet (1987), apesar de viver entre dois grupos
de padres distintos nas práticas espirituais – os “Padres do

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA 93


ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874)
Patrocínio”, dedicados à moral e a penitência e o clero secular
da Vila, majoritariamente regalista – tomou contato com o
pensamento ultramontano. Durante a Revolução Liberal de
1842, ficou ao lado do governo, defendendo a submissão da
população ao Imperador, o que teria pesado mais tarde para
que D. Pedro II o escolhesse como bispo da diocese de S. Paulo.
Ao assumir a mitra, o novo bispo, cuja circunscrição à
época abrangia as Províncias de S. Paulo, Paraná e a parte sul
de Minas Gerais, tinha diante de si um clero bastante similar
ao que se encontrava pelo Brasil afora, conforme descrito por
José Murilo de Carvalho, envolvido “em negócios, comprando
fazendas e escravos, vivendo em concubinato e participando
ativamente da política” (CARVALHO, 2003, p. 182). O povo, o
rebanho que ele iria apascentar, não ia lá muito longe do perfil
moral dos pastores, a julgar pelo que disse o próprio bispo na
primeira de suas pastorais:

Poucos procuram os interesses da vida eterna. Ocupados


só com o que é do mundo, entregues a toda leitura
danosa e proibida, ninguém estuda, ninguém medita em
Jesus Crucificado. Aqui se vive contentes como aqueles
antediluvianos, sobre quem caiu a terrível inundação da
ira de Deus (MELO apud WERNET, 1987, p. 100).

Dada a situação descrita e a visão eclesial de que era


dotado, ao longo da década em que esteve à frente da Diocese
de S. Paulo, o prelado paulista lançou as bases do projeto
ultramontano. O alvo principal de sua ação foi a renovação
do clero, pela criação do Seminário Episcopal, no qual seriam
preparados padres de acordo com as novas diretrizes (WERNET,
2005, p. 132), já que dentro dos princípios romanizadores, era
com a ajuda deles que se exerceria o pastoreio sobre o povo.
Outro ponto de investimento foram as Visitas Pastorais, por
meio das quais o bispo ia, ele mesmo, apresentando ao clero

94  Juarez José Tuchinski dos Anjos


já existente e aos fiéis o novo modelo de vida religiosa que
deveriam assimilar. Enfrentou muitas resistências por parte dos
regalistas paulistas, falecendo em 1861, na mesma cidade onde
nasceu.
O outro bispo reformador da Diocese de S. Paulo foi D.
Lino Deodato Rodrigues de Carvalho (1826-1894). Nordestino
de Russas (Ceará), formado pelo Seminário de Olinda, foi
introduzido no espírito ultramontano por D. Luís Antonio dos
Santos, bispo do Ceará, que realizava reformas romanizadoras
naquela diocese. Eleito bispo em 1871, assumiu o sólio
paulipolitano em 1873, exercendo o múnus pastoral até sua
morte, na cidade de Aparecida, em 1894. De acordo com Maria
Aparecida Gaeta, D. Lino Deodato consolidou as reformas
iniciadas por D. Antonio Joaquim de Melo, ampliando-as com
a vinda

de ordens religiosas europeias responsáveis pela instalação


de escolas, orfanatos, hospitais e creches; a organização
de Associações Católicas promotoras de devoções
ultramontanas; a instalação de uma imprensa católica
divulgadora dos princípios doutrinários; a instituição
de um partido católico e a nomeação de um sucessor
ultramontano. (GAETA, 1991, p. 337).

Tanto D. Antonio quanto D. Lino entendiam que, se o


Seminário Episcopal seria o remédio para melhorar o estado
moral do clero, a cura para a tibieza do povo era a educação
religiosa, por meio da catequese a ser dada pelos padres e pela
família.
D. Antonio Joaquim de Melo, durante as visitas pastorais,
lembrava pessoalmente aos padres e pais de família o que já
vinha lhes cobrando em suas pastorais: “ensinar o catecismo
aos meninos e aos escravos” (WERNET, 1987, p. 136). O mesmo
foi feito por D. Lino Deodato quando peregrinou pela diocese,

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA 95


ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874)
visitando até mesmo regiões que não puderam ser percorridas
por D. Antonio, como era o caso da Província do Paraná, onde
permaneceu seis meses durante os anos de 1881-1882 (ANJOS,
2014a). Segundo Maria Aparecida Gaeta, D. Lino “empenhou-
se permanentemente no ensino religioso voltado a infância de
forma efetiva” (GAETA, 1991, p. 130) ao mesmo tempo em
que “solicitava aos sacerdotes, de forma bastante incisiva, a
reunião das crianças por dois dias da semana” (GAETA, 1991,
p. 131) bem como os chefes de família sobre a necessidade de
sujeitarem-se a essa obrigação (GAETA, 1991, p. 130).
Na década de 1850, porém, parecem ter sido poucos os
que atenderam ao pedido de D. Antonio Joaquim de Melo.
Entre estes, estavam os capuchinhos de Sabóia, religiosos
europeus a quem foi incumbida a direção do Seminário
Episcopal. Foram eles os responsáveis pelas primeiras aulas de
catecismo dadas de acordo com o paradigma ultramontano da
catequese paroquial. (AZZI, 2005). Já durante o episcopado de
D. Lino Deodato, apesar das resistências ainda continuarem,
essa prática parece ter estado mais disseminada, como atesta
a popularização da Primeira Comunhão Solene, que tinha
como requisito para sua realização, a frequência à catequese
paroquial (AZZI, 2005) ou familiar.
Um passo decisivo para que aos poucos clero e fiéis
fossem assimilando a prática da catequese como meio de
educar as novas gerações na fé, foi sem dúvida, a publicação
do “Catecismo da Diocese” em 1860, escrito pelo próprio D.
Antonio Joaquim de Melo. Esse catecismo tornou-se o verdadeiro
elo de unificação dessa prática educativa, especialmente
quando, em 1874, “D. Lino reconheceu a urgente necessidade
de revitalizar um ensino religioso unívoco e, por isso, logo
aprovou com ligeiras modificações as reedições do catecismo
de D. Antonio Joaquim de Melo” (GAETA, 1991, p. 130). Para
além da catequese e do que dela era esperado, o gesto de sua

96  Juarez José Tuchinski dos Anjos


reimpressão por D. Lino parece indicar a continuidade do
catolicismo ultramontano na Diocese, conforme implantado
pelo antecessor. Mas, afinal, como ambos, assim unidos na
ideia e pensamento, concebiam e delineavam essa prática
educativa, ou, como a temos chamado, tática de educação da
criança? Para obter respostas, interroguemos as pastorais por
eles escritas quando da publicação (1860) e reedição (1874) do
Catecismo da Diocese.

A catequese como tática educativa na Diocese de S. Paulo:


elementos configuradores

D. Antonio Joaquim de Melo e D. Lino Deodato Rodrigues


de Carvalho produziram um discurso sobre a catequese
pautado em três elementos capitais: o papel conferido a ela
e à doutrina religiosa que deveria transmitir à sociedade
oitocentista e à família; os destinatários desse ensino – as crianças
no tempo da infância; e os agentes com os quais contavam
para sua efetivação, padres e pais de família. Sobre cada um
desses elementos produziram reflexões e considerações que,
em conjunto, iam configurando a catequese enquanto tática
educativa ultramontana na Diocese de S. Paulo.

O papel da catequese e da doutrina por ela transmitida

Ao falar sobre o papel da catequese enquanto ensino e


transmissão da doutrina cristã católica às novas gerações, os
bispos de S. Paulo afirmavam vê-la como capaz de fornecer as
bases tanto para a sociedade como para a família, consoante
escrevia aos diocesanos D. Lino Deodato: “A simples razão e
experiência nos convencem, por sua vez, da necessidade dessa
primeira instrução e de quanto ela concorre para a verdadeira
felicidade doméstica e pública” (CARVALHO, 1875, p. 1). Ora,

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA 97


ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874)
em que medida uma prática eminentemente eclesiástica e, de
acordo com a proposta ultramontana, desenvolvida no interior
da igreja e na família para um reforço intra ecclesia, poderia
garantir a “felicidade” doméstica e pública? Deixemos que D.
Lino nos exponha as razões que o levavam a ter tal opinião:

Com efeito, a nossa religião vem de Deus, daquele que


disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida (João 14,6) e de
quem se irradia a verdadeira luz que ilumina a todo homem
que vem neste mundo. A religião, portanto, é não somente
o farol, a luz esplendente que dirige com segurança
nossos passos na carreira da vida; o bálsamo reparador
que suaviza as mágoas do coração, preserva a ciência
de corromper-se, santifica e faz convergir para o bem
as diferentes manifestações da atividade humana, mas
também e muito principalmente, o apoio firmíssimo, a
base inconcussa sobre a qual descansa todo edifício da
ordem moral. (CARVALHO, 1875, p. 1).

A força da doutrina que a catequese ensinaria aos fiéis


e a “felicidade” que traria a eles e à sociedade nasceria da
própria religião católica, uma vez que esta não estava ligada a
nenhum poder deste mundo, mas vinha do próprio Deus, o que
a tornava na opinião do prelado a única luz capaz de iluminar
a humanidade. Essa retórica acerca da dimensão sobrenatural
da instituição foi bastante usada no século 19 para legitimá-
la diante de outras instâncias sociais. Na Europa, com cujos
problemas os bispos ultramontanos brasileiros indiretamente
dialogavam em decorrência do seu desejo de sintonia pastoral
com Pio IX, ela visava demonstrar a soberania da Igreja em face
de países que viviam o paulatino processo de laicização, como
a Itália Unificada e a França. No Brasil, era a forma pela qual
os bispos, diante do Estado Regalista e das ingerências que
o poder temporal realizava no campo espiritual, agitavam-se
para evidenciar a autonomia e supremacia do poder de que eles
eram os representantes mais imediatos.

98  Juarez José Tuchinski dos Anjos


Em decorrência disso é que a religião ofereceria solidez
tanto para a condução individual – “luz esplendente que dirige
com segurança nossos passos na carreira da vida; o bálsamo
reparador que suaviza as mágoas do coração” – quanto para o
próprio corpo social, na medida em que seria, principalmente,
“o apoio firmíssimo, a base inconcussa sobre a qual descansa
todo edifício da ordem moral”. Em outras palavras: informaria
o correto agir humano (a moral), de que sociedade, Estado,
Igreja bem com outros entes sociais não poderiam prescindir
para mútuo benefício. Essa luz que emanava da religião serviria,
ainda, para iluminar a própria razão e a vida material, posto que
“preserva a ciência de corromper-se; e faz convergir-se para o
bem as diferentes manifestações da atividade humana”. Nessa
argumentação, ao submeter todas as coisas a Deus – inclusive o
saber, o conhecimento e a razão – as sujeitam à própria Igreja,
cujos bispos queriam ter a última palavra em todos os assuntos
que direta ou indiretamente tocassem na vida do seu rebanho,
assumindo para si o papel de guias e pastores por antonomásia
dos diocesanos a eles confiados. Note-se, entrementes, que não
se trata de uso regalista da religião, mas de supervalorização de
uma religião sob o firme controle da hierarquia ultramontana,
cujo lugar e sentido deveriam ser incutidos nos fieis pela própria
catequese.
O apelo sobre o impacto que a educação religiosa teria
na moral social era coisa já lembrada por D. Antonio Joaquim
de Melo, em 1860: “a experiência mostra, com efeito, todos os
dias que, se os costumes se pervertem, se a religião é desprezada,
combatida, a ignorância religiosa é a causa principal dessas
desordens...” (MELO, 1860, p. 2). Aqui, a retórica do bispo
trabalha num sentido diverso à de D. Lino: ao invés de acentuar
os benefícios da educação religiosa, destaca os problemas
que a sua falta pode acarretar à sociedade: a desordem da
perversão dos costumes, a falta de balizas para a ação e direção

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA 99


ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874)
da sociedade. D. Antonio, de fato, tendeu sempre a uma visão
mais pessimista dos seus fiéis, por conta da forte resistência
que enfrentou às suas reformas pastorais e que, segundo
Wernet (1987) o levaram a viver mais no interior do que na
capital do seu bispado. D. Lino, seja por estar escrevendo no
início do episcopado (lembremos que tomara posse apenas
um ano antes, em 1873), seja pela conjuntura mais favorável
– ao menos em nível nacional – para a romanização, acaba
enfatizando os benefícios e vantagens que a educação religiosa
pode trazer à sociedade.
Outra evidência da consciência aguda de que dirigia-se à
ovelhas rebeldes e que desprezavam não apenas sua voz, mas a
própria doutrina religiosa, lemos na sequência da Pastoral de
D. Antonio, para quem a ignorância religiosa não era privilégio
do povo (pobre), mas, também dos instruídos (a elite ilustrada
paulista): “e não se pense que essa ignorância se ache só no
povo: homens há, instruídos, hábeis nas ciências profanas,
tão estranhos ao mesmo tempo às ciências sagradas, que até
ignoram os primeiros elementos da religião, que se encontram
em todos os catecismos” (MELO, 1860, p. 2).
Seja por otimismo ou pessimismo pastoral, tanto D.
Antonio como D. Lino tinha clara a importância da catequese
enquanto prática educativa: ela tanto prepararia os fiéis para
viver melhor, de acordo com as diretrizes doutrinárias católicas
ultramontanas quanto enquadraria os mais tíbios a uma
nova relação com a religião e seus valores. Mas, para isso, o
investimento educativo teria de ser feito em uma parcela muito
particular da porção do povo de Deus a eles confiada: as
crianças, no tempo da infância.

100  Juarez José Tuchinski dos Anjos


A criança como destinatária privilegiada da catequese

Sabendo que não seria a escola – conquanto oficialmente


ligada à Igreja e tendo dentre suas matérias obrigatórias a
doutrina da religião do Estado – que transmitira com a eficácia
e a ortodoxia desejadas a educação que dissiparia a ignorância
religiosa; e ofereceria bases morais ultramontanas à sociedade,
tanto do povo quanto dos “homens instruídos”, D. Antonio
Joaquim de Melo exortava na sua pastoral de apresentação do
catecismo:

Convencido, pois, desta necessidade geral, pedimos


com instância aos reverendos vigários e padres com cura
d’almas, [que] considerem de novo, como um grave dever
a obrigação de ensinar e explicar a doutrina cristã a seus
fregueses, sobretudo, conforme a prescrição do já citado
Concílio de Trento (...) que reúnam na igreja para este fim
todos os meninos e meninas, que lhes for possível em dias
e horas determinadas (MELO, 1860, p. 3).

Uma vez mais emerge, nas entrelinhas, a resistência e


rebeldia do clero, que foram companheiras de D. Antonio no
seu trabalho pastoral à frente da Diocese de S. Paulo. Ao pedir
que seus sacerdotes “considerem de novo” o dever de ensinarem
a doutrina aos fiéis, ele tanto estava se remetendo a suas cartas
anteriores e visitas pastorais, nas quais esse apelo era reiterado;
como, também, à própria legislação eclesiástica em vigor no
Império – as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
– que, no seu título 3º § 6º, faziam recomendação muito
semelhante à do prelado paulitpolitano (CONSTITUIÇÕES,
1853). Resistências à parte, como dito anteriormente, era a
uma porção do povo de Deus em especial que deveria se voltar
essa atividade pastoral: os meninos e meninas.

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA 101


ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874)
Não deixa de ser curioso que a Igreja, que em matéria de
educação escolarizada ficaria famosa por sua firme recusa à
coeducação dos sexos, aqui, a estabeleça e recomende. De um
lado, isso é compreensível porque, se já seria improvável para D.
Antonio os sacerdotes paulistas cumprirem sua determinação
uma vez por semana, mais improvável ainda seria darem a
catequese em separado para meninos e meninas. Por outro
lado – e essa é a questão mais relevante – era uma forma de não
excluir, desde cedo, o público feminino da instrução religiosa.
Sabemos, em função de estudos anteriores realizados sobre as
concepções educativas do bispo em questão (ANJOS, 2014b)
que este, não sem alguma dramaticidade, considerava que as
mães católicas nem sempre cumpriam satisfatoriamente sua
função educativa, formando “mães iguais a si e que um dia se
tornarão piores” (MELO apud ANJOS, 2014b, p. 29). Assim,
esse toque de gênero já antecipa, no âmbito da catequese, o
que viria a ser uma das marcas do catolicismo ultramontano:
o especial cuidado com a educação religiosa feminina coisa
que, numa avaliação posterior feita desse movimento pela
historiografia, desembocaria na conhecida teoria dos círculos
concêntricos (cf. MANOEL, 1996) em que pela ação da mulher,
mãe e esposa, esperava-se a cristianização ampla da sociedade
como um todo.
Mas, falar em meninos e meninas implica, ainda, tocar
num ponto geracional importante: a educação dos futuros
cristãos como questão precoce, a ocorrer já no tempo da
infância. Talvez, com os adultos que considerava ignorantes
das coisas da religião (mesmo os das classes abastadas), D.
Antonio já não tivesse esperança de obter muitos resultados.
Mas, como o semeador que planta para que outros colham os
frutos do seu trabalho, ele e seus seguidores não poupariam
esforços na demarcação da infância como terreno fértil a ser
cultivado por meio da educação religiosa. Qual a razão dessa

102  Juarez José Tuchinski dos Anjos


preferência? D. Lino Deodato, refletindo sobre a missão
episcopal e sacerdotal de pregar a palavra de Deus, o esclarece:

Entre os sagrados deveres de um bispo e de seus


colaboradores, no exercício do cargo pastoral, em união
com a suprema cadeira apostólica, sobressai evidentemente
o de pregar a palavra de Deus aos fiéis, exortando-os à
prática das boas obras e fazendo-lhes calar no espírito os
preceitos e máximas sublimes da nossa Santa Religião; mas
é certo que o bom êxito de tão nobre quão difícil missão depende,
em grande parte, senão essencialmente, do ensino religioso da
infância, dessa primeira instrução que tão poderosamente [influi]
sobre os destinos da sociedade. Erudi illos, diz o Senhor no livro do
Eclesiástico, a pueritia illorum.” (CARVALHO, 1875, p. 1grifos
meus).

Nessa altura, D. Lino revela-nos estar, ao seu modo e


movido por objetivo específicos, imbuído da mesma crença
humanista e iluminista na educabilidade da infância, isto é,
de que esse tempo da vida humana é o mais apropriado para
o aprendizado, na medida em que é já, a partir dele, que se
forma o adulto a que se chegar, no futuro. Daí ele falar mais
uma vez na catequese como a primeira instrução – que dizer,
dada neste primeiro momento da vida – que teria força para
influir “poderosamente” nos destinos da sociedade. Invoca,
para sustentar essa crença, não a autoridade dos pedagogos
afamados que, antes dele, escreveram diversos tratados e
assuntos sobre essa questão essencial da pedagogia moderna;
recorre é a própria Escritura, cujo conteúdo queria ver sendo
ensinado aos pequenos. Cita um trecho do livro do Eclesiástico
(capítulo 7, versículo 23) que, em vulgata, pode ser traduzido
como “se tens filhos, educa-os!”. Afirma, indiretamente, não
somente a crença no poder da educação religiosa da infância,
como o dever que os adultos têm para com sua oferta aos
pequenos. Não por acaso, é sobre a responsabilidade desses

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA 103


ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874)
agentes educativos que recaíam, também, as reflexões desses
prelados ultramontanos com vistas à construção da sua tática
educativa, como veremos a seguir.

O clero e as famílias: agentes da catequese paroquial

O “Catecismo da Diocese”, tanto quando de sua


publicação original em 1860 quando de sua reedição em 1874,
trazia, subentendida, a intencionalidade de que fosse um
compêndio utilizado na educação religiosa onde quer que ela
ocorresse, incluso aí, a escola pública estatal. Entretanto, a
leitura das pastorais de D. Antonio e D. Lino não tardam em
revelar em quem depositavam suas verdadeiras esperanças do
uso do Catecismo e da prática efetiva da catequese infantil: o
clero secular e as famílias.
Os primeiros agentes que os bispos paulistas queriam
ver, efetivamente, envolvidos com a catequese das crianças,
eram os párocos. Numa visão de sociedade perfeita à moda
medieval – um dos paradigmas da eclesiologia ultramontana –
os sacerdotes eram os colaboradores imediatos do episcopado,
aos quais, por força da obediência prometida quando da
recepção do sacramento da Ordem, caberia cumprir as
determinações emanadas dos prelados. Na prática, já sabemos,
essa obediência era bem mais difícil de ser obtida, pelo menos,
nessas primeiras décadas de reforma religiosa católica nos
trópicos. Daí serem estes convocados, lembrados e instados
sobre deveres inerentes ao seu múnus sacerdotal, como o fez
no trecho a seguir D. Antonio Joaquim de Melo:

O principal dever dos bispos, segundo o Concílio de Trento


(...) sendo o de ensinar e pregar a doutrina de Nosso Senhor
Jesus Cristo, logo que a Divina Providência nos chamou
para a direção desta Diocese, começamos a preenchê-lo
segundo as nossas forças, pedindo ao mesmo tempo aos

104  Juarez José Tuchinski dos Anjos


nossos irmãos no sacerdócio [que] nos ajudassem na sua
parte para o desempenho de tão árduo quanto honroso
ministério (...) Foi igualmente este motivo que nos levou
a dar o regulamento obrigando os reverendos vigários a
ensinarem a doutrina cristã em suas respectivas freguesias
(MELO, 1860, p. 1)

Este mesmo apelo seria feito catorze anos depois,


por D. Lino Deodato. Mas, aqui, inclui novo ingrediente na
argumentação para o convencimento do clero, acrescentando
ser a catequese uma responsabilidade para com um grupo
geracional específico: a infância.

...a Igreja Católica, animada como sempre, do espírito do


seu divino fundador, recomenda aos pastores de almas,
depois do importante múnus da prédica (...) todo cuidado
e diligência para que não falte sob a jurisdição destes e do modo
que lhes for possível, o ensino à infância dos rudimentos da fé.
(CARVALHO, 1875, p. 1)

Essa relação clero/ infância, que por vezes parece natural


quando pensamos a Igreja na história da educação, em
momentos como o período da romanização do catolicismo no
Brasil, revela-nos quão socialmente construída ela é. Focando-
nos apenas nesse momento, flagramos o bispo paulista
difundindo um novo modelo de vida sacerdotal – mais piedosa,
ciosa dos deveres religiosos e, sobretudo, comprometida com
a educação das novas gerações. Comprometimento difícil de
ser alcançado se continuasse a vigorar o modelo regalista de
clero, em que as múltiplas ocupações consideradas mundanas
monopolizavam de tal modo o sacerdote que o impediam de
dedicar-se ao seu ministério. Mudança a ser obtida dentre outros
aspectos e, aqui, com ênfase nas relações entre gerações, pela
consciência da necessidade da instrução religiosa das crianças.

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA 105


ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874)
Entretanto, por saber das dificuldades de uma adesão
imediata do clero – ou para ampliar o alcance de seu desejo
missionário e educativo de difundir a catequese da infância na
sua Diocese – D. Lino também voltava seus rogos para os pais
e mães de família. A seu ver, a responsabilidade destes não era
menor que a do clero diocesano:

Resta, pois, que não só os reverendos párocos, mas


também os pais de família, os preceptores e mais
pessoas a quem incumbe o ensino e direção da infância
concorram de sua parte e do modo que lhes competir para
essa educação moral e religiosa, objeto da solicitude do
Homem Deus, que comprazia-se em chamar para si os
pequenos (...) propondo-os como o tipo mais perfeito
de humildade e candura, amparando-os contra o perigo
das seduções pela ameaça de penas severíssimas aos que
lhes dessem maus exemplos e finalmente declarando que
aceitaria como próprios o acolhimento ou desprezo de que
fossem objetos esses penhores tão caros ao seu dulcíssimo
coração (CARVALHO, 1875, p. 1)

Evocando a passagem bíblica na qual Jesus, o “Homem


Deus”, se encontrou e abençoou as crianças, dedicando-
lhes afeto e atenção, invoca aos pais de família bem como
preceptores e “mais pessoas a quem incumbe o ensino e
direção da infância” a não fazerem menos do que o Salvador,
dedicando-se igualmente, pela prática da catequese, a protegê-
los das maldades do mundo, a fim de contentar o “dulcíssimo
coração” (por sinal, devoção tipicamente ultramontana) do
Salvador. De novo, o bispo oscila entre o papel religioso e
moral da catequese, mas, já o sabemos, não por preocupar-se
com a produção do bom cidadão regalista, mas do cristão que,
por ser fiel aos ensinamentos da Igreja, aprende a viver bem
no mundo e pautar suas ações pelo evangelho e seus valores.
Sempre, não é demais repetir, sob a condução da hierarquia

106  Juarez José Tuchinski dos Anjos


alinhada ao Romano Pontífice e não aos poderes políticos
temporais.
Por fim, do cumprimento das responsabilidades na
educação religiosa da infância por meio da catequese familiar,
nasceria a transformação da própria família em uma espécie
de santuário doméstico, capaz de santificar os seus membros,
conformando-se a mais pura tradição patrística de um
Agostinho de Hipona e de um São João Crisóstomo, que viram
os pais e mães de família tanto como pastores espirituais
domésticos como diretores da infância a eles confiada pela
paternidade – mesmo que (o dizer em latim ao final do trecho
abaixo vai enfatizar) os filhos fossem, às vezes, um depósito
não esperado, mas que devia ser aceito e educado, visto ser
dom de Deus:

Regenerada pelo princípio religioso, diz um escritor, “a


família torna-se o santuário íntimo, onde reina a virtude
em toda a magia dos seus encantos, um recinto sagrado
onde se misturam as dedicações generosas e os prazeres
mais puros”. Daí a necessidade do ensino religioso no
recinto do lar doméstico, obrigação gravíssima diante
de Deus, segundo a doutrina dos livros santos. É a razão
porque Santo Agostinho, a águia dos Doutores, considera
os chefes de família espécie de pastores espirituais no que
respeita à missão no interior de suas casas. O mesmo
pensamento revela São João Crisóstomo, quando aos
diretores da infância quando fala do grande e precioso
depósito que lhes foi confiado – Magnum habetis
depositum puerus (CARVALHO, 1875, p. 1).

Em síntese, ao reclamarem o compromisso dos padres e


pais de família com a catequese paroquial e familiar, os bispos
paulistas anunciam com clareza o desejo de se fazerem presentes
em todos os espaços de formação religiosa da infância no seu
tempo, mas com a vantagem de também poderem chegar onde

A CATEQUESE PAROQUIAL E FAMILIAR COMO TÁTICA EDUCATIVA 107


ULTRAMONTANA NA DIOCESE DE SÃO PAULO (1860-1874)
queriam uma menor ingerência do Estado Regalista (a Igreja)
e onde este nem sempre podia, de fato, chegar (a família). Daí
a ênfase que deram à prática catequética nesses dois últimos
espaços, que eram, no primeiro caso, território de disputa e, no
segundo, de um quase monopólio espiritual da Igreja4.

Considerações finais

Ao longo deste capítulo, procuramos identificar como


os bispos da Diocese de S. Paulo conceberam a catequese
paroquial e familiar como tática educativa ultramontana, face
às estratégias educativas então vigentes do regalismo imperial.
A modo de conclusão pode-se afirmar que diante de um
cenário ainda desfavorável a uma reforma ampla e irrestrita –
que necessariamente precisaria, em algum momento, passar
também pela escolarização, como o confirmaria o posterior
investimento que o movimento ultramontano fez nessa
instituição educativa – os bispos de S. Paulo souberam valer-
se das brechas deixadas pelo Estado regalista em matéria
de educação. Elegeram, com isso, uma prática educativa,
senão abandonada, ao menos quase em desuso até então: a
catequese paroquial e familiar. Ao insistirem no papel que ela
teria na afirmação da Igreja como instituição autônoma, mas
necessária à sociedade e à moral; na centralidade das crianças
como destinatários dessa educação e no papel que teria de ser
assumido pelo clero e pais de família enquanto educadores, os
bispos paulistas, a exemplo de outros prelados ultramontanos,


4
Digo espiritual porque, mesmo as famílias sendo católicas, isso não
significava que permitissem a completa ingerência da Igreja e tampouco
do Estado em seus interesses pessoais. Num processo de lutas e
experiências de classe, que estudei anteriormente (ANJOS, 2015) ficou
bem claro o poder de filtro cultural e social que a instituição familiar
exercia naquele contexto.

108  Juarez José Tuchinski dos Anjos


procuraram, por meio da catequese, agir e influir dentro da
Igreja e da família, para a implementação da reforma eclesial
que queriam realizar.
Usavam, de fato, um lugar de tática – a “arte do fraco”
que precisava negociar e convencer mesmo os membros da
hierarquia, quiçá os pais de família a com eles colaborarem –
mas que, a médio prazo e de forma articulada, pode ter sido
um dos elementos que garantiram o êxito que o movimento
ultramontano veio a alcançar na supressão do catolicismo
regalista e na implantação de um catolicismo romanizado
no Brasil. Estudos posteriores, sem dúvida, podem vir a
dimensionar melhor o alcance dessa tática em sua efetiva
prática naquele e noutras dioceses, aqui detalhada a partir
da ação e proposições de dois expressivos propagadores da
reforma religiosa no Brasil, ao tempo do Império.

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112  Juarez José Tuchinski dos Anjos


AS ESCOLAS CONFESSIONAIS E AS
PRÁTICAS DE CATEQUESE/EDUCAÇÃO
DOS JESUÍTAS NO PIAUÍ

Rafaela da Costa Sousa Sampaio


Pedro Vilarinho Castelo Branco

O
período que se inicia nas últimas décadas do
século XIX e se estende pelo século XX é marcado
por inúmeras transformações no cotidiano.
Assim, o processo de urbanização e aproximação com o mundo
moderno alterava costumes tradicionais e apontava para a
adoção de novos comportamentos e sociabilidades.
Essas ideias, vindas da Europa e da América do Norte,
aportavam nas grandes cidades litorâneas do Brasil e, em
seguida, espraiavam-se em ritmos e intensidade diversa pelo
restante do país. O Piauí, historicamente mergulhado nas
sociabilidades rurais, vinculado aos modelos de pensamento e
às práticas oriundas do período colonial pecuarista, procurava
aproximar-se do mundo moderno e incorporar novas práticas,
mas o fazia dentro das condições materiais e culturais
disponíveis, daí porque as mudanças se deram em ritmo lento e
gradual (QUEIROZ, 2011).

AS ESCOLAS CONFESSIONAIS E AS PRÁTICAS DE 113


CATEQUESE /EDUCAÇÃO DOS JESUÍTAS NO PIAUÍ
Nesse contexto de mudanças, nem mesmo a Igreja
Católica ficaria imune. Pressionada interna e externamente,
a instituição procurou adaptar-se às novas realidades, que
ficaram prementes com a separação entre Igreja e Estado, depois
da Proclamação da República, em novembro de 1889. Diante
das contínuas pressões e críticas articuladas por pensadores
de matizes ideológicas diversas, como os liberais e uma gama
de homens ligados ao livre pensamento, a Igreja articulou-
se, formando uma trincheira em defesa da instituição e dos
princípios em que acreditava. O movimento ficou conhecido
como ultramontanismo,1 e ao tempo em que defendia a tradição
e a continuidade da Igreja Católica, promovia a articulação de
um modelo de vivência do catolicismo em conformidade com a
realidade do mundo moderno, cada vez mais burguês, urbano,
ligado a uma cultura escrita e ao capitalismo (LIMA, 2002, p.
65 -78).
A Proclamação da República e a posterior separação entre
Igreja e Estado no Brasil, levou os católicos a, necessariamente,
repensar sua estrutura institucional e criar estratégias para se
fazerem presentes de forma mais efetiva nas mais diferentes
regiões do país.
No Piauí, a nova política institucional proporcionou a
realização de um antigo sonho, qual seja a separação da Igreja
Católica do Piauí dos domínios do Maranhão e a consequente
concepção de Diocese do Piauí, o que acabou acontecendo
com a criação da nova diocese, em 1901, e a efetivação da


1
O catolicismo ultramontano é um modelo eclesial católico inspirado
na retomada dos princípios do Concílio de Trento, caracterizado pelo
centralismo institucional em Roma. Ganhou fôlego como uma reação
católica às ameaças que se faziam presentes no mundo ocidental pós-
revoluções burguesas à Igreja. Nesse sentido, a forma de vida católica
defendia a gestação de um novo fiel, emoldurado na neo-espiritualidade
tomista, depurado de suas crenças antigas, agora percebidas como
crendices e superstições.

114  Rafaela da Costa Sousa Sampaio • Pedro Vilarinho Castelo Branco


instalação da instância episcopal, com a chegada a Teresina do
primeiro Bispo, Dom Antônio Joaquim de Almeida, em 1906.
Neste artigo, buscaremos entender a relação entre a
reestruturação da Igreja Católica no Brasil e, particularmente,
no Piauí, e como as novas estratégias de ação desenvolvidas
pela referida instituição serviram de apoio para a construção
de vínculos mais consistentes entre a sociedade local e o mundo
moderno, particularmente no que se refere à instalação de
instituições de ensino.
Partimos do pressuposto de que a criação de instituições
escolares e a aproximação da sociedade com a cultura escrita é
condição sine qua non para acessar as sociabilidades e a cultura
moderna. Logo, concebemos que a oferta de educação formal a
homens e mulheres, desenvolvida pela Igreja Católica no Piauí,
no século XX, é parte meritória das estratégias de ação dessa
instituição, com o fito de consolidar suas posições na sociedade
local, além de marco na aproximação da sociedade com a vida
escolar, com a cultura escrita e com o mundo moderno.
Na segunda parte desse artigo, direcionaremos o
argumento para analisar o papel da Companhia de Jesus no
processo de divulgação da doutrina católica, e a instituição de
escolas confessionais, verificando como esse processo ocorreu
no Piauí.
Com a criação do Bispado, no início do século XX, foram
articuladas as primeiras ações educacionais direcionadas ao
público católico, a partir das escolas confessionais: Colégio
Sagrado Coração de Jesus, em Teresina, e Colégio Nossa
Senhora das Graças, em Parnaíba – instituições voltadas a
atender a demandas educacionais das elites do Piauí e voltadas à
clientela feminina; Colégio Diocesano e o Seminário Diocesano
– estes exclusivamente destinados a acolher as necessidades
de educação e formação eclesiástica, desta feita dirigidas ao
público masculino. A intenção era resgatar e ampliar a influência

AS ESCOLAS CONFESSIONAIS E AS PRÁTICAS DE 115


CATEQUESE /EDUCAÇÃO DOS JESUÍTAS NO PIAUÍ
da igreja na formação escolar, de modo que atuasse de forma
efetiva na propagação da educação e dos bons costumes, assim
como da fé católica.
As escolas confessionais seriam caracterizadas,
principalmente, pela ênfase dada ao ensino da religião e da
moral; pela rígida separação dos alunos por gênero, o que se
efetivaria com a criação de instituições educacionais específicas
para meninos e meninas; e, ainda, pelo enfoque primordial da
ideia de ordem, disciplina e respeito às autoridades constituídas.
Os colégios Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora
das Graças eram escolas dirigidas por freiras italianas recém-
chegadas ao Piauí, e tinham como objetivo instruir as moças,
ao tempo em que moldavam os comportamentos, criando
mulheres apegadas à religião, exemplos de moral e virtudes na
sociedade. O paradigma a ser seguido era o das próprias freiras
que estavam próximas e eram provas incontestes de abnegação,
virtudes e sacrifícios em nome de um ideal maior, que no caso
das alunas matriculadas na escola, seria, nomeadamente,
a criação dos futuros filhos e a vida conjugal. A elas estaria
confiada a missão divina de educar os filhos, e consolidar na
família e na sociedade os valores cristãos (CASTELO BRANCO,
2005, p. 72-75).
No Colégio Diocesano, cujo propósito era atender
ao público masculino, a ênfase das disciplinas curriculares
direcionava-se para o ensino de retórica, literatura, línguas
(alemão, francês e inglês), bem como de ciências naturais,
especialmente química, física, botânica, geologia, matemática
e história natural. Tratava-se de uma formação com perfil
nitidamente díspar do empregado na escola confessional
feminina. As diferenças no currículo apontam claramente para
distinções nas expectativas de formação escolar entre homens
e mulheres, pois para os homens de elite, eram prescritas
e reservadas formações que oportunizassem o alcance de

116  Rafaela da Costa Sousa Sampaio • Pedro Vilarinho Castelo Branco


maiores espaços na educação formal, chegando às faculdades
de direito, medicina e farmácia (O APÓSTOLO, 1908, p. 3).
O aprendizado voltado ao ensino de ciências e línguas
era complementado pela preocupação com a formação moral,
fundamentada nos princípios da religião católica. Como o
redator de O Apóstolo (1908, p.3) faz questão de enfatizar, no
Colégio Diocesano, o grande diferencial da educação praticada
na escola era a presença do ensino de ciências aliada ao ensino
de moral religiosa e o respeito às autoridades constituídas.
Consistia, pois, em formar cidadãos que respeitassem as
autoridades, fossem produtivos e úteis à sociedade, além de
bons cristãos.
O período de criação do Bispado e de invenção de
instituições confessionais de ensino no Piauí coincide com o
momento de intensificação dos embates entre os defensores
da Igreja Católica e os propagadores da proposta de laicização
acentuada e acelerada da sociedade. Estes eram homens
quase sempre ligados à maçonaria, os quais entendiam que a
desqualificação dos princípios e das instituições religiosas era
fundamental para romper com o passado, com o atraso, com
a influência das superstições, ao tempo em que se somavam
esforços para o incremento do progresso, da civilização e do
desenvolvimento. Esses homens viam a instalação de escolas
confessionais e a ampliação da influência da Igreja Católica na
sociedade como um mal que precisava ser combatido, e por
isso, deveriam evitar a sua propagação (QUEIROZ, 2011, p.
230 -276).
Isso posto, vale sobrelevar que as escolas confessionais
foram, no início do século XX, o centro das contendas entre a
Igreja e os planos dos maçons e dos livres-pensadores – grandes
responsáveis pela tentativa de exclusão da religião católica, bem
como das escolas confessionais da vida da sociedade. Nessa
conjuntura, a sociedade piauiense assistia atenta ao debate

AS ESCOLAS CONFESSIONAIS E AS PRÁTICAS DE 117


CATEQUESE /EDUCAÇÃO DOS JESUÍTAS NO PIAUÍ
entre as propostas educacionais da Igreja Católica e dos livres-
pensadores.
A propósito, Queiroz (2011) afirma que a sociedade foi
progressivamente demonstrando uma aceitação crescente do
ensino católico, evidenciando como a força da tradição, agora
repaginada com o verniz ultramontano, resistia aos ataques.

Em termos de atração sobre o alunado masculino, o


Colégio Diocesano São Francisco de Sales teve tanto êxito
quanto o Colégio das Irmãs. Entre 1913 e 1914, quase
todo o seu corpo docente era formado por religiosos,
com exceção de dois bacharéis em Direito e um médico.
Em 1913, seu diretor era o Cônego Cícero Nunes e, no
ano seguinte, era dirigido pelo Padre Constantino Boson.
Colégio exclusivamente masculino, aceitava alunos
internos, semi-internos e externos, para aulas de instrução
primária e secundária, esta com todas as matérias exigidas
para entrada nos cursos superiores da República. Em
1914, o estabelecimento estava situado na Praça Saraiva,
em prédio recém reformado. Segundo anúncio assinado
por um ex-aluno, muitos jovens acadêmicos haviam feito
lá os seus preparatórios. A instalação desses colégios e
o seu relativo sucesso em Teresina provocaram acerbas
reações dos anticlericais, propugnadores do ensino leigo
(QUEIROZ, 2011, p. 261-262).

Diante dessa realidade, podemos ratificar que a Igreja


Católica, de fato, era vitoriosa em seus objetivos de legitimação e
enraizamento na sociedade local. A escolha da formação escolar
como estratégia de atuação na sociedade foi fundamental no
processo de consolidação da religiosidade católica no território
piauiense. Dessa forma, deduzimos que o Colégio Diocesano
veio para ampliar significativamente os esforços da Igreja
Católica no sentido de disseminar a evangelização por meio de
uma educação de qualidade.

118  Rafaela da Costa Sousa Sampaio • Pedro Vilarinho Castelo Branco


O colégio Diocesano permaneceu sob a orientação dos
padres da Diocese do Piauí até os anos 1960, quando, a convite
do Bispo piauiense à época, D. Avelar Brandão Vilela, os
padres da Companhia de Jesus, mais conhecidos como jesuítas,
assumiram a direção e o comando dessa instituição de ensino
confessional.
Os jesuítas retornaram ao Piauí depois de um longo
período de ausência. A relação destes com o Brasil e o Piauí
tem suas raízes no que denominamos de América Portuguesa,
pois desde o século XVI, quando das primeiras movimentações
no sentido de os portugueses ocuparem as terras descobertas
por eles na América, a Companhia de Jesus já se fazia presente
com seus sacerdotes.
Durante o período colonial no Brasil, os jesuítas tinham
como principais ações planejadas e executadas, a catequese e
propagação da doutrina cristã, para além de ações no sentido
de ensinar os interessados a ler e escrever, ou seja, catequizar
e ensinar a língua portuguesa. Os soldados de Cristo foram
responsáveis pela criação da primeira rede de ensino no
país, uma execução do método de formação do homem.
Nesse período, detiveram uma expressiva presença no setor
educacional, nas áreas da colônia onde essa atividade se fazia
presente (PAIVA, 2000, p. 43-59).
A fim de realizar a ação missionária com menos riscos e
consolidar a conversão ao catolicismo, foram criadas as missões,
que eram localizadas no sertão, longe das áreas centrais de
colonização. Nesse ensejo, os primeiros grupos apareceram na
Bahia e depois, começaram a adentrar no sertão. No território
piauiense, após a morte de Domingos Afonso Mafrense, em
1711, as fazendas por ele legadas ao Colégio da Bahia passaram
a ser administradas pelos padres jesuítas do ciclo maranhense.
Por essa razão, os padres não tiveram espaço de
tempo para as atividades culturais e educacionais no Piauí.

AS ESCOLAS CONFESSIONAIS E AS PRÁTICAS DE 119


CATEQUESE /EDUCAÇÃO DOS JESUÍTAS NO PIAUÍ
Apenas em 1733, passaram a se preocupar com a educação
do povo e instalaram um estabelecimento de ensino que se
chamava Externato Hospício da Companhia de Jesus. Entretanto,
não funcionou devido às dificuldades encontradas no Piauí,
a exemplo de: pobreza do meio; dispersão demográfica dos
núcleos populacionais; as precárias condições de comunicação
e acesso da Capitania (BRITO, 1996).
Tais aspectos eram consequências da vida econômica,
político e social do estado, que se baseava na pecuária. Como
retrata Costa Filho (2006, p. 36-40),

[...] No Período Colonial, o ruralismo definiu o quadro


social, político e econômico do Piauí. O caráter rural da
sociedade foi uma resultante do processo de povoamento
colonial que se efetivou no século XVII, quando novos
grupos populacionais foram se distribuindo pelo território
antes ocupado pelos nativos. No século XVIII, a criação
e instalação de vilas e cidades não foi suficiente para
alterar a preferência dos habitantes pela zona rural. [...]
Esse isolamento contribuiu para definir um modo de
viver peculiar, em que a educação formal tinha pouca
relevância. O conhecimento para desempenho das
atividades necessárias à sobrevivência dispensava uma
educação escolarizada. Solidificou, também, a estrutura
econômica pré-capitalista, aprofundando a dependência
da população em relação à natureza e ao poder despótico
dos fazendeiros.

No Piauí, a tentativa de catequizar os índios nos primórdios


ocorreu da mesma forma que os jesuítas praticaram no estado
do Maranhão, em pequena escala, efetivada todos os dias,
momento em que os padres juntavam meninos e meninas, e
ensinavam-lhes as orações. Aos domingos, agrupavam adultos
e crianças, administravam sacramentos, celebravam missas e
distribuíam a comunhão. As pregações eram feitas à noite, em

120  Rafaela da Costa Sousa Sampaio • Pedro Vilarinho Castelo Branco


praça pública, com os temas clássicos: os mistérios da fé, os
mandamentos, os sacramentos (CHAVES, 2013).
Depois dos sermões, eram promovidas as confissões,
ao longo da madrugada. Durante o dia, além das missas,
celebravam batizados, crismas e casamentos. Com o intuito
de atingir as populações rarefeitas do interior, estabeleciam o
regime das desobrigas.2 Destarte, os padres da ordem jesuítica
que vieram ao Piauí pregavam o evangelho e ensinavam a
moral cristã nas fazendas e nos pequenos ajuntamentos
populacionais. Não obstante, nada mais podiam fazer, pois
a grande dispersão dos habitantes pelo imenso território não
permitia a fundação de colégios, daí porque não conseguiam
organizar os educandos em número suficiente para viabilizar
essa atividade (CHAVES, 2013).
Para Nunes (2007), uma das dificuldades encontradas
no território piauiense era a falta de sintonia entre os projetos
de colonização em curso no sertão, porquanto de um lado,
havia os colonos lusitanos e a constante ganância por terras e
pelo domínio de populações indígenas; de outro, a missão dos
jesuítas em salvar almas. Assim,

[...] Poucos meses depois da Descrição do Padre Carvalho,


o Padre Ascenso Gago também dá informações, e mais
contristadoras. Diz, como já vimos, que os povoadores
da Casa da Torre, “que mais zelam os seus gados que o
bem das almas”, iam conduzindo seus currais até o pé da
Serra de Ibiapaba, donde retiraram para o Parnaíba os
tapuias que, como o Padre Pedroso, vinha doutrinando.
Dificultavam os vaqueiros a ação catequética. Não
satisfeitos com tanta terra, já intentavam conquistar sítios


2
São denominadas de desobrigas, as ações dos sacerdotes católicos que
viajam por regiões distantes das suas paróquias, celebrando missas e
oferecendo a celebração de sacramentos, em síntese, desenvolvendo
trabalhos de catequese e assistência espiritual dos fiéis.

AS ESCOLAS CONFESSIONAIS E AS PRÁTICAS DE 121


CATEQUESE /EDUCAÇÃO DOS JESUÍTAS NO PIAUÍ
entre a Serra e o mar, e ocupados por índios pacificados,
perturbando a quietude da Missão. [...] E termina sua
Carta, desalentado e laconicamente: “Porém tudo se pode
crer dos que em este sertão tão distante, fora das justiças
e governadores, e tão esquecidos de Deus, vivem à lei da
vontade, sem obedecer a outra alguma, mais que a Casa
da Torre, de que dependem” (NUNES, 2007, p.105-106).

Em 1749, organizaram, no Distrito da Mocha, o Seminário


do Rio Parnaíba, que logo reuniu grande parte das povoações
sertanejas e os pais que, desejosos de instruir seus filhos,
contribuíram financeiramente para o sustento da instituição.
Todavia, as dificuldades ainda existiam devido às frequentes
lutas pela posse de terra e pela dominação indígena, o que
obrigou os jesuítas a se transferirem para Aldeias Altas, atual
cidade de Caxias, no Maranhão, deixando a capitania do Piauí
desprovida de qualquer atividade de ensino. Isso significou o
encerramento de qualquer atividade de caráter educacional
promovida pelos jesuítas nesse período da história, em solo
piauiense. Eles permaneceram na capitania até o ano de 1759,
quando, por alvará de D. José e interveniência do Marques
de Pombal, foram expulsos da Colônia Portuguesa e suas
atividades passaram ao controle do estado (BRITO, 1996).
O sucesso da Companhia de Jesus em toda a colônia
portuguesa chamou a atenção e provocou desconfianças na
coroa portuguesa, particularmente ao grupo capitaneado pelo
Marquês de Pombal, o que culminou na expulsão dos jesuítas.
A percepção de que os referidos padres tinham grandes riquezas
e poderosa influência, capaz de subverter a ordem pública
em Portugal e em suas colônias, motivou a ação de expulsão
dos jesuítas de todo o reino. No Piauí, todas as fazendas que
estavam sob os cuidados dos jesuítas foram confiscadas em
favor da Coroa.

122  Rafaela da Costa Sousa Sampaio • Pedro Vilarinho Castelo Branco


Em consonância com Diel (2017, p. 287-320), os jesuítas
foram expulsos das colônias portuguesas e espanholas, e
mesmo a Companhia foi extinta pelo Papa Clemente XIV, em
1773. Em 1814, após as guerras napoleônicas, o Papa Pio
VII resolveu recriar a Companhia de Jesus, e anos depois, a
instituição voltou a atuar na América Latina, retornando ao
Brasil em 1844, quando um grupo de padres jesuítas espanhóis
se instalou em Porto Alegre para atuar junto a migrantes
alemães estabelecidos na província do Rio Grande do Sul.
Na segunda metade do século XIX e na primeira década
do século XX, diferentes grupos de padres jesuítas foram se
instalando no Brasil, como o fizeram em 1910, quando um
grupo de sacerdotes de origem portuguesa se acomodou em
Salvador. Um traço comum a todos os retornos dos jesuítas
ao Brasil, na segunda metade do século XIX e início do século
XX, foi a presença de polêmicas e controvérsias em torno
desses regressos, as quais eram desenvolvidas precipuamente
por políticos e intelectuais de perfil liberal e anticlerical.
Uma segunda particularidade sobre esses retornos foi a
instalação de escolas confessionais, pois a título de exemplo,
podemos reiterar que os jesuítas instalaram, em seu retorno,
instituições de ensino como: o Colégio São Luís, em São Paulo,
especificamente em Itu (1867);o Colégio São Francisco Xavier,
em Recife, também em 1867; e o Colégio Antônio Vieira, em
1911, em Salvador, na Bahia (EDILECE, 2011, p. 2284-2294).
Outro elemento significativo acerca dos retornos de
jesuítas ao Brasil foi a aproximação com Bispos e padres de perfil
ultramontano. Para além das polêmicas e dos embates com os
liberais e anticlericais, os jesuítas foram, na primeira metade
do século XX, consolidando a reinstalação da Companhia de
Jesus no Brasil, muitas vezes ligadas ao trabalho do ensino e da
formação eclesiástica em seminários.

AS ESCOLAS CONFESSIONAIS E AS PRÁTICAS DE 123


CATEQUESE /EDUCAÇÃO DOS JESUÍTAS NO PIAUÍ
No Piauí, o regresso dos padres jesuítas ocorreu em 1960,
quase 200 anos após a sua expulsão pelo Marques de Pombal,
mas não retornaram como proprietários de imensas levas de
terra e milhares de cabeças de gado. Nessa ocasião, aceitaram
o convite do Bispo à época e passaram a administrar o Colégio
Diocesano, instalado na Praça Saraiva, atendendo, naquele
momento, apenas a alunos do sexo masculino.
Ademais, no Piauí, nos anos 1960, os padres
empreenderam uma prática educacional que procurava aliar a
boa formação teórica ao trabalho de catequese e evangelização.
Parte deles passou a se dedicar diretamente ao ensino e
alguns nomes ficaram gravados nas memórias dos alunos que
frequentaram a escola nos anos 1960 e 1970, sendo percebidos
como professores que realizavam um trabalho inovador.
Exempli gratia, podemos elencar: a fama de Padre Florêncio
como professor de química, com seu laboratório equipado com
instrumentos sofisticados para uma escola de ensino médio; as
aulas de geografia e história de Padre Hilário, que fazia com que
os alunos despertassem para a compreensão mais sofisticada
e complexa da realidade espaço-temporal em que viviam; as
aulas de física de Padre Angêlo Imperiali, que procurava aliar a
teoria à prática quando promovia aulas-passeio às instalações
da Companhia de Energia Elétrica do Piauí; ou, ainda, a
existência do Cine-clube, onde os alunos interessados na
sétima arte poderiam ter acesso a obras cinematográficas nem
sempre acessíveis em virtude do provincianismo e isolamento
em que Teresina se encontrava naquela temporalidade, e ainda
ser iniciado no aprendizado das técnicas de filmagem, edição e
produção cinematográfica, utilizando a tecnologia do super 8.
Em síntese, os jesuítas que atuaram no Piauí na segunda
metade do século XX aliaram a boa formação espiritual e o
conhecimento teológico com a sofisticação da cultura erudita,

124  Rafaela da Costa Sousa Sampaio • Pedro Vilarinho Castelo Branco


do conhecimento científico, com vistas à formação dos alunos
como homens, de forma integral.3
No entanto, faziam isso sem perder de vista o trabalho
de catequese, que era cuidadosamente desenvolvido com a
frequente participação do alunado em atos religiosos, como as
missas semanais; a constante oferta de acesso à confissão no
horário das missas; as muito bem cuidadas aulas de catecismo
e preparação à primeira eucaristia, onde um dos padres,
pessoalmente, fazia todo o trabalho de formação, utilizando
nesse labor catequético não só a palavra, mas instrumentos
audiovisuais para despertar o interesse e perpetuar na memória
das crianças as imagens apresentadas.
Outra perspectiva presente na formação que os padres
jesuítas dispensavam aos alunos da escola era a preocupação
na formação destes como cidadãos, o que pode ser mensurado
pelas práticas de disciplina; por certo culto à pátria, que se
traduzia no aprendizado de hinos patrióticos; na exigência
do perfilhamento semanal de todos os alunos, ao final do
horário das aulas, a fim de cantar o hino nacional, enquanto
solenemente a bandeira brasileira era hasteada.
Por sua vez, o Padre Diretor acompanhava todo o ritual
pessoalmente, dando exemplo de profundo respeito ao ato
cívico que era praticado: postava-se à frente dos alunos, em
situação de destaque, simbolicamente representando naquela
solenidade a autoridade e tomando posição de sentido e
respeito pelo ato e momento cívico.
Enfim, os jesuítas pareciam preocupar-se em demonstrar
o compromisso com a boa formação intelectual, ao tempo em


3
A visão dos padres jesuítas, como elaborada no texto, é muito presente
nas conversas exploratórias desenvolvidas pelos autores com ex-alunos
do Colégio Diocesano, no âmbito do Projeto de Pesquisa em curso
sobre a referida escola e a atuação dos padres jesuítas no Piauí, na
segunda metade do século XX.

AS ESCOLAS CONFESSIONAIS E AS PRÁTICAS DE 125


CATEQUESE /EDUCAÇÃO DOS JESUÍTAS NO PIAUÍ
que zelavam pela formação espiritual e religiosa dos alunos,
sem perder de vista os aspectos morais e cívicos que deveriam
se fazer presentes.
De acordo com o historiador Ronaldo José de Sousa, na
segunda metade do século XX, a Igreja Católica passou por um
processo dinâmico de reconfiguração de seus parâmetros, de
sua atuação e presença de fé no meio social. O marco inicial
desse processo foi o Concílio Vaticano II, entre os anos de 1962
e 1965, lançando as bases de atualização da igreja.
Nesse contexto, o fiel leigo passou a ser o elemento central
do período pós-concílio, onde a nova orientação da igreja trazia
consigo um enfoque inédito também na educação. No que diz
respeito às escolas confessionais, a missão educacional deveria
cultivar as faculdades intelectuais, mas igualmente desenvolver
a capacidade de julgar retamente e promover sentido e valores.
A presença da igreja na sociedade civil deveria manifestar-
se de modo particular, por meio da escola católica. Por
conseguinte, houve mudanças significativas nos projetos
educativos e administrativos dos estabelecimentos de ensino
católicos como, por exemplo, a introdução de escolas mistas,
que passaram atender a meninos e meninas; a adoção
da educação sexual; o atendimento e acompanhamento
psicológico; e a formação social e profissional.
Corroborando Rossa (1989), desde então, a identidade
da escola católica é algo que se vai construindo entre o real e
utópico: o real para indicar onde e como se está; e o utópico
indica para onde se caminha e o percurso do caminho. Logo,
a concepção da educação é constituída por um planejamento
de formação humana, aliás, um projeto para a sociedade. A
evangelização, na escola católica, assume o papel central na
formação educacional, tendo, em sua maioria, o uso do ensino
religioso iluminado por preceitos de evangelização cristã,
desenvolvendo-se de maneira interdisciplinar.

126  Rafaela da Costa Sousa Sampaio • Pedro Vilarinho Castelo Branco


As principais alterações pelas quais as escolas
confessionais passaram ao longo do século XX aludiam a
um ensino que evitava a massificação; que contava com um
quadro de profissionais qualificados; uma estrutura de serviços
bem equipada; pedagogia inspirada, com assistência religiosa
delicada e sutil, e caráter fortemente conservador; centrada
na manutenção do modelo familiar cristão, na obediência
às hierarquias, tanto familiar quanto escolar; o professor era
vislumbrado como autoridade maior em sala de aula, devido
à sua posição e ao fato de ser portador de conhecimentos,
enquanto o aluno, na condição de aprendiz, deveria ser
orientado e conduzido a práticas e vivências cristãs e cidadãs.
As escolas católicas no Brasil, no que diz respeito ao Direito
Canônico, pertencem a uma congregação religiosa e estão sob
a regência do Vaticano, orientadas pelo órgão denominado
Congregação para a Educação Católica. Cada escola possui o
projeto político-pedagógico com base filosófica da instituição.
No Piauí, o Colégio Diocesano, também conhecido como São
Francisco de Sales, desde 1960, segue a tradição jesuítica na
educação e no método pedagógico, respeitando a pedagogia
inaciana, que deve estar em sintonia com as orientações da
Igreja Católica para o trabalho no campo educacional.
Por cúmulo, depreendemos que as ações da Igreja Católica
no Piauí colaboram com a construção de uma educação à luz
da fé, circunstância que se reflete na organização social do Piauí
e de Teresina. A educação confessional, que no início do século
XX serviu de arma contra o liberalismo dos intelectuais livres-
pensadores, seguiu centúria adentro, guiando a formação de
várias gerações da sociedade a partir da evangelização, sempre
interligando a formação intelectual aos princípios religiosos e
à moral católica. Nesse período, o Colégio Diocesano (Colégio
São Francisco de Sales) passou por várias mudanças, mas sem
abrir mão dos valores e princípios católicos presentes no marco
referencial da escola, desde a sua fundação, em 1906.

AS ESCOLAS CONFESSIONAIS E AS PRÁTICAS DE 127


CATEQUESE /EDUCAÇÃO DOS JESUÍTAS NO PIAUÍ
O trabalho de formar a juventude é uma escolha da ordem
dos inacianos, desde os seus primórdios. Para Inácio de Loyola,
fundador da ordem, a convicção de que a conquista de pessoas
influentes seria o mais vantajoso para a difusão do evangelho
era acompanhada da ideia de que uma reforma radical na igreja
deveria começar pela juventude.
Os colégios jesuítas têm como objetivo preparar jovens
para a vida profissional, sendo atentos às regras, mediante
uma formação sólida e atualizada, bem como encaminhá-los à
liberdade, autodeterminação pessoal a serviço da sociedade e
da igreja. A educação e a instrução orientam-se no sentido de
elaboração de uma atitude de fé conscientemente cristã, com
desempenho na escola, em casa e na sociedade.
A Companhia de Jesus, de fato, ao trabalhar com
princípios e impondo respeito com autoridade, estabelece
uma plataforma de valores e fins sobre os quais a instituição
se sente livre para determinar o que é melhor no contexto em
que está inserida. Da mesma maneira parece ter procedido o
Colégio São Francisco de Sales, como uma instituição educativa
jesuítica que buscou formas de se fortalecer no mercado, sem,
contudo, abrir mão de seus valores, conciliando as diretrizes
educacionais que o Brasil instituiu ao longo do tempo, assim
como os princípios e valores presentes na pedagogia e na
característica inaciana.

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130  Rafaela da Costa Sousa Sampaio • Pedro Vilarinho Castelo Branco


ANTICLERICALISMO E AS
REPRESENTAÇÕES DA BEATA NA PROSA
FICCIONAL DE CLODOALDO FREITAS

Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira


Elizangela Barbosa Cardoso

INTRODUÇÃO

O
presente capítulo tem como objetivo analisar as
representações das beatas na crítica anticlerical
do literato e livre pensador Clodoaldo Freitas
em parte de sua prosa ficcional. Para tanto, apresenta-se o
processo de secularização do mundo moderno e a Questão
Religiosa articulando a formação educacional de Clodoaldo
Freitas a esses movimentos na década de 1870, em seguida,
parte-se para as análises das representações das beatas em
alguns de seus textos ficcionais.
No período Imperial (1822-1889), o catolicismo se
constituía como a única religião oficial do Império do Brasil,
seu clero era responsável pela educação, saúde, assistência
pública, registros paroquiais e, até meados do século
XIX, os padres exerciam funções civis em nome do Estado.

AS REPRESENTAÇÕES DA BEATA NA PROSA FICCIONAL 131


DE CLODOALDO FREITAS
Encarregavam-se da organização das listas de eleitores locais, de
convocações para eleições e cadastro de terras, além de serem
admitidos em todas as funções da magistratura, da Guarda-
Nacional e da Polícia, embora tais atividades seculares fossem
desaprovadas pelas dioceses e proibidas pelas Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) (MATTOSO, 1992,
p. 302).
No século XIX, a Igreja Católica no Brasil passou a
vivenciar movimentos que visavam sua reforma, os quais
salientavam a necessidade de moralizar seu clero. Tendo em
vista isso, o arcebispo da Bahia, Dom Romualdo Antônio
de Seixas, ainda na primeira metade do século, defendia a
reforma moral da sociedade brasileira, o fortalecimento dos
seminários diocesanos e a rigorosa seleção dos candidatos ao
sacerdócio. Ao longo de todo o século XIX, a Igreja se esforçou
para reformar a formação de seu clero, buscando voltá-lo mais
para as funções espirituais e menos para as funções mundanas
do Estado. Nesse ponto, de acordo com alguns bispos
tridentinos da primeira metade do século XIX, os seminários
deveriam “fazer do clero brasileiro um corpo instruído e sadio
– o exercício de sua missão espiritual devia suplantar suas
atividades políticas (MATTOSO, 1992, p. 311-314).
Neste ínterim, Clodoaldo Freitas, nascido em 1855
em Oeiras – cidade recém destronada do posto de capital
da Província do Piauí pela planejada cidade de Teresina –
e oriundo de famílias de elite da região, seria destinado à
carreira sacerdotal. Tendo esse objetivo em mente, seguiu
para a formação eclesial inicial no Seminário Menor das
Mercês, no Maranhão, que o habilitaria para a formação
superior de Teologia e Filosofia no Seminário Maior, que o
possibilitaria fazer parte do clero católico (CUNHA, 1924,
p. 30).
O jovem estudante Clodoaldo Freitas, então com
16 anos, direcionava todas as suas energias à sua carreira
eclesiástica. Junto ao pequeno rosário, presente de sua

132  Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira • Elisângela Barbosa Cardoso


devota mãe, rezava todas as noites antes de dormir. Fiel para
com os preceitos religiosos, não faltava com seus deveres no
seminário e confessava-se com regularidade, asseverando a
vocação sacerdotal que carregava dentro de si.
Todavia, em 1874, Clodoaldo desiste da carreira
sacerdotal para a qual se encaminhou, abandona o Seminário
Menor e matricula-se no Liceu Maranhense e Piauiense para
adentrar no curso superior de Ciências Jurídicas e Sociais de
Recife. Aprovado nos exames necessários para o ingresso nos
cursos superiores do Império, Clodoaldo inicia seus estudos na
Faculdade de Direito de Recife, na Província de Pernambuco,
em 1876. Seu abandono da carreira eclesiástica é justificado –
décadas após sua saída – como sendo fruto de uma incipiente
consciência anticlerical, realizada dentro do seminário. Na
sua epifania anticlerical, o olhar que buscava um corpo sadio,
útil, portanto, moderno, reprovava a figura do padre com
suas feições adiposas que simbolizavam a inutilidade do clero
católico. Representação que fazia do clérigo à semelhança
da recorrente figura literária nos textos de teor anticlerical
(SANTOS, 2010, p. 37).
Passando pelo interior da igreja, junto ao altar que
fica à porta que vai para a sacristia, olhei para os
santos contritamente, e meu olhar foi parar num frade
gordo, baixo, de chapéu largo, um ridículo espécime da
calungagem que emporcalha os altares romanos, e não
pude conter um riso. Este riso foi como um raio de luz que se
abrasasse diante de mim. Comecei a pensar nos problemas
divinos e a perguntar a mim mesmo porque figuravam nos
altares, recebendo nosso culto, esses pedaços de madeira
sem arte e sem beleza. A intitulada impiedade que devia,
mais tarde, me separar completamente da igreja romana e
de toda comunhão religiosa, libertando-me radicalmente
da cegueira da fé, começou a invadir-me como o sol
triunfal invade o espaço obscurecido ao despontar da
manhã. A vida no seminário, em contato imediato com
a hipocrisia e a igreja, me aparecia agora sob outro
aspecto, despertando-me desse sono invernal em que me

AS REPRESENTAÇÕES DA BEATA NA PROSA FICCIONAL 133


DE CLODOALDO FREITAS
engolfaram a educação e a ignorância. Deixei de rezar o
meu terço noturno e acabei de vez com todas as práticas
religiosas (FREITAS apud CUNHA, 1924, p. 31).1

Apesar de suas memórias o direcionarem para uma


explicação de sua incipiente crítica clerical a partir da
corporeidade desviante dos sacerdotes à época, as influências
para seu anticlericalismo são mais facilmente compreendidas
pela irradiação, no Seminário das Mercês, da repercussão da
Questão Religiosa (CUNHA, 1924, p. 32) a partir dos professores
leigos do seminário, considerados livres-pensadores (NERIS,
2011, p. 25). Os motivos que levaram Clodoaldo a anos mais
tarde compreender o nascimento de seu anticlericalismo pelo
viés do padre glutão se articula às críticas de tendência liberal
veiculadas no período sobre as vantagens conferidas ao clero
sobre o restante da sociedade (SANTOS, 2010, p. 58). A falta
de atributos viris do frade não o remetia às virtudes esperadas
por um sujeito revestido de poder religioso, provocando apenas
o escárnio do jovem interno que parecia buscar um ideal
cristão corrompido (SANTOS, 2010, p. 44). O que o levaria,
posteriormente, à quase total destituição de sua profissão
religiosa.
Período marcado por profundas mudanças, o século XIX
inaugura a contemporaneidade Ocidental. O livre pensamento
promovido pelo iluminismo – alinhado ao Renascimento, ao
racionalismo e às correntes empiristas dos seiscentos e pelas
revoluções burguesas; à medicina experimental racionalizando
o corpo; à Teoria da Evolução das Espécies de Charles
Darwin, às explicações psicanalíticas de Freud demovendo


1
Esta citação foi retirada do texto de Higino Cunha sobre Clodoaldo
Freitas, que é uma referência de um texto de Clodoaldo Freitas ao qual
Higino teve acesso por meio de Marcelino Freitas, filho daquele. Este
texto está hoje perdido.

134  Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira • Elisângela Barbosa Cardoso


as possessões demoníacas2 (FREITAS, 2011, p. 187-191) e os
espasmos místicos; à História científica de Hanke apartando-a
da literatura; ao positivismo, ao materialismo histórico e à
dialética hegeliana “elevando” a filosofia à ciência – abalou a
hegemonia religiosa como principal elemento formador dos
sujeitos, das coletividades e do pensamento. E o movimento
racionalista do século XIX provoca uma reação conservadora
por parte da Igreja na segunda metade dos oitocentos
(SANTOS, 2010, p. 68).
Literalmente receosa diante da notável perda de terreno,
o alto clero católico se empenha no movimento Ultramontano
(além das montanhas, referência à Roma, que fica além dos
Alpes), que defendia a centralidade das decisões da Igreja
Católica Apostólica Romana na figura do Papa. No entanto,
“a Igreja brasileira foi criada em completa subordinação ao
Estado”, e, remontando aos tempos da colônia, a Igreja Católica
no Império conservou-se nessa posição a partir da reafirmação
do Padroado, o qual confirmava o catolicismo como a religião
oficial do Estado Imperial brasileiro, sob comando de seu
monarca (MATTOSO, 1992, p. 297).
Enfraquecida diante das rupturas provocadas pelas
novas visões de mundo que irrompiam nos oitocentos – as
quais debilitavam a compreensão do mundo pautado no
transcendental e elevavam os conhecimentos científicos como
uma panaceia – e tendo seu clero habituado a uma frouxa
disciplina, entremeado nas funções civis e religiosas, a Igreja
direciona seus esforços para sua libertação da autoridade do


2
No início do século XX, Clodoaldo Freitas critica a posição da igreja
católica ao considerar casos histero-epiléticos, largamente estudados
pela medicina, como possessões demoníacas, curáveis apenas com o
exorcismo como uma forma de permanecer triunfante na sociedade.
E aponta para o abismo que separava o catolicismo de sua civilização
contemporânea.

AS REPRESENTAÇÕES DA BEATA NA PROSA FICCIONAL 135


DE CLODOALDO FREITAS
Estado. Por meio dos quais tenta romper com a imagem de
instituição submissa ao poder temporal (MATTOSO, 1992, p.
297). Contudo, sem necessariamente romper com o status de
religião oficial do Estado, o qual lhe assegurava poder.
Nesse sentido, em 1864, o Papa Pio IX lança a encíclica
Quanta Cura, que continha dezesseis proposições que
contrariavam a visão católica da época quanto à relação entre
Igreja e Estado, acusando os Estados modernos de propagadores
da indiferença religiosa e censurando a liberdade de consciência.
Em seguida, lança o anexo dessa encíclica, o Syllabus Errorum¸
a lista dos “principais erros do nosso tempo”. Nesse, a Igreja,
na figura do Papa, condena o racionalismo, a educação laica,
a separação entre Igreja e Estado, a liberdade de pensamento,
de imprensa, a soberania do povo e a supremacia jurídica do
Estado. Em 1869, Pio IX faz a convocação do Concílio Vaticano
I e, no ano seguinte, por meio dessa reunião do alto clero para
deliberar sobre questões doutrinárias, a infalibilidade papal é
declarada como dogma de fé. Ou seja, o dogma definia que
uma decisão papal jamais estaria errada (SANTOS, 2010, p.
69-70).
Diante do recrudescimento das posições conservadoras
da Igreja e, do outro lado, dos ideais liberais, figuraram
ardorosos embates pelo controle do modelo de civilização
que se projetaria no Ocidente nessa segunda metade do
século XIX e pelo século XX. A elite intelectual liberal brasileira
protagonizou a crítica anticlerical nacional, inflamada pelo
confronto entre Estado e Igreja do Estado na década de 1870,
conhecida como Questão Religiosa ou Questão dos Bispos. A
contenda se iniciou com a suspensão do padre maçom Almeida
Martins pelo bispo do Rio de Janeiro, Dom Pedro Maria de
Lacerda. Esse seguia os preceitos ultramontanos de oposição
à maçonaria, devido à defesa que essa fazia das ideias liberais
em ascensão (MATTOSO, 1991, p. 321-322).

136  Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira • Elisângela Barbosa Cardoso


Avolumando as desavenças entre maçonaria e Igreja
Católica, os bispos ultramontanos de Olinda e do Pará,
respectivamente Dom Vital Maria Gonçalves e Dom Antônio
de Macedo Costa, agiram de forma categórica, exigindo que
as irmandades religiosas e de ordens terceiras desligassem seus
membros maçons. Com a desobediência delas, essas acabam
recebendo, por ordem dos bispos, a suspensão e interdição
de suas capelas. As irmandades, então, apelam ao Imperador,
alegando seu caráter misto (eram a um só tempo instituições
civis e religiosas) e que deviam obediência tanto ao poder
eclesiástico quanto ao poder temporal.
Sentindo-se afrontado em seu poder, diante de toda a
querela entre irmandades religiosas e Igreja Católica, o Conselho
de Estado compreende que os bispos se apossaram do poder
temporal, cabendo exclusivamente ao poder civil o controle das
irmandades. Então, revogada a ordem dada pelos bispos de
expulsar os membros maçônicos das irmandades, os sacerdotes
não acatam a autoridade do Imperador. Portanto, fazendo
valer as proposições ultramontanas de centralização religiosa, o
bispo Dom Macedo Costa não confirma a submissão da Igreja
ao Estado, alegando ser “mais importante obedecer a Deus
que aos homens”, e vai além, colocando a primazia do poder
na figura do chefe romano da igreja: “se o governo brasileiro é
católico, não somente ele não pode ser o chefe ou o superior
da religião católica, mas é até seu súdito” (MATTOSO, 1991,
p. 322). A soberba dos dois bispos lhes custou uma acusação
pelo Supremo Tribunal de Justiça que resultou na condenação
de ambos, em 1874, com pena de prisão simples (MATTOSO,
1991, p. 323).
Esse episódio alarmou tensões que se encontravam
latentes há décadas. As contendas entre liberais livres-
pensadores e a Igreja Católica e seus adeptos iriam transcorrer
ainda por décadas, avançando para o século XX. Essas questões

AS REPRESENTAÇÕES DA BEATA NA PROSA FICCIONAL 137


DE CLODOALDO FREITAS
perpassam toda a escrita de Clodoaldo Freitas, afiguradas já
no Seminário e consolidadas durante a sua formação superior
em Recife.
O outro olhar sobre a religião despertado em Clodoaldo
ainda no seminário pode estar relacionado às influências
iluministas de parte dos professores dessa instituição religiosa.
“A própria educação no Seminário Menor das Mercês era,
no dizer de Clodoaldo – meio religiosa e meio laica – pois
resultava das diferentes orientações dos professores leigos e
religiosos (com as divisões internas desses) contra as quais os
bispos improficuamente lutavam” (QUEIROZ, 2011, p. 254). A
educação no Seminário contribuiu para modelar a forma como
Clodoaldo passaria a enxergar os comportamentos de seus
familiares sacerdotes, relacionados à falta de virtudes religiosas
exigidas aos membros da Igreja.
Tanto o Cônego Claro Mendes, parente, amigo, protetor e
financiador de parte dos estudos do jovem Clodoaldo, quanto
seu tio, o padre José Dias de Freitas, não foram muito afeitos
ao celibato religioso (CUNHA, 1924, p. 32). “Sexualmente
ativo (...) segundo o folclore de Oeiras [o padre José] teria
deixado mais de 50 filhos” (QUEIROZ, 2011, p. 254). O próprio
Cônego Claro teria sido acusado, por seu cunhado, o Coronel
Raimundo José de Carvalho, de adultério com D. Antônia Rosa
Dias de Freitas, mãe de Clodoaldo (VIEIRA; SOARES, 2006,
p. 7). Evento que levou à licença de D. Antônia Rosa, embora
mantidos seus vencimentos (GOVERNO, 1872), e posterior
transferência para a cadeira de Primeiras Letras da Vila dos
Picos (VIEIRA; SOARES, 2006, p. 7).
Bastante influenciado pelas ideias iluministas de Voltaire,
o anticlericalismo de Clodoaldo Freitas não combatia a fé, mas
a superstição, não era contra a religião, mas à sua vaidade,
defendia a razão, o conhecimento científico em detrimento
do dogma. Entretanto, radicalizando a crítica, como fizeram

138  Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira • Elisângela Barbosa Cardoso


as gerações seguintes, criticava o catolicismo que barrava o
progresso intelectual, o livre pensamento, a religião que falhara
em fundar uma verdadeira moral e uma ordem política e social
justa (CASSIRER, 1992, 189-190). Durante seus estudos no
Seminário Menor das Mercês, Clodoaldo Freitas comandou um
grupo de rebeldes, chamados de protestantes, que já indicava
sua heterodoxia dentro do espaço de formação religiosa inicial
no seminário, onde ensaiava suas primeiras críticas em relação
ao seu mundo envolto por forte domínio da Igreja Católica.
Adentrando na Faculdade de Direito de Recife, o seu tempo
era ocupado, em grande medida, pelos estudos, sobretudo as
leituras extracurriculares. Lia muita literatura, filosofia, história
e crítica religiosa. O período em que Clodoaldo realizou sua
formação superior foi marcado pelo movimento de renovação
de ideias, que buscava conferir ao direito um caráter científico,
afastando, assim, as influências religiosas e metafísicas
que eram dominantes. Em Pernambuco, o movimento que
impulsionou mudanças na formação dos bacharéis foi
designado de Escola do Recife, o qual se alicerçava em torno
do “Positivismo, evolucionismo, darwinismo, crítica religiosa,
naturalismo”, influenciado e influenciando o cientificismo
na literatura e a transformação da instrução do Direito e da
política, manifestando-se em clara oposição ao catolicismo
dominante (SCHWARCZ, 1993, p. 147-148).
Em uma aula de direito eclesiástico, regida pelo lente
maranhense Dr. José Joaquim Tavares Belfort, Clodoaldo foi
chamado para tratar sobre conventos, cônegos e freiras. Arguiu
demonstrando os perigos dos monastérios por serem “antros
de imoralidade e uma decrepitude no ponto de vista social e
religioso” (CUNHA, 1924, p. 33). O professor o ouviu e saiu da
aula sem nada dizer, como se o aplaudisse em silêncio (CUNHA,
1924, p. 33).

AS REPRESENTAÇÕES DA BEATA NA PROSA FICCIONAL 139


DE CLODOALDO FREITAS
Clodoaldo Freitas se enojava do tipo de direito que era
ensinado até a década de 1870 na Faculdade de Direito de
Recife, devido à sua esterilidade e secura (CUNHA, 1924, p. 32).
O Direito em voga, mas já em franco descrédito, era o Direito
Natural, no qual se compreendia a realidade social como rígida
e imutável (AVELINO, 2010, p. 12). A concepção do Direito
ao qual o jovem acadêmico se afeiçoava relacionava-se com o
movimento de secularização do mundo moderno (QUEIROZ,
2011, p. 257), que valorizava as experiências concretas
das sociedades, assumindo uma feição mutável, evolutiva,
aproximando-se da ciência e de seu método de investigação dos
fatos (AVELINO, 2010, p. 28), e distanciando-se das explicações
teológicas sobre os eventos no mundo. A geração de bacharéis
de Clodoaldo Freitas participou intensamente das atividades
literárias e políticas do final da década de 1870, influenciada
pelas ideias novas, que eram

um conjunto de ideias então tidas como radicais,


que estão dentro da tradição filosófica europeia, em
suas vertentes materialistas, empiristas, utilitaristas,
positivistas e derivadas do saber sobre a natureza, que
se vinha desenvolvendo e ganhando adeptos pelo menos
desde o século XVII. Uma concepção secularizada do
mundo, como tendência, vem a se consolidar com grande
força no final do século XIX, e recebe reforço de um amplo
conjunto de resultados das pesquisas científicas em geral,
que justificam a secularização como processo científico
e natural. Na prática, as discussões se centralizavam em
oposições muito fortes aos saberes de ordem teológica e à
concepção teocêntrica do mundo. O projeto natural colide
com o projeto divino, a Natureza opõe-se à Providência, a
ciência volta-se contra a religião. Esse impulso oitocentista
de secularização do mundo tem um impacto substancial
sobre as concepções de cunho antropocêntrico e mesmo
sobre o uso de alegorias antropomórficas, colocando
mesmo na ordem do dia a relação homem-natureza e, em

140  Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira • Elisângela Barbosa Cardoso


última instância, a relação homem-Deus (QUEIROZ, 2011,
p. 236).

A formação na Faculdade de Direito em torno da Escola


de Recife3 (BEVILACQUA, 1977, p. 350) modelou a visão de
mundo de Clodoaldo, transformou o jovem estudante no
homem que iria se colocar à frente da sociedade do final do
século XIX e início do século XX. Habilitado para ocupar cargos
de destaque nas províncias e estados do Império e República, o
Doutor Clodoaldo Freitas se sobressaiu como literato-militante,
função que desenvolveu ao longo de sua vida adulta enquanto
ocupava cargos públicos, sobretudo, nos estados do Piauí,
Maranhão e Pará durante a Primeira República, por meio da
qual representou uma multiplicidade de mulheres, com certa
ênfase para as figuras femininas devotas à religião católica.
Embora comumente ocupassem um espaço marginal na
literatura (SANTOS, 2010, p. 134), as beatas na prosa ficcional
de Clodoaldo Freitas ganham destaque devido à necessidade
que se impunha sobre o autor de prescrever comportamentos às
mulheres4 (SCOTT, 1990, p. 24) diante da influência religiosa,
tomando para si a missão de conduzir a sociedade a um estado
de ordem a partir de uma lógica positivista.
Envolvendo-se em diversas contendas com clérigos
católicos apresentadas nas páginas dos jornais (RESPOSTA,
1883), como foi as contendas com o padre de Valença na
década de 1880, ou em sua militância anticlerical por meio


3
“Sílvio Romero denominou Escola do Recife o brilhante movimento
intelectual, que teve por teatro a cidade do Recife, que foi,
primeiramente, poético, depois, crítico e filosófico, e, por fim, jurídico,
sendo, em todos eles, figura preponderante Tobias Barreto”.

4
A análise das prescrições de comportamentos às mulheres é um dos
modos de afirmar como as disputas de poder na sociedade constrói
o gênero, ou seja, como os grupos buscam definir os modos como a
sociedade deve se organizar quando aos sujeitos sexuados.

AS REPRESENTAÇÕES DA BEATA NA PROSA FICCIONAL 141


DE CLODOALDO FREITAS
do jornal O Reator, que recebia, com ataques, o Bispo do
Maranhão em visita pastoral (CUNHA, 1924, p. 36), o livre
pensador Clodoaldo Freitas não se ateve apenas aos embates
diretos, compondo uma extensa obra ficcional permeada por
figuras emblemáticas para a construção de sua propaganda
anticlerical, investindo nas representações que construía das
mulheres grande parte de seus argumentos.
Em seus contos e novela, Clodoaldo Freitas exercita
parte de sua crítica anticlerical em torno das representações
(CHARTIER, 2004, p. 33; CERTEAU, 1998, p. 224-226) 5
das beatas. Ao inserir em sua literatura essas figuras, põe em
evidência, a partir de seu olhar anticlerical, o traço religioso
da sociedade por meio dos comportamentos das mulheres, as
quais são definidas e hierarquizadas a partir da assimilação
ou não de suas funções como mães e esposas aos moldes das
ideias racionalistas em vigor no período, e apresenta o debate
religioso de seu tempo. Com isso, prescreve comportamentos
ideais para elas com o objetivo de distanciá-las da religião
cristã católica, pois, segundo o autor, as mulheres são mais
propensas às crendices e fanatismos religiosos do que os
homens. Portanto, por serem percebidas como alvo mais fácil
da captura religiosa, demandavam maiores esforços em sua
missão de ordenamento de seu mundo.
No conto O divórcio de Clodoaldo Freitas, publicado no
jornal maranhense Pacotilha em 1907, sob o pseudônimo de
W. Einardht (O DIVÓRCIO, 1907), no auge das desavenças
entre igreja e maçonaria no Piauí, o personagem Evaristo, que
era Conselheiro e maçom, compõe uma reflexão sobre seu


5
O conceito de representação utilizado neste trabalho toma emprestada
a formulação de Chartier para examinar como a prática escriturística
de Clodoaldo Freitas constrói uma hierarquia feminina por meio da
categoria da beata em sua literatura, que configurava como um tipo
negativo de mulher, ou seja, uma categoria inferior de mulher.

142  Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira • Elisângela Barbosa Cardoso


infeliz casamento após receber a notícia do falecimento de sua
esposa. Os motivos do insucesso matrimonial giram em torno
da insubordinação e agressividade da, então falecida, Quinoca
para com Evaristo, seu marido. Relatando os comportamentos
dela a seu íntimo amigo Dr. Pedro Caldas, aponta a postura
insubmissa e excessivamente religiosa de sua esposa como
aspectos negativos de sua personalidade.

Porque, é preciso que eu diga, a Quinoca todos os dias


requintava em maldades, em seu ódio, na sua agressão
meditada, furiosa, injusta, que me fazia a sua presença
um suplício e a vida doméstica um verdadeiro inferno.
Uma causa de sofrimento para mim foi inventada por
Quinoca, que se aprazia, como disse, em apoiar tudo
quanto me podia desgostar. Agora já não queria somente
me desgostar, procurava ofender-me, atacar-me de frente,
ferindo-me nas minhas mais caras convicções, nos meus
mais íntimos afetos. A Quinoca declarou-se beata. Se eu
falava no nome de qualquer padre, mesmo sem ofensa,
ela caía sobre mim com uma fúria e me cobria de baixos
doestos, de descomposturas em que eram envolvidos
meus pais, já falecidos, e a minha honra pessoal. Se eu saía
para alguma sessão maçônica, era o mesmo tormento, o
mesmo desespero da Quinoca, insultando-me, dizendo
que todo maçom era perverso, infame, ateu, libidinoso,
e não sei o que mais. Gritava, praguejava, chorava,
ameaçava tomar veneno para se ver livre de um debochado
como eu, que era maçom e escrevia contra os padres! -
Quinoca, que tens tu com esses padres? Que te importa
que eu ou quem quer que seja os ataque? - Me importa
muito, porque os padres são representantes de Deus na
terra e atacar os padres é atacar a Deus. Importa muito
porque quem não é pelos padres é contra a religião e
quem é contra a religião é um perdido, não tem moral, é
maçom, um bandido. - Mas este teu ardor em defenderes
a esses padres torna-se escandaloso. - Queres dizer que eu
namoro com algum padre? - Não sei e não quero saber,

AS REPRESENTAÇÕES DA BEATA NA PROSA FICCIONAL 143


DE CLODOALDO FREITAS
mas é preciso que acabes com isto, porque já não posso
tolerar que, em minha casa, me veja coacto a externar-me
porque tu, uma mulher sem critério, te pões em oposição a
todos os meus pensamentos e desejos. Que há de comum
entre tu e os padres? - Há de comum que eles são os chefes
da religião. - E que tens tu com isso? A primeira religião
de uma honesta mãe de família são o marido, os filhos,
a paz doméstica. Tu, uma esposa má, como queres ser
uma boa devota? Tu és uma amaldiçoada de Deus porque
procedes assim. - Eu procedo assim mal porque não me
tenho confessado. - E nem te confessarás. - Isto lá, não.
Eu vou me confessar agora pela Semana Santa. - Não te
confessarás, a menos que deixes de ser minha mulher. A
confissão é uma imoralidade e a mulher que se confessa
é escrava do confessor. Tu, que sem te confessares, estás
tão fanatizada, o que não serás dominada pela confissão?
Não, não te confessarás porque não admito semelhante
bandalheira. Desde a hora em que te confessares não serás
mais minha mulher (FREITAS, 2010b, p. 39-40).

As denominações ofensivas aos maçons por parte de


Quinoca, a má esposa do conto, indicam a forma como a pia
sociedade via esses sujeitos críticos da cultura vigente, que
estava atalhada pelas explicações metafísicas, e representam
o modo como o clero católico atuava na sociedade por meio
das mulheres. A definição do maçom como ateu revelava uma
recorrente confusão que se fazia das várias posições anticlericais
existentes (SANTOS, 2010, p. 53). Até a irrupção da Questão
Religiosa, alguns padres eram maçons e grande parte dos
maçons eram bons católicos (MATTOSO, 1992, p. 321). O
entendimento que se fazia sobre a crítica anticlerical dos maçons
parecia ser, à época, formulado como uma postura contra a
moral, como se fossem bandidos, escamoteando “conceitos
como de igualdade, liberdade, fraternidade, ordem, harmonia,
luz, [que] também foram veiculados através da Maçonaria,
instituição que alimentou muitas das utopias liberais do período,

144  Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira • Elisângela Barbosa Cardoso


pelo menos no seu discurso público” (QUEIROZ, 2011, p. 227)
e a atuação da “maçonaria pregando a caridade, a justiça,
[onde] a liberdade dirige-se ao gênero humano, fala a todos
os homens, chamando-os todos à confraternização universal”
(FREITAS, 1904). E a crítica anticlerical nos oitocentos surgiu,
também, dentro do próprio clero, como uma crítica do baixo
clero a determinadas posturas do alto clero (SANTOS, 2010,
p. 50).
Diante dos questionamentos da virilidade do padre
católico, os anticlericais do século XIX, nos quais Clodoaldo
Freitas se insere, percebem os clérigos como hipersexualizados,
censurando, assim, a confissão auricular, percebida como
um momento de íntima exposição feminina para o deleite
do clérigo confessor. Compreendendo o homem a partir da
ciência, a continência sexual poderia trazer malefícios físicos e
psicológicos aos homens, daí decorrer a necessidade do padre
aliviar suas pulsões, e de onde surge, também, a preocupação
dos anticlericais com o controle da sexualidade de suas esposas
e filhas.

O padre se torna a face obscura do homem burguês e o alter


ego da prostituta, cuja face luminosa é a mulher casada.
Os padres são “os homens de tolerância das mulheres
do mundo” segundo o anônimo Messe d’amour (missa
de amor) (1889), em que uma duquesa, abandonada
por seu marido, entrega-se a um jovem e belo vigário no
confessionário e em seguida no chão de uma capela, a fim
de ser engravidada. O padre executa em sua penitência,
antes de penetrá-la, um ataque de língua e um cunilingus
que a fazem proferir obscenidades de prazer (AIRIAU,
2013, p. 314-315).

A confissão auricular se torna uma arma da igreja contra


os esposos e pais, na visão dos maçons, “interferindo no âmbito
do próprio lar e na harmonia da família, a Igreja se colocando,

AS REPRESENTAÇÕES DA BEATA NA PROSA FICCIONAL 145


DE CLODOALDO FREITAS
pois, como um outro poder e como fator de desestabilização do
pátrio poder doméstico” (QUEIROZ, 2011, p. 265). Diante do
possível adultério das esposas beatas e insubmissas, Clodoaldo
Freitas defende o divórcio, assim como alguns destacados
juristas da escola positiva, que viam na possibilidade da
dissolução do matrimônio a solução para o adultério e para a
infelicidade conjugal (AVELINO, 2010, p. 178).
Em 1909, Clodoaldo Freitas publica, em folhetim no
jornal Diário do Maranhão de São Luís, o conto A beata, sob o
pseudônimo W. Einardht. A partir da intertextualidade com
a obra Amor de perdição de Camilo Castelo Branco, Clodoaldo
vai compor uma rede de diálogos entre as personagens
da narrativa, que discutem sobre a escolha do casamento
pelos próprios nubentes, em destaque para a questão da
importância da escolha da filha em detrimento da indicação
paterna para o enlace matrimonial, revestida por sua defesa
dos ideais modernos de racionalidade e valorização das leis.
Porém, ratifica a lei e a autoridade paterna, embora suavizadas
e diminuídas em prol da figura do jovem marido como chefe da
nova família e da felicidade conjugal no lar burguês construído
pelo amor dos esposados.
Utilizando-se da figura do jovem bacharel e livre pensador
do referido conto como seu alter ego, dispondo de sua voz
na narrativa, defende a livre escolha matrimonial e formula
enérgica crítica anticlerical aos monastérios. No diálogo entre
o jovem bacharel Dr. Armando e o conservador Comendador
Lemos, esse indaga

- Também nega ao pai o direito de enclausurar as filhas


desobedientes na sua teimosia de amar a indivíduos
indignos? - Nego, em absoluto, semelhante direito,
mesmo porque não admito a vida monacal. - O senhor é
também dos que acreditam que o convento é um antro de
perdição? - Decerto. O convento é um antro de perdição no

146  Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira • Elisângela Barbosa Cardoso


sentido genuíno e lato da palavra. Aquela cena das freiras
no convento de Vizeu, ébrias, maldizentes, hipócritas,
manchadas de vícios próprios dos ímpares, tenho como
um retrato fiel da vida real dos conventos. Dizem que nos
homens há muitos desses vícios e dessas intrigas e traições.
Olhe que só me refiro aos conventos de freiras, porque, aos
de frade, não podia referir-me convenientemente perante
senhoras (FREITAS, 2010a, p. 90).

Diante da impossibilidade de conciliação entre o


sentimento amoroso do liberal e anticlerical Armando e o
sentimento religioso proveniente da educação conventual de
Naninha, filha do desembargador, essa vê-se num violento
conflito interno, assomando-se em desonestas conclusões.
Temeroso que sua filha se dirija à vida conventual, o
desembargador pede que o Dr. Armando se case com Naninha.
Diante da possibilidade de a jovem beata ceder e casar-se com
seu ímpio amado, esse argumenta que

- Será um casamento desgraçado, porque reinará sempre,


entre nós, a desconfiança, o ódio religioso, o mais violento
e brutal de todos. A mulher católica só é boa esposa
quando o marido, condescendente, dá-lhe plena liberdade
de ação na sua faina religiosa, às voltas com os padres.
O marido que reage, está perdido. Seria uma grande
desgraça, para mim e para Naninha, um casamento
debaixo de semelhantes auspícios! Depois, esse pedido
feito por Naninha da mão da Dorinha... Que hei de dizer
para convencer o comendador de que não a autorizei a
fazer semelhante pedido, obra sua, obra insensata de sua
imaginação, que não estou longe de considerar aguçada
pelo histerismo? (FREITAS, 2010a, p. 95).

Clodoaldo Freitas, por meio de uso narrativo da voz do


jovem liberal, defende a harmonia doméstica possibilitada pelo
consentimento do marido em relação aos interesses religiosos

AS REPRESENTAÇÕES DA BEATA NA PROSA FICCIONAL 147


DE CLODOALDO FREITAS
da mulher ou pela confirmação feminina da religião do marido
ou de sua falta de religião. Apesar do possível consenso, é clara
a relação que o autor faz entre a insensatez da imaginação de
Naninha e sua ligação com a religião, figurada como responsável
pelo histerismo na jovem beata.
Por meio de diálogos encenados entre as jovens figuras
bacharelescas masculinas, arautos da modernidade e do
progresso, como Carlos de Por um sorriso (1921),6 e a moça
casadoura, como Teresa, da mesma novela, o escritor tece
argumentos em prol de uma sociedade liberta dos desígnios
religiosos, distanciada do fanatismo religioso e próxima dos
desígnios da ciência e da higiene, alicerçadas na razão.
O tom anticlerical da novela aparece na forma pedagógica
como Carlos instrui Teresa quanto à relação que deveria ter com
a religião. Apesar dela não ser representada como uma legítima
beata, alguns comportamentos da jovem se distanciavam do
ideal preconizado pelo autor e seu alter ego, abrindo espaço
para a construção, intra-literatura, de um modelo ideal para as
moças que se guiassem por sua leitura. Teresa usava bentinhos,
comportamento que Carlos assinalava com “um ato de baixa
superstição, que um homem, como [ele], não pratica nunca”
(FREITAS, 2009, p. 23) e completava argumentando que ela
deveria

evitar tudo quanto é superstição e fanatismo. Uma


senhora que se preza não deve andar com esses bentinhos
pendurados ao pescoço. Essas devoções da plebe ignara e
pagã não são atos da religião. A religião é o ideal do amor
pelo desprendimento da personalidade. Ser religioso é
pospor seu eu à humanidade e ceder aos outros sua própria
existência. Que significa essa tola exibição religiosa, que
não é cristã e vem evidentemente do paganismo? Por


6
Novela publicada no em formato de folhetim no jornal Correio do Piauí
em 1921.

148  Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira • Elisângela Barbosa Cardoso


meu gosto, Teresa, não andarias com esses bentinhos ao
pescoço, ao menos por higiene. Quando Teresa voltou, já
não trazia os tais bentinhos ao pescoço. – Estás satisfeito?
– Perguntou. – Satisfeito por mim e, mais, por ti, minha
boa amiga. Desejo que mantenhas tuas crenças religiosas
sem a mínima superstição, sem fanatismo. A superstição
é indigna de uma pessoa educada cristãmente. Podes ser
religiosa sem beatice, crente, sem fanatismo (FREITAS,
2009, p. 23-24).

O arrefecido anticlericalismo do velho Clodoaldo Freitas


em 1921 já não é tão ferino como fora nos tumultuosos tempos
de contenda entre maçonaria e Igreja nos primeiros anos do
século. Sem atacar o cristianismo, Clodoaldo Freitas critica
os atos pagãos da sociedade em prol de um Cristianismo
puro, associando essa religião à humildade, benevolência e
temperança.
Clodoaldo Freitas define a mulher ideal em sua literatura
como esposa e mãe devotada, antagonizando-a às figuras das
beatas, as quais são postas abaixo na hierarquia feminina. Elas
são definidas como más esposas e más mães, que se distanciam
do modelo ideal feminino voltado para o lar, para os cuidados
com o marido, filhos e dedicada à felicidade conjugal, aos
moldes da família moderna.

Fontes:

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mar. 1872.

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1907.

AS REPRESENTAÇÕES DA BEATA NA PROSA FICCIONAL 149


DE CLODOALDO FREITAS
RESPOSTA ao revd’ Acyllino Baptista Portella Ferreira. A
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152  Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira • Elisângela Barbosa Cardoso


AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS
CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS
MODELOS FEMININOS MODERNOS NA
TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX

Pedro Vilarinho Castelo Branco

N
o fim do século XIX e início do século
XX, os modelos de socialização feminina
tradicionalmente vivenciados na sociedade
brasileira eram profundamente vinculados à família e ao
espaço da casa, e mostravam-se incompatíveis com os valores
e práticas modernas.
Nessa perspectiva, era necessário repensar sobre a
percepção da infância, dar outro sentido às práticas que
orientavam a transformação das meninas em mulheres adultas.
Assim, literatos e intelectuais de perfil diversificado, como
positivistas, liberais e católicos empenhavam-se em definir
os parâmetros adequados para a socialização e a formação
escolar feminina.
Atenta a essa problemática, a Igreja Católica, preocupada
em combater a laicização da sociedade, percebeu nas mulheres

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 153


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
e na sua formação um ponto de apoio para desenvolver
uma prática discursiva voltada à ordem social, lastreada nos
princípios da fé.
Para concretizar ações a fim de capturar as mulheres
para a causa católica, a instituição efetivou algumas estratégias
necessárias, a exemplo da criação e instalação de escolas
confessionais, de associações religiosas orientadas ao público
feminino e divulgação, por vários meios de discurso prescritivo
que definiam os parâmetros comportamentais esperados para
a mulher moderna, enquadrada no perfil esperável de uma
mulher católica.
Para a construção do argumento desse estudo,
utilizaremos artigos de jornais que circularam em Teresina
no período em análise, bem como obras literárias, estatutos
de escolas confessionais e, ainda, depoimentos orais que nos
ajudaram a entender a problemática da formação feminina na
cidade de Teresina nos anos finais do século XIX e no início do
século XX.
A documentação informa que no período em epígrafe,
as crianças viviam mergulhadas nas sociabilidades do meio
rural ou em pequenas cidades. A ausência de condições
médico-sanitárias apropriadas tinha como consequência certa
insegurança quanto à sobrevivência dos infantes até a vida
adulta.
A infância era momento de aprendizado, incorporação
de práticas e valores que se faziam presentes na vida cotidiana,
condicionando a existência dos indivíduos no corpo social.
Dessa forma, o estudo tinha o escopo de ensinar os infantes a
se movimentarem em um mundo heterogêneo e estratificado,
em uma realidade na qual as pessoas eram marcadas, entre
outras categorias, pelo gênero, que separava os indivíduos em
homens e mulheres.

154  Pedro Vilarinho Castelo Branco


Então, as meninas eram direcionadas, desde cedo, a
assimilar referências quanto ao corpo e às implicações que
teriam na vivência social. Em razão disso, reproduziam nas
brincadeiras as atividades femininas que percebiam no cotidiano
da casa. Segundo Miridan Brito, no mundo tradicional do sertão
piauiense, a vida infantil feminina transcorria no exercício de
atividades lúdicas que proporcionavam o aprendizado primário
da vida adulta. Nesse contexto, passavam o tempo a brincar
com bonecas de louça, de palha de milho ou de sabugos; ainda
desempenhavam atividades onde brincadeira e aprendizado
se confundiam, já que a elas estavam reservados o auxílio
a trabalhos dentro da casa, junto às negras cozinheiras e às
sinhás, onde aprendiam a cozinhar, a manejar as ervas, a fazer
chás e mezinhas curativas para os debilitados, assim como a
cuidar dos irmãos mais novos, limpar a casa, costurar, bordar,
fazer crochê (FALCI, 1991).
Outro aspecto definidor dessas identidades de gênero
era a percepção das especificidades do corpo. As meninas,
particularmente as provenientes dos grupos de elite, deveriam
manter recato no que se refere à sexualidade. De acordo com
Durval Muniz, à moça de família estaria reservado o afastamento
das práticas sexuais, caracterizando-se por ser ignorante quanto
à fisiologia e aos usos do corpo. Nesse aspecto, o aprendizado
seria promovido em conversas com mulheres mais experientes,
com amigas ou familiares, mas sempre de forma silenciosa,
segredada (FALCI, 1991). Não competia a elas se mostrarem
experientes e sábias em assuntos relacionados à libido, e mesmo
certa ignorância quanto ao próprio corpo era desejável.
As diferenças entre os gêneros na infância manifestavam-
se, inclusive, nas expectativas quanto ao ingresso na vida
escolar (COSTA FILHO, 2006). A preocupação paterna com a
escolarização das meninas não tinha a mesma intensidade que
a dispensada aos meninos: enquanto estes eram encaminhados

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 155


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
aos centros urbanos para cursar a escola secundária e, em
alguns casos, alcançarem níveis superiores, aquelas não
contavam com esse empenho familiar (FALCI, 1997). A elas
estavam reservadas as aulas de primeiras letras e o aprendizado
de prendas femininas ou, ainda, aulas de música que lhes
facultassem dotes adicionais.
Assim, as trajetórias femininas, nos grupos de elite e
médios, nas décadas finais do século XIX, apontam para
práticas pouco empenhadas com a formação escolar. Abdias
Neves,1 no romance Um manicaca, cria a personagem Júlia para
representar a forma como as mulheres eram educadas, pois
somente aos 13 anos de idade, a moça é matriculada pelo
pai no curso de primeiras letras de Sinhá Borges. Lá, aprende
rudimentos de escrita, leitura e aritmética. Estuda por apenas
dois anos e se volta para a casa, para o aprendizado das lides
domésticas, para a vida cotidiana, à espera de um pretendente
à altura de sua posição social (NEVES, 1985).
Por sua vez, Clodoaldo Freitas2, no romance Coisas da vida,
igualmente descreve a educação dispensada às moças como
precária, sendo, muitas vezes desenvolvida dentro do próprio
espaço doméstico, não dando às mulheres o treinamento
disciplinar necessário para o exercício da vida adulta, o que
as levava a se deixarem influenciar facilmente por discursos
galanteadores. Os riscos de quebra do equilíbrio e da moral
familiar apareciam na escrita de Clodoaldo, enquanto


1
Abdias da Costa Neves nasceu em 1876, em Teresina. Bacharel em
Direito (Recife, 1898), fundou escolas privadas, entre elas o Internato
Ateneu Piauiense. Foi Senador da República e autor de vários livros,
entre os quais o romance Um manicaca.

2
Clodoaldo Severo Conrado Freitas nasceu em 1855, na cidade de
Oeiras. Bacharelou-se em direito pela Faculdade do Recife, em 1880.
Sua obra literária conta com obras de ficção, crônicas de assuntos
variados.

156  Pedro Vilarinho Castelo Branco


possibilidades reais e iminentes, como podemos perceber no
seguinte trecho do romance Coisas da vida:

As senhoritas divertiam-se durante o dia no trabalho ou


lendo algum romance dos mais sentimentais e devotos.
[...]. Nessas leituras prejudiciais, funestas aos espíritos
juvenis, sem o contrapeso de uma educação séria, as
moças saturavam-se de impressões violentas e carnais. A
vida para elas era embrutecedora.3 (FREITAS, 1908 )

De modo geral, essa realidade só começou a ser


efetivamente modificada nas primeiras décadas do século
XX, pois dentro de um contexto de mudanças estruturais
que procuravam aproximar o Brasil do mundo moderno, a
educação escolar passou a ser assunto para o qual se voltavam
as atenções. Era preciso dar outro sentido à formação dos
infantes: não mais um aprendizado feito no mundo prático,
na convivência com os adultos, no seio da comunidade, mas
criar e legitimar socialmente espaços segregados – as escolas –,
onde a formação das crianças se desse dentro de padrões pré-
estabelecidos e que viessem a formatá-los como pessoas úteis
ao Estado e à sociedade.
Esse discurso é incorporado pelos governos republicanos,
que percebem na consolidação de um processo de escolarização
e marca de diferenciação entre Império e República, entre
o passado e o presente. A proposta consiste em intensificar
a construção de uma rede escolar e a formação de docentes
capazes de consolidar definitivamente a escola no Brasil,
rompendo com o atraso e promovendo o progresso e a
regeneração nacional.
Em consonância com Áries, infância e escola moderna
são duas invenções simultâneas, porquanto à medida que
a sociedade cria a infância como fase específica da vida, na


3
FREITAS, op. cit.

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 157


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
qual os indivíduos são percebidos como seres frágeis, que
requerem cuidados especiais, orientação adequada para o seu
bom desenvolvimento físico, intelectual e moral, cria também
a escola, espaço institucional propício para desenvolver as
potencialidades humanas. Logo, a nova percepção da infância
é criada partindo de saberes como a pedagogia, que pensava a
organização da escola, os métodos de ensino, a hierarquização
do aprendizado, tendo como objetivo formar indivíduos dentro
de princípios morais e intelectuais estabelecidos. (ARIÉS, 1986).
A pouca escolaridade feminina passou a ser, nas primeiras
décadas do século XX alvo de críticas por parte de literatos
como Higino Cunha e Clodoaldo Freitas, que desenvolveram
prática escriturística4 apontando as falhas e definindo o que
seria a formação escolar pertinente a uma moça. Não obstante,
por trás desse discurso havia a intenção de redefinir o conteúdo
das funções femininas, de modo que embora as mulheres não
deixassem de ser mães e esposas, era oportuno que dessem a essas
funções tradicionais outra roupagem. Precisavam, portanto,
estar preparadas para o exercício da nova maternidade, onde
somente a dedicação, o amor e a boa vontade já não seriam
suficientes. Essa preparação incluía o aprendizado de noções
de higiene, nutrição, cuidados curativos, fundamentados em
princípios científicos – tratava-se de um compromisso familiar
e patriótico com a regeneração da nação (BESSE, 1999).
A prática escriturística dos literatos dava-se no sentido
de criticar as formas tradicionais e apontar a necessidade de
melhorar a formação feminina. Higino Cunha5 atesta que as


4
A ideia de prática escriturística trabalhada no texto está fundamentada
em: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p. 224-226.

5
Higino Cícero da Cunha nasceu em 1858. Bacharel em Direito pela
faculdade do Recife, em 1885, trabalhou em vários cargos públicos:
foi professor do Liceu Piauiense, da Escola Normal e da Faculdade de

158  Pedro Vilarinho Castelo Branco


mulheres precisavam passar por processo de escolarização,
entrar em contato com a ciência e com a cultura escrita, assim
a escola, com seus métodos e com disciplina, poderia fazer
delas mães e companheiras desejadas (CUNHA, 1924).
Na acepção de Clodoaldo Freitas, a educação das
mulheres sem a vivência escolar apropriada, sem os freios morais
lastreados em aprendizado disciplinado que sustentasse o
exercício da continência, aliada a ideias fantasiosas – recolhidas
nos romances onde amores idealizados, paixões avassaladoras
davam asas à imaginação e aos desejos –, poderiam levar as
jovens a criar ilusões sobre a vida adulta, distanciando-se da
vida real de mãe e de esposa.
Para esses literatos, de perfil liberal e mesmo anticlerical,
o espaço criado e reputado como mais apropriado à formação
feminina, respaldado em princípios científicos e afastado
de qualquer inspiração confessional, seria a Escola Normal,
implantada em 1910, em Teresina, com a missão de propiciar
formação que garantisse às mulheres educação escolar
adequada, libertando-as de crendices, permitindo que elas
entrassem em contato com teorias e métodos científicos, além
de valores morais.
Tratava-se, pois, de impor disciplina de tal modo que
se imprimisse uma nova percepção do corpo, a partir de
conhecimentos sobre psicologia infantil, higiene, didática e
outros saberes considerados fundamentais ao exercício das
funções não só de professora, mas também de mãe e esposa.
O discurso dos literatos livres-pensadores passou a
ser incorporado às práticas sociais. No entanto, o interesse
em formar mulheres afastadas dos princípios religiosos,
desapegadas da fé e da espiritualidade, não teria sucesso,
tendo em vista que a força da tradição católica, renovada pela

Direito do Piauí. Foi um dos fundadores da Academia Piauiense de


Letras.

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 159


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
veemência da igreja em desenvolver estratégias de ação para
evitar a laicização da sociedade, far-se-ia de forma intensa no
Piauí do início do século XX.
Para além das preocupações e prescrições dos intelectuais
liberais, as moças eram objetos da ação escriturística da Igreja
Católica, que desenvolvia argumentação em favor de modelos
femininos propagados a partir de princípios religiosos e
vivência da fé cristã. Essa prática discursiva dava-se no sentido
de condenar qualquer iniciativa educacional da mocidade que
não fosse alicerçada em princípios católicos, e na condenação
de práticas modernas ligadas à emancipação da mulher e à
divulgação de modelos femininos contagiados pela vaidade e
pelo mundanismo. Separada do Estado desde a Proclamação
da República, e vendo a orientação religiosa ser excluída
dos currículos escolares da rede pública de ensino, a Igreja
apressou-se em incrementar sua rede de escolas por todo o
Brasil (PINHEIRO, 2002).
As experiências de ensino confessional faziam parte da
política de reestruturação da Igreja Católica, que intentava
articular estratégia de ação eficazes com o intuito de impulsionar
as fileiras de devotos, ao tempo em que disseminava na
sociedade discurso favorável à disciplina, ao ordenamento
social, e à construção da ideia de nação e de pátria, valores
caros aos governos republicanos.
D. Adalberto Sobral, Bispo do Maranhão,6 em carta
pastoral do fim do século XIX, expressa a preocupação da
igreja em conciliar a formação moral cristã, voltada ao preparo
espiritual e transcendental da criança, com a subjetivação de
homens e mulheres úteis à pátria, observadores da ordem,
respeitadoras das leis e das autoridades constituídas da
nação. Assim, o que a igreja procurava mostrar era que


6
Até o ano de 1906, a Igreja Católica no Piauí estava vinculada ao
Bispado do Maranhão.

160  Pedro Vilarinho Castelo Branco


cristianismo e patriotismo não eram questões antagônicas,
mas complementares (SOBRAL, 1947).
Outro traço da doutrina católica, relacionada à educação
infantil, consistia na obrigação imputada aos pais de prover
os filhos de meios necessários para tornarem-se adultos com
formação suficiente para ingressar no mundo do trabalho. O
que chama a atenção é o aspecto utilitarista da proposição
católica, mostrando como a igreja procurava se posicionar ao
lado do Estado na doutrinação para o ordenamento social,
para o direcionamento ao trabalho produtivo. (CAES, 1995).
A igreja não abria mão de seus princípios doutrinários,
nem sucumbia às propostas dos liberais e positivistas, mas
concomitantemente, defendia propostas de valorização do
trabalho produtivo, considerando-o dignificante ao homem.
A prática da Igreja Católica aproximava-se, em grande parte,
dos princípios presentes nas escolas públicas, onde já existia
a graduação dos assuntos a serem apresentados aos alunos,
tendo em vista o nível de dificuldade, a divisão das crianças por
idade e, nomeadamente, a preocupação com o aprimoramento
intelectual e o desenvolvimento da formação moral dos
indivíduos, sem perder de vista os princípios da fé católica
(PIMENTA, 1947).
No Piauí, a prática educacional da igreja encaixa-se na
caracterização feita anteriormente, pois D. Joaquim,7 primeiro
Bispo do Piauí, pouco tempo após tomar posse, em 1906,
criou quatro instituições de ensino, isto é, quatro escolas
confessionais: o Colégio Sagrado Coração de Jesus, o Colégio
Nossa Senhora das Graças, ambos dirigidos por freiras e
voltados ao público feminino, localizados, respectivamente,
nas cidades de Teresina e Parnaíba; e o Colégio Diocesano e o


7
Sobre D. Joaquim, primeiro Bispo do Piauí, conferir: SANTOS NETO,
Fonseca dos; LIBÓRIO, Paulo de Tarso Batista. Joaquim. Teresina: Nova
Aliança, 2016.

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 161


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
Seminário, instalados em Teresina e administrados por padres,
com vistas a atender à clientela masculina.
As duas escolas das freiras eram empreendimentos
vultosos, faziam parte do projeto de estruturação da Igreja
Católica no Piauí e tinham como objetivo instruir as meninas,
moldar os comportamentos, fazer delas mulheres religiosas,
apegadas aos valores cristãos e exemplos de moral e virtude
na sociedade. À vista disso, o modelo a ser seguido seria o
das próprias freiras que estavam próximas e eram provas
incontestáveis de abnegação, virtudes e sacrifícios em nome de
um ideal maior que para a grande maioria das alunas, deveria
ser o casamento e o exercício da maternidade, atividades que as
mulheres deveriam empreender com renúncia, fazendo dessas
funções um verdadeiro sacerdócio (CASTELO BRANCO, 2013).
Além das práticas diretamente envolvidas com a questão
educacional, os colégios confessionais desempenhavam uma
vivência da fé católica junto às crianças, por meio da celebração
de rituais religiosos, prática de oração e reflexão espiritual, assim
como celebração dos sacramentos. Áries lembra a construção,
por parte da Igreja Católica, de uma religiosidade imposta às
crianças, onde a devoção ao anjo da guarda e, particularmente,
o ritual da Primeira Eucaristia – que se tornou a grande festa
religiosa da infância – seriam os pontos principais da crença
(ARIÉS, 1986).
A vivência dos sacramentos, mormente da Primeira
Eucaristia e da confissão, eram estratégias eficazes no trabalho
de divulgação de valores e princípios católicos. A catequese para
a Primeira Eucaristia dava continuidade ao ensinamento sobre
as práticas e verdades do catolicismo. Nesse sentido, tornava-
se fundamental para criar, entre meninos e meninas, laços com
a religião. As roupas brancas, as fotografias que imortalizavam
o momento, o clima de sacralidade que se criava em volta do
acontecimento, deixavam marcas na memória das crianças

162  Pedro Vilarinho Castelo Branco


e davam elevado grau de importância ao evento. Tudo isso
dirigido pelas autoridades eclesiásticas, que se apresentavam
no posto de comando da solenidade – fato que favorecia as
práticas e ideias católicas ultramontanas (GAETA, 1992).
Elias Martins8 era um dos articuladores dessa prática
de escriturar, de definir os parâmetros para a boa educação
feminina. Sua argumentação, envolta nos princípios católicos,
inicia por elaborar severas críticas às escolas leigas, onde, para
ele, a falta da religião acabaria por levar à derrocada moral
da juventude. Se a formação de um homem sem crenças seria
incompreensível, a formação de uma mulher afastada da
religião tomaria proporções absurdas, porquanto perderiam
o perfume das virtudes cristãs, e deixar-se-iam, fatalmente,
saturar pela atmosfera do modernismo (MARTINS, 1910).
Elias Martins não era contrário ao aprendizado de saberes
fundamentados em princípios científicos. O que não aceitava
era a exclusão dos fundamentos católicos, pois concebia que se
as mulheres não aprendessem o apego à religião, tornar-se-iam
muito mais vulneráveis aos apelos do mundanismo.
As escolas confessionais, criadas no início do século XX,
no Piauí, contavam com alunas internas e externas, e mesmo
dedicando-se majoritariamente ao ensino infantil, estendiam
sua grade curricular por sete anos, ou seja, as mulheres
entravam crianças, aos sete, oito ou nove anos de idade, e
saíam aos 14 ou 15 anos de idade, prontas para ingressar no
mercado matrimonial. Somente nos anos 1930, essas escolas
contariam com o ensino normal e aulas de prática comercial.


8
Elias Martins nasceu em 1869, e faleceu no ano de 1936, em Teresina.
Bacharel em direito, jornalista de larga militância em jornais de
Teresina, particularmente no jornal O apóstolo, e defensor fervoroso das
ideias católicas. Publicou, entre outras obras, o livro Guerra Secatária
(1910) e o livro Fitas (1920).

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 163


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
O estatuto do Colégio Sagrado Coração de Jesus
define em seus primeiros artigos a relevância de incutir nos
corações das alunas as convicções da fé e da moral católicas,
sendo chamadas a fazer de suas ações cotidianas momentos
de introspecção e vivência desses conceitos e valores. Nesse
prisma, as orações começavam com o toque de despertar,
às 5h 30, momento em que a mestra encarregada acordava
as alunas internas e começava a recitar orações que seriam
respondidas pelas demais; às 6h, as alunas internas reuniam-se
na capela, onde assistiriam ao sacrifício da missa; as orações
continuavam às 11h, quando rezavam o terço do dia e, em
seguida, deslocavam-se ao refeitório para o almoço. Na parte da
tarde, às 15h, estavam todas formadas para leituras religiosas e
para as aulas de catecismo. À noite, após o jantar e antes de se
recolherem aos aposentos, eram encaminhadas à capela, onde
recitavam as orações da noite e, em seguida, depois de uma
rápida refeição onde era servido chá, as moças se dirigiam aos
seus aposentos para dormir (FOUCAULT, 2011).
Os estatutos do Colégio Sagrado Coração de Jesus
prescreviam, ainda, a forma contida e disciplinada como as
alunas deveriam se comportar e se movimentar no espaço
interno do colégio, bem como durante as atividades de estudo,
lazer e durante as refeições, sempre observando a ordem, o
silêncio e a modéstia.
Além da contenção física e do contínuo exercício da
oração, as alunas eram direcionadas a congregar hábitos de
higiene corporal e de cuidados com a roupa, com a cama onde
dormiam, e mesmo a vigilância com relação a hábitos e modos
nos momentos de refeição. Isso posto, os estatutos definem
o horário e as práticas de higiene com os dentes, os cabelos,
as unhas; os horários de banho; a forma adequada como se
comportar à mesa – com modéstia, higiene e atenta a pequenos
detalhes, a exemplo de não sujar a mesa com restos de alimentos.

164  Pedro Vilarinho Castelo Branco


Importante também era o aprendizado dispensado no cuidado
com as camas, que deveriam ser mantidas limpas, organizadas,
com os lençóis dobrados, e as roupas usadas, depositadas em
lugar adequado (CASTELO BRANCO, 2013).
A preocupação com a disciplina dos espaços íntimos pode
ser percebida como uma estratégia por meio da qual ao tempo
em que se domesticavam os hábitos femininos, ensinavam-se
práticas adequadas que deveriam ser levadas para o resto de
suas vidas, no trato cotidiano de suas futuras residências, na
condição de esposas e donas de casa.
Aliás, visando à boa formação das moças, podemos
apontar, ainda, as aulas de costura, de cuidados domésticos, e
a prática prescrita nos regramentos do colégio, onde as alunas
mais velhas ficavam encarregadas de cuidar das alunas mais
novas e zelar por elas, pois deveriam auxiliar as mais novas na
arrumação das camas e dobra dos lençóis, e orientá-las no
penteado dos cabelos e na higiene pessoal. Entendemos que
essa prática seria, também, momento de aprendizado, onde as
moças exercitavam e assimilavam a arte de cuidar.
As posturas de contenção corporal e espiritual eram
observadas mesmo nos momentos de lazer, nos horários de
recreio, os quais intercalavam os de aulas, quando as moças
deviam observar algumas regras e evitar os excessos, como
podemos captar no seguinte relato: “Art XXV. Nas horas de
recreio devem praticar todas as regras da boa educação nas
palavras e na compostura do corpo, e evitar alguns atos
inconvenientes às meninas, os gritos, os cânticos da rua e
outras coisas.”9
As práticas disciplinares desenvolvidas na escola tinham
como finalidade transformar as moças em mulheres devotas,


9
Estatutos e regras para as educandas do Colégio dirigidos pelas Irmãs
dos pobres de Santa Catarina de Sena. Manuscrito do Colégio Sagrado
Coração de Jesus.

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 165


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
contidas, saturadas pela vivência de um cotidiano onde o
esquadrinhamento do tempo, dos espaços, das práticas
rotineiras, a levaram a atingir a subjetivação como moças
recatadas, beatas, futuras mães de família e esposas dedicadas
à causa da igreja e da família. A vida austera do internato, a
busca da reclusão, do silêncio, da continência, indicava a
oração e o desprezo à vida profana e festiva como o caminho
a ser seguido.
A Sra. Miriam de Carvalho, que foi aluna interna no
Colégio das Irmãs nos anos 1930, evidencia em suas memórias
a vida cotidiana de disciplina e orientação religiosa a que as
alunas internas da instituição eram submetidas. Em seu relato,
faz referências aos horários, às constantes orações e à insistente
prática da disciplina, que acabou por condicionar o seu corpo
e a sua alma. A preocupação era homogeneizar ao máximo os
comportamentos, manter a ordem e o respeito às autoridades
escolares, e aos regulamentos, premiando as boas maneiras
e punindo as indisciplinas, com admoestações verbais ou
punições disciplinares.
Segundo a senhora Miriam de Carvalho, a austeridade
que as freiras impunham às alunas, em alguns momentos, era
segredadamente alvo de brincadeiras por parte das discentes
que procuravam burlar a rigidez da disciplina, dando apelidos
aos professores e professoras, cultivando, às escondidas,
atitudes de resistência ao ambiente disciplinado da escola:

As garotas gostavam de apelidar os professores e até


mesmo as irmãs. Só que nem eles, nem elas sabiam.
Assim o professor de Francês era o Chinês, o professor
de matemática (muito magro) era o Tripa Escorrida, a
professora de Inglês era a Baratinha. Entre as irmãs havia
uma italiana explosiva, seu apelido era Vesúvio. Outra
que falava alto e reclamava de tudo era a Espalha Brasa
(CARVALHO, 2002).

166  Pedro Vilarinho Castelo Branco


A jovem católica não deveria se entregar às vaidades,
às modas que procuravam exaltar partes do corpo feminino,
despertando, nos homens, desejos. O corpo teria de ser
percebido como a morada do Espírito Santo e, como tal,
respeitado, com práticas que demonstrassem recato e pudor.
Por essa razão, não era adequado usar maquiagem, pintar os
lábios, usar joias ou qualquer outro adereço que valorizasse os
atrativos corporais. Portanto, o corpo deveria ser mortificado,
escondido, segredado.
Alvina Gameiro, no romance A vela e o temporal, descreve as
experiências da personagem Rosaurea, que por volta dos doze
anos de idade, é matriculada na Escola das Freiras, em Teresina.
Na obra, relata as experiências de Rosaurea, demonstrando as
observações de uma das freiras, Irmã Carminda, que não perdia
oportunidade de chamar a atenção da moça para a sua beleza
facial, apontando essa peculiaridade física como um entrave,
uma dificuldade à manutenção de seu bom comportamento:
“Tens uma grande pedra em teu caminho, filha (a pedra era
o rosto), toma cuidado para não tropeçares! Uma beleza
perfeita atrai como ouro, torna-se muitas vezes causa de dores
e dificuldades [...]” (GAMEIRO, 1996, p. 27).
Se a missa e a eucaristia ganhavam frequência diária, a
cada quinze dias, as alunas eram direcionadas ao confessionário,
onde deveriam exercitar o sacramento da penitência. A
frequência ao referido sacramento, além de ser atitude de
humildade diante dos sacerdotes e orientadores espirituais, era
momento privilegiado para os direcionamentos adequados e
para as correções de comportamentos indevidos. No segredo
da confissão, as moças poderiam, de forma segredada, revelar
práticas e desejos íntimos que atormentavam a alma e o corpo,
e assim receberem as devidas orientações.
Aliás, para alcançar os objetivos de bem formar
moralmente as alunas, o colégio lançava mão de associações

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 167


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
religiosas, tais como a Pia União das Filhas de Maria, que fora
criada e funcionava dentro do próprio colégio. De acordo
com o manual da referida associação, ela direcionava-se,
exclusivamente, a mulheres jovens de, no máximo, 30 anos
de idade. As meninas, logo após a Primeira Eucaristia, eram
incentivadas a ingressar na instituição. O ar solene da Primeira
Eucaristia tinha continuidade com o ingresso no grau de
aspirante à Filha de Maria, onde o ambiente sacralizado
convidava a um encontro íntimo com Deus, e com a vivência
cotidiana e contínua da fé. Esses eram os principais objetivos
das Filhas de Maria, como podemos depreender no trecho
transcrito do manual da associação:

A Pia União das Filhas de Maria procura, com suas práticas


e seus conselhos, formar moças religiosas com verdadeiro
espírito de pureza, de caridade, de abnegação e de
humildade; ela quer dar ao lar filhas dedicadíssimas a seus
pais, e esposas verdadeiramente cristãs, que fomentem em
seu meio o amor a virtude e a piedade. (MANUAL ... filhas
de Maria, 1920, p. 15).

A associação contava com rígido código de


disciplina e exigia das afiliadas que assumissem cotidiana
e ininterruptamente os deveres de boas filhas de Maria. O
exemplo a ser seguido pelas moças seria o de Maria Santíssima
ou o de Santa Inês,10 patrona da associação. As duas santas são
exemplos de mulheres que teriam na castidade e na obediência
cega aos desígnios de Deus suas qualidades supremas.
Das Filhas de Maria cobrava-se, em primeiro lugar, que
cumprissem rigorosamente as funções familiares, respeitassem


10
Santa Inês viveu no Século III da Era Cristã, e morreu como mártir, aos
13 anos, depois de recusar os insistentes pedidos de casamento de um
jovem aristocrata romano. Sua recusa estaria supostamente ligada à
sua fervorosa convicção no valor supremo da castidade.

168  Pedro Vilarinho Castelo Branco


os pais e as regras determinadas pela família; em seguida, que
fossem filhas de Maria continuamente; que se comportassem
com recato no convívio social, evitando comportamentos
reprováveis, tais como faltar a compromissos religiosos,
orações, missa e comunhão diárias.

Sentir-se a Filha de Maria no seu verdadeiro papel,


permitindo-se danças levianas e até indecorosas? Poderá
ela guardar sobre seu coração a sua medalha, quando o
seu vestuário atestar o esquecimento do que seja o pudor
de uma cristã? Que se poderá dizer de uma Filha de Maria
que escandalize pela nudez de seus trajes?
O recato, a não freqüência a lugares de moral duvidosa, a
decência no vestuário, a obediência aos pais, ao diretor e
a devoção fervorosa eram características insistentemente
colocadas para as Filhas de Maria. A todo o momento elas
deveriam dar provas de recato, de devoção à causa divina.
Algumas práticas modernas, como o flerte, os namoros sem
compromisso, apenas por divertimento, eram percebidos
como práticas mundanas, vulgares e terminantemente
proibidas às Filhas de Maria. (MANUAL... filhas de Maria,
1920, p. 46).

Em síntese, essa associação tinha como desígnio principal


auxiliar na formação espiritual e moral das moças, fazendo-as
perceber a grandeza da vivência fervorosa da fé católica, do
apego aos sacramentos, o quão positivo seria aos olhos de
Deus a prática de valores como a abnegação, a obediência, o
pudor, a simplicidade e o recato, os quais, após introjetados
na mente, deveriam estar presentes no corpo, na vida, nas
experiências diárias.
Na prática escriturística dos católicos, o acesso aos
espaços de lazer também deveria ser restrito, singularmente a
frequência ao cinema. Aspectos como a sala escura dificultando
a observação dos comportamentos; os enredos dos filmes

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 169


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
enaltecendo modelos femininos marcados pela vaidade, pelo
mundanismo, mostrando cenas de contatos afetivos, onde a
libido era exaltada por cenas de beijos, insinuações, contatos
íntimos – em síntese, comportamentos contrários aos princípios
católicos de pudor e recato eram vangloriados. (QUEIROZ,
2017).
Outro espaço marcado pelos cuidados familiares eram
os bailes, onde as aproximações e os contatos físicos entre os
jovens eram uma possibilidade. Dessa forma, os pais deveriam
estar atentos para evitar excessos. Em artigo publicado na
imprensa de Teresina, uma mãe expõe suas práticas e a forma
como educou a filha para esses momentos:

Tenho uma filha de quinze anos, inteligente e muito viva,


que deverá estar ainda como interna no colégio das Irmãs
Catarinas, mas que, segundo o costume da terra, vai aos
bailes e dança, mas com certo recato. Tem ordens minhas
e de meu marido, muito severas, para se não deixar asfixiar
pelos rapazes. Caso contrário, ela está avisada de que
voltará, internamente, para o colégio por mais dois ou três
anos. O receio do castigo e certo regime de educação que
adotamos faz com que ela não se exponha ao ridículo das
danças excessivas. (SENHOR ... O nordeste, 3 de jul. 1920,
p. 5-3)

A formação moral recebida pela moça na escola de freiras


já deveria dar a ela os meios necessários para saber manter
distância dos corpos masculinos, comportar-se como mulher
direita e evitar os excessos. No entanto, como reforço a essa
formação, a mãe a mantinha sob ameaça de penalizações
disciplinares por qualquer excesso cometido pela filha.
A constatação de alguns cronistas do início do século XX,
desolados, criticando o fato de a Praça Rio Branco, espaço de
convivência da juventude em Teresina, ter ficado esquecida no
dia da festa de Santa Inês, padroeira da Associação das Filhas

170  Pedro Vilarinho Castelo Branco


de Maria – pois as moças estavam, em sua grande maioria,
reunidas nas comemorações religiosas à jovem santa – mostra
que parte significativa das moças incorporavam em sua
subjetivação as crenças e os princípios religiosos. Esse episódio
é revelador do consumo das propostas católicas apresentadas
às moças.
Em outras crônicas, é possível depreender a forma de
atuação de algumas moças que procuravam conciliar as
práticas religiosas com a vida festiva e mundana: elas participam
das festas religiosas e, ao mesmo tempo, do Carnaval, vão
ao cinema, não aceitando as proibições regulamentares das
associações religiosas. Nesse contexto, conjecturamos o relato
do cronista do Jornal O Piauí sobre o comportamento de uma
senhorita:

Mademoisele mesmo é um exemplo. Ainda outro dia,


quando quis gozar a encantadora loucura pagã das festas
de Momo, a quem foi que se dirigiu para poder ter, no
pecado, a paz de espírito e a alegria da alma? Foi à sua
consciência? Foi a seus pais?
Não foi em São Benedito, em cuja Igreja nós a vimos entrar
domingo de carnaval, à tardinha, humilde e contrita, como
se lhe houvesse transfundido na alma a tristeza solene da
luz agonizante.
Mademoisele rezou e depois foi à festa dos Fanfarrões.
(VIDA ... O Piauí, 5 de mar. 1926, p. 4).

O comportamento da supracitada senhorita, que não


abria mão de se alcunhar como uma mulher religiosa, apegada
aos valores cristãos, mas, ao mesmo tempo, assumia padrões
modernos no vestuário e na forma como participava das
festividades consideradas mundanas pela igreja, parece ser o
caminho de subjetivação presente no meio feminino.
As estratégias mais intransigentes, usadas principalmente
pela Igreja Católica – que procurava homogeneizar os

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 171


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
comportamentos femininos, afastando as mulheres de
espaços reputados como impróprios para elas, como o
Carnaval e os cinemas – parecem ter sido, em muitos casos,
desrespeitadas. O caso comentado pelo redator do jornal O
nordeste, relativo à moça associada às Filhas de Maria, que
deixou a congregação depois de ter sido punida por participar
de festas carnavalescas, mostra que a igreja tinha grande
influência sobre os comportamentos das mulheres que, em
grande parte, aceitavam as ideias católicas e se subjetivavam
como mães e esposas devotadas à família. Porém, não abriam
mão, particularmente enquanto solteiras, de participar dos
momentos de convivência social, onde rapazes e moças podiam
se encontrar e começar algum tipo de aproximação.
As mulheres parecem absorver muito mais que os homens
as ideias de disciplina e recato. As vigilâncias diminuem até
porque a dinâmica social moderna exige que elas frequentem
os espaços públicos, saiam de casa para ir às escolas e a outros
locais de sociabilidade familiar. Se, muitas vezes, a presença
de familiares acompanhando as moças mostra a continuidade
de práticas tradicionais e uma certa desconfiança quanto à
eficácia das novas estratégias disciplinares, as oportunidades
de burlar essa vigilância multiplicam-se.
Não obstante, para as mulheres terem a oportunidade
de comparecer e aproveitar os espaços públicos, foi preciso
que elas se comportassem como mulheres disciplinadas,
que a todo momento denotam, por meio de suas posturas e
seus comportamentos corporais, que são mulheres direitas,
moças de família, sérias, e devem ser respeitadas e tratadas
como tais. Incorporar essas posturas seria fundamental
para elas distinguirem-se no meio social daquelas que não
se enquadrassem no paradigma de moça de família (RAGO,
2011).

172  Pedro Vilarinho Castelo Branco


Era necessário, portanto, que as mulheres estivessem
atentas às condutas, pois para elas, os riscos de algum
prejuízo moral sempre existia, tendo em vista que exagerar
no flerte, brincar com vários rapazes em uma mesma tarde
de passeio, era inadequado para moças de família: “E então
não é hipocrisia? E então fazer o flerte com dois, três, cinco,
inúmeros rapazes, finalmente, é um procedimento impecável?
Quem diria? Ninguém, talvez eu, por exemplo, julgava o seu
temperamento diferente.” (VIDA ...O Piauí. 17 de mar. 1926,
p. 4).
Os momentos de lazer juvenil, de frequência aos bailes, ao
cinema e mesmo ao passeio público, eram indispensáveis para
as moças conviverem com os rapazes e darem início a namoros e
noivados, cercados de vigilâncias e cautelas. Nesses momentos,
a formação moral incorporada nas práticas corporais,
adquiridas com a escolarização, deveriam atuar sobre os corpos,
particularmente sobre as mulheres, inibindo a expressividade
dos desejos mais íntimos e criando intermediações discursivas
que mantivessem os corpos afastados de contatos audaciosos,
os quais poderiam pôr em risco as estratégias familiares.
A vida feminina, marcada pela frequência aos bailes, ao
cinema, aos passeios e ao jogo do flerte na Praça Rio Branco, era
momento fugaz nas trajetórias de vidas femininas. Escolhidos
os pares, realizadas as ritualísticas de praxe no namoro e depois
no noivado, seladas as alianças familiares, as mulheres alçavam
outra condição na vida: tornavam-se senhoras casadas, onde
as responsabilidades com o marido, a casa e, em seguida, com
os filhos, cobrariam delas tempo e dedicação.
Nessa nova fase da vida, deveriam lançar mão dos
princípios e aprendizados adquiridos na formação escolar,
desta feita como mulheres casadas, nas funções de esposa, e
depois, como mães. Nesses papéis sociais, as mulheres eram
definidas como o ponto de equilíbrio, de sustentação da

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 173


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
família. Diante dessa condição, deveriam atuar como pessoas
que encontravam na fé e na prática da oração a força suficiente
para serem incansáveis, na luta serena e contínua para vencer
as dificuldades familiares, para manter a tranquilidade no
lar, e bem-sucedidas na tarefa divina de educar os filhos, de
encaminhá-los na vida.
Ademais, tendo em vista sua base sólida de vivência da
religião, as mulheres deveriam ter a capacidade e a sabedoria
de tudo perdoar e, com isso, assegurar aquele que deveria
ser seu interesse maior: o equilíbrio e a união familiar, a boa
formação religiosa dos filhos e a conscientização dos familiares
no sentido de vivenciarem a fé.
A discussão sobre a escolarização das mulheres tinha
como uma de suas principais justificativas o adequado exercício
da maternidade. Delas cobrava-se não apenas que desfrutassem
de boa vontade e dedicação para com os filhos, mas que
tivessem disciplina, estivessem fisiologicamente preparadas
para uma boa gestação, fossem saudáveis – para que não
transmitissem doenças aos filhos – e, mais que isso: tivessem
noções de higiene, nutrição, enfermagem. Seria esse aparato
de saberes novos, legitimados pela ciência, que precisavam
ser incorporados pelas mulheres na prática da maternidade.
(BESSE, 1999).
Nessa perspectiva, das novas mães seria cobrado
comportamento de devoção aos filhos. A maternidade
era percebida agora como um sacerdócio, uma função a
ser exercida com a total entrega da mulher aos filhos.11
As obrigações femininas não cessariam com os cuidados
nutricionais e higiênicos, pois não bastava somente preservar
a vida e a boa formação física dos filhos, já que a mulher seria


11
Sobre a valorização das práticas femininas em torno da maternidade,
ver: A nova mãe. BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado. O mito do
amor materno. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1984. p. 201.

174  Pedro Vilarinho Castelo Branco


responsabilizada, também, pela formação moral e espiritual
da criança. O artigo publicado no Jornal A Imprensa oferece
a dimensão das responsabilidades que a sociedade depositava
nos ombros das mães:

Como deve ter cuidado na educação moral, religiosa e civil


dos filhos. Uma mãe deve ser incansável no cuidado dos
filhos, não deve ser negligente, nem roubar o tempo em
visitas e passeios inúteis, deixando os filhos em companhia
de criados e de pessoas suspeitas. (A MISSÃO ...A Imprensa
6 de fev. 1926, p. 02)

Se a maternidade era uma missão feminina, assim


como o compromisso que as mulheres assumiam com Deus
e com a pátria, o não cumprimento dos deveres inerentes a
esse verdadeiro sacerdócio era encarado como falha grave,
um desvio de comportamento imperdoável. Dessa forma,
a discussão sobre a incúria materna é discutida em artigos
de jornal, onde a falta de atenção e cuidados maternos são
apontados como motivações primeiras para os desvios dos
filhos, que se entregam desde cedo à vadiagem, às bebedeiras,
ao jogo, aos prostíbulos.12
Desviada dos deveres familiares, entregando-se ao mundo
da fantasia, a mulher incorreria, segundo Elias Martins, no
grave erro da negligência materna, no desprezo do lar e dos
que nele vivem e esperam a orientação moral feminina. Se ela
não exerce suas funções condignamente, a queda moral será
concretizada nos passos seguintes dos filhos:


12
Sobre a discussão a respeito da incúria materna, Elizabeth Badinter
diz que o mesmo movimento de criação discursiva que definiu a
maternidade como algo natural e inerente à mulher, criou também a
ideia de que qualquer falha no caráter dos filhos deve ser cobrada, em
primeiro, lugar a ela. A boa formação física e moral dos filhos passava
a ser de inteira responsabilidade feminina.

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 175


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
Vazio o lar, nublado o astro que o regulariza e aclara,
vagueiam os filhos descurados e soltos, sem guia, sem
conselhos, campeões dos jogos e dos teatros, lustrosos
bonecos dos saraus e dos passeios, às vezes defrontando
os pais na mesa do tapete verde ou em equívocas situações,
ainda mais depressivas e niveladoras. (MARTINS, 1910, p.
17).

Se a mãe precisava ter cuidados com todos os filhos,


com a formação moral, essa prudência deveria ser redobrada
quando as atenções maternas se direcionavam às filhas, uma
vez que mulheres eram percebidas como seres facilmente
impressionáveis, frágeis, embora puras, precisando serem
mantidas até o casamento. Se a virgindade das filhas era
ponto central para a manutenção da honra familiar, a culpa
por qualquer desvio era, em primeiro lugar, das mães, que não
souberam orientá-las. A mãe deveria ser a amiga, a conselheira,
aquela para quem as filhas não teriam segredos, a única a
quem a intimidade sentimental e corporal deveria ser revelada
– por isso mesmo, a principal responsável pela orientação das
moças.13
A prática escriturística dos católicos teve papel indubitável
na divulgação e incorporação desse discurso disciplinador dos
comportamentos femininos. As pregações nos sermões, nas
aulas de catecismo, nos retiros espirituais, mas sobretudo nas
escolas confessionais e nas associações religiosas marianas,
foram importantes meios de propagação de um saber que


13
BESSE, op. cit., p. 114-115. Sobre o papel das mães na subjetivação
das filhas, Elizabeth Badinter afirma: “É a mãe quem se encarregará do
adestramento da menina. E lhe ensinará que a dependência é um estado
natural às mulheres. Ela a habituará a interromper suas brincadeiras
sem protestar, e a mudar seus planos para se submeter aos de outrem.
Desse bom hábito resultará uma docilidade de que as mulheres têm
necessidade durante toda a sua vida.”

176  Pedro Vilarinho Castelo Branco


tinha como propósito definir as práticas femininas aceitáveis
nos espaços públicos.
Era ensinada e exigida das mulheres uma rígida disciplina
corporal, segundo a qual a moral feminina estava ligada
diretamente à ideia de continência, de negação dos desejos
sexuais. Logo, a mortificação do corpo estaria no centro de
uma política de valorização da vida espiritual. A vivência da
sexualidade só seria permitida às mulheres casadas, dentro de
rígidas normas e exclusivamente com fins de procriação.
O discurso dos católicos ultramontanos14 obteve boa
receptividade no meio feminino, à medida que o apego das
mulheres ao catolicismo esteve presente na sociedade e era
bastante refletida na documentação perscrutada. Os católicos
souberam com muita eficiência criar mecanismos de divulgação
de suas doutrinas e de seus princípios sobre a vivência da
fé, e acerca dos comportamentos e das práticas familiares
femininas. Se a Associação das Filhas de Maria congregava
as jovens e fazia toda uma doutrinação que se mostrava
eficiente, reunindo grande quantidade de moças católicas em
seus quadros, as mulheres adultas e casadas ligavam-se ao
Apostolado do Sagrado Coração de Jesus. As práticas dessas
mulheres nos levam a designá-las como apegadas à vivência da
fé católica, assim como a frequência a missas, a comunhão,
ao confessionário, a participação em retiros espirituais, as
cerimônias de entronização do Coração de Jesus nas residências
católicas, a forma como participavam de eventos religiosos
ou, ainda, como eram convocadas pelo Bispo Diocesano
14
Sobre o catolicismo ultramontano, ver: WERNET, Augustin. A igreja na
sociedade paulista no século XIX. São Paulo: Ática, 1987.
CAES, André Luis. Da espiritualidade familiar ao espírito cívico: a família nas
estratégias de reestruturação da Igreja (1890-1934). 1995. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 1995.

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 177


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
para participar de uma grande cruzada em favor da imprensa
católica. Tais aspectos nos permitem ratificar que a tendência
de aproximação entre mulheres e igreja, tão presente no mundo
ocidental desde a segunda metade do século XIX, era vivenciada
de forma significativa em Teresina.15
Essa relação entre a igreja e as mulheres é perceptível
mesmo nas lembranças materiais ainda existentes sob a
guarda de descendentes: são velhos papéis, livros de oração,
fotografias, fitas do Coração de Jesus, da Associação das
Filhas de Maria, patentes de Agregação ao Apostolado da
Oração, anotações sobre retiros espirituais, imagens e quadros
do Coração de Jesus e de santos – elementos que resistem ao
tempo e dão testemunhos dessa estreita relação entre igreja
e mulheres, construída na Teresina das primeiras décadas do
século XX.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Guanabara, 1986.

BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado. O mito do


amor materno. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1984. p. 201.

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EDUSP, 1999. p. 113.

CAES, André Luis. Da espiritualidade familiar ao espírito


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15
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ver: GIORGIO, de Michela. O modelo católico. In: PERROT, Michelle;
DUBY, Georges (org.). História das mulheres – O século XIX. Porto; São
Paulo: Edições Afrontamento; EBRADIL, 1991.

178  Pedro Vilarinho Castelo Branco


Católica – 1890-1934. 1995. Dissertação (Mestrado em
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AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS CATÓLICAS E A IMPLEMENTAÇÃO DOS MO- 181


DELOS FEMININOS MODERNOS NA TERESINA DO INÍCIO DO SÉCULO XX
COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA
CATÓLICA E EDUCAÇÃO ESCOLAR EM
PARNAÍBA NA PRIMEIRA DÉCADA DO
SÉCULO XX

Maria Dalva Fontenele Cerqueira

Introdução

O
presente capítulo tem como objetivo analisar
as ações educativas da Igreja Católica como
a criação de escolas confessionais no Piauí, na
primeira década do século XX, tomando como objeto o Colégio
Dom Joaquim, uma escola católica destinada ao público
masculino, fundado pela Diocese do Piauí1 em 1907, na cidade
de Parnaíba-PI.
O Colégio Dom Joaquim, instituição escolar confessional
católica, destinado ao público masculino, até então, objeto


1
Sobre a criação da diocese do Piauí Cf. SOUSA NETO, Marcelo de.
Em nome da fé; em nome dos bens: a criação da diocese do Piauí
(1822-1903). Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH,
Ano IV, n. 10, Mai. 2011.

COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA CATÓLICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR 183


EM PARNAÍBA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX
pouco explorado pelos pesquisadores. Por acreditar que o
estudo da História da Educação e, consequentemente, das
instituições escolares católicas, se apresentam como um
campo fértil para discutir o papel da Igreja Católica na história
da educação brasileira foi o que nos moveu a realizar esta
pesquisa, em desenvolvimento, uma vez que, a história das
instituições escolares católicas no Piauí, especialmente os
colégios masculinos2, ainda se apresenta como um campo a
ser explorado, o que demanda por parte dos pesquisadores
um desafio para compreender a atuação Igreja no campo
educacional, naquele contexo, na sociedade piauiense.
Para tanto, fizeram parte do corpus documental, desta
investigação, o jornal parnaibano Nortista e o jornal católico
O Apostolo de Teresina, em circulação entre os anos de 1901 a
1912. Os jornais cotejados fazem parte do acervo da Biblioteca
Digital da Fundação Biblioteca Nacional.

A fundação do Colégio Dom Joaquim

No Piauí, na primeira década do século XX, a Igreja


Católica, por meio da diocese do Piauí, com sede em Teresina,
o primeiro bispo do Piauí Dom Joaquim Antonio de Almeida3,
fundou além dos colégios femininos, dois colégios diocesanos,
destinados ao público masculino, sendo um na cidade de
Parnaíba, que recebeu o nome de Colégio Dom Joaquim, e o


2
Sobre os colégios católicos masculinos fundados no Piauí Cf. LOPES,
Antonio de Pádua Carvalho. Os discursos em torno do retorno dos
jesuítas ao Piauí na década de 1960: o Colégio Diocesano entre
constinuidades e rupturas. In: SOUSA, Carlos Ângelo de Menese;
CAVALCANTE, Maria Juraci Maia. (Orgs.). Os jesuítas no Brasil: entre
a Colônia e a República. Brasília: Liver Livro, 2016, p. 267-287.

3
Sobre atuação do primeiro bispo do Piauí Cf. FONSECA NETO,
Antonio; LIBÓRIO, Paulo. Dom Joaquim. Teresina: Livraria Nova
Aliança Editora, 2016.

184  Maria Dalva Fontenele Cerqueira


outro em Teresina, o Colégio Diocesano, atualmente pertence
à Rede Jesuítica de Educação, segundo Lopes (2016), até sua
consolidação na cidade passou por várias fases, sendo que na
primeira “funcionou até 1914, quando o segundo bispo, D.
Otaviano Pereira de Albuquerque, encerrou suas atividades e
passou a residir no prédio a ele destinado [...] sendo reaberto
pelo mesmo bispo em fevereiro de 1925” (LOPES, 2016, p. 276-
277).
Na historiografia da educação piauiense são poucos
os registros sobre a fundação e o funcionamento do Colégio
Dom Joaquim. As informações que dispomos são dadas pelo
Apóstolo, jornal da Diocese do Piauí, que em 30 de junho de
1907, informou que o Cônego Joaquim Lopes4 foi para Parnaíba
com a missão de preparar os prédios para as escolas católicas
que seriam fundadas da cidade.

Conego Joaquim Lopes


De Parnahyba, onde a muito se achava, empenhado em
grandes trabalhos para comodações de Collegios, naquella
cidade, chegou no dia 26 do andante o nosso ilustre e
estimado amigo, cujo nome encima estas linhas.
Sempre prompto e disposto para as grandes empresas que
demandam actividade e zelo, o Conego Joaquim Lopes
é o exemplo vivo do sacerdote abnegado, não encontra
embaraços que não demova sua força de vontade. [...].
(grifo nosso) (CONEGO ... O Apóstolo, 30 de jun. 1907,
p.01).

Os prédios destinados ao funcionamento dos colégios


católicos foram adquiridos por meio de doações realizadas


4
Joaquim de Oliveira Lopes foi um dos padres atuantes na criação do
bispado no Piauí. Antes da criação do bispado, era o responsável
pelo Apostolado da Oração. Cf. SOUSA NETO, Marcelo de. Entre
vaqueiros e fidalgos: sociedade política e educação no Piauí (1820-
1850). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2013.

COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA CATÓLICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR 185


EM PARNAÍBA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX
pelas famílias parnaibanas pata a diocese. Sobre a visita de Dom
Joaquim a Parnaíba, os editores do jornal católico informaram
que “na importante cidade de Parnahyba, D. Joaquim,
encontrando almas dedicadas e emprehendedoras, um povo
generoso e bom, pode facilmente com as esmolas que lhe
deram, comprar um prédio importante para o futuro Collégio
Diocesano” (O APÓSTOLO, 1907, p.3), as doações realizadas
pelas “senhoras Geracinda Tavares da Silva e Angelica Tavares
de Moraes Barreto, salientaram-se na caridosa fertaram offerta
de um outro prédio para o Collégio dirigido pelas Irmãs de S.C
de Senna, que também Dom Joaquim espera inaugurar este
ano” (O APÓSTOLO, 1907, p. 3).
Depois da criação do bispado no Piauí, o Cônego Joaquim
de Oliveira Lopes estava como vigário da Igreja do Amparo,
em Teresina, e responsável pelo Alto-Longá, mas também, seu
nome estava presente na lista dos Vigários Foraneos da diocese
do Piauí. Os editores d´Apóstolo informam que ele recebeu a
missão, dada pelo Bispo, de preparar os prédios para a fundação
das escolas católicas em Parnaíba, uma vez que as escolas de
Teresina já haviam sido fundadas, também com a participação
do Conego Joaquim Lopes, conforme Oliveira (2014).
De acordo com os redatores do jornal Nortista de 19 de
maio de 1901, no final do século XIX, mas especificamente no
ano de 1898, em Parnaíba formou-se uma comisão composta
pelos católicos: Luiz Antonio de Moraes Correia; pelo vigário
local, padre Joaquim Antonio de S. Leal; José Alves de Seixas
Pereira; José da Silva Ramos Filho; Veridiano Rabello Borges e
Jonas de Moares Correia (NORTISTA, 1901), cuja finalidade
era realizar a campanha para angariar donativos para formar o
patrimônio para o bispado no Piauí, com sede em Parnaíba, e
com essa finalidade.
Para engariar donativos dos dois grandes sobrados
místicos a Egreja matriz desta cidade, para servirem de
residencia episcopal e seminário, predios cujas plantas

186  Maria Dalva Fontenele Cerqueira


já foram remetidas ao Exm. Snr. Internuncio Apostolico
no Rio de Janeiro comprometendo-se a tornar effectiva
aquisição por compra desses predios.
[...]
Os dois grandes sobrados ambos de dois pavimentos
superiores e um terreo, são dos mais antigos predios que
possue esta cidade. Construidos com a melhor solidez
possivel.
Além da vantagem de apresentarem de sere contiguos
a Egreja de N. S. da Graça, já oferecida e em condições
de servir para Cathedral, são em todo o Estado os
unicos predios que dispoem de compartimentos vastos e
apropriados para os fins a que são destinados. (BISPADO...
Nortista, 18 de maio, 1901, p. 01).

A campanha empreendida pelos parnaibanos pela


instalação do bispado no Piauí, e o esforço em adquiri um
patrimônio em Parnaíba para ser a sede do bispado que seria
formado pos prédios localizados ao lado da Igreja de Nossa
Senhora da Graça. No entanto, a campanha empreendida pelos
parnaibanos para a criação de bispado com sede em Parnaíba
não foi vitorisa, ao fazerem a oferta de mais de trinta contos
destinado ao patrimonio, esta foi negada ficando sua sede em
Teresina, a capital do Estado.
O padre Luiz Gonzaga, vigário de Amarante, escreveu um
“Escorço Histórico da Diocese do Piauhy” no jornal O Apóstolo,
onde descreve a criação da Diocese do Piauí da seguinte
forma: “após duas conferencias entre o padre Lopes e a
patriotica commissão, aquelle sacerdote ponderou aos dignos
commissarios que a boa administração da futura diocese o
obrigada a discentir de sua opinião, a disservir suas louvaveis
pretenções e a recusar a mencionada offerta” (ESCORÇO... O
Apóstolo, 1907, p. 4).
Após o desfecho da criação do bispado no Piauí e
definida a instalação de sua sede em Teresina, o primeiro bispo

COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA CATÓLICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR 187


EM PARNAÍBA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX
Dom Joaquim Antonio de Almeida deu início aos trabalhos à
frente da diocese, que dentre outras atividades, dedicou-se a
fundação de escolas católicas e do jornal O Apóstolo.
Na cidade de Parnaíba, a Igreja adquiriu os prédios que
foram destinados a sede do colégio masculino de Parnaíba, de
acordo com O Apóstolo em 19 de maio de 1907, ao informar
sobre os Collegios em Parnahyba:

Alegra-nos saber que na florescente cidade de Parnahyba


há dois prédios (sobrados) obtidos por sua Excia. Rvedma.
O Sr. Bispo Diocesano, destinados ao Collegio de meninos.
Prédios bem confortáveis, já preparados, tendo as
acomodações adaptadas ao fim a que se destinam.
Em dias do anno passado seguiu para alli o nosso amigo
Conego Joaquim Lopes [...] Em alli chegando e encarregado
por sua Excia. Revdma. para tratar da fundação dos
ditos Collegios e melhoramento nos edificios para elles
destinados [...] Quando sabemos chegaram hontem
naquella cidade as Irmãs de Santa Catharina para assumir
a direção daquelle Collegio.
É desejo do Exmo. Sr. Bispo Diocesano, logo em seguida a
installação do dito Collegio, enviar para aquela cidade em
Sacerdote que será o diretor espiritual do mesmo, fundador
e diretor do Collegio de meninos, o qual, no primeiro anno
funcionará somente com um externato, e do segundo
em diante também com internato [...]. (grifo nosso ).
(COLLEGIOS...O Apóstolo, 19 de maio, 1907, p.01)

A chegada de Dom Joaquim em Parnaíba ganhou destaque


no jornal parnaibano A Tribuna e foi reproduzida pelo jornal
católico de Teresina, O Apóstolo, em 1 de Setembro de 1907,
que intitulou de “D. JOAQUIM D´ALMEIDA o desembarque”
descrevendo a chegada e a festa realizada para Dom Joaquim
em Parnaíba.
Manhã primaveril e de encantos, essa em o symphatico e
talentoso Pastor da Egreja piauiense desembarcou nesta

188  Maria Dalva Fontenele Cerqueira


cidade.
Desde alguns dias, espalhara-se a grata notícia de que
s. Exc. Vinha pessoalmente installar o collégio dirigido
pelas virtuosas Irmãs de S. Catharina. E começaram
os preparativos da recepção. Não era somente os
preparartivos materiais das festas, mas os preparativos
intimos de uma alegria communicativa, que se traduzia
na anciedade com que todos esperavam a cada momento
o garboso barco em viajava o s. Exc. (D. JOAQUIM ...O
Apóstolo, 1 de set. 1907, p. 03).

O local de concentração dos parnaibanos para esperar


o bispo foi o Porto Salgado, atual Porto das Barcas, local do
desembarque do vapor Theresina. Uma multidão esperava
ansiosa pelos primeiros sinais que indicassem sua chegada para
começar os primeiros foguetes e dar início à festa, que contou
com a participação da Harmonia Parnaibana, a banda de música
municipal.

Na tarde de 25 já o povo parnahybano sabia, por boletins


profusamente espalhados, que o estrugir de uma balsa
girandola posta no Bebedouro seria o primeiro signal, o
brado alviçareiro da approximação do s. Exc.
[...]
Bellisima macha executada pela “Harmonia Parnahybana”
e innumeros foguetes que se cruzavam nos ares, casara-se
com as alegrias da Natureza e com as expansões daquelles
que iam levar ao nosso Bispo diocesano a demonstração
da sua amizade filial.
Chegou, finalmente, s. exc. à frente do caes da rua Grande,
onde estacionaram todos.
Assomou então à tribuna nosso talentoso e distincto
collega dr. Luiz de Moares Correia. Ia traduzir por palavras
o sentimento daquella mulltidão numerosa. E Luiz Correia
o fez a contento geral.
[...]
Em seguida, s. exc. dirigiu-se para um dos predios da Diocese,

COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA CATÓLICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR 189


EM PARNAÍBA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX
o tradicional sobrado contiguo a Egreja Matriz, o qual, depois de
transformado e adequado para o futuro collegio de meninos,
destinara-se a hospedagem do illustre visitante.
Todo o vasto prédio ficou literalmente cheio de pessoas
de todas asclases sociaies que iam aprsentar ao sr. d
Joaquim as suas saudações pessoaes. [...] (grifo nosso).
(D. JOAQUIM ...O Apóstolo, 1 de set. 1907, p. 03).

Passado a recepção de desembarque, Dom Joaquim


permanceu na cidade para a instalação do colégio feminino
de Parnaíba, que aconteceu em uma data importante para os
católicos, o dia de Corpus Christi, e também foi notícia no jornal
com o título “A installação do colégio para as meninas”:

Quiz o zeloso Pastor da Egreja piauhyense que a festa da


installação do Collegio das virtuosas irmãs de S. Catharina
se realizasse no dia em que a Egreja Catholica festeja o
corpo de Deus.
Ficou por assim designado o dia 30 às 8 horas da manhã.
S. exc. d. Joaquim deu entrada às 9 1/2 horas. Após as
cerimonias do estylo, fez se ouvir numa dissertação longa
e bem acabada o intelligente coadjuctor desta parochia,
revdm. Padre Afonso Lopes.
[...]
Seguiu-se com a palavra o illustrado padre Biano Emilio
Aranha, que pela primeira vez se fazia ouvir nesta cidade. (grifo
nosso).
(A INSTALLAÇÃO...O Apóstolo, 08 de set. 1907, p. 03).

Após a inauguração do colégio feminino, entregue para


ser administrado pelas Irmãs Catarina da Congregação Italiana
das Irmãs dos Pobres de Santa Catarina de Sena, no entanto,
para a direção do colégio masculino Parnaíba recebeu o padre
Bianor Aranha, que por falta de uma congregação masculina
disposta a administrar os colégios masculinos no Piauí, pelo

190  Maria Dalva Fontenele Cerqueira


menos naquele contexto, foi indicado pelo bispo para ser o
responsável pela criação e direção do colégio masculino.

Passou no dia 05 do corrente o anniversário natalício


do Rvdmo. Bianor Aranha que, no mesmo dia, seguiu
para Parnahyba, para fundar alli um externato, cuja
abertura o Exmo Sr. Bispo Diocesano confiou a sua
conhecida competência. Depois destes trabalhos o nosso amigo
regressará a esta capital, nos dando de novo o prazer de sua
amavel convivencia. Nossos Parabens. (grifo nosso). (O
APÓSTOLO, 07 de julho, 1907, p. 02).

Como podemos ver, segundo os editores do Apóstolo,


o padre Bianor Emilio Aranha5 foi escolhido pelo bispo para
fundar a escola masculina em Parnaíba, mas não iria permanecer
como seu diretor, depois de realizado a fundação do colégio
retornaria para Teresina, onde era Promotor da Camara
Eclesiástica e presidente da Sociedade Clerical, no entanto, no
mesmo jornal, os editores informam em 07 de julho de 1907,
que Bianor já estava em Parnaíba, com a missão de não apenas
fundar, mas dirigir o colégio masculino.

De volta de sua desobriga ao interior da freguesia que


esteve sob seu o cargo, passou alguns dias entre nós e
seguiu ante-hontem para a cidade de Parnahyba, este
digno sacerdote, nosso prezado amigo. O padre Biano vae


5
Nascido no dia 05 de julho de 1881, padre Bianor Emílio Aranha.
Estudou no Seminário da Paraíba, ordenou-se Presbítero em 05 de
novembro de 1905. De 1905 a 1906 assumiu a paroquia de Nova Cruz
. Na capital da Paraíba foi professor do Seminário. Veio para o Piauí
com Dom Joaquim de Almeida. No Piauí assumiu cargos como Diretor
do Colégio Diocesano, Reitor do Seminário, Cura da Catedral do
Piauí em 1908, e vigário de Parnaíba, onde fundou um colégio, sendo
diretor. Cf. Padre da Paróquia de Taipu VII https://cronicastaipuenses.
blogspot.com/2014/01/padres-da-paroquia-de-taipu-vii.html . Acesso
em 01/1/2018.

COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA CATÓLICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR 191


EM PARNAÍBA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX
para aquella cidade encarregado da direcção de um externato de
meninos, missão espinhosa, mas, de certo fructuosa, sob a
sua conhecida competencia.
O collegio que vae ser dirigido pelo zeloso sacerdote, para o anno
proximo, terá também um internato, satisfazendo assim aos
filhos daquela parte da Diocese no que pode desejar
sobre os estudos primarios e secundarios da movidade
parnahybana.
Desejamos prospera viagem ao Padre Bianor, fazemos voto
pelo bom exito do estabelecimento de educação, confiado
ao seu talento, ilustração e virtudes incontestaveis. (grifo
nosso). (PADRE...O Apóstolo. 07 de jul. 1907, p. 1).

Os editores d`Apóstolo avaliam que a missão recebida


pelo padre, ser diretor do colégio masculino em Parnaíba,
era “espinhosa”. O colégio começou suas atividades com
a modalidade de externato, mas a proposta era de expandir
as atividades com a criação de um internato, satisfazendo
ao desejo dos parnaibanos de terem um colégio primário e
secundário católico masculino na cidade.
Em Parnaíba, o colégio Dom Joaquim em setembro de
1907, já estava fundado e contava contando com um corpo
docente e discente dirigo pelo padre Bianor, que foi o primeiro
diretor do colégio, como podemos ver pela notícia d`Apóstolo
de 08 de setembro de 1907, que publicou uma nota intitulada
“Aniversário do Bispo”:

Comforme annunciâmos em o nosso ultimo numero,


passou a 17 deste o anniversario do inclyto Bispo desta
Diocese.
Parnahyba que estima deveras o exmo. sr. d. Joaquim,
festejou condignamente o dia 17, significando assim a
mais justa prova de amor ao distincto sacerdote que com
tanto zelo e prudencia dirige o baixel da Egreja piauhyense.
Houve alvorada pela banda musical Harmonia Parnahybana
dirigida pelo provecto maestro, nosso distincto amigo,

192  Maria Dalva Fontenele Cerqueira


capitão Pedro José Braga, a qual também esteve postada
no adro da Egreja de N.S da Graça, durante a cerimonia
da missa cantada.
[...]
No “Collegio D. Joaquim” houve feria e durante o dia
esteve hasteada a bandeira episcopal. À noite a fachada
do edificio ostentou profusa illuminação.
O director do “Collegio D. Joaquim”, o talentoso e illustre
padre Bianor E. Aranha telegraphou ao sr. Bispo nos seguintes
termos: “Exmo. Bispo Piauhy – Picos. Corpo directivo,
docente e discente “Collegio D. Joaquim” saudam
affectuosamente V. Exc ª pela memoravel data de hoje,
augurando felicidades para bem povo confiado sabio
governo espiritual V. Exc ª – Director Collegio”.
Esta sincera homenagem dignamente inspirada no
sentimento do povo parnahybano, synthetiza e exprime
eloquentemente a affinidade existente entre os seos brios e
caracter e as excelsas virtudes do preclaro Bispo diocesano.
(grifo nosso). (ANNIVERSARIO...O Apóstolo, 08 de set.
1907, p. 3).

Mais uma vez a banda de música, Harmonio Parnahybana,


participou da homenagem em prol do aniversário do bispo.
O Padre Bianor juntamente com o corpo docente e discente
do Colégio Dom Joaquim participou da organização da
comemoração, que de acordo com os editores d`O Apostolo,
manteve a bandeira episcopal hasteada durante todo o dia.
Após as comemorações, enviou um telegrama para a Diocese
do Piauí, em nome do Colégio, parabenizando o bispo, pela
passagem de seu aniversário.
A atuação do padre Bianor na direção do Colégio Dom
Joaquim em Parnaíba, lhe rendeu elogios por parte dos editores
d`O Apostolo, que publicaram em 22 de setembro de 1907, outra
notícia sobre seu trabalho, fazendo o seguinte comentário:

Segundo communicado que tivemos sabemos que o

COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA CATÓLICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR 193


EM PARNAÍBA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX
collegio D. Joaquim que, em Parnahyba, funcciona, sob a
competente direcção do padre Bianor Aranha, conta 78
alumnos.
É de esperar que para o anno vindouro, quando o
estabelecimento abrir o internato, seja muito frequentado
e dê optimos resultados o collegio destinado á mocidade
parnahybana. (O APÓSTOLO, 22 de set. 1907, p.03).

O Colégio Dom Joaquim, fundado em 1907, já contava


com 78 alunos matriculados, e o prognóstico, por parte
dos editores do jornal, era de que no ano seguinte, com a
abertura do internato, aumentasse o número de alunos, com
isso podemos identificar que o Colégio Diocesano gozava do
respeito e confiança daqueles que queria e podiam pagar para
que seus filhos estudassem em uma escola católica masculina,
e assim, não precisassem se deslocar para outros estados.
O padre Bianor se destacou na cidade, como diretor
do colégio, e ganhou a simpatia dos parnaibanos pelas ações
sociais que realizou quando esteve como vigário da Igreja, cargo
que assumiu também no segundo semestre de 1907.

Uma festa simples, porem que deixou grata imspressão no


publico, foi o natal dos pobres em Parnahyba.
Diversas sinhoritas e illustres cavalheiros se incubiram de
obter donativos para a festa dos pobres e a sociedade
parnahybana não se negou em attender a tão justo pedido.
Foram obtidas a importancia de 534: 560 e 460 cortes
de fazenda, sendo tudo distribuido à 650 pobres, pelo
Rvdmo, Padre Bianor Aranha, Dr. Mundico Marques, Dr.
Merval Veras e Coronel Sebastião Seixas, auxiliados pelos
incansaveis vicentinos.
Commemorando, assim, o grande dia em que o Filho de
Deus veio ao mundo, os promotores de tão edificante
festa, souberam dar o bello exempllo de caridade christã,
alliviando os soffrimentos da pobreza, a quem Jesus
Christo também amou. (NATAL...O APÓSTOLO, 23 de

194  Maria Dalva Fontenele Cerqueira


fev. 1908, p. 4).

Ao lado de membros da elite comercial, como: Dr.


Mundico Marques, Dr. Merval Veras e Coronel Sebastião
Seixas e membros da Sociedade de São Vicente de Paulo, padre
Bianor realizou o “natal dos pobres”, uma campanha da Igreja
Católica que recebeu apoio das famílias católicas da cidade,
cuja finalidade era arrecadar doações para os pobres urbanos6.
Pelas notícias veiculadas no jornal católico teresinense,
identificamos que nos primeiros meses de 1908, o bispo Dom
Joaquim realizou mudanças, em relação aos padres do norte
do Piauí e suas funções, pelo menos no que diz respito a
Parnaíba, o padre Bianor Aranha foi convocado pela Diocese
para retornar para Teresina, em fevereiro de 1908.
Para o cargo de diretor do Colégio Dom Joaquim, foi
nomeou o padre Antonio Menezes, que assim como Joaquim
Lopes, acompanhou o bispo na visita pastoral, que realizou
ao assumir o bispado, pelo interior do Piauí (O APÓSTOLO,
1907).

No vapor de cinco seguiu o nosso presado amigo padre


Antonio Menezes que na Parnahyba, vai assumir a direcção
do collegio diocesano D. Joaquim. Retirando-se de Theresina
o padre Antonio Menezes deixa boas relações no seio da
nossa sociedade.
Que seja feliz no meio de um povo bom e hospitaleiro,
para onde se dirige, e desempenhe a ardua missão de que
se acha incubido é o que deseja O Apostolo (grifo nosso).
(O APÓSTOLO, 09 de fev, 1908, p.01).


6
Sobre os pobres urbanos de Parnaíba Cf.: SILVA, Alexandre Welligton
dos Santos. A pobreza urbana em Parnaíba, Piauí (1890-1920). 259f.
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Ceará.
Programa de Pós-Graduação em História, Fortaleza, 2018.

COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA CATÓLICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR 195


EM PARNAÍBA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX
Em março, o padre Bianor Aranha deixou Parnaíba e a
direção do Colégio Dom Joaquim, como decidido pela diocese,
o que foi noticiado pelo editor do Apóstolo: “pelo último vapor
vindo de Parnahyba, chegou a Theresina o nosso estimado
amigo Padre Bianor Aranha que ha meses se achava naquella
cidade, na importante missão de Director do Collegio D.
Joaquim” (PADRE...O APÓSTOLO, 08 de março, 1908, p.1).
Com o retorno de Bianor Aranha para Teresina, o Cônego
Joaquim Lopes foi enviado para Parnaíba para assumir a
paróquia, que também estava sob sua responsabilidade.

Sabemos que o Revdmo. Conego Joaquim de Oliveira


Lopes digno vigario do Amparo, provisoriamente “pro
tempore” seguirá para Parnahyba no vapor de 5 deste mez,
a fim de continuar a sua commissão interrompida pelos
trabalhos da visita pastoral em que acompanhou ao Exmo.
Senr. Bispo Diocesano, em dias do ano p. passado.
Os filhos de Parnahyba muito devem aos esforços e
dedicação do Revdmo Conego Lopes que, dentro de
poucos mezes que alli passou, prestou relevantes serviços a
causa da religião e ao adienatamento material da Cidade.
Assim é que sabemos ter a sua Revdma. Promovido
e conseguido fazer novos altares e reformar outros,
embellesar e ornar a Matriz e a Igreja do Rosário, já no
seu interior com jardinagem, etc., comprar e reconstruir
dois grandes edificios em que funccionão o externato
de meninos e o Collegios das dignas e vistuosos Irmães
de Santa Catharina, já bem conhecidas e acreditadas
entre nós pelo devotamento a causa da educação sã da
mocidade de nosso caro Piauhy.
[...]
Não pretendemos offender a sua tradicinal modestia,
porem somente queremos manifestar nossa gratidão pela
parte que nos toca em tão imitavel dedicação a causa do
bem. Ao Revedmo. C. Lopes que vai a Parnahyba terminar
os serviços iniciados em commisão confiada pelo Senr.
Bispo, desejamos boa viagem, muitas felicidades e quanto

196  Maria Dalva Fontenele Cerqueira


antes volte a sua freguesia do Amparo que tambem muito
espera de seu zelo sacerdotal.
Aos bons filhos de Parnahyba enviamos nossas felicitações,
por merecerem ter em seu seio tão virtuosos Sacerdote,
ainda que por pouco tempo, porquanto sabemos que
o Exmo. Senr. Bispo deseja conserva-lo ao seu lado em
sua freguesia de N. Senhora do Amparo, nesta capital.
(CONEGO...O APÓSTOLO, 1 de mar. 1908, p. 1).

Antes da criação da Diocese do Piauí, o padre Joaquim


Lopes se fazia presente entre os parnaibanos, como diretor do
Apostolado da Oração, participando de festas e realizações de
batismos e primeira eucaristia, juntamente com o vigário local,
padre Joaquim Antonio de S. Leal. Além de dirigir o Apostolado
da Oração, Joaquim Lopes foi um dos líderes da campanha
pela criação da Diocese do Piauí (SOUSA NETO, 2011), e com
a criação do bispado foi nomeado por Dom Joaquim para
preparar os prédios para a fundação dos colégios católicos.

[...] A irmandade do Sagrado Coração de Jesus, sempre


solicita ao cumprimento de seus sacros deveres, ha enviado
todos os esforços a im de dar o maior esplendor possível
aos referidos festejos.
O revd. Padre Joaquim Lopes, o propagandista do
Apostolado da Oração entre nós, a pedido da mesma
irmandade, resolveu demorar sua viagem ao Maranhão, a
fim de celebrar os festejos. (NORTISTA, 1901, p.2).

Ainda sobre as atividades do padre Joaquim Lopes em


Parnaíba, o Nortista publicou outa notícia no mês de junho de
1901 na coluna intitulada “Pela Igreja” sobre a festa da primeira
comunhão realizada na Igreja Matriz.

A 14 do corrente teve logar a festa da primeira communhão


das creanças. [...]

COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA CATÓLICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR 197


EM PARNAÍBA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX
Ainda pelas 7 horas da manhã o Revm. Padre Joaquim
Lopes deu começo a missa convetual e depois de recitar o
Evangelho, com aquella verbosidade que dispõe, fez uma
eloquente allocução concernente a solemnidade do dia.
[...] (NORTISTA, 1901, p. 2).

Em 1907, o padre Leal, como era conhecido, estava


dirigindo a paróquia de Piracuruca (APOSTOLO, 1907),
ficando em Parnaíba como Co-adjuntor o padre Afonso Lopes,
com sua saída da cidade, o padre Bianor passou a ser diretor
do Colégio Dom Joaquim e vigário local.
Após a divulgação das decisões tomadas pela Diocese do
Piauí em relação à paróquia de Parnaíba, alguns parnaibanos,
conhecidos como “os três católicos” não gostaram da notícia,
e por isso, passaram a publicar boletins cujo teor se referia a
decisão do bispo em transferência o padre Bianor Aranha para
Teresina. Esses boletins foram classificados pelos redatores
do Apóstolo, como ofensivos ao bispo diocesano, tendo início
à “questão Lopes-Bianor”, envolvendo os parnaibanos e a
Diocese de Piauí.
O boletim estava sendo distribuído em Parnaíba, mas
os autores não se identificavam, eram assinados como os
“Três Catholicos”, o que para os editores d`O Apostolo era uma
afronta ainda maior, pelo fato de serem católicas as pessoas
que estavam, segundo eles, atacando o bispo e gerando a
questão que ficou conhecida como Lopes-Bianor.

Antes de sahir do prélo o nosso último número já tinhamos


em nosso poder o violente boletim distribuido na cidade
da Parnahyba, vilipendiando a pessoa venerada do nosso
muito distincto Bispo Diocesano e atacando a sua direção
sabia, criteriosa e prudente.
[...]
Querendo o Sr. Bispo satisfazer o desejo que tinham
os Parnahybanos de um collegio para meninos,

198  Maria Dalva Fontenele Cerqueira


commissionou-o, em julho do anno passado, para abrir o
dito collegio, depois de cujo trabalho, tinha que regressar
a esta cidade, como se vê do numero 8 d`O Apostolo, 2
pag.. Era, portanto, somente por algum tempo a estadia
do padre Bianor em Parnahyba.
[...]
Em fim do anno passado, obtendo o padre Affonso para
ir visitar a sua familia no Rio Grande do Norte, ficou
substituindo-o, com provisão verbal, o padre Bianor.
Querendo o Sr. Bispo que o conego Joaquim Lopes, logo
que chegasse de Picos, fosse continuar a regencia da
freguesia de Parnahyba onde o mesmo conego gosa de
reaes sympathias, [...], Nomeou o padre Antonio Menezes
director do collegio aberto pelo padre Bianor, determinou
que este voltasse a esta cidade logo que ali chegasse o
conego Joaquim Lopes”. (PELA...O Apóstolo, 05 de abril,
1908, p. 1).

. Com a transferência do padre Bianor para Teresina, foi


enviado para Parnaíba o padre Antonio Menezes, em fevereiro
1908, para substituti-lo na direção do Colégio Dom Joaquim,
no entanto, permaneceu pouco tempo em Parnaíba.
Em 1909, o padre Olegário Memória, foi enviado para
Parnaíba substitutindo o padre Antonio Menezes, na direção
do Colegio Dom Joaquim, que assumiu a paróquia de Piripiri, e
recebeu um ajudante como informa o Apóstolo: “com destino a
Parnahyba onde vai auxiliar no Collegio Diocesano dalli, seguiu,
a dias o digno moço José Escorcio Netto, que entre nós deixou
bem firmadas amisades pelo seu exemplar comportamento e
pelas suas boas qualidades (O APÓSTOLO, 1908, p. 02).
O padre Olegário Memória que chegou a Parnaíba em
1909, em abril de 1912 já se encontrava em Piripiri, como
vigário da cidade. (O APÓSTOLO, 1912). Mesmo que limitados
pelas fontes acreditamos que o padre Olegário Memória, foi o
último diretor do Colégio Dom Joaquim, que segundo Lopes
(2016) o colégio funcionou apenas por três anos.

COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA CATÓLICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR 199


EM PARNAÍBA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX
Considerações finais

A pesquisa revelou que as ações da Igreja Católica,


relacionadas à fundação de escolas confessionais nos primeiros
anos do século XX, não se limitaram a Teresina, capital do
Estado, mas se estenderam para a cidade de Parnaíba, onde a
Igreja Católica fundou dois colégios para atender com educação
católica o público masculino e feminino.
A partir da análise das notícias nos jornais, foi possível
identificar que o Colégio Dom Joaquim, destinado ao masculino,
fundado em 1907 funcionou em um prédio adaptado na Praça
da Matriz, atual da Praça da Graça, tendo como primeiro
diretor o padre Bianor Aranha.
Como mostrou a pesquisa o Colégio Dom Joaquim não se
consolidou como uma instituição escolar masculino na cidade.
Com o fechamento do colégio católico masculino, a Igreja
Católica manteve em funcionamento o colégio católico dirigido
pelas Irmãs Catarina da Congregação das Irmãs dos Pobres de
Santa Catarina de Sena, dedicado ao público feminino.

Referências

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Apostolo. Theresina, anno 1, nº 17, p. 3. 08 de Setembro de
1907.

ANNIVERSARIO do Sr. Bispo. O Apóstolo, Theresina, ano 1,


n. 17, p.3, 08 de Setembro de 1907.

BISPADO do Piauí. Nortista. Parnaíba, anno 1, n. 20, p. 01 de


18 de maio de 1901.

CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. Famílias e escritas:


A prática discursiva dos literatos e as relações familiares
em Teresina nas primeiras décadas do século XX. 348f.

200  Maria Dalva Fontenele Cerqueira


Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2005.

CORREIA, Benedicto Jonas; LIMA, Benedicto dos Santos. O


livro do centenário de Parnaíba. Parnaíba: Gráfica Americana,
1945.

CONEGO Joaquim Lopes. O Apóstolo, Theresina – Piauhy,


anno I, n. 1. 30 de junho de 1907.

CONEGO Joaquim Lopes. O Apóstolo, Theresina – Piauhy,


anno I, n. 41. 1 de março de 1908.

COLLEGIO de N. Senhora das Graças. A Cruz, Parnahyba,


Piauhy, 4 de abril de anno I, n. I, 1915, p.04

COLLEGIOS em Parnahyba, O Apóstolo, Theresina – Piauhy,


anno I, n. 1. 19 de maio de 1907.

D. JOAQUIM D´ALMEIDA – o desembarque. O Apóstolo.


Theresina, anno I, n. 16. 1, p.03, 1º de Setembro de 1907.

ESCORÇO Histórico da Diocese do Piauhy. O Apóstolo


.Theresina, anno I, n. 25, p. 4 de 3 de novembro de 1901.

FONSECA NETO, Antonio; LIBÓRIO, Paulo. Dom Joaquim.


Teresina: Livraria Nova Aliança Editora, 2016.

HOMENAGEM a Jesus Chisto Redentor. Nortista, Parnahyba,


anno 1, n. 1, p.4, 1 de janeiro de 1901,

LUCA, Tania Regina de. Fontes impressas: História dos, nos


e por meio dos períodicos. In: Carla Bessanezi Pinsk (Org.).
Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2011.

COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA CATÓLICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR 201


EM PARNAÍBA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX
LOPES, Antonio de Pádua Carvalho. Os discursos em torno
do retorno dos jesuítas ao Piauí na década de 1960: o Colégio
Diocesano entre constinuidades e rupturas. In: SOUSA, Carlos
Ângelo de Menese; CAVALCANTE, Maria Juraci Maia. (Orgs.).
Os jesuítas no Brasil: entre a Colônia e a República. Brasília:
Liver Livro, 2016, p. 267-287.

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1901.

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202  Maria Dalva Fontenele Cerqueira


PELA Igreja. Nortista, Parnahyba, anno 1, n. 25, p.2, 22 de
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Parnaíba, Piauí (1890-1920). 259f. Dissertação (Mestrado em
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sociedade política e educação no Piauí (1820-1850). Teresina:
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19 de maio de 1907.

COLÉGIO DOM JOAQUIM: A IGREJA CATÓLICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR 203


EM PARNAÍBA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XX
CATOLICISMO NA CULTURA
ESCOLAR: O INSTITUTO MONSENHOR
HIPÓLITO EM PICOS-PI SOB A
INFLUÊNCIA DO ULTRAMONTANISMO
(1944-1960)

Lanna Karen Lima Araujo


Francisco de Assis de Sousa Nascimento

INTRODUÇÃO

Em razão do processo colonizador português, o Brasil


emergiu fundamentado em uma matriz cristã europeia que
perdurou e imprime traços à identidade nacional até hoje.
Embora esse processo não se tenha dado sem resistências,1
os europeus buscaram instituir, compulsoriamente, aos povos
colonizados hábitos, crenças e costumes provenientes da
cultura colonizadora. Dentre esses aspectos, estava a base
religiosa monoteísta cristã, que, das mais variadas maneiras,


1
A respeito disso, ver: SOUZA, Laura de Mello. O Diabo e a terra de
Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986; FREYRE, Gilberto.
Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000.

CATOLICISMO NA CULTURA ESCOLAR: O INSTITUTO MONSENHOR 205


HIPÓLITO EM PICOS-PI SOB INFLUÊNCIA DO ULTRAMONTANISMO (1944-1960)
em uma tentativa de imposição, fora determinada tanto aos
indígenas que habitavam todo o continente quanto aos negros
trazidos da África como mão de obra escrava.
Assim, a amálgama de crenças e práticas religiosas, sob um
mesmo território, ocasionaria uma heterogeneização do ponto
de vista espiritual e dogmático. Porém, apesar da diversificação
de religiosidades, características daquele espaço, com todas
as suas implicações específicas, constituiu-se inegável a força
que a religião católica exerceu no cerne da estruturação do
País, sendo inclusive a que até hoje conta o maior número de
adeptos,2 levando-se em conta a representação3 atribuída a
essa durante muito tempo enquanto religião oficial do Estado.
Essas características, por conseguinte, ultrapassaram o
período colonial, arrastando-se por outros tantos momentos da
história brasileira, de modo que perdurou ao Período Imperial,
quando, em uma aproximação direta entre Monarquia e
autoridades eclesiásticas, esses últimos desempenhavam tarefas
que iam além do âmbito religioso, pois ocupavam inúmeras
funções civis e estavam diretamente ligados à corporação
social como um todo, numa ideia de submissão aos poderes
do Estado imperial.
Foi, contudo, no século XIX, por meio do Golpe de
Estado político-militar que se efetuou a Proclamação da
República Federativa do Brasil; e, instigados por ideais liberais,
cientificistas e ditos progressistas, os republicanos instituíram,


2
Essa constatação foi possível com base no Recenseamento Geral do
IBGE do ano de 2010, ao apontar que, embora o número de católicos
tenha diminuído em razão da diversidade de outros grupos religiosos,
esse ainda permanece sendo o mais volumoso em relação ao número
de adeptos. Disponível em: <https://www.cps.fgv.br/cps/religiao/>.
Acesso em: 15 mar. 2019.

3
Ao longo dessa produção, o conceito de representação é utilizado
tendo como base: CHARTIER, Roger. O mundo como representação.
Trad. Patrícia Chitoni Ramos. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

206  Lanna Karen Lima Araujo • Francisco de Assis de Sousa Nascimento


ao menos em tese, que a nova forma política vigente no Brasil
separaria os poderes estatais e eclesiásticos, limitando a
atuação social dos últimos. Sob outras justificativas estava o
argumento de que as limitações de ordem religiosa estariam
impedindo o progresso do País, ficando a partir de então cada
um sob responsabilidades próprias e sem influências diretas no
exercício da outra.
Por consequência, a Igreja católica, pega de surpresa
por essa medida imprevisível, interpretou tal ato como algo
negativo ao poder temporal religioso, que se assentava na
ideia de universalidade, e, a partir de então, seria prejudicada
pelas limitações de atuação na vida dos cristãos, podendo
fazer determinações apenas ao que dissesse respeito ao âmbito
religioso. Deste modo, viu-se desafiada a tomar medidas que
contornassem a situação, a fim de demonstrar ao Estado que
ambos os poderes – religiosos e estatais – deveriam estar aliados
para a obtenção de uma ordem social, objetivada por ambos.
Após esse momento de desestruturação da Igreja
Católica brasileira, ocasionada pelo fim do Padroado entre
Igreja e Estado, seguida de tentativas de recuperação do
poder social, a instituição eclesiástica começa a elaboração de
variadas estratégias de ação4 a fim de recuperar a autoridade
institucional legítima, ações essas que giravam em torno, por
exemplo, da criação de congregações religiosas e a fundação
de escolas confessionais, com objetivos bem definidos de
evangelizar e educar crianças e jovens tendo como base os
dogmas cristãos.
Nessa perspectiva, encontra-se inserido o nosso objeto de
estudo, que se assenta em torno da análise de como o Instituto
Monsenhor Hipólito (IMH), escola de caráter confessional,


4
A respeito disso, ver: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano:
1. Artes de fazer. 5. ed. Tradução de Ephram Ferreira Alves. Petrópolis:
Vozes, 2000.

CATOLICISMO NA CULTURA ESCOLAR: O INSTITUTO MONSENHOR 207


HIPÓLITO EM PICOS-PI SOB INFLUÊNCIA DO ULTRAMONTANISMO (1944-1960)
situada em uma cidade de médio porte, denominada de Picos,
localizada a aproximadamente 300 km de Teresina, capital do
Estado do Piauí, e dirigida pela ordem religiosa feminina das
Irmãs Cordimarianas, se encontrava inserida nessa proposta
de catolicismo ultramontano,5 instituído a partir do período
republicano, como forma de combater a perda de fiéis que a
religião cristã vinha efetivamente sofrendo, em consequência
da destituição do posto de religião oficial do Estado brasileiro.
Apresentam-se como principais objetivos dessa produção
discutir como as mulheres católicas brasileiras foram inseridas,
em uma perspectiva mais geral, dentro dessa nova proposta
de catolicismo; ressaltar, além das tarefas designadas a essas
pelo grupo eclesiástico brasileiro a partir de propósitos bem
definidos, as possibilidades de ganhos que elas podiam aspirar,
com base no engajamento religioso em serviços voluntários
ligados diretamente à Igreja, ressignificando suas práticas
católicas. Além disso, buscamos explorar como especificamente
essa instituição escolar de bases católicas contribuía com
esse projeto ultramontano de reaproximação do povo a
Igreja, através das obras evangelizadoras, educacionais e de
engajamento cristão; e, por fim, perceber as representações
atribuídas a essa escola, na formação das identidades católicas
de suas alunas.
O recorte espacial, por sua vez, compreende a cidade de
Picos-PI, onde está situada a Instituição de Ensino Confessional
em análise, e ainda por constituir espaço geográfico da pesquisa
em andamento em nível de Mestrado da qual esse artigo é


5
Ultramontano vem do latim ultramontanus que significa além dos
montes. No catolicismo, a expressão faz referência ao importante papel
que os fiéis atribuem ao Papa no direcionamento da fé e da religião.
Mesmo que inicialmente o termo fizesse referência aos franceses no
período da Revolução Francesa e das tendências separatistas, esse
passou a ser usado por católicos de diversos países como forma de
indicar uma igreja marcada pelo centralismo romano.

208  Lanna Karen Lima Araujo • Francisco de Assis de Sousa Nascimento


fruto. Por sua vez, o recorte cronológico data de 1944, por ser
a data de fundação da escola, e vai até 1960, em razão das
fontes de pesquisa em uso, embora não seja um recorte fixo e
limitativo, sendo recorrente menção a períodos antecedentes
ou sucessores desse período aqui definido sempre que se fizer
necessário.
Desse modo, com o intuito de alcançar os objetivos
traçados, a metodologia utilizada para essa escrita constitui-
se de bibliografia sobre a temática, através de autores como
Roseli Boschila, André Luís Caes, Francisco Miguel de Moura
e Renato Duarte; teóricos como Michel de Certeau e Roger
Chartier.
A empiria, por sua vez, é constituída de documentos
eclesiásticos da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios –
Igreja matriz da cidade –, somada a fragmentos de memórias
a partir de relatos orais de quatro ex-alunas da instituição,
que tinham em comum, além de habitarem a área urbana
de Picos e pertencerem a famílias de classe média, viver nas
temporalidades em análise o período de adolescência.

CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS E ESCOLAS


CONFESSIONAIS COMO ESTRATÉGIAS DE AÇÃO DO
CATOLICISMO ULTRAMONTANO NO BRASIL

Desde a separação oficial com o poder estatal, a Igreja


Católica passou a praticar as determinações da Santa Sé, com
características mais romanizadas e ultramontanas. Nessa nova
forma, bispos e padres recebiam orientações de Roma, sem que
essas estivessem diretamente ligadas à intervenção do Estado
brasileiro, como acontecia anteriormente ao fim da relação de
Padroado.
A separação entre Igreja e Estado, aliada, por exemplo,
a momentos de celebração da emancipação dos indivíduos,

CATOLICISMO NA CULTURA ESCOLAR: O INSTITUTO MONSENHOR 209


HIPÓLITO EM PICOS-PI SOB INFLUÊNCIA DO ULTRAMONTANISMO (1944-1960)
inspirados nos ideais revolucionários franceses, como o de
liberdade, causava aos dirigentes católicos a impressão de uma
sociedade emancipada de Deus e desprendida de autoridade,
implicando consequentemente na relação estabelecida entre
Igreja e povo.
Portanto, essa sociedade considerada caótica e
desalinhada necessitaria ser restaurada pelo catolicismo, e
para tanto, se fazia necessário que todos os membros que a
formavam estivessem empenhados nesse processo desafiador.
Era perceptível o quanto “a hierarquia católica empenhava-se,
por ocasião da República, no restabelecimento institucional da
Igreja e proclamava sua obra de recatolização da sociedade e
do estado” (DIAS, 1996, p. 222).
Esse esforço e dedicação, portanto, foram resultantes da
elaboração de planos estratégicos de atuação pelos membros
da Igreja Católica, objetivando o envolvimento de leigos e leigas
em uma nova forma de espiritualidade, via de combate ao que a
Igreja considerava de vícios modernos, compreendendo a gama
de possibilidades6 que a modernidade emergente a partir do
século XX possibilitava aos indivíduos, ocasionando segundo
essa mesma lógica a degradação moral da sociedade brasileira.
Desde o Período Colonial, o mecanismo educacional foi
importante técnica que os colonizadores utilizaram, através dos
padres catequizadores jesuítas, na busca de uma autoridade
espiritual cristã, o que veio a se expandir posteriormente com
a criação de demais congregações voltadas aos trabalhos de
evangelização e educação como os Franciscanos, Beneditinos,
Carmelitas, Dominicanos, Irmãs Cordimarianas, entre outros.


6
Alguns desses considerados males modernos, na perspectiva cristã,
referiam-se ao uso da pílula anticoncepcional e uso de minissaias pelas
mulheres, a indissolubilidade do casamento, por meio da legalização
do divórcio e outras questões que iam em desacordo aos dogmas
católicos.

210  Lanna Karen Lima Araujo • Francisco de Assis de Sousa Nascimento


Embora os padres jesuítas tenham sido expulsos pelo Decreto
de Marquês de Pombal, em 1759, em razão de este acreditar
que a Companhia de Jesus estava dotada de poder e de uma
autonomia econômica que chegava a ameaçar o poderio
português, a educação cristã continuou a ser desempenhada
em todo o território nacional, perpassando séculos da história,
configurando assim uma forma letrada de transmissão da
cultura com sustentação católica (AZEVEDO, 2010, p. 48).
Portanto, no Período Republicano, por meio da ideia
de laicização do Estado e da incompatibilidade desse sistema
político que se pretendia liberal, racional e emancipador com
a permanência e transmissão do ensino religioso a crianças e
jovens por meio das escolas, o alto Clero se viu desafiado a
ressaltar a importância de que crianças e jovens continuassem a
ser educados tendo como base uma educação familiar, religiosa
e social coerentes; essas que consequentemente deveriam ter
como alicerce os princípios religiosos, maneira pela qual se
acreditava garantir o ordenamento social que perpassava,
principalmente, pelas mãos dos jovens, categoria-alvo das
ações da Igreja, por serem esses percebidos enquanto propícios
para a degradação moral, ocasionada pelas possibilidades
modernas.
Assim, a Igreja começava as tentativas de reaproximação
com o Estado, não mais da forma que outrora havia se
dado, posto que estava submetida aos poderes estatais,
mas numa perspectiva de comprometimento e união, em
que essa instituição religiosa, aliada a outras corporações de
poderes sociais como o Estado e a família, pudesse garantir o
modelamento dos corpos e das condutas dos sujeitos, evitando
desvios e lançando mão de mecanismos discursivos como o de
que o Estado também necessitaria dessa aliança, uma vez que
agindo em consonância com ela a Igreja interferiria através

CATOLICISMO NA CULTURA ESCOLAR: O INSTITUTO MONSENHOR 211


HIPÓLITO EM PICOS-PI SOB INFLUÊNCIA DO ULTRAMONTANISMO (1944-1960)
do poder espiritual de forma a orientar que estes fiéis se
mantivessem obedientes às determinações estatais. Em suma:

Para reconquistar o espaço do saber e do poder, a Igreja


procurava construir um discurso calcado em princípios
éticos e morais, atrelando a necessidade de disciplina como
forma segura para a manutenção da ordem social. Buscou
a família como parceira nesse processo, enfatizando a sua
responsabilidade pela escolha da educação formal dos
filhos (BOSCHILIA, 2005, p. 95).

Deste modo, percebemos que, à luz dos valores cristãos,


houve a criação e expansão de escolas católicas a partir do
século XIX, direcionadas especialmente à educação dos filhos de
famílias mais abastadas, por serem geralmente instituições de
iniciativas privadas que fizeram parte das estratégias das Igrejas
na busca da reestruturação da instituição e da catolização dos
brasileiros. À medida que crianças e jovens passavam cada
vez mais tempo nas escolas, era fundamental que os pais e
mães escolhessem espaços educacionais adequados, que
garantissem que os ensinamentos repassados naquele recinto
ultrapassassem os limites geográficos da escola, garantindo
assim que esses alunos recebessem formações éticas e morais
que os preparassem para a vida.
Essas escolas eram geralmente fundadas e administradas
por congregações religiosas, em consonância com as dioceses
e paróquias locais, buscando assim cada vez mais convencer
as famílias e o Estado como um todo de que o ensino laico era
inapropriado à formação de boa conduta dos jovens, e que,
uma vez realizado, causaria como consequência os desarranjos
sociais, indesejados pelas famílias e pelo Estado.
Tais congregações religiosas, na mesma dialética
de inserção dos objetivos elaborados pelo catolicismo
ultramontano, fizeram parte dos dispositivos pensados para,

212  Lanna Karen Lima Araujo • Francisco de Assis de Sousa Nascimento


nesse caso específico, aproximar pessoas leigas da organização
estrutural das igrejas, com objetivos bem traçados que, dentre
eles, vislumbravam que essa participação mais ativa dos fiéis
poderia fortalecer o vínculo entre a instituição e o povo,7 ficando
os últimos a desempenharem, do ponto de vista prático, as
metas traçadas pelos bispos e padres orientados pela Santa Sé.
E, por sua vez, fortalecer a visibilidade institucional das Igrejas
católicas brasileiras no cerne da organização social, bem como
para motivar a participação e engajamento de outros fiéis, por
meio de obras de evangelização.
Essas congregações religiosas eram grupos que podiam
ser formados somente por homens ou mulheres, ou ainda
a categoria mista, que mesclava a participação de leigos e
leigas. Essas organizações católicas se formavam no interior
das paróquias e geralmente tinham devoções próprias
voltadas à representação atribuída a algum santo ou santa
pelo catolicismo. Para além dos rituais de orações, esses
grupos assumiam tarefas de caráter social, desempenhando
trabalhos voltados para a população, na forma de assistência
de caridade e processos educacionais, por exemplo, como pode
ser verificado adiante.
Todavia, ao passo que esses recursos foram elaborados
com objetivos específicos, devemos levar em conta as múltiplas


7
Essa aproximação maior entre Igreja e povo, na perspectiva em que
analisamos, indica-nos, com base na leitura de Marina Bandeira,
que esse processo de junção estava articulado ao momento de
descentralização das elites eclesiásticas brasileiras, que começa a
vigorar mais significativamente a partir do século XX, justamente pela
necessidade sentida pela instituição de se realocar como aliada perante
as necessidades sociais para agregar fiéis em convergência ao objetivo
maior referente à recatolização da sociedade e ao reestabelecimento
do poder social de outrora. A respeito disso ver: BANDEIRA, Marina.
A Igreja Católica na virada da Questão Social (1930- 1964): anotações
para uma história da Igreja no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

CATOLICISMO NA CULTURA ESCOLAR: O INSTITUTO MONSENHOR 213


HIPÓLITO EM PICOS-PI SOB INFLUÊNCIA DO ULTRAMONTANISMO (1944-1960)
formas de consumo que esses subterfúgios discursivos e
estratégicos foram incorporados e readequados pela população
brasileira, em especial jovens e mulheres, público-alvo das ações
ultramontanas (CAES, 2002, p. 142).
Tendo abordado de forma mais geral quais as lógicas
encontradas pelo episcopado brasileiro, na elaboração de
mecanismos que atingissem a população cristã brasileira,
de modo a convencê-la a embarcar nessa empreitada de
fortalecimento institucional e espiritual da Igreja Católica, e
que com isso pudesse cada vez mais aumentar o número de
católicos praticantes, buscaremos observar, de modo mais
específico, como a atuação de uma ordem religiosa feminina
específica, denominada de Irmãs Cordimarianas, e as suas
atuações no âmbito educativo em uma cidade do interior do
Estado piauiense se encontravam interligadas a esse projeto
mais abrangente que estava sendo desenvolvido no País
concomitantemente.
Dessa forma, buscaremos evidenciar no tópico a seguir
como se deu a articulação e o desenvolvimento da criação de
uma escola confessional no município de Picos-PI, quais os
trabalhos desenvolvidos por essas Irmãs Cordimarianas que
dirigem a instituição, discutindo quais as regalias a partir dessas
identificações e atuações, enquanto mulheres católicas, e ainda
analisar como, do ponto de vista prático, essa instituição de
ensino em consonância as paróquias locais contribuiu na
formação das identidades de católicas de suas alunas, uma vez
que, no período em análise, a escola destinava seus serviços
apenas ao público feminino, percebendo a representação que
essa instituição ocupava desde as impressões mais particulares
as representações mais coletivas.8


8
Ver: HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Laurent Léon
Scaffter. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

214  Lanna Karen Lima Araujo • Francisco de Assis de Sousa Nascimento


O INSTITUTO MONSENHOR HIPÓLITO EM PICOS-PI

Picos-PI é uma cidade que, dentre outras características


relevantes, é conhecida no cenário estadual e até nacional pela
presença da forte religiosidade de seus habitantes, em especial
por meio da manifestação da religião Católica Apostólica
Romana.9 Um espaço que desde a sua povoação e edificação
o fator religioso esteve diretamente imbricado às vivências dos
picoenses, se mostrando enquanto terra fecunda no que se refere
ao engajamento de pessoas leigas e a vocações sacerdotais;
pessoas essas que buscam cada vez mais desenvolver e fortalecer
os aspectos municipais tendo como eixo os dogmas católicos
(ALBANO, 2011, p. 37).
Foi a partir de uma dessas aspirações pessoais que o
religioso Monsenhor João Hipólito de Sousa Ferreira manifestou
como anseio a construção de uma escola em Picos, sua terra
natal, que fosse dirigida por uma irmandade religiosa e tivesse
como suporte dos ensinamentos repassados um processo de
qualidade à luz dos valores cristãos.
Pouco se sabe e não há quase nada registrado a respeito
de outras possíveis motivações que não sejam a respeito
do projeto pessoal do Monsenhor Hipólito já mencionado,
deixando em aberto hipóteses possíveis, que giram em torno,
por exemplo, de suposições que esse desejo mais particular
estivesse interligado a perspectivas mais ambiciosas e coletivas,
podendo agregar esse anseio pessoal a um projeto mais


9
O senso de 1950, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatísticas (IBGE), aponta, em relação ao fator religioso, a
manifestação cristã como preponderante; conta com o maior número
de adeptos no município, e esses números são divididos na perspectiva
do gênero feminino e masculino; o número maior relacionado ao
primeiro se sobrepunha em relação ao segundo (Fonte: Enciclopédia
dos municípios brasileiros com base no Recenseamento Geral do IBGE
de 1950).

CATOLICISMO NA CULTURA ESCOLAR: O INSTITUTO MONSENHOR 215


HIPÓLITO EM PICOS-PI SOB INFLUÊNCIA DO ULTRAMONTANISMO (1944-1960)
abrangente da Igreja local, que estaria inevitavelmente ligada
a projeções mais globais, seguindo a estrutura hierárquica que
essa instituição adotou no período com suporte de orientações
em Roma.
Dessa maneira, o que consta uniformemente na
bibliografia analisada, a respeito da temática, é o fato de
que não foi possível a execução desse desejo pelo próprio
Monsenhor Hipólito, sendo interrompido por sua morte. O
que, no entanto, não cessou por completo o projeto. Uma vez
que, internado por volta do ano de 1943, no Hospital Getúlio
Vargas (HGV), na cidade de Teresina-PI, o Monsenhor recebera
a visita do seu sobrinho, o Padre Paulo Libório,10 do qual fora
informado desse anseio da criação de uma escola católica pelo
próprio Monsenhor Hipólito.
Após a morte do seu tio, o Pe. Paulo Libório, decidido a dar
prosseguimento ao desejo de Monsenhor Hipólito, entrara em
contato com Dom Severino – terceiro Bispo e primeiro Arcebispo
do Piauí –, ambos, em comum acordo a desenvolver o projeto
da escola na cidade de Picos, fizeram contato com a Madre
Maria de Jesus, supervisora geral das Irmãs Cordimarianas11 em
Teresina, a qual o Pe. Libório já havia conhecido no HGV, em
10
Nascido em 10 de outubro de 1913. Ingressou no Seminário de Teresina
em 2 de fevereiro de 1929. Em Teresina, foi nomeado professor do
Seminário, depois diretor do Colégio Diocesano, reitor do Seminário
e vigário-geral da Diocese de Teresina. Eleito bispo da Diocese de
Caruaru pelo Papa Pio XII, aos 15 de março de 1949, e posteriormente
eleito bispo da Diocese de Parnaíba.

11
A congregação das Filhas do Coração Imaculado de Maria ou Irmãs
Cordimarianas é uma associação composta só por mulheres, se
espelhando no modelo máximo de representação feminina para a
Igreja Católica que é a figura de Maria, sob a conjuntura de pureza,
castidade, benevolência e caridade. A respeito disso, ver: SANTOS,
Maria do Desterro Rocha. ENTRE MEMÓRIAS E SONHOS. Picos-PI,
2016.

216  Lanna Karen Lima Araujo • Francisco de Assis de Sousa Nascimento


visita ao seu tio, onde a congregação desenvolvia assistência
voluntária aos enfermos que ali se encontravam hospitalizados.
Ao aceitar o convite para fundar a escola em Picos, as
Irmãs Cordimarianas, sob as determinações da Madre Maria
de Jesus, encerram as atividades de cunho assistencialista
no hospital em Teresina e começam uma nova empreitada
de dirigir, em consonância com a Igreja de Nossa Senhora
dos Remédios, atual Igreja Matriz, uma obra educativa, por
conseguinte, evangelizadora de jovens. Neste sentido, uma
de nossas entrevistadas, ao comparar presente e passado,
afirma que “hoje já tá tudo mudado, mas antigamente, lá no
Colégio das Irmãs, era tudo voltado para a questão religiosa”
(MONTEIRO, 2019).
No entanto, inserido nesse momento de intensificação da
fundação de escolas católicas, dirigidas por ordens religiosas,
destinadas à educação dos filhos e filhas de famílias abastadas,
que teve do final do século XIX ao início do século XX o seu
auge, foi inaugurado em Picos-PI, no dia 5 de março de 1944, o
Instituto Monsenhor Hipólito, nome atribuído em homenagem
a seu idealizador. O evento festivo contou com a presença do
Pe. Paulo Libório, de autoridades eclesiásticas e municipais e
população em geral, que acolheram com bastante entusiasmo
o novo estabelecimento de ensino.
Inicialmente, a instituição contava apenas com o que se
denominava de Ensino de Primeiro Grau, o que atualmente se
intitula anos iniciais do Ensino Fundamental. Somente a partir
de 1992, em decorrência da Reforma de Ensino brasileira,
promulgada na década de 1971, a partir da LDB 5. 698/ 71, essa
instituição passou a englobar o que se denominava de Ginásio,
referindo-se ao Ensino Secundário, numa lógica elaborada
pela LDB de que tanto escolas públicas quanto privadas desse
nível deveriam tornar-se profissionalizantes. Dessa forma, a
Profa. Jane Bezerra observa que embora o “colégio das freiras”

CATOLICISMO NA CULTURA ESCOLAR: O INSTITUTO MONSENHOR 217


HIPÓLITO EM PICOS-PI SOB INFLUÊNCIA DO ULTRAMONTANISMO (1944-1960)
acompanhasse a determinação da Reforma de Ensino, essa
ainda fazia de modo que a profissionalização feminina se
desse a partir de serviços considerados como possibilidades
de atuações femininas, ligadas a virtudes da religiosidade e ao
aspecto conciliador com as funções de mãe e esposa dedicada,
consideradas enquanto incumbências máximas às mulheres
religiosas, e, assim, os cursos extracurriculares que eram
oferecidos as jovens do Curso Primário como possibilidade de
ascensão no mercado de trabalho eram os de Bordado, Corte e
Costura (SOUSA, 2005, p. 40).
A escola, por sua vez, contava com alguns aspectos que
caracterizavam uma seleção de pessoas as quais iria destinar
seus serviços, a começar pelo aspecto de ser de ordem privada,
o que, de certa forma, indicava que o público-alvo seria crianças
e jovens que viessem de famílias que tivessem condições de arcar
com as despesas de manutenção desse ensino. “Estudavam
na escola as filhas da elite econômica, as quais pagavam
mensalidade. No início, o regime foi de internato, não sendo
possível precisar quanto tempo esse regime durou, devido
à ausência de arquivo escolar relativo à época de fundação”
(SOUSA, 2005, p. 83).
Um outro ponto é que até 1970, período quando se
adota a categoria mista, a escola das Irmãs, como era e ainda
é carinhosamente chamada pelos picoenses, destinou suas
atividades apenas ao público feminino, por ser uma escola
dirigida apenas por mulheres, e ter como devoção ao que seria
repassado as alunas a representação da Virgem Maria, modelo
feminino máximo na perspectiva do Cristianismo, elegendo
um público específico de meninas de famílias abastadas da
sociedade.
Por outro lado, o Instituto Monsenhor Hipólito, embora
fundado e coordenado por uma ordem específica que não
tivera origem no município, estava diretamente ligado às

218  Lanna Karen Lima Araujo • Francisco de Assis de Sousa Nascimento


paróquias da cidade, em especial a Igreja de Nossa Senhora
dos Remédios, que, nos anos em análise, já ocupava o
posto de Igreja Matriz da cidade, e ambas essas instituições
desempenhavam suas tarefas em conjunto, contribuindo para
o fortalecimento da Igreja Católica brasileira em nível local, em
busca do alcance e evangelização dos novos fiéis, enquadrados
numa perspectiva mais geral de determinações ultramontanas,
em que as instituições de ensino funcionavam, na condição de
estratégias de ação para alcance dos objetivos propostos por
essa nova forma de espiritualidade assumida pela Igreja.
Dessa forma, apresentava-se enquanto preocupação
tanto de párocos quanto das Irmãs Cordimarianas que as
crianças e os jovens picoenses fossem inseridos nos caminhos
cristãos e neles perseverassem, tendo-se em vista que, seguindo
essa mesma lógica, a degradação moral da sociedade só
seria combatida pela formação de condutas religiosas. Nessa
perspectiva, o ensino religioso se apresentava como prioridade
a ser não só realizado como cada vez mais intensificado. Dessa
forma era registrado, nos livros de tombo da Igreja Matriz de
Picos, o desejo dos sacerdotes que ali atuavam de que os pais
e em especial as mães, dentro da lógica de que essas deveriam
se responsabilizar pela educação moral e religiosa dos filhos,
fossem responsáveis por garantir que seus filhos e filhas fossem
educados tendo como base uma educação cristã. Assim, se
encontrou registrado em forma de convocação no ano de 1960
que todos se empenhassem para:

Levarmos adiante a campanha já iniciada em prol do


ensino da religião a fim de que removidos os obstáculos,
principalmente os decorrentes do isolamento e das
distâncias possam levar o ensinamento da fé a todos os
lares e a todas as pessoas. Essa campanha pela difusão do
ensino religioso impõe-se como um imperativo de primeira
necessidade uma vez que estão em jogo os sacramentos

CATOLICISMO NA CULTURA ESCOLAR: O INSTITUTO MONSENHOR 219


HIPÓLITO EM PICOS-PI SOB INFLUÊNCIA DO ULTRAMONTANISMO (1944-1960)
vindos de Deus e a felicidade eterna das almas [...]. Os
primeiros convidados para essa cruzada bendita serão,
naturalmente, os pais de família, em particular as mães,
por isso que elas já são catequistas natas de seus filhos
(LIVRO DO TOMBO, 1960, p. 17).

Percebemos, nesse fragmento, que Picos em consonância


com a Igreja Católica brasileira se preocupava com o
engajamento de pessoas leigas a fim de alcançar novas pessoas,
em especial crianças e jovens, a viverem o que era recomendado
pela religião católica, a começar pela realização de sacramentos
considerados sagrados para os cristãos. Convém assinalar que
as mães eram responsabilizadas a serem as primeiras instrutoras
dos filhos, na lógica de que a catolização da sociedade estaria
condicionada as ações e engajamentos femininos em prol da
causa. Deste modo, um dos primeiros passos tomados pelas
mães era escolher uma educação institucionalizada que fosse de
acordo com os ensinamentos aprendidos na Igreja e em casa, e,
com isso, o IMH se apresentava como uma das possibilidades
na cidade. Logo, Igreja, famílias católicas e Ensino Confessional
caminhavam na mesma direção em busca da educação religiosa
de crianças e jovens.
Destarte, podemos reafirmar, por meio do relato de
memória de Oneide Rocha Fialho, ex-aluna do Colégio das
Irmãs, como a escola funcionava em consonância com a
Igreja, na busca de garantir, por exemplo, a efetivação tanto
dos sacramentos cristãos quanto dos engajamentos religiosos
posteriores a ele pelas alunas da instituição:

Logo que eu fiz minha primeira comunhão eu estudava no


Colégio IMH, no Colégio das Irmãs que funcionava aqui
na Avenida Getúlio Vargas, e logo a irmã Angélica que
foi a irmã que me preparou para a primeira comunhão
me convidou para participar de um grupo de crianças
chamado Cruzadinhas, que hoje se chama de perseverança.

220  Lanna Karen Lima Araujo • Francisco de Assis de Sousa Nascimento


Terminou a primeira comunhão e a gente fica participando,
então todos os domingos nós nos reunimos, era um grupo
de meninas, de crianças que estudava no colégio, fizeram
a primeira comunhão e no domingo pela manhã a gente se
reunia lá, tinha pingue-pongue, ensaiava teatro e recebia
algumas orientações religiosas, bíblicas (FIALHO, 2018).

Podemos perceber como as Irmãs Cordimarianas que


formavam a instituição atuavam na busca de garantir que suas
alunas seguissem pelos caminhos cristãos, esses que começavam
a ser trilhados na escola e deveriam ser percorridos também em
outros espaços, e continuados nas atuações das paróquias. No
caso específico de Oneide Rocha, ela rememora o engajamento
em um grupo denominado Cruzadinhas que era formado
por adolescentes, após realizarem o sacramento da primeira
comunhão. No grupo que funcionava aos domingos, em razão
de não atrapalhar as atividades escolares durante a semana,
essas jovens tinham formação cristã continuada através de
passagens bíblicas, bem como os momentos destinados ao
lazer por meio de jogos e peças teatrais, o que possivelmente
era pensado como forma de estímulo para a fidelidade das
jovens a esses encontros, mesclando práticas religiosas com
sociabilidades juvenis.
Dessa forma, a partir de relatos orais, percebemos como
as alunas do IMH encontravam tanto em casa, na Igreja,
como na escola espaços propícios que atuassem diretamente
na formação de suas identidades enquanto católicas. Para
Remédios Monteiro, em suas lembranças escolares, “naquela
época se assistia missa lá dentro do colégio, todas as festas
religiosas o Colégio das Irmãs se apresentava, elas convidavam
a gente para participar de grupos religiosos” (MONTEIRO,
2019). Fato que nos leva a perceber que, dentre as atividades
desenvolvidas no interior da escola, estava, por exemplo, a
celebração de missas como forma de atuar efetivamente no

CATOLICISMO NA CULTURA ESCOLAR: O INSTITUTO MONSENHOR 221


HIPÓLITO EM PICOS-PI SOB INFLUÊNCIA DO ULTRAMONTANISMO (1944-1960)
desenvolvimento das identificações católicas das alunas, que
deveriam carregar a marca de boas cristãs.
Outro aspecto necessário de análise nesse fragmento
é de como essas alunas contavam com a reserva de espaços
privilegiados durante eventos religiosos, geralmente acontecidos
na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, contando com a
presença da maioria da população picoense, como forma de
conferir um destaque a esses jovens que deveriam carregar
impresso em suas identidades o pertencimento à religião
católica e à instituição de ensino que faziam parte por onde quer
que estivessem; funcionando enquanto símbolos de distinção
social e condutas modelares em relação às demais jovens, uma
vez que “o principal intuito das congregações católicas era o de
criar um sistema de pensamento e de condutas singulares que
possibilitasse ao aluno católico reconhecer e ser reconhecido,
em qualquer situação, como componente de um grupo
exclusivo” (BOSCHILIA, 2005, p. 101).
Em conformidade com essa informação, Ducarmo
Meneses de Aquino relembra como em todos os espaços da
sociedade, através de ações, eram cobrados a essas alunas
do Instituto Monsenhor Hipólito os frutos gerados a partir
da educação recebida na instituição, elencando, enquanto
principais, os referentes aos gestos de obediência, caridade,
humildade, relações de paz e o que ela denomina de saber se
comportar girando em torno das cobranças morais, atribuídas
ao ser mulher até então pela religião católica, que compreendia
o pudor, a castidade até o casamento, a subserviência e a
necessidade de serem aptas ao desenvolvimento de atividades
domésticas, até então atribuídas na condição de “funções”
femininas.
Por fim, percebemos como essa instituição de ensino
de caráter confessional atuou efetivamente na garantia de
fortalecimento da estruturação eclesiástica na cidade de

222  Lanna Karen Lima Araujo • Francisco de Assis de Sousa Nascimento


Picos, por meio de variadas formas, entre elas a garantia
do envolvimento das alunas da referida escola nos serviços
religiosos, a partir da inserção e identificação dessas
personagens na vida cristã.

CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

Com base na discussão feita ao longo dessa narrativa,


chegamos a alguns apontamentos que não pretendem, em
absoluto, ser definitivos, mas que evidenciam pontos de vista a
respeito das questões norteadoras discutidas acima.
Pudemos observar, por meio de um recorte temporal
e espacial específicos, que compreende a cidade de Picos
entre os anos de 1944-1960, como o projeto ultramontano,
elaborado em nível mais abrangente, chegou em maior ou
menor proporção às cidades brasileiras; e, a partir disso, houve
articulações distintas, a exemplo da criação de associações
religiosas e criação de escolas confessionais, que giravam
em torno de objetivos em comum, em geral, voltados a um
fortalecimento estrutural, espiritual e político da Igreja Católica
brasileira enquanto instituição social e consequentemente da
influência e poder exercida por essa no cotidiano brasileiro.
Em Picos, por exemplo, um dos meios eficazes da atuação
desse novo tipo de catolicismo foi a fundação de uma escola de
caráter confessional intitulada Instituto Monsenhor Hipólito,
que atuou inicialmente na educação de crianças e jovens
do gênero feminino, buscando, a partir de diversos meios,
influenciar diretamente na constituição das identificações
católicas e assim alcançar cada vez mais um número maior de
adeptas.
A instituição fora, portanto, uma possibilidade viável
às famílias da cidade, privilegiadas economicamente, que
desejavam matricular suas filhas em uma escola particular

CATOLICISMO NA CULTURA ESCOLAR: O INSTITUTO MONSENHOR 223


HIPÓLITO EM PICOS-PI SOB INFLUÊNCIA DO ULTRAMONTANISMO (1944-1960)
de caráter confessional, até então inexistente na cidade. Para
tanto, essas alunas atuaram de forma admirável em projetos de
cunho social, elaborados pela instituição para além dos serviços
voluntários, desenvolvidos para a estruturação e organização
da Igreja matriz da cidade, o que favorecia de alguma maneira
a população em geral.
Por conseguinte, a partir dessa escrita, pudemos verificar
como essa escola, com base em sua estrutura física e recursos
humanos, foi ocupando representações positivas nas memórias
de suas ex-alunas. Muitas ressaltam a importância desta escola,
pois contribuiu não só para o desenvolvimento em suas vidas,
como também na vida da população em geral. Por exemplo,
Ducarmo Aquino atesta: “foi muito bom não só para mim, meu
Deus”, mas também “para a sociedade... noventa e nove por
cento da sociedade picoense estudou, usufruiu dessa educação.
Meus netos, minhas filhas, até sobrinhos” (AQUINO, 2017).
Seu relato evidencia que, no caso de sua família, a transmissão
desse costume foi repassada a gerações futuras.
Se faz necessário ressaltar ainda como, em meio à
fundação e organização dessa escola, as Irmãs Cordimarianas
se inseriram na memória e na história picoense, através da
realização desse projeto educacional e evangelizador, sendo
reconhecidas e rememoradas com base em um saudosismo e
gratidão pela população picoense. Isso implica que, embora
não fosse intenção direta da elite eclesiástica brasileira, quando
elegeu as mulheres católicas enquanto principais personagens
pelas quais passaria o projeto de reestruturação do catolicismo,
essas intencionalmente ou não ocuparam posições de destaque
e poder, através de benefícios advindos a partir desses
engajamentos religiosos.
Esses aspectos, contudo, se dão pela relação entre
freiras e prática ultramontana, uma vez que, por causa dessa
nova forma de catolicismo, as religiosas acompanharam esse

224  Lanna Karen Lima Araujo • Francisco de Assis de Sousa Nascimento


movimento renovador de vida consagrada, e, assim, essas
congregações religiosas, como a das Irmãs Cordimarianas,
formada por freiras, acolheram o desafio de ressignificar suas
práticas no interior da Igreja, com reflexos para o mundo,
optando por ações pastorais renovadas e possíveis de propiciar-
lhes benefícios.

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concedida à Lanna Karen Lima Araújo. Picos, 30 jan. 2017.

AQUINO, Maria do Carmo Meneses. Entrevista concedida à


Lanna Karen Lima Araújo. Picos, 13 jun. 2017.

FIALHO, Oneide Maria da Rocha. Entrevista concedida à


Lanna Karen Lima Araújo. Picos, 2 jun. 2018.

MONTEIRO, Remédios. Entrevista concedida à Lanna Karen


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REVISTAS E DOCUMENTOS CONSULTADOS

A IMPORTÂNCIA DA DISCIPLINA DE ENSINO RELIGIOSO.


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REVISTA PIAUIENSE DOS MUNICÍPIOS, Teresina-PI, ano 3, n.


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REVISTA DO JUBILEU DE OURO DO IMH (1944-1994),


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SITES CONSULTADOS

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Acesso em: 22 mar. 2019.

DISPONÍVEL em: http://www.imhpicos.com.br/nossa-


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228  Lanna Karen Lima Araujo • Francisco de Assis de Sousa Nascimento


INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS
CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITUS
RELIGIOSO TECENDO HISTORIAS E
MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO

Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira

Introdução

A
análise da educação em sua dimensão histórica,
mais especificamente na integração das práticas
educativas à história das instituições escolares,
segundo Magalhães (2004, p. 106), “[...] desafia a uma
interdisciplinaridade [...]”. Para o autor, “[...] a informação
sobre as práticas é de natureza exclusivamente discursiva
e memorialística e a sua intelecção desafia as abordagens
e interpretações indiretas”. Assim, este estudo parte do
seguinte problema: de que forma as práticas educativas
vêm historicamente sendo desenvolvidas na integração/
apropriação com o habitus religioso em relação aos alunos
que as frequentam? Na busca de resposta para essa questão,
enfrentou-se o desafio de reconstituir, a partir de um breve olhar,

INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITU 229


RELIGIOSO TECENDO HISTORIAS E MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO
o conhecimento histórico sobre duas instituições confessionais
da cidade de Corrente-PI, o Instituto Batista Correntino (IBI) e
o Colégio Mercedário São José (CMSJ), quanto a suas práticas
educativas, na integração/apropriação do habitus religioso.
No processo de análise, fez-se um recorte temporal de 1920,
período da fundação da primeira instituição– Instituto Batista
Industrial(IBI), atual Instituto Batista Correntino (IBC), a 2013,
período da pesquisa de campo.
O foco da análise está na relação entre a materialidade/
funcionalidade (condições materiais e orgânicas) e a
representação que integra as práticas educativas. Busca-se
desenvolver uma narrativa historiográfica e pedagógica por
meio do paradigma investigativo da história das instituições
educativas (MAGALHÃES, 2004). O procedimento teórico-
metodológico se baseia na nova história (LE GOFF, 2003),
a qual considera os novos sujeitos e objetos em relação à
“revolução documental”, que atingiu profundamente o campo
da educação.
Quanto a esse aspecto, Galvão e Lopes (2010) afirmam
que, até pouco tempo, a produção ainda era bastante
conservadora, com uma tendência ao uso da documentação
oficial, sendo preteridas as fontes orais, no entanto a ampliação
das fontes nessa área de pesquisa tem possibilitado estudos que
dão vez às vozes dos sujeitos e suas subjetividades. Importante
destacar que a fala deve ter o mesmo tratamento que os outros
documentos, não devendo ser considerada como o próprio
produto da pesquisa, mas questionada e problematizada a
partir do presente em que está inserida. Assim, a fala, como as
demais fontes, tem como ponto de partida “[...] a formulação
de um questionamento” (GALVÃO; LOPES, 2010, p. 78).
Nesse sentido, este estudo desenvolveu-se a partir de
narrativas (orais e escritas) de ex-aluno(a)s que estudaram
e se tornaram professor(e)as em instituições confessionais,

230  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


para as quais retornaram já como profissionais da educação.
Intenta-se compreender a articulação entre habitus religioso e
práticas educativas no processo de formação, com base em
fontes documentais, fontes orais (histórias de vida, entrevistas
semiestruturadas) e fontes iconográficas (fotos originais de
acervos das protagonistas), observando-se também os cenários
contemporâneos das práticas.
Por meio de processo de interrogações dessas fontes e da
análise de conteúdo (BARDIN, 2011), desenvolveu-se o estudo
que originou este capítulo, parte da tese de doutorado em
Educação da autora. Para a construção do texto originado do
cruzamento e análise das fontes, destacaram-se dimensões que
emergiram das falas, possibilitando realizar a categorização
por meio do programa MaxQDA, utilizado durante o estágio
intercalar em Lisboa. A partir da exploração e categorização
das fontes orais, escritas e iconográficas, busca-se relacionar
essas dimensões (categorias) e ao mesmo tempo operar
com os conceitos, para interpretar/explicar o passado em
suas associações e relações com o presente em que emerge a
pesquisa.
É a partir da história nova que, segundo Le Goff, Chartier
e Revel (1998, p. 26-27), observa-se a ocorrência de uma
profunda renovação na área científica voltada para a história.
Para os autores, “Há uma história nova [...] sua renovação
integral e o arraigamento de sua mutação em tradições antigas
e sólidas. [...]. Ela se afirma como história global, total e
reivindica a renovação de todo o campo da história”. Com essa
ampliação dos objetos de pesquisa histórica, observa-se que
há o reconhecimento de que “A pesquisa histórica nas últimas
décadas tem gerado resultados promissores para o campo da
educação” (LOPES; CHAVES, 2012, p. 7). É com base nesse
olhar que se buscou construir o conhecimento histórico das

INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITU 231


RELIGIOSO TECENDO HISTORIAS E MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO
práticas educativas nas instituições confessionais da cidade de
Corrente, a partir de fontes orais e iconográficas, entre outras.

Delineando concepções, história e memória das práticas


educativas nas instituições confessionais de Corrente

O conhecimento histórico das práticas educativas não


se encontra separado dos elementos básicos constitutivos da
instituição educativa, que são a materialidade (o instituído,
a representação), a institucionalização e a apropriação (a
instituição propriamente dita) (MAGALHÃES, 2004). A
materialidade, representada pela instituição instalada, o
instituído, de forma visível, apresenta-se nas condições físicas
da escola, em sua arquitetura, nos diversos tempos/espaços,
nos prédios, com seus equipamentos, materiais didáticos,
entre outros, e sua estrutura organizacional, que “constituem o
suporte físico das práticas educativas” (SAVIANI, 2007, p. 25).
Para desenvolvimento do processo de reconstituição
do conhecimento histórico, observam-se discursos e práticas
com funções específicas voltadas para preparar, espiritual,
intelectual e moralmente, o aluno, a partir de modelos que
refletem as tradições religiosas representadas “[...] por um
quadro mais amplo e subjetivo de integração e apropriação
– habitus” (MAGALHÃES, 2004, p. 115), que neste estudo
denominou-se de habitus religioso (tendências religiosas):
batista e católico.
Portanto, busca-se construir o conhecimento histórico
das práticas educativas das instituições investigadas, partindo-
se da compreensão de que a “[...] educação/instituição traduz
toda a panóplia de meios, estruturas, agentes, recursos, mas
também as marcas socioculturais e civilizacionais [...] para fins
de permanência e mudança social” (MAGALHÃES, 2004, p.
15). Nesse sentido, a educação pode ter fins de permanência

232  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


e/ou transformações, podendo ser mantenedora e/ou
transformadora das situações sociais ali existentes (FREIRE,
1997; MAGALHÃES, 2004). Com essa compreensão é que se
busca analisar a influência do habitus religioso presente nas
escolas confessionais IBC e CMSJ, em sua relação com as
práticas educativas desenvolvidas nessas instituições.
No processo educativo, são necessários elementos como
os agente(s), que estão na origem da ação educativa, a forma
como o(s) agente(s) atua(m), ou seja, os conteúdos, métodos
e metodologias utilizadas, e o indivíduo, ou grupo/geração,
destinatário desse processo educativo. Nessa categoria se
agrupam as práticas relacionadas aos tempos de aula, bem
como as considerações dos sujeitos em relação às práticas
dos professores no processo de ensino e aprendizagem.
Considera-se, neste estudo, as concepções de Franco (2003, p.
6), para quem toda prática tem uma “[...] intencionalidade,
uma concepção de homem, de sociedade, de fins, e estes
precisam estar claros para os que exercem a prática educativo-
pedagógica, e também aos que são a ela submetidos”, sendo
imprescindível para o desenvolvimento dessas práticas uma
postura ética, essencial ao ato educativo.
Para a compreensão deste estudo, é relevante apresentar
o significado da palavra instituição, na qual está inserida a
própria ideia de educação e de algo construído e organizado
pelo homem. A instituição é, pois, uma criação humana,
apresentando-se materialmente a fim de atender, de modo
permanente, às necessidades humanas. Como produto
humano, é consequência de uma construção histórica, cuja
transitoriedade se define pelo tempo histórico, constituindo-se
em unidades de ação. Para Saviani (2007, p. 5), as instituições
constituem “[...] um sistema de práticas, com seus agentes
e com os meios e instrumentos por eles operados, tendo em
vista as finalidades por elas perseguidas [...] uma vez que se

INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITU 233


RELIGIOSO TECENDO HISTORIAS E MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO
constituem em um conjunto de agentes que travam relações
entre si e com a sociedade à qual servem”.
A instituição tem necessidade de se autoproduzir, estando
também sujeita a condições sociais, econômicas, políticas,
enfim, a diversas dimensões do contexto histórico-cultural que
determinam seu surgimento e funcionamento. A instituição
educativa, a exemplo do Instituto Batista Correntino e do
Colégio Mercedário São José, focos deste estudo, também
produz e reproduz seus próprios agentes internos.
Bourdieu e Passeron (2012, p. 76) destacam que o trabalho
pedagógico institucionalizado, o qual se denomina de “sistema
de ensino”, apresenta características próprias da estrutura e
funcionamento de uma instituição, ou seja, a necessidade de
produzir e reproduzir, por seus próprios meios, suas próprias
condições institucionais, que são representadas por sua
existência e persistência, configurando sua autorreprodução.
Ainda, a instituição compreende um espaço em que
convivem diferentes culturas, ou multiculturalismo. Nas
instituições educativas estudadas, tem-se, a exemplo, a
convivência da cultura local com a cultura internacional
espanhola, na instituição confessional católica – Colégio
Mercedário São José (CMSJ), e com a norte-americana, na
instituição confessional batista – Instituto Batista Correntino
(IBC).

Sobre as instituições educativas confessionais

As instituições educativas, segundo Ardoino (1998, p.


34), se exprimem por meio de “[...] um fazer social-histórico
que postula uma dialética do instituído e do instituinte [...]. As
finalidades políticas, mesmo subjacentes, cujos objetivos tornar-
se-ão traduções estratégicas, evocam uma intencionalidade

234  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


predominantemente coletiva [...]”. Para o autor, a história está
no cerne dos processos que envolvem a instituição escolar.
O Instituto Batista Correntino e o Colégio Mercedário
São José, configuram, como toda instituição escolar, um
espaço social de conflitos de diferentes culturas e também
de resistência, o qual “[...] exerce um papel fundamental na
formação da consciência histórica dos cidadãos” (FONSECA,
2003, p. 70), formando “pontes” entre o macrossocial,
representado pela sociedade em geral, e o microssocial, pelo
indivíduo. Dessa forma, essas instituições expressam as relações
e interesses da sociedade em que estão inseridas.
A partir dessa compreensão, realizou-se a pesquisa
de campo, buscando-se a análise das fontes e a observação
da instituição como “[...] um referente básico para uma
hermenêutica interna à instituição. Tomado como ponto
de chegada do processo evolutivo da instituição [...]”
(MAGALHÃES, 2004, p. 37). Assim, iniciou-se a pesquisa nas
instituições partindo-se do tempo presente.

Instituição confessional batista – Instituto Batista Correntino


(IBC): história e memória

Inicia-se o historial do IBC a partir de 2013, quando foi


realizada a entrevista oral com o diretor administrativo da
instituição, Manuel de Araújo Nogueira, obtendo-se uma breve
trajetória desse ex-aluno a partir de fragmentos da entrevista
oral.

Eu iniciei no Instituto Batista.[...] meus pais, que não


tinham muitas condições na época. Eu queria estudar no
instituto e eu estudei varrendo sala de aula para pagar
minha escola. Hoje chego até diretor do patrimônio,
que Deus mesmo me trouxe até aqui, esse Deus que me
trouxe lá como varredor, me colocou aqui como diretor do

INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITU 235


RELIGIOSO TECENDO HISTORIAS E MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO
patrimônio. E eu me sinto muito feliz em ter Deus em meu
coração. [...] Eu tenho trinta e um de instituto, vou fazer
trinta e dois.

Observam-se, na fala, as significações e influências


das práticas educativas permeadas pelo habitus religioso. Os
sentimentos do entrevistado foram percebidos nas entonações
de voz, nos sorrisos e até nos silêncios durante a entrevista oral.
O diretor administrativo representa o momento da pesquisa,
a história do tempo presente, o que se considera campo das
possibilidades que constituem a história representada pelos
“agoras” (BENJAMIN, 1986). Esse momento da entrevista oral
revela a memória da instituição no período do Instituto Batista
Industrial (IBI), onde o entrevistado se inseriu como aluno.
No entrelaçamento de fontes para um retorno ao passado,
realça-se a data em que foi fundado o Instituto Batista. Naquela
época, e durante muito tempo, era difícil a comunicação entre
Corrente e demais centros, pois não havia estradas urbanizadas,
de modo que demoravam muitos dias para se chegar à Vila de
Corrente, em barcas a vapor, caminhadas a pé, a cavalo e/ou
jumento. Conforme a ata de fundação, no dia 10 de janeiro de
1920, o Dr. Adolph John Terry foi nomeado primeiro diretor do
Instituto Batista Industrial (IBI), como era denominado o atual
IBC.

236  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


Foto 1 ‒ Casal Terry: chegada à Vila de Corrente

Fonte: Acervo IBC (2014).

A foto 1 mostra o momento da chegada dos missionários


batistas Dr. Adolph John Terry e sua esposa. Segundo
depoimento da Profa. Mirian Folha de Araújo Oliveira, no
momento da pesquisa,

Os missionários norte-americanos trouxeram a cultura


do trabalho. No colégio implantaram marcenaria, usina
de beneficiar arroz, criação de porcos, criação de gado
e implantação de técnicas agrícolas [...] garantia de
trabalho para tantos que dele necessitavam, contribuindo
já naquela época para o desenvolvimento da região.

A partir dos depoimentos, pôde-se observar a importância


da instituição para a região e a vida pessoal dos estudantes
e demais pessoas que foram beneficiadas com o estudo/
trabalho, como também se verifica na fala do diretor, o qual

INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITU 237


RELIGIOSO TECENDO HISTORIAS E MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO
destaca a importância da instituição em sua vida, por propiciar-
lhe oportunidades de ascensão social. Ele também descreve
um período em que os alunos que não podiam pagar por
educação/instrução empregavam sua força de trabalho para
custear os estudos, sendo que, conforme a fala do diretor, tal
atividade foi edificante. Ao citar várias vezes a palavra “Deus”,
o entrevistado demonstra seus sentimentos cristãos, expressos
não só na oralidade, mas na fisionomia e no sorriso presente
no decorrer de toda sua fala.
Sobre as práticas educativas, tradições, hábitos e
costumes, no período da entrevista ( 2013), o depoente afirmou
que

[...] as tradições nós continuamos com nossas preleções


nas quartas-feiras com um pastor que prega o evangelho,
e com o louvor - canto de músicas religiosas. Continuam
as festas de final de ano. O acampamento dos pais era
uma festividade muito bonita. Não existem mais os
acampamentos, eu mesmo participei de acampamentos,
foi muito bom naquela época, a gente dormia lá mesmo,
fazendo comida e lendo a palavra de Deus. Foi muito bom
naquela época [...] Continuou o acampamento não mais
do instituto, mas da Igreja Batista de Corrente, de qualquer
forma a igreja e o instituto se completam. (MANUEL
NOGUEIRA – DIRETOR ADMINISTRATIVO, 2013).

O habitus religioso perpassa os espaços educativos que


se integram durante gerações, mantendo-se presente desde a
fundação da instituição, sendo que, como expressa o diretor,
“Nunca o Instituto forçou aluno a frequentar a Igreja Batista”.
Em relação às formalidades e rituais para as atividades
educativas, práticas mediatizadas pelo habitus religioso,
segundo esse depoente,

238  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


[...] está mais liberal, o aluno sai da sala para o auditório,
não há negócio de filas, as músicas são diferentes,
antigamente eram hinos, hoje são corinhos. Continua
a palavra de Deus sendo pregada da mesma forma, mas
a maneira modificou, a maneira de cantar, de dançar
na hora. Hoje na entrada não tem mais fila, e o aluno
entra apresentando a carteirinha. Hoje em dia não há
o hasteamento da bandeira na frente da escola, mas
continuam no salão nobre os momentos cívicos. (MANUEL
NOGUEIRA – DIRETOR ADMINISTRATIVO, 2013).

Observa-se, nas narrativas orais, a cultura ocupando um


lugar de destaque, “[...] articulada com os processos sociais,
econômicos e políticos, que a explicariam” (FELGUEIRAS;
VIEIRA, 2010, p. 19). O habitus religioso, ainda fortemente
presente, mantém-se como tradição em vários aspectos.
Alguns costumes foram modificados, mas ainda permanecem
ajustados ao contexto atual, em que as atividades religiosas
acontecem, como a preleção, momento em que se busca falar
da palavra de Deus.
A cultura escolar modifica-se na forma de se entrar na
sala, demonstrando o uso da tecnologia, com a apresentação
da carteirinha, mas considera-se que, conforme a concepção
descrita, segundo Julia (2001, p. 09), apesar de algumas
modificações, permanece “[...] como um conjunto de normas
que definem conhecimento a ensinar [aulas de preleção ainda
presentes], e condutas a inculcar [o habitus religioso], e um
conjunto de práticas [aulas expositivas, preleções, orações]”,
os quais permitem a transmissão desses conhecimentos
e a incorporação desses comportamentos. As normas da
instituição, apesar de mais brandas, mantêm os princípios
iniciais de formação de valores cristãos, como afirma o diretor –
“há danças em ritmos das músicas evangélicas, cantos e louvores
que atendem às necessidades dos jovens de se movimentarem,
mas partindo dos valores cristãos de louvor a Deus”.

INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITU 239


RELIGIOSO TECENDO HISTORIAS E MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO
A cultura escolar do IBI ao IBC está registrada e
representada por vestígios como, por exemplo, o emblema do
IBC, que destaca os valores e normas a ensinar e condutas a
serem seguidas, materializadas no símbolo da instituição,
podendo-se observar os valores cristãos pregados, até hoje,
pela instituição: “verdade, beleza e bondade”. Assim, a história
do Instituto Batista Industrial (IBI) tem sua continuidade no
Instituto Batista Correntino (IBC), o qual, na sua “evolução/
representação/apropriação”, vem construindo sua identidade
histórica na cidade de Corrente (MAGALHÃES, 2004, p. 138).
No estatuto da instituição apresentam-se os fins
educativos no artigo primeiro: “O Difundir theorica e
praticamente o ensino agricola profissional, scientífico,
litterario e mais que for possível aos jovens brasileiros e de
qualquer outra nacionalidade” (ESTATUTO IBI, 1920, p.1). Da
mesma forma tem-se sua finalidade na ata e no prospecto do
IBI (1924, p. 5):

ESCOPO - O Collegio tem por fim preparar os alumnos


entregues à sua direcção para tomar os seus logares como
cidadãos verdadeiros e cumprir os seus deveres como taes.
Para alcançar este fim precisa tratar do desenvolvimento
physico, do intellecto, do moral e da natureza espiritual
do alumno. Portanto o collegio tem como ideal fazer todo
o possível para o alumno sahir das suas aulas preparado
para a vida pratica.

Na análise, observa-se que esses princípios são


desenvolvidos por meio das práticas educativas, dos rituais,
da cultura, sendo apropriados/inculcados/construídos no
processo de formação de seus ex-alunos e ex-professores,
mediados pelo habitus religioso e pedagógico, tornando-os
modelos dessa forma de educação.

240  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


Sobre a questão da religião no processo educativo da
instituição tem-se declarado que

Esta instituição não ensina a religião como tal, mas toda


a sua disciplina é baseada na moral christã. Não obriga a
consciencia de ninguém em matéria de religião, mas exige
no comportamento do alumno, respeito e obediencia aos
princípios de moralidade que é a base da religião christã.
Esta instituição procurará ter somente professores e
professoras de bôa moral, que possa servir de exemplo à
mocidade. Um professor cuja vida não sirva de estimulo ao
alumno para viver melhor, não é digno de occupar o logar
de professor. (PROSPECTO – IBI, 1924, p. 5)

É perceptível, na divulgação da ideologia da instituição


batista, a preocupação com a moral e ética cristã, considerando-
se que a direção do IBI se preocupa em mostrar à população
que a instituição está comprometida com a educação cristã e
não com a catequese doutrinária. Sabe-se que há momentos
de preleções, orações, mas, segundo os protagonistas, as
ações religiosas buscam a palavra de Deus como forma de
evangelização/catequese. Em síntese, excluindo alguns livros da
tradição católica, a bíblia batista é constituída pelos mesmos
livros da Bíblia católica. Assim a instituição tenta resolver a
questão de estar aberta às denominações (credos) cristãs e
etnias.

Instituição educacional católica - Colégio Mercedário São José


(CMSJ): história e memória

Ao chegar à instituição católica, com o mesmo


propósito que se foi à instituição batista, partiu-se do
presente, representado pelo Colégio Mercedário São José. Ali
se observaram-se os múltiplos tempos e espaços internos e
sociais, bem como a história de vida presente na fala, definida

INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITU 241


RELIGIOSO TECENDO HISTORIAS E MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO
“[...] como busca e construção de sentido a partir de fatos
temporais pessoais, envolve um processo de expressão da
experiência” (PINEAU; LE GRAND, 2012, p. 15).
Nesse momento, o diretor, Frei José Carlos, a partir
de uma entrevista semiestruturada, fala livremente sobre a
instituição, em seus diversos aspectos. Destaca-se o trecho
da entrevista que trata sobre a dimensão práticas educativas,
dentre as quais, as práticas pedagógicas mediadas pelo habitus
pedagógico e pelo habitus religioso, respectivamente:

Nosso colégio hoje segue uma linha pedagógica tradicional,


nós tentamos conciliar essa linha pedagógica moderna, mas
a tradicional é a que predomina [...] a prática religiosa na
instituição procura levar em conta o pluralismo religioso,
embora a nossa escola seja confessional, nós colocamos
essa pluralidade, temos aqui distintas confissões religiosas
trabalhando conosco, os alunos também, colocamos aqui
os valores comuns, o respeito, a tolerância, fraternidade
[...] (FREI CARLOS, DIRETOR DO CSJ, 2013).

O diretor apresenta a preocupação com as questões


pedagógicas da instituição, destacando, entre as práticas
educativas, a prática pedagógica, a qual constitui um processo
social intencional voltado para o ensino e aprendizagem dos
alunos da instituição. Nesse sentido, observa-se na fala a
demonstração das ideias de Luckesi (1994, p. 53), que relaciona
essa “[...] tendência pedagógica às diversas teorias filosóficas
que pretenderam dar conta da compreensão e da orientação
da prática educacional em diversos momentos e circunstâncias
da história humana”.
A partir dessa análise considera-se que a instituição
educativa escolar se baseia na tendência liberal tradicional,
visando à preparação intelectual e moral dos alunos para
assumir seu papel na sociedade, característica marcante nas

242  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


instituições confessionais. Essa função de preparar se associa
ao habitus religioso, que medeia práticas educativas e, de forma
específica, as práticas pedagógicas dessas instituições, como se
confirma na fala do diretor:

Nós temos aqui ao longo do ano várias atividades religiosas


católicas, mas nossos alunos não têm obrigatoriedade de
participar [...]. Por exemplo, teremos aqui uma missa de
finalização do ano de 2013, na Igreja. (FREI CARLOS,
DIRETOR DO CSJ, 2013).

Observa-se que a narrativa possibilita conhecer as


histórias da instituição em sua relação com o tempo presente.
Nesse sentido, ainda se tem como tradição a missa ao final do
semestre, após as aulas, citada também por outros ex-alunos.
Destaca-se também a memória do que representa a prática
educativa mediada pelo habitus religioso na fala de uma ex-
aluna e ex-professora da instituição confessional católica:

[...] havia também uma outra prática educativa que era


muito boa, no sentido religioso, nós recebíamos, às vezes,
aulas de religião dentro da igreja, com a ajuda da Bíblia
Sagrada ou outros objetos sagrados considerados pela
Igreja Católica.

Compreende-se que a relação igreja/instituição educativa


ainda é bem forte, sendo que, na percepção do que mudou em
relação às práticas da instituição e do que ainda se mantém,
questão que surgiu na fala dos depoentes, apresenta-se sobre o
Colégio Mercedário São José e suas práticas:

Todos os dias as nossas aulas começavam as 5 para as 7,


todos os dias nós temos uma celebração religiosa... Ali a
gente faz um momento de oração, porém, dentro desse
momento, procuramos fazer a nossa oração partindo

INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITU 243


RELIGIOSO TECENDO HISTORIAS E MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO
de pontos comuns. Os alunos, nossos alunos, todos são
cristãos de denominações diferentes, a leitura de textos
bíblicos, todos podem participar, pois não ferem os
princípios de outras denominações. Nossos alunos de
outras denominações não têm obrigação de participar.
Nossa educação é despojada de qualquer espécie de
proselitismo. (FREI CARLOS, DIRETOR DO CMSJ, 2013).

O habitus religioso está sempre presente nas práticas


atuais do Colégio Mercedário São José, que permanece com
suas tradições, mas com normas mais brandas. Segundo o
depoente, a escola busca pregar o cristianismo e seus valores.
A fala do Frei Carlos trouxe sentido à mudança do nome de
Colégio São José para Colégio Mercedário São José, que passou
a ser assim chamado pelo fato de a Ordem dos Mercedários,
em 2000, ter dado essa denominação a todas as instituições
educativas por ela orientadas, incluindo a de Corrente. “Nós
trabalhamos com muita sintonia com as irmãs”, afirma o
diretor.
Ainda segundo depoimento do diretor, há um ritual que
também permanece até hoje, mas com menos rigor em relação à
disciplina: o tempo em que ficam no pátio, havendo a formação
de filas, e um momento em que é rezado o Pai Nosso, ou uma
oração individual, sendo que, como o Colégio acolhe alunos
de várias denominações religiosas, “nesse momento quando
se realiza a parte religiosa, os alunos de outra denominação
não são obrigados a acompanhar”. Frei Carlos destaca assim a
importância da educação mediada pelo habitus religioso:

Eu vejo que o grande diferencial das educações oferecidas


pelas confissões religiosas está voltado para a questão
ética, valores e princípios esses são os diferenciais. Essas
instituições confessionais se preocupam também em
passar uma experiência permeada pelos valores. Aí está o
grande diferencial.

244  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


Nessa fala o diretor ressalta componentes peculiares à
instituição confessional – a moral e a ética cristã, expressas pelos
depoentes das duas instituições confessionais investigadas.
Observa-se ainda um retorno ao passado na narrativa de
uma ex-aluna e professora do colégio:

O Ginásio São José foi construído com ajuda da mão-de-


obra também de seus alunos e, como tem o nome do santo
cujo onomástico é 19 de março, o Padre Anchieta escolheu
este dia para considerar a data de fundação. A sala era
com carteiras formadas por bancos compridos, uns mais
altos para escrever, e outros baixos para sentar. O material
era um lápis, caneta ou pena, tinteiro e caderno. A escola
era mantida por subvenções vindas do Rio de Janeiro
(associação de patronesse e irmãs religiosas que ajudavam
com materiais)[...]. (PROFA. CONCEIÇÃO AVELINO).

Na memória da escola é possível o reconhecimento e a


reconstituição da história, com suas subjetividades traçadas nas
inter-relações. Essas memórias, em seu conjunto, confirmam
que a história é duração, de forma que o passado é ao mesmo
tempo “passado e presente” (LE GOFF, 2003). Observa-se essa
relação quando a professora cita o Padre José de Anchieta de
Alcântara Melo, que, em 1953, fundou o Ginásio São José.
Esse religioso já havia fundado, em 1949, o Colégio Imaculada
Conceição, instalando a educação confessional na região,
conforme consta no livro de sua autoria, “Relatos de uma
vida”.
Nas memórias da ex-aluna e professora, destacam-se as
finalidades da fundação do CSJ:

Os objetivos de sua fundação foram os mesmos: a


educação dos jovens e catequese na doutrina cristã
católica, pois ele via seus alunos ao terminar o Primário

INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITU 245


RELIGIOSO TECENDO HISTORIAS E MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO
saírem para as escolas de credo diferente; para ele isso era
motivo de tristeza.

Então buscou esta solução, o que ajudou muito a cidade de


Corrente: mais um Ginásio, o que as cidades vizinhas não
desfrutavam.[...] Hoje este Ginásio tem suas instalações
ampliadas, sala de computadores, uma excelente quadra
de esportes, novas salas de aula, novos pavimentos, graças
aos esforços de seus diretores [...] (RELATO ESCRITO –
PROFA. CONCEIÇÃO).

Como já havia o Colégio Imaculada Conceição para


atender aos alunos do primário, os egressos dirigiam-se ao IBI/
IBC para dar continuidade aos estudos ginasiais. Observa-se a
ética cristã presente reforçando a compreensão de um ensino e
aprendizagem voltado para a formação de valores, o que para
a protagonista é algo positivo e fundamental para a formação
educativa. Destaca-se o fragmento da narrativa sobre as rotinas
religiosas do Ginásio São José:

[...] aula de religião, inclusive nos primeiros anos de


escola. o livro de leitura era a bíblia sagrada infantil,
a Bíblia sagrada foi usada como livro de leitura, e ele
também usava uma prática muito bonita, que hoje seria
considerada antipedagógica, mas não é antipedagógica,
era obrigado o aluno assistir todos os domingos, 9h da
manhã, devidamente uniformizado com a farda de gala,
e isso todos os ex-alunos dessa época, 9h da manhã do
domingo lembram dessa missa e, se tiver uma igreja
próxima vai assistir, porque valeu a pena bater naquela
tecla (PROFA. CONCEIÇÃO, 2013).

Considera-se que a ex-aluna e ex-professora é um modelo


dessa formação baseada na moral e ética cristã, a qual, segundo
os depoentes, é uma formação integral que prepara para a vida
em sociedade. A professora estudou o primário, em 1950, no

246  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


Colégio Imaculada Conceição, indo depois para o São José a
fim de fazer o curso secundário, como era o processo de estudo
dos alunos católicos. Posteriormente ela fez a Escola Normal no
IBC (Instituto Batista) para a formação docente (1964-1966).
Apresenta-se ainda a fala de outra professora, que relata
sua formação profissional, ressaltando o modelo de formação:

[...] fiz o Normal no Instituto Batista Correntino e logo que


terminei fui trabalhar no Colégio Imaculada Conceição,
também passei no concurso. Na minha cidade eu estudei,
na minha cidade eu trabalhei e na minha cidade eu faço
o que mais gosto: trabalhar no social. (PROFESSORA
MARUZIA).

Destacam-se outras frases comuns nas narrativas dos ex-


alunos e ex-professores que revelam os modelos de formação
e a relevância dessas práticas educativas mediadas pelo habitus
religioso em suas formações: “O IBC era o nosso lar”, “Devo
tudo ao IBC”. Da mesma forma se manifestam os depoentes do
Colégio São José: “O Colégio me ofereceu muita oportunidade
de crescimento [...]”. Esses depoimentos, entre outros, revelam
a importância da ética cristã presente na sua função de
atender a população/comunidade de Corrente, segundo seus
organizadores, independentemente de credo, etnia e poder
aquisitivo.

Dimensões das práticas educativas mediadas pelo habitus


religioso batista e católico

Neste item apresentam-se as dimensões que envolvem


as relações entre práticas educativas mediadas pelos habitus
religioso e pedagógico das instituições aqui investigadas e os
campos (espaços sociais) diversos em que elas se desenvolvem.
Os campos são resultados de processos de diferenciação social,

INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITU 247


RELIGIOSO TECENDO HISTORIAS E MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO
representados pela forma de ser e do conhecimento do mundo
de cada indivíduo no desenvolvimento histórico das relações
na instituição (BOURDIEU, 1994, 2002). Segundo Bourdieu
(1994), o conceito de campo está, pois, relacionado à situação
social em que os agentes sociais (os sujeitos) realizarão suas
práticas, que serão desenvolvidas de acordo com o habitus
inculcado/apreendido.
No caso das instituições confessionais pesquisadas,
observa-se o habitus religioso e pedagógico específico de
cada religião. Apesar de ocorrerem de forma hierarquizada,
visto que as instituições educativas confessionais IBC e CMSJ
procuram uma articulação entre teoria-prática/habitus religioso
e pedagógico, priorizando as práticas religiosas, nas duas
instituições, observa-se que há um relacionamento ético-cristão
respeitoso quanto à confissão dos(as) alunos(as).
Considera-se relevante citar as “[...] características
distintivas da ética cristã”, conforme Geisler (2010, p. 15),
para contextualizar o ensino confessional: 1º – Consubstancia
a vontade de Deus, demonstrando que um dever ético é algo
que deve ser feito; 2º – É absoluta: parte do fato de que o
caráter de Deus não muda; 3º – A ética cristã é prescritiva:
“Os cristão não encontram seus deveres éticos em um padrão
de cristãos, mas em um padrão para cristãos: a Bíblia”, e 4º
– É deontológica: centrada no dever (GEISLER, 2010, p. 17).
A partir dessas características da ética cristã, encontra-se, de
certa forma, justificativa para uma melhor compreensão da
conduta dos ex-alunos e ex-professores dessas instituições
confessionais, descrita em seus depoimentos, bem como do
fato de que os depoentes consideram que nessa instituição
adquiriram uma “educação integral e para a vida”.
Dentre as dimensões de análise que emergiram das falas
durante a categorização no Programa MAXQDA, destacam-se
neste estudo, a materialidade (espaço de recreio, de atividades

248  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


as multidimensões das práticas educativas. As prátic
te físico a materialidade continente, nesse caso, con
essionais religiosas,
-espaço
Instituto Batista
de atividades Correntino
extraescolares, e Colégio
dos cerimoniais
das aulas), as mediações do habitus nos espaços/
e Me
campos de inter-relações e as multidimensões das práticas
ntegradas educativas.
aos habitus (religioso
As práticas e pedagógico)
educativas têm como suporte e às dem
físico
a materialidade continente, nesse caso, constituída pelas
instituições confessionais - Instituto Batista Correntino e
Colégio Mercedário São José, mediadas/integradas aos habitus
(religioso e pedagógico) e às demais dimensões (SAVIANI,
se em comum
2007).
às instituições confessionais que a prátic
Observa-se em comum às instituições confessionais que a
esentada,prática
inter-relacionada/integrada aos espaços ed
educativa é constituída, representada, inter-relacionada/
integrada aos espaços educativos e a outras práticas, como as
omo as representadas no 1.gráfico 1.
representadas no gráfico

Gráfico 1 – Dimensão - práticas educativas


Gráfico 1 – Dimensão - práticas educativas
Prática
pedagógi
ca

Prática Práticas Prática


religiosa Educativas didática

Rituais

e: A pesquisa, a partirFonte:
dasA histórias de vida/Programa
pesquisa, a partir das histórias de MAXQDA (
vida/Programa MAXQDA (2014).

mensões comuns às instituições emergiram durante


INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITU 249
ndo ser assim identificadas: práticas pedagógicas
RELIGIOSO TECENDO HISTORIAS E MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO
Essas dimensões comuns às instituições emergiram durante
a análise das narrativas, podendo ser assim identificadas:
práticas pedagógicas - aulas de Educação Física nas praias
do rio Corrente; rituais - filas, orações, passeios, festividades
(banquetes, piqueniques, práticas cívicas), os desfiles de 7 de
Setembro, hinos durante a entrada, competições e jogos entre as
instituições, recreios (intervalos orientados/fiscalizados pelos
professores e diretores); práticas didáticas - avaliação (provas
escritas, orais, debates), leituras diversas, grêmios literários;
currículo – disciplinas comuns, destacando-se canto orfeônico,
educação física, extensivas aos espaços não escolares; práticas
religiosas – preleções/missas, reflexões nas aulas.
Destacam-se nas narrativas outras dimensões
consideradas importantes para os protagonistas de ambas
as escolas, como o rigor disciplinar, a exigência na aplicação
de atividades, o desenvolvimento de valores, cobrados no
cotidiano das atividades na instituição, o respeito mútuo e,
principalmente, aos professores.
As práticas educativas têm como suporte físico a
materialidade continente (SAVIANI, 2007) do Instituto Batista
Correntino e do Colégio Mercedário São José, mediadas/
integradas aos habitus (religioso e pedagógico) e às demais
dimensões.

250  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


ANI, 2007) do Instituto Batista Correntino e do Colégio Merced
das/integradas aos habitus (religioso e pedagógico) e às demais dim
Gráfico 2 – Dimensão - mediação do habitus nos espaços de
Gráfico 2 – Dimensão - mediação do habitus nos espaços
inter-relações. de i

Igreja/Missões

Instituiões
educativas
confessionais

habitus hábitus
pedagógico religioso

Fonte: A pesquisa, a partir das histórias de vida/


Fonte: A pesquisa, a partir das histórias de vida/Programa MAXQDA (
Programa MAXQDA (2014).

Saviani (2007) considera que a instituição antecipa e


Saviani (2007) considera que a instituição antecipa e plane
planeja o que ele chama de materialidade-conteúdo, que
corresponde à apropriação, a atividade própria da instituição.
de materialidade-conteúdo, que corresponde à apropriação
Essa apropriação representa a “materialidade-conteúdo em
ato”, que aqui se considera o processo-produto da instituição,
a da instituição.
ou seja, Essa apropriação
a formação representa
dos sujeitos a articulações
a partir das “materialidade-
entre habitus religioso e habitus pedagógico, que repercute na
que aqui se identidade
considera dososujeitos
processo-produto da instituição,
e das próprias instituições ao interviremou seja
na realidade de seus destinos de vida. Aqui estão representadas
jeitos a partir das articulações
as formas entre habitus faz
como cada instituição/sujeito religioso e habitus ped
a incorporação
da religiosidade ao ensino-aprendizagem, compreendida
ute na identidade dos
nas práticas sujeitose, de
educativas e das
formapróprias instituições
específica, nas práticas ao
pedagógicas mediadas pelo habitus religioso.
de de seus destinos de vida. Aqui estão representadas as forma
EDUCATIVAS CONFESSIONAIS (1920-2013): O HABITU 251
ção/sujeito faz INSTITUIÇÕES
a RELIGIOSO
incorporação daE MEMÓRIAS
TECENDO HISTORIAS religiosidade
DE FORMAÇÃO ao ensino-a

eendida nas práticas educativas e, de forma específica,


Considerações finais

A identidade histórica de cada instituição se inter-


relaciona em uma mesma forma de agir em que o habitus
religioso em sua apropriação/inculcação se integra às práticas
educativas, de forma que há também nessas instituições o
desenvolvimento do habitus pedagógico – o jeito próprio de
ensinar de cada instituição que se modela e modela a formação
de seus alunos, cujas práticas pedagógicas, assim como são
moldadas/afetadas, reciprocamente também afetam o habitus
socializado/apreendido/desenvolvido no decorrer da história
das instituições.
Nas memórias narradas pelos diretores, professores e
ex-alunos, observa-se que há em comum rituais e práticas
educativas mediadas pelo habitus religioso praticado de
forma diferenciada, mas com as mesmas finalidades de uma
educação que, apesar de ser voltada para a religiosidade, com
a predominância do habitus religioso, revela uma preocupação
com o ensino e aprendizagem sustentado por uma formação
moral e ética.
Portanto, a história e memória dessas instituições
se constituem nessas relações entre as práticas educativas
que têm como suporte físico a materialidade continente do
Instituto Batista Correntino e do Colégio Mercedário São
José, mediadas/integradas aos habitus (religioso e pedagógico)
e às demais dimensões que, em seu conjunto, formam os
elementos básicos que constituem as instituições educativas
em seus aspectos da materialidade (suporte físico/espaços das
práticas educativas). A representação revelada pelas fontes
orais e escritas corresponde à funcionalidade, ao papel das
instituições em relação aos seus públicos, o que envolve, na
reconstrução/reescrita dessas histórias, a formação que os
depoentes consideram ter sido uma educação integral e para

252  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


a vida. As práticas educativas são consideradas pelos sujeitos
investigados como relevantes, sendo o habitus religioso visto
como algo propiciador da formação moral e ética, necessária
ao indivíduo.
Confirma-se neste estudo que os sujeitos que vivenciaram
e participaram da história das instituições investigadas
reconhecem sua relevância social em face da importância do
habitus religioso na e para a construção de suas identidades
pessoais e profissionais. Correlacionados, os habitus religioso e
pedagógico próprios de cada instituição confessional delineiam
a identidade dessas instituições, refletindo na construção
identitária dos sujeitos que as frequentam.

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Documentos

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10/01/1920. Corrente (PI), 1920.

Entrevistas orais

AVELINO, M. da C. Entrevista oral realizada por Teresinha de


Jesus Araújo Magalhães Nogueira. Teresina, 2013.

FOLHA, M. Entrevista oral realizada por Teresinha de Jesus


Araújo Magalhães Nogueira. Teresina, 2013.

NOGUEIRA, M. de A., atual diretor administrativo, ex-


aluno. Entrevista oral realizada por Teresinha de Jesus Araújo
Magalhães Nogueira. Teresina, 2013.

SANTOS, J. C. S. Entrevista oral concedida a Teresinha de


Jesus Araújo Magalhães Nogueira. Corrente (PI), nov. 2013.

256  Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


CONDURÚ E A PIAUIDADE
ECLESIÁSTICA

Antonio Fonseca dos Santos Neto

H
istória Eclesiástica do Maranhão: este é um dos
títulos mais conhecidos entre os estudiosos
e qualquer leitor interessado em história
eclesiástica católica no Brasil, particularmente no Maranhão,
Piauí e Pará.
Obra de muito fôlego, editada em volume único,
constitui essa História Eclesiástica um manancial de escritos,
de documentos e recortes documentais, enfim, de fontes e
indicações memoriais sobre a Igreja no Brasil-Norte, formada
em mais de três séculos, do XVII ao meado do XX.
Felipe Condurú Pacheco é o autor/organizador do livro,
publicado pelo Governo do Estado do Maranhão, em 1969,
com 850 páginas. Dedicado pesquisador, o padre, depois
bispo, Condurú Pacheco, ocupou a honrosa função de bispo
de Parnaíba, Piauí, o primeiro titular dessa sonhada Diocese,
em meados do século XX.
O livro recepciona, inteiramente, o labor escritural,
até então inédito, deixado por Dom Francisco de Paula e

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 257


Silva, bispo do Maranhão no primeiro quartel do século XX,
apontador nato e oficineiro-historiador no muito rico acervo
da Cúria de São Luís do Maranhão, a terceira/quarta que se
ergueu em território da América Portuguesa, em 30 de agosto
de 1677.
Este capítulo é um esforço de diálogo com o referido autor,
Dom Condurú, e seus referentes, nas asas da intertemporalidade
e na pegada de certa intertextuação, encorajada, diga-se, por
contribuições afluentes em relação aos fatos momentosos sob
registro e narração. Não há intenção de aduzir “correção” à
dita obra – é filha de um tempo –, mas deliberada vontade
de examiná-la, conforme algumas chaves que agora se põem
em se tratando dessa que é uma espécie de história do Piauí
eclesiástico, enredado em geral História.
O presente texto revisita e examina alguns elementos
desse portentoso acervo historiográfico, realçando o que mais
diretamente vem relacionado à formação da Igreja particular
do Piauí.
Pela metodologia de organização e apresentação do
conteúdo que pesquisou – a forma interpelativa1 –, Condurú
permite que releiamos as suas respostas, trazendo para a
conversa, quando necessário, terceiros interlocutores, com
suas próprias falas e eventuais fontes diversas. Isso constituirá
a matéria primordial do presente estudo. Essa obra é a vida de
Dom Condurú em escrituras, parte inseparável do seu pastoreio
eclesial-episcopal. Assim julgamos não deve ser olvidada pelos
amantes de Clio que lhe sucedem no ofício de historiador.
Quando surge o Piauí no contexto da Igreja na América
Portuguesa?


1
Organizada em 4 partes, guiando-se pela cronologia gregoriana: século
XVII, 31 quesitos; século XVIII, 65 quesitos; século XIX, 146 quesitos; e
século XX, 151, ditos.

258  Antonio Fonseca dos Santos Neto


A anexação do continente depois chamado de América,
a partir da última década do Quatrocentos, é uma obra geo
e eco política, significada na força dos anelos estruturais das
casas reinantes da Europa mediterrânica, da península Ibérica,
em particular, e levada a efeito pela autoridade pontifícia de
Roma. Não é somente retórica oficiosa o bulário papal que
tece a tratadística que chancela as navegações pelos oceanos
e continentes, vitoriosa a bem assim chamada “revolução
copernicana”.
Isso deve ser lembrado, em sede analítica, para não se
incorra numa espécie de separação – anacrônica –, entre
Igreja e Estado, aqui na posteridade e em relação a esses tais
acontecimentos, na operação expansionista, de base mercantil,
há cinco séculos passados. Com efeito, Igreja e Estado aqui
aportam como entidades portadoras de um único projeto:
expandir a fé e o império mercantil euro cristão. A sociedade
que se formará no espaço-mundo invadido pela dinâmica
expansionista comercial terão todas as linhas de seu tecido
costuradas pelos impulsos cogentes da máquina do Estado
católico.
Portanto, volvendo à interpelação inicial, deve-se afirmar,
desde logo, que o início da presença da igreja nestes sertões do
grande rio dos nativos tupis, o Parnaíba, é congruente com a
chegada de padres para a catequese cristã, bandeiras invasoras
de paulistas, igualmente de baianos oriundos das imediações de
São Salvador. Todos se vinculam num único projeto: submissão
das populações locais ao projeto colonizador, transformação
de corpos humanos em mercadoria-escravo, apropriação do
espaço vital habitado pelos chamados “índios”. A propósito,
anota Moisés Coelho, que “a história da nação brasileira e a
da igreja, no Brasil, é uma só – é um conjunto de fatos, é um
entretecido de ocorrências inseparáveis, não se podendo narrar
uma sem fazer referência à outra”.

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 259


E acrescenta:

No Brasil, a Pátria e a Igreja andam sempre a par, prestando


esta àquela a mais valiosa cooperação, unindo-se em
todos os tempos, nos dias de luta e de tristeza, como nas
horas de triunfo. [...]. Releva lembrar que todo o influxo
que da religião tem recebido o Brasil, na sua evolução e
no progresso espiritual, moral e social, advém da ação do
clero, quer regular, quer secular (COELHO, 1954, p. 4).

Observações elaboradas há 70 anos, estão coerentes
com a percepção corrente de ser o Brasil a mais populosa
nação católica do século XX, observação ainda sustentada
por sistemáticas pesquisas. Essa é a visão de um clérigo,
declaradamente patriota, que noutros passos de sua
peroração, incorre num saudosismo ardente dessa construção
cívica-nacional, marcada por certo triunfo de um sentido de
ordem que é aquele das reais e nobres vantagens tipicamente
insculpidas pelo espírito branqueador romano-lusitano das
eras regalistas e dos reis-padroeiros. Mas não se deixe de puxar
dele a expressão “lutas”, para realçar o papel dos padres no
contexto da formação brasileira, em momentos decisivos,
em que se opuseram, em guerras surdas e abertas, as forças
e os interesses do colonizador, e a justa resistência de nativos
e trabalhadores escravizados lutando por liberdade e pelo
próprio direito de viver.
A igreja é sócia, sim, da colonização, nela inscreve
um sentido mais que eloquente. No entanto, a memória
da inspiração cristã das origens, não é raro, lampejará em
ocasiões que contraditam a dominação colonial: há padres
com Manuel Bequimão; há, idem, que recusam a escravidão;
há padres nas revoluções e insurreições sonhadas e explodidas,
Bahia, Pernambuco, Minas. No Piauí, morreu padre a serviço
de sesmeiros pilhadores de terra e padre defendendo o direito

260  Antonio Fonseca dos Santos Neto


de continuar vivendo os nativos da terra... Há padres lutando
por Independência, há amantes da República. Frei Joaquim do
Amor Divino, Miguelinho, Mororó, tantos. Padres que andaram
abrindo caminhos com os desesperançados, os sem chão, sem
pão. Há Fragoso, Helder, Casaldáliga, Arns, Hypólito, tantos.
Nessa perspectiva mais geral da formação brasileira, a
fundação da Igreja no que é hoje o “Piocerão” – Piauí, Ceará
e Maranhão – ocorre sob a forma e cenário que lembram o
martirológio das tradições cristãs: um padre cristão morto
por nativos quando celebrava o Sacrifício da Missa... Tomba,
flechado, qual Sebastião, na Roma diocleciana, o padre
Francisco Pinto. Era o ano de 1607 e estava fundada, numa
quase planura da serrania das Ibiapabas, a mais antiga cidade
continental da referida região, momentaneamente sob o
controle de régulos a soldo da França. O litoral das capitanias
sobreditas tinha zonas – a exemplo do Delta – ainda não
completamente submetidas, pelo rechaço da ação Tremembé.
O sacrifício de Pinto, tem, porém, o signo invertido em relação
ao dos cristãos das grutas romanas: os primeiros cristãos eram
os oprimidos do tempo; aqui, os oprimidos eram – e são – os
nativos em processo de elisão cultural e física.
Em que pese o revés inicial do intento de fixação de
padres, nas Ibiapabas, assinalou-se, ali, o evento eclesial
fundador, secundado no tempo e na história. Nunca mais
faltariam padres em todas as dimensões da formação social
piauiense, decorridos quatro séculos de um processo em que
não faltam grandezas e quedas pecatórias da arte humana de
viver comunitariamente.
Que diz Condurú Pacheco da maranhensização da
igreja pernambucana do Piauí? Na afamada obra, a primeira
menção ao Piauí é para dizer que, ao separar-se o bispado
do Pará, distinto do Maranhão, em 1719, neste último ficara
“compreendido o Piauí”. Pela significação histórica contida

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 261


no respectivo processo, aduza-se que, em 1719, o bispado do
Maranhão ainda não assumira a jurisdição eclesiástica sobre os
sertões do Piauí, vinculados estes, por certa tradição e leitura da
Carta donatária de Duarte Coelho, ao bispo de Pernambuco. O
governo civil já estava sob a jurisdição do Estado do Maranhão,
desde a virada do século e havia um estado geral de levante
das populações locais contra sesmeiros a serviço de baianos e
pernambucanos.
A igreja pernambucana, à frente o carmelita calçado,
bispo-frei Francisco de Lima,2 garantira que posseiros e vaqueiros
fundassem uma Igreja e se constituíssem em Freguesia no
coração desses sertões. A iniciativa, porém, isto é, a colocação
em prática da “pastoral” sancionatória respectiva, resultou
por contrariar a vontade de sesmeiros ligados à Casa da Torre,
abrindo-se um tempo longo de lutas enredando os moradores
locais das várias qualidades. E apenas com o arrefecimento
dessa luta, e morto seu líder maior, Manu Ladino, processou-se
a passagem do Piauí à autoridade do bispo do Maranhão, fato
ocorrente entre 1726 e 1728. São imprecisas as bases registrais
do tempo, mas tudo indica que frei Francisco esteve na sede da
Freguesia da Senhora da Vitória, nos Sertões do Piauí, nos anos
inaugurais, para reafirmar a fixação da Igreja Matriz, derrubada
por alegados sesmeiros da gleba ribeirinha do Mocha.
Essa paróquia é a igreja-instituição plasmando-se no Piauí
e que define lhe a geopolítica pelos séculos afora; geopolítica
bem conhecida de frei Francisco, o prelado, visto que fora antes
bispo do Maranhão, debruçado, desde Lisboa, sobre o vespeiro


2
Bispo de São Luís do Maranhão de 22 de agosto de 1691 (confirmação)
com trasladação para a diocese de Olinda confirmada por bula de 26 de
agosto de 1695, à frente da qual fica até 1704. Em São Luís foi sucedido
por Dom Frei Timóteo do Sacramento, desde 17 de dezembro de 1696
(bula de sua trasladação de São Tomé e Príncipe para o Maranhão),
onde chegou a 8 de maio de 1697. Permaneceu bispo dessa diocese até
1714 (Apud MARQUES, 2008, p. 206).

262  Antonio Fonseca dos Santos Neto


irrequieto dos sertões irredentos, na zona mediana entre os
Estados do Maranhão e do Brasil. Dom Francisco de Lima
conheceu, em pessoa, e o perfilou como sujeito assustador, o
execrando Domingos Jorge Velho. Mas mesmo no episcopado
de Dom Manuel Álvares da Costa (1710-15), o Piauí não deixaria
Pernambuco, o que somente veio a ocorrer durante o governo
episcopal pernambucano de Dom José Fialho (1725 a 1738),
e, do lado maranhense, a administração apostólica do padre-
doutor Antonio Troyano, nomeado e provido pelo Cabido de
Lisboa, em 3 de abril de 1726, conforme anota Dagoberto Júnior
(2011, p. 52).3 Troyano é o primeiro governante diocesano do
Maranhão que visita o Piauí, aliás, a ele coube por um limite
à pendenga e, visitando o Piauí, entrar na posse do distrito
sertanejo dessa Capitania (criada em 1718), conforme já
dispusera Lisboa desde 1701, e a Sé romana, sob Bento XIII,
desde 1724.
Os referentes históricos e historiográficos relacionados à
incorporação, pela diocese do Maranhão, da igreja particular
em formação no Piauí, indicam, assim, uma espécie de
enfrentamento renhido entre esses dois polos da colonialidade.
Muito contribui para estabilizar o quadro eclesiástico piauiense
a presença do titular da Freguesia do Mocha, padre Tomé de
Carvalho, que, desde 1697, sustentou-se à frente da paróquia
que ajudou a criar, sob a diretriz pernambucana, que se viu,
permanecendo à frente dela mesmo após a anexação à diocese
do Maranhão. Nas primeiras décadas, até 1740, paroquiou
para o Norte, até o Atlântico, e, para o Sul, até às vertentes
altas do Gurgueia, na região de Parnaguá, na origem até a
barranca esquerda do São Francisco.


3
A sede vacante maranhense decorreu do falecimento, em 14 de
dezembro de 1724, de Dom José Delgarte, bispo do Maranhão desde
12 de junho de 1717. Vacância que se estenderia até 1739, quando da
posse de Dom Manuel da Cruz, em 29 de junho.

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 263


Criada a capitania do Piauí, em 1718, em 1728 a visitou e
relatou o governador geral civil do Estado do Maranhão, João
da Maia da Gama, o qual – como assinalado por Dagoberto Jr.,
e outros, cruzou com Troyano, o governador diocesano, sob os
céus da futura Teresina, na povoação da barra do Poti.
Laborando sua pesquisa enquanto orientado pelo aporte
documental, é curiosa a lacuna enorme de Dom Condurú
quanto ao bispo Dom frei Manoel da Cruz,4 limitando-se
a informações esparsas e muito específicas, a exemplo da
narrativa de uma trica enredando o paroquiato da Sé, em São
Luís. Curiosa mas compreensível, pois, com certeza, não teve
acesso a determinados acervos sobre o governo episcopal de
Cruz, no Maranhão. Nada diz, p. exemplo, que Manoel fez
uma longa visita pastoral (agosto de 1742 a janeiro de 1744),
de quinze meses, doze deles percorrendo todo o Piauí, além das
lonjuras do Estado do Maranhão e da Diocese, os Pastos Bons,
nos limites tocantinos, ainda incertos, com os Goiases.
Nessa visita, o bispo consolida, em pessoa, o quadro
vicarial-paroquial do grande interior diocesano, que lograra
criar, ainda em 1740; no caso do Piauí, desmembrando a
vasta paróquia da Mocha, noutras cinco, como se verá em
documento recortado a seguir.
Motivo de bastante apreensão por muito tempo, algumas
lacunas sobre o Piauí acabam de ser esclarecidas à luz de
documentação muito valiosa e esclarecedora, em publicação
aviada pelo Senado Federal: as cartas do próprio bispo D.
Manuel da Cruz posicionando, por exemplo, a indicação das
datas de criação das freguesias setecentistas piauienses, algo
que, além de Condurú, o mais dedicado pesquisador local do
assunto, padre Cláudio Melo, baldou e não logrou êxito. Vale


4
Governou o bispado (entrou em São Luís) em 29 de junho de 1739, até
1745, quando oficialmente transferido para ser o primeiro prelado de
Mariana, MG. Mas permaneceu em São Luís ainda até 1747.

264  Antonio Fonseca dos Santos Neto


citar Dom Manuel, missivista contumaz, textualmente, dando
notícia, do punho, sobre o ato formal da ereção dessas ditas
freguesias, com certeza um dos mais relevantes da oficialidade
católica piauiense do tempo:

Foi Vossa Majestade servido por resolução expedida


da Mesa da Consciência e Ordens em 20 de maio de
1740 criar de novo na freguesia da vila da Mocha mais
duas freguesias com párocos colados, uma na ribeira
da Gurguéia, e outra no distrito da Caatinguinha; como
também foi servido criar, e erigir mais em novas vigararias
coladas os curatos das igrejas de Santa Maria da vila do
Icatu, Nossa Senhora do Carmo de P[iracuru]ca, Santo
Antônio do Surubim, Nossa Senhora de Nazaré do Mearim,
Nossa Senhora da Conceição das Aldeias Altas, e Nossa
Senhora do Livramento de Parnaguá (que são únicos
curatos amovíveis que por esta hora há neste bispado)
consignando anualmente a cada um dos vigários destas
freguesias, cem mil réis de côngrua pagos pela sua Real
Fazenda, e porque nela não há sobejos com que que se
possam pagar estas côngruas, me pareceu preciso recorrer
a Vossa Majestade para que à vista desde inconveniente
determine o que for servido; pois não me parece justo, que
os opositores se oponham as tais igrejas com a esperança
de terem de côngrua cem mil-réis, e não se lhe pagarem
por não haver dinheiro no Almoxarifado; como não há
ainda para despesas mais precisas. (LEONI, 2008, p. 59).

Essa resolução é de 1740, os vigários colados novos


foram empossados em 1741 e o bispo os visita em 1742-43. É
a mais duradoura e longa visita pastoral que se tem notícia na
história da igreja diocesana do Maranhão e Piauí. Entrando na
capitania do Piauí em novembro de 1742, pelo vale do Longá,
visita a Freguesia de NS do Carmo, na ribeira do Piracuruca,
vai à de Santo Antonio, na ribeira do Surubim, hoje Campo
Maior, sobe ao vale do Sambito, alcança o lugar da “missão”

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 265


dos Aroases, “no distrito da Caatiguinha”, e depois de meses na
sede da vila e Freguesia da Vitória do Mocha, ruma ao extremo
Sul, visita a Freguesia de Santo Antonio, na ribeira do Gurgueia,
hoje Jerumenha, alcança a de NS do Livramento, em Parnaguá,
ribeira do Paraim, no sertão de Rodelas. De Parnaguá, indo,
por fim, ainda no distrito paroquial da Vitória da Mocha,
aos respectivos limites da própria diocese e do Maranhão, na
ribeira tocantina do rio Manuel Alves Grande, visitando outra
freguesia, então criada (1741), de São Bento de Pastos Bons. E
ainda no Piauí, antes de seguir para a Mocha, criou e instalou,
provida em 27 de novembro de 1742, a Freguesia de NS do
Desterro, nos limites serranos com o bispado de Pernambuco,
hoje Castelo do Piauí. E anote-se que é também desse tempo
(1742) que o padre Gabriel Malagrida, jesuíta, iniciou a
implantação de “pequenas escolas, em Caxias e Parnaíba [...]
de existência efêmera”.5
A propósito do quadro paroquial no meado do Setecentos,
anotou Condurú, equivocado, com data de 6 de maio de 1757,
a existência de apenas três paróquias, aliás, todas providas:
Campo Maior (padre Nicolau Ferreira de Britto), Mocha
(padre Antonio Luís Coutinho) e Parnaguá (padre Francisco
da Costa Silva). Como se viu, eram já, sete, desde 1742. Ele
acrescenta que Campo Maior, além da matriz, tem três capelas:
NS Humildes (hoje Alto Longá), NS do Livramento (hoje José
de Freitas) e “NS da Conceição das Barras” (p. 61-62).
Em 1760, recém inaugurado o governo do primeiro
governador do Piauí, faz visita pastoral no Piauí, indo à capital,
Mocha, o bispo Dom frei Antonio de São José,6 ocasião em que


5
Na ribeira do Parnaíba, onde hoje está o núcleo central de Buriti dos
Lopes, matriz e entorno.

6
Ficou à frente do bispado de 11 de abril de 1757 a 20 de setembro de
1761, quando retirou-se para Lisboa, ficando a Diocese semi-vacante
(Condurú, p. 59).

266  Antonio Fonseca dos Santos Neto


“ordenou dois padres”, provavelmente as primeiras celebrações
dessa espécie que assistiu a antiga sede piauiense.7 Condurú não
alude, mas com certeza o bispo interferiu na situação gravosa
dos jesuítas do Piauí, quando acabavam de ter confiscadas
suas imensas fazendas, deixadas em morgadio por Domingos
Mafrense. Alude, porém, enquanto selo de grandeza do bispo
Antonio de São José, ter este subido o seu “calvário” na luta do
Marquês de Pombal “contra os jesuítas, cuja ação com justiça o
Pastor patrocinava”. No festejado texto, Dom Condurú comete
um equívoco, contraditório com seu próprio volume, quando,
à página 101, afirma que, “já declinando o século XVIII – “Dom
Frei Antonio de S. João, foi o primeiro a percorrer os imensos
sertões da Diocese...”. Não foi, como já vimos o quanto fez
Dom Manoel da Cruz, antes dele, enraizando a instituição
Igreja nos ermos e confins do Piauí.
A Igreja é instituição que existe em conformidade com o
jeito humano de caminhar e nesse sentido tem altos e baixos em
seu trajeto. Já lembramos acima do papel de Dom Manoel na
tentativa de ordenar e estabilizar o funcionamento eclesiástico
no Piauí e não faltavam condutas tidas por reprováveis e a
reprimir, sendo Condurú particularmente ágil em trazê-la ao
grande público do futuro em sua obra. Outro exemplo anotado
é o que envolve o vigário de Parnaguá, por volta de 1768-69,
conforme fez processo o então Vigário Geral da Diocese, padre-
doutor Pedro Barbosa Canaes, sucessor legal de Dom Antonio


7
E a propósito dessa interiorização da ação episcopal, lembra Condurú,
que, recusando-se a aplicar decretos punitórios contra os inacianos na
Cidade Episcopal de São Luís, Dom Antonio “retira-se para o interior
da Diocese”, no momento em que desembarca na Sé maranhense o
bispo do Pará, na condição de “visitador dos jesuítas no Maranhão”
e aplicador, em pessoa, das sanções impostas pelo Conde de Oeiras,
apoiado na própria igreja lisboeta. Reveja-se Condurú quanto à data
da criação da capitania do Piauí, sendo 1718 o respectivo ano, e não
1755. Instalada em 1759 com a posse de João Pereira Caldas.

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 267


no governo diocesano, sede vacante, aparentemente contra a
vontade do clero. Dito vigário de Parnaguá é denunciado ao
Reino por Canaes porque “pretendera corrompê-lo”, “com um
donativo simoníaco”.8 Canaes determina a prisão do vigário
colado por um “sacerdote-visitador”, mas o governador do
Estado do Maranhão e Piauí, Joaquim de Melo e Póvoas,
manda soltá-lo “por não haver culpa formada”: a matéria sobe
ao Tribunal da Coroa. E diz Condurú que o foi num “processo
sem as normas canônicas”.
Não tardaria e outro imbroglio se impôs abalando o
bispado e as relações Igreja-Piauí-Coroa, já no tempo do
bispo Dom Antonio de Pádua e Bellas (1784-94) e da rainha
Maria I. O caso muito apontado por Condurú, transcrevendo/
recepcionando texto de Dom Francisco de Paula e Silva, dá
conta da tempestuosa suspensão e prisão do vigário colado
de Oeiras, Dionysio José de Aguiar, processo que levou à
máxima desinteligência entre o Prelado e o Capitão-General
do Estado do Maranhão, e fato que implicou na imposição de
“temporalidades” ao primeiro, do que resultou evidentes perdas
para a Igreja. Esse episódio envolvendo o pároco mochino indica
uma situação de graves altercações ensejadas por um regalismo
praticado no ponto em que a aplicação da lei transborda
para o puro vandalismo da vingança e do despotismo. Até de
“capelães de navios” Pádua e Bellas teve que tratar, com dureza.
Chegados aos portos do Piauí, embrenhavam-se eles pelo
interior “exercendo o ministério sacerdotal sem autorização
diocesana”. É como a historiografia, abundante, registra:
régulos, agentes e burocratas reinóis de toda cepa, até padres,
atravessado o oceano e a linha Equinocial, “lei, adeus!”.9


8
Espécie de tentativa de venda de dom ou virtude espiritual por preço
temporal, segundo Dom Raphael Bluteau.

9
Segundo Condurú, Pádua e Bellas ficou à frente do bispado de 18 de
julho de 1783 (sagração, entrada em São Luís em 18/10/1784) a 29 de

268  Antonio Fonseca dos Santos Neto


Numa brevíssima passagem, Condurú assinala o esforço
do último bispo setecentista do Maranhão, Dom Joaquim
Ferreira de Carvalho10, em praticar nova redivisão paroquial
em sua diocese, no caso do Piauí, depositando junto ao Reino
a necessidade de repartimento de quase todas as imensas
freguesias, notadamente as de Oeiras, para criar-se a de Jaicós
e de São Gonçalo do Amarante; de Piracuruca, a de NS Mãe da
Divina Graça, de São João da Parnaíba. Essas novas paróquias
seriam decretadas em 1801, 25 de setembro, e implantadas
tempos depois (12 de julho de 1805) por Dom Luís de Brito
Homem,11 bispo que, aliás, esteve no Piauí, em visita pastoral,
em 1808 – assim o aponta Condurú –, “visitação” que se dá a
partir de Aldeias Altas, chegando a Oeiras. Dessa época é uma
ardente saudação dele pela chegada da Família Real ao Rio
de Janeiro, e suplica a mediação “do Sr. Ministro” quanto a
entregar dita carta a S. A. R., entre mais afirmando o desejo de
“obter a graça de ir a essa Corte e ter a honra de beijar com o
maior acatamento a Real Mão de Sua Alteza Real e de S. Real
Família”. Congratula-se “por ter a Divina Providência lançado aí
os fundamentos de um novo Império, que será o mais Augusto,
e o mais respeitável de um e outro Mundo”, afirmando, por fim,
“o fervor de um coração verdadeiramente Português”. Brito
Homem encarnou o espírito do tempo, aspiração consistente
na construção de um Império em dois hemisférios, que logo
viria sob a forma do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves,

agosto de 1794 (confirmação da aceitação de sua renúncia por Roma).


Votou ao convívio de frater de sua Ordem. Faleceu em 21 de janeiro de
1808.
10
Seu episcopado se deu de 1796 a 1801. Na prática, dois anos, pois de
96 a 99 governou por Procuração, na pessoa do vigário geral arcediago
José Pessoa Aranha.

11
Confirmado em 24 de maio de 1802, tomou posse na catedral de São
Luís em 22 de fevereiro de 1804 (cf. CM)

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 269


em 16 de dezembro de 1815. Como lembra Ilmar Rohloff de
Mattos (2016), um Império de Portugal no Brasil e não um
Império do Brasil – citando as posições de dois formuladores da
época, Silva-Arouca e Hipólito Jozé da Costa.
Essa observação de Condurú sobre Dom Luís de Brito
Homem, no contexto do Reino Unido e do debate sobre
a emancipação política do Brasil, realçando sua conduta
monarquista e de lusitano apegado, leva a uma outra conexão
interessante quanto ao Piauí por essa época e que diz respeito
ao papel do sucessor dele no sólio do Maranhão e do Piauí.
Sucessor que era um clérigo muito estreitamente ligado ao
Príncipe Regente, depois Dom João VI, o bispo franciscano
Dom frei Joaquim de Nossa Senhora de Nazaré.12
Dom Joaquim assumiu a Diocese e já em 16 de fevereiro de
1822 era eleito para chefiar a Junta de Governo do Maranhão,
no rastro das mudanças impostas pelo revolucionamento do
Porto, em Portugal, o qual, inclusive, determinara a volta de
João VI para Lisboa. Com efeito, quando do pronunciamento
aclamatório do Império ocorrido na Câmara Municipal de
Parnaíba, em 19 de outubro de 1822, Nazaré reage em nome
de sua nação-metrópole-rei, concitando o povo diocesano
a recusar a iniciativa dos parnaibanos e que se arme “com
invencível escudo contra as seduções cavilosas dos espíritos
anticonstitucionais... e demagogos sedutores”. Acrescenta que
a

divergência de votos e de interesses entre as províncias


setentrionais e austrais do Brasil dissolve o vínculo que
as unia. Peculiares razões de raça e de consanguinidade...
ligam aos Portugueses do Maranhão, do Pará e do Piauí
aos Portugueses da Europa. Vossos irmãos nasceram e


12
Confirmado bispo do Maranhão em 23 de agosto de 1819 e empossado
em 11 de maio de 1820.

270  Antonio Fonseca dos Santos Neto


vivem em Portugal; os habitantes austrais do Brasil apenas
são vossos conterrâneos. A natureza dispôs árdua barreira
de ventos e torrentes entre estas e aquelas Províncias do
continente brasileiro. (PACHECO, 1969, p. 123).

O processo reivindicador da Independência, porém,


expande e aprofunda-se nos sertões diocesanos do Piauí e
Maranhão, já o Ceará aderido e apoiando na mobilização
contra Portugal. Português ardoroso, amigo de João VI, e
assediado por Pedro I, quando viu os sertões se levantarem em
radicalidade revolucionária, com impulsões de “independência”
real, propensões republicanas, Dom Joaquim, na direção
do governo insular do Maranhão, assume um pragmatismo
decisivo e acaba aderindo ao pacto de sustentação do Império
do Brasil e do imperador Pedro I, ao ponto de acolher,
em pessoa, em São Luís, o mercenário inglês, Cochrane,
combinando com este a “proclamação da Independência” no
Maranhão. Detalhe: o Piauí já aderira com um golpe esperto
em Oeiras, dia 24 de janeiro de 1823, por uma facção da
aristocracia fazendeira local, e quanto ao Maranhão, o sertão
já não seguia a orientação política da Junta presidida por Dom
Joaquim, o comandante português e governador das armas
do Piauí, fora detido em Caxias, já todo o médio e alto sertão
insurgidos, restando à São Luís lusitana apoios residuais na
zona baixadeira do seu entorno. Cochrane não teve papel
decisivo nesse processo porque a Junta de Joaquim de Nazaré,
assustada pela radicalidade social e política, repita-se, pactua
sua adesão ao Império e assim desencadeia a repressão da
insurgência sertaneja que, tudo indica, querer mais que
acomodações políticas por cima, subtraindo ímpetos de real
Independência.
Dom Joaquim, contudo, achou demais a imposição de
uma nova Junta de Governo, em sua sucessão, postulando
que ele fizesse um novo juramento de bispo, agora perante

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 271


o Imperador, filho do rei, seu amigo. Ele se recusou a fazê-
lo, alegando a ilegalidade da exigência, e, na sequência,
deslocando-se para Lisboa, ficando a Sé em situação de sede
impedita, engolfada num grave processo de disputas políticas
e clericais em torno da governadoria apostólica e capitular.
Em Portugal, em 1824, foi titulado bispo de Coimbra. Ocorre
que não tardou e o Pedro I, do Brasil, perante quem Joaquim
se recusara a repetir juramento de fidelidade, torna-se o rei
Pedro IV, de Portugal, de novo a exigir juramento do bispo
de Coimbra, que novamente se recusa a fazê-lo, agora por
considerar, intrusos, Pedro e, depois, a sua sucessora, em
face da pretensão sucessória do irmão Miguel, a quem Dom
Joaquim permaneceu fiel. Esse episódio acarretou a prisão
do bispo, por cinco anos. Liberto desse jugo e se recusando a
submeter-se à rainha Maria II, filha de Pedro 1º/4º, abandonou
a pátria-mãe camuflado de marinheiro inglês rumo a Londres,
de onde retornou ao Maranhão, em 1840, recebido por todos,
jubilosamente, conforme dá conta, de toda a sua vida, Dom
Felipe Condurú Pacheco, a quem recepcionamos e seguimos na
apresentação da factualidade atinente. Permaneceu bispo de
Coimbra até 1851, quando faleceu, em 1º de setembro, sendo
sepultado na Sé maranhense. Dom Joaquim fez visita pastoral,
mas até aqui não há registro historiográfico de que tenha
visitado seus diocesanos do Piauí.
Vale observar que a sede vacante pós Joaquim de Nazaré
teve em José Constantino Gomes de Castro, cônego e depois
monsenhor, a figura central, um ativista político de proa,
ajustando os cacos do ensaio da disjuntura de 1821-24 ao
Império de Pedro I. Alia-se ao esforço imperial de deter qualquer
manifestação tendente a dar conteúdo independentista diverso
daquele pactuado na sub-Corte portuguesa montada no Rio
de Janeiro para impedir que a separação do Reino do Brasil
em relação a Portugal se tornasse uma Independência efetiva,

272  Antonio Fonseca dos Santos Neto


nos moldes do que ocorria, então, no derredor sul-americano.
Insere-se como indicador dessa ação pró-Império, a ação de
Castro instruindo, além de agindo contra os clérigos e vigários
em geral que, na grande e dispersa diocese do Maranhão,
agissem em sintonia com qualquer atividade considerada
contrária ao regime imperial negociado na sobredita Corte
carioca. Tal é o caso – a seguir a indicação de Condurú – do
procedimento duro de Castro, devidamente informado a Pedro
I, de medidas atinentes a dois episódios envolvendo párocos
piauienses, o de Campo Maior, colado, padre João Manoel de
Almendra, e o de Piracuruca, encomendado, padre Manoel de
Almeida Brandão, que levara uma surra, tudo sinalizando uma
turbulência na base do clero local piauiense nos anos seguintes,
e instabilizados, de 1822 a 1825.
Aliás, é desse período o revelador registro de Condurú
sobre a situação da católica Oeiras naqueles e anos, em que o
regalismo também estava à prova, redefinindo seu conteúdo e
direção. Então, a já secular Freguesia de NS Senhora da Vitória,
primaz do Piauí, tornara-se sede de um Vicariato Geral forense,
provincial, estratégico, com protagonismo de quase uma
diocese. Nesse momento crucial, de conflitualidade emergente
sobre o que significava o elemento português no contexto,
chega para governá-la, em 1822, nomeado pelo rei Dom João
VI, o padre doutor, português, José Joaquim de Carvalho e
Oliveira: este assistirá – e participará –, na capital piauiense,
aos diversos acontecimentos que levam à ruptura governativa
de 24 de janeiro de 1823.
Logo o padre-doutor se verá enredado no torvelinho
do tempo, a partir mesmo das ebulições da sede diocesana
interdita, governada, na emergência, por acerto instável intra
capitular, acirradas as posições pro e contra a posição adesista
maranhense ao Império. Assim acirrados os ânimos, e à falta
de cabeça prelatícia coroada, à frente do governo diocesano

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 273


o referido Gomes de Castro, as decisões e os acertos de
conta parecem se deflagram com maior intensidade, tal se
viu no episódio envolvendo Campo Maior e Piracuruca. Com
efeito, sem que se diga claramente na fonte documental ora
comentada, as razões que o ensejam, uma espécie de conselho
de cônegos, em São Luís, reunido em 21 de maio de 1825, acorda
“em que o Revmo. Vigário Capitular mande, como Visitador do
Vicariato forense do Piauí, o Revdo. Dr. Frei Antonio Bernardo
da Encarnação e Silva, que, em Oeyras, se lhe parecesse justo,
recebesse a demissão do Vigário Geral Forense, o Revdo. Dr.
José Joaquim de Carvalho e Oliveira, provendo a Vigaria em
pessoa idônea” (p. 132). Seguindo claramente os anais do
Cabido, Dom Condurú registra a seguir nova decisão, em sessão
havida oito meses depois, decisão agora monocrática, e do
Vigário Capitular Gomes de Castro, dizendo haver “mandado
suspender e recolher o Revdo. Visitador Dr. Frei Antonio B. de
E. e Silva, por excessos cometidos na visita [em Oeiras]”. De
fato, a instabilidade na relação Igreja & Estado parece evidente
e dentro da própria instituição romana.
Quanto à defesa do padre-doutor, este mobiliza em
seu favor, atestados de probidade, um deles (30 de maio de
1815) de seu paroquiato e priorado de Sobral do Agraço, na
Metrópole; outro (26 de março de 1824), da própria Oeiras,
documento que assinala a assiduidade do vigário quanto à
instrução religiosa e civil de seus paroquianos, com zelo “em
banir os sentimentos de ódio, ou de intriga. [...]. Seus cuidados
são incansáveis; sua doçura, e afabilidade para todos lhe tem
grangeado nossa estima, podendo francamente se afirmar,
que ele é geralmente amado...” (p. 137). Atestado “abaixo-
assinado” por figuras em geral referenciadas na antiga capital
do Piauí. Entre eles, ilustre-se: os padres Francisco de Paulla da
Silveira – Coadjutor, Jerônimo José Pereira, Serafim Alves Costa,
João Bento Botelho Cardozo, Luiz Pereira de Barros, Frei José da

274  Antonio Fonseca dos Santos Neto


Conceição e Frei João de Jesus-Maria; também militares Ignacio
de Araújo Costa, João Nepomuceno Castello Branco, Manoel
Pinheiro de Miranda Ozório e Joaquim de Souza Martins.
Muito útil recortar e ler do próprio Condurú, e seu
predecessor na escritura memorial, Dom Francisco de Paula
e Silva, o documento abaixo: Dom João VI o nomeia Cônego
honorário da Capela Real e Pároco da “Igreja de Nsa. Sra. Da
Victoria da Capital da Província de São José do Pyauhy”. [...]. O
Soberano mandou o Governador Elias José Ribeiro de Carvalho
[dizer a ele do] abandono da Eclesiástica Disciplina na Capital
do Pyauhy e [julgá-lo] capaz de sua Real Eleição.
Mas anota o prelado-historiador, agora transcrevendo
texto do próprio vigário de Oeiras:

Transportado de alegria, parti a cumprir a Missão que me


foi encarregada.
Oeiras há sido o mais seguro asilo dos Europeus
perseguidos em toda parte. Há, porém, uma nodoa que
tem recahido sobre mim e meus infelizes Patrícios – hé
um crime haver nascido além do Atlantico: não podem os
Europeus hombrear-se com os que se dizem “Senhores do
Paiz”.
Houve a Eleição Parochial em Oeiras, a 21 de setembro
de 1824. – Apesar das diligências de alguns em contrário,
fui incluído entre os eleitores, pois tenho em meu favor
a opinião pública. – Entretanto, o Governo da Provincia
expedio Portaria, para que fossem excluídos os que faziam
parte da Junta de Governo, quando a Provincia estava
unida a Portugal, e os que acompanhárão a expedição do
Major João José da Cunha Fidié. – Apesar das tramoyas, fui
escolhido em segunda eleição para a Parochial Assembleia
de 4 de abril. A reunião da Parochial Assembleia do Distrito
de Oeiras, transferida de 1º para 3 de maio de 1825,
diplomou três Senadores, para a escolha de V. Magde. Fui
excluído por meio de tramas. – Rarissimo são em Oeiras os
cidadãos que tenham os requisitos para Representantes da

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 275


Nação. A sedução e o terror preenchem essas qualidades.
Só isso explica porque hé um crime haver nascido além do
Atlantico.
Assim me foi tirada toda esperança de poder hum dia, beijar
a Mão Augusta de V. Magde. Imperial. – Entretanto, direi
a verdade sobre Oeiras, ainda que me custe a vida. Tudo
trama, benéfico Pai dos infelizes, só com a expectativa de
poder descobrir-se qualquer passo que manifeste o misero
estado, a que nós – os portugueses – fomos reduzidos. –
Tenho tomado medidas para não ser interceptada esta
minha “Representação”. Deus hade de permitir que
estas minhas vozes cheguem a V. Magde. Imperial. – o
Governador das Armas da Provincia – caracter integerrimo
e imparcial – consta ter pedido demissão do seu cargo e
que V. Magde. vai concedar-lha. Se tal acontecer, ó Céos!...
Infelizes Pyauyenses!.
Queixo-me amargamente por me haverem arrebatado
o único meio de sair desta Província e levar-me aos pés
do meu amado Soberano. [...]. Se, porem, for preciso
colorar este chamamento com qualquer título que me faça
parecer criminoso, de boa mente me sujeito, só para poder
prostrar-me na Presença Augusta de V. Magde. Imperial.
[...]. Sou muito pobre. Deixando esta Igreja, perco o único
recurso à minha subsistência. [...]. Digne-se V. Magde.
mandar recolher-me à Corte, e acudir sem a menor demora
à aflita Província do Pyauhy. O volcão está rebentando por
momentos e ele devorará os súbditos fieis de V. Magde.
Imperial. Atúrão-me (Sabem que não me fazem perder
minha natural coragem) e comparam-me a muitos outros
insultados e perdidos.
Se o meu fim for trágico, desde já à face do Céo e da Terra
protesto e juro que morro por ser fiel ao meu Soberano e
que devo ser numerado entre as vitimas da verdade e do
dever. Quando V. Magde. Imperial se Digne compadecer-
se de mim, queira, Senhor, determinar que sua Imperial
Ordem seja encaminhada em forma tal, que não seja
possível extraviá-la ou consumí-la. O cônego Secretário
da Província Antonio Fernandes da Silveira, depois de
haver escandalizado até os entes insensíveis [...] saio

276  Antonio Fonseca dos Santos Neto


dias passados para a Corte. Se por acaso ele chegar a
ser sabedor desta “Representação”, fazendo ruína para
Oeiras, serei cada vez mais infeliz.
De V. Magde. Imperial Mto. Alto e Mto. Poderoso Senhor
o mais fiel e humilde súbdito – José Joaquim Monteiro de
Carvalho Oliveira, Vigario Geral da Província do Pyauhy, e
Parochial de Oeiras,
Oeiras do Pyauhy, vinte e seis de Maio de 1825 (p. 132 a
135).

Essa Representação é indiciária de diversas leituras


sobre os acontecimentos então em curso concernentes às
conformidades/inconformidades quanto à formatação do
Império e as engrenagens atinentes no Piauí e sua capital,
quando o poder local-provincial cai nas mãos do “vaqueiro
que virou visconde”, Manoel de Sousa Martins. O tom do
subscrevente é dramaticamente explícito e o documento
contém elementos indicativos de que o Piauí estaria submerso
no caos da violência. Violência que, assim ameaçadora
existisse, o vigário geral poria em risco sua vida, de fato, ao
fazer o envio do documento a Pedro I, supremo chefe. Ora, no
novo arranjo de poder alçado à direção do Piauí, estava um
aderente do Império, ao que se sabe bastante acatado no Rio
de Janeiro, não fora por outra razão, pelo papel destacado
no encaminhamento da adesão piauiense e da própria região
Norte-equinocial do antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará
ao acerto separatista engendrado em 1822.
Esse aparato documental – o mais copioso do grosso livro
de Condurú –, do ponto de vista estritamente dos negócios
eclesiásticos, denota uma clara inflexão da principal autoridade,
no Piauí, da Igreja diocesana do Maranhão em relação ao
Imperador – diversa, sobretudo, do último bispo português
em São Luís, Dom Joaquim de Nazaré. E evidencia uma certa
rejeição aos naturais do velho reino por parte dos piauienses,

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 277


algo que se notará também no Maranhão, notadamente nas
vastidões sertanejas.
Por outro lado não deixa de ser curiosa a fustigação que,
na Representação, faz o vigário forense ao cônego Fernandes
da Silveira, claramente homem engajado na ação de governo,
pois Secretário provincial em Oeiras. Contudo, o tom de certa
sofreguidão, dele vigário, revela um jogador ativo – e não mera
vítima – quando se percebe o seu desabrimento em enaltecer o
governador provincial das armas do Piauí. Mais: quando vai à
luta colocando seu nome como candidato à função de senador.
Assunto muito recorrente por sua magnitude quanto
à afirmação piauiense no universo dos valores e negócios
relacionados à Igreja – a criação de um bispado próprio
conformado na jurisdição provincial –, a obra de Condurú fixa
algumas balizas para a compreensão da momentosa questão,
conquanto aponta e contextualiza o petitório atinente em seus
momentos decisivos, sobretudo quando se refere ao governo
diocesano de D. Marcos Antonio de Sousa13, aliás, o primeiro
bispo do Maranhão/Piauí nascido no Brasil. Posiciona-se,
criticamente, na forma de lamento, ter sido “o grande bispo”
Marcos o principal empecilho para que não prosperasse o
intento.14 Afora a sede paroquial do Poti – Nossa Senhora
do Amparo – Dom Marcos não visitou o Piauí pessoalmente,
mas o fez, como ressaltou, por meio de “visitadores”. Estes
estiveram nas 13 paróquias piauienses de então (1835): “Oeiras,
Parnaíba, Campo Maior, Piracuruca, Poti, Marvão, Príncipe
Imperial, Valença, Jaicós, Amarante, Jeromenha e Parnaguá”.
13
De 25 de junho de 1827 (confirmação pontifícia e com entrada em São
Luís em 19 de março de 1830) a 29 de novembro de 1842.
Por esse tempo, a aspiração piauiense a um bispado próprio foi
14

fortemente levantada por outro Marcos, no caso, o padre Marcos de


Araújo Costa, atuante deputado provincial nas primeiras composições
da Assembleia do Piauí.

278  Antonio Fonseca dos Santos Neto


Príncipe Imperial e Poti são criação de sua época, antes que a
Assembleia Legislativa provincial passasse a ser o órgão decisor
nessa matéria.
A propósito corrija-se dados apresentados por Condurú,
baseado num relatório produzido na Sé de São Luís, em 1838,
afirmando, por exemplo, que a Freguesia de Parnaguá (p.
162) fora criada por ele; não foi. Mas no conjunto da obra há
números confiáveis, notadamente insertos em relatórios sobre
o Piauí, caso da oportuna informação de que, à época da posse
do bispo D. frei Carlos de São José15 – que também opinou
contra a criação do bispado do Piauí –, tinha essa província “15
paróquias, com 94.107 habitantes aproximadamente”, “cujos
dízimos são de fácil remessa” para São Luís e imprescindíveis à
“sustentação do Prelado” (p. 169).
No tempo episcopal de Dom Manoel Joaquim da
Silveira,16 houve duas notícias relacionadas ao Piauí e que,
hoje relembradas, revelam algo que causa certa apreensão
aos leitores: abertura de concurso para a paróquia de Príncipe
Imperial (hoje Crateús) e a morte, em São Luís, de um sacerdote
natural de Campo Maior, “capelão dos empestados”, padre
Bernardo Franco Cardoso, então Beneficiado e Coadjutor,
servindo na Catedral da Vitória, na sede diocesana. Foi vitimado
por grave epidemia de varíola, agravada por terrível seca, e
com ele, “parte da população da Província” do Maranhão.
Dom Manoel, logo a seguir sua chegada ao Maranhão enviou
correspondência ao presidente da província do Piauí, José
Antonio Saraiva, manifestando sua intenção de visitar essa
parte de sua diocese. Em 1852, além de nomear o cônego e


15
Confirmado bispo do Maranhão, pelo papa Gregório XVI, em 24 de
janeiro e sagrado em 2 de julho de 1844, ficando à frente do bispado
até 3 de abril de 1850.
16
Empossado à frente do bispado do Maranhão e Piauí em 31 de janeiro
de 1852 (por procuração), ficando nas funções até 7 de junho de 1861.

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 279


vigário colado de Oeiras, João de Souza Martins, para a Vigaria
Forense provincial, anunciou visita à capital recém inaugurada,
Teresina, “visitando de regresso as localidades [maranhenses]
ribeirinhas do Itapecuru”. Logo recuou, uma vez “advertido de
que assim queixar-se-iam os maranhenses”. O bispo mudou de
plano, anotando que “se o povo se desgosta, convém não lhe
dê eu motivo para isto. Evite o Pastor escandalizar as Ovelhas.
Sofra ele, mas não se queixem elas”. Dom Condurú, que historia
o episódio, não comenta, mas possivelmente teve vontade
de redarguir: mas ele não era bispo de todos, igualmente?
Isto é, as “ovelhas” piauienses poderiam se escandalizar sem
a preocupação do prelado? Dom Manoel, contudo, visitaria
Teresina apenas em 1859. O autor da História Eclesiástica
repõe historiograficamente o registro dessa que é a primeira
vez que um bispo põe os pés em Teresina. Visita Pastoral nas
paróquias e localidades ribeirinhas do Itapecuru. Partindo de
Caxias, dia 14 de novembro de 1859, no dia 16, na fazenda
Flores, do Tenente-Coronel José Joaquim da Silva Viveiros, que
“oferece aos viandantes almoço e jantar”, e depois, quatro
da tarde, seguem em direção a Teresina. Antes, ao anoitecer,
chegam a São José das Cajazeiras, hospedando-se “na casa do
Senhor Ângelo Custódio Reverdosa”, onde o prelado recebe as
felicitações do médico Augusto César Marques, do Dr. Simplício
de Sousa Mendes, do arcipreste e vigário de Teresina, Mamede
Antonio de Lima, além do padre Antonio Silverio de Moura.
Convencem o bispo a não atravessar o rio, naquela noite,
“com forte enchente”. No dia seguinte, cedo, recepcionaram-
no, ainda em Cajazeiras, o vice-presidente do Piauí e o referido
vigário Mamede, que o secundaram na travessia.
O desembarque festivo, as solenidades cívico-religiosas,
a hospedagem e outros fatos, foram relatados pelo próprio D.
Manoel e são objeto do festejado livro condurenho, interessante

280  Antonio Fonseca dos Santos Neto


para que se conheça detalhes de como se movimentava, em
certas ocasiões, o povo do lugar.
Visita longa, alongando-se até 10 de dezembro, após,
dia 8, ter Dom Manoel participado da procissão de NS da
Conceição. Os atos litúrgicos da Visita ocorreram na Matriz do
Amparo, tendo ficado o bispo hospedado “na casa magnífica,
propriedade do Cel. Jacob Manoel de Almendra, preparada
pelo arcipreste para alojar-me” (p. 270). Imensa a lisonja com
que ele traduz sua visita a Teresina:

Em nenhuma parte as minhas visitas têm produzido


resultados tão salutares, como na Teresina, graças a Deus,
que quis dar eficiência aos suores, com que reguei esta
porção do seu Campo. [...]. Ao sair para casa cada vez
tinha de abençoar um a um. Não é preciso dizer que eu
estava tão molhado, como se tivesse caído no Parnaíba
e fosse tirado das águas. [...]. O termômetro Farhenheit
à tarde geralmente marcava 98 graus à sombra. Na
Teresina preguei, passando em revista toda a Doutrina, 13
sermões, não contando os dois discursos de abertura e de
encerramento.

Além dos atos litúrgicos, propriamente, recebeu muitas


visitas de delegações e de autoridades, além de ter ele próprio
visitado escolas, instituições tipo hospital e cadeia, inclusive
crismou 13 presos, que assistiram à missa na capela-mor
do Amparo. Outros fatos interessantes anota o bispo, tal o
“sussurro do Povo e o alarido das crianças, que nunca se tinham
visto naquelas circunstâncias”. Fica no registro oficial o assento
de que fez em Teresina 4.594 crismas, 335 batisamentos, sendo
alguns de adultos, e 175 casamentos”. Ele o tempo todo faz
elogios à nova cidade-capital do Piauí, que o recebeu com muita
música e fogos, inclusive dos escolares Educandos Artífices. Diz
do acerto e gosto na escolha do lugar da Matriz, “de onde se
vê o Parnaíba e a povoação São José da banda d’além”. Mais

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 281


de uma vez reclama do calor, “seu inimigo cruel”, “proveniente
da falta de arborização, mal que no presente se trata de obviar
com árvores, hortas e jardins”. Teresina “em breve, será uma
bela cidade”.
Durante a permanência do bispo em Teresina, a
Assembleia provincial votou e repassou para ele diárias de 20
mil réis, quantia que o religioso entregou, inteiramente, para a
“construção de um nicho para a Veneranda Imagem de Nossa
Senhora do Amparo – Orago da Freguesia, que colocada em
estreito degrau, estava exposta ao pó”. Ainda em Teresina, com
todo o clero, participou ele, no Palácio do Governo, de um
‘chá’ oferecido pelo presidente, para solenizar o Aniversário do
Imperador”. Dia 10 de dezembro, cinco da tarde, ele desceu
ao porto de embarque, “acompanhado das Autoridades e de
outras personagens”: “rua estava coalhada de Povo. Cena por
demais tocante. Ia me apartar, talvez para sempre daquele
Povo que me dava tantas provas de tão puro afeto”. Acrescenta
que nunca esquecerá do bom povo teresinense e que “gratas
recordações” desses momentos “nem o túmulo as destruirá.
Elas sobreviverão no meu pensamento e durarão gravadas pelo
buril da História, ao menos nestas humildes páginas”: “Às Ave-
Marias atravessava o rio a galeota do Governo e os canhões
assestados na margem do Parnaíba anunciarão à Cidade, que
eu dela me havia ausentado” (p. 273).
Uma curiosidade ficou consignada em todas as visitas
pastorais desse bispo: ele adoecia; em Teresina não foi diferente.
Foi ajudado nas jornadas da visita, pelo vigário geral forense do
Piauí, e de Oeiras, cônego João de Souza Martins.
Dom Joaquim teve atenção ao Piauí também como criador
de freguesias novas, cuidando de dotar todas as capelas com
maior qualidade da jurisdição paroquial. Dagoberto Carvalho
Júnior (2011, p. 96), entre outros, lembra que foi ele que criou

282  Antonio Fonseca dos Santos Neto


o arciprestato na Igreja Matriz de Teresina, que conferiu dita
titularidade a seu pároco Mamede de Lima.
Poderoso o bispo Silveira, natural da Corte carioca,
cresceu e se tornou clérigo nos enleios do poder e de sua
tessitura. Essa qualidade ajudam explicar ser ele, na referida
Corte, na diocese do Maranhão/Piauí, e no arcebispado da
Bahia, um articulador político evidente. Aliás, na escolha do
bispo que o sucedeu na Sé maranhense – o baiano Dom frei
Luís da Conceição Saraiva17 – dificilmente não teria sido ele o
decisivo eleitor.
Entre as notas alinhavadas por Condurú Pacheco sobre
o Piauí, tem uma que deveria chamar mais a atenção e que
diz respeito a uma regra adotada pelo Império, em 1862, por
Aviso de 4 de outubro, que reservava apenas aos presidentes
de província “a faculdade de licenciar aos Párocos com os
respectivos vencimentos” (p. 286). Dom Saraiva dirige-se ao
presidente do Conselho de Ministros, em tom de queixume,
e pedindo medidas saneadoras, sobre o rumo que coisas
tomaram em sua diocese, pela aplicação dessa medida, e toma
o caso do Piauí como exemplo do que alega. Diz ao ministro
do Império que chegavam-lhe “Portarias do Presidente do
Piauí concedendo isto perturbação ao regímem espiritual da
Diocese”, conquanto passavam dias os párocos licenciados,
rebanho à solta, sem que disso tivesse conhecimento o
Diocesano. “A matéria merece a meditação de S. Majestade.
Importa no abandono do Rebanho”, acrescenta Condurú,
para de novo voltar à letra episcopal quando alega que a nova
dinâmica da concessão das licenças implica no “desligamento
da obediência dos Párocos, cooperadores do Bispo e devendo


17
Filho da aristocracia baiana-reconcavina, assumiu no Maranhão em
21 de março de 1862, à frente desse bispado ficando até 6 de abril
de 1876. Irmão de pai e mãe do ex-presidente do Piauí, José Antonio
Saraiva, depois conselheiro imperial.

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 283


fazer com ele uma só pessoa”. Aponta o bispo uma série de
medidas – Avisos – emanadas do Império e de

[... ] cuja doutrina claramente se podem prever os casos


frequentes de conflitos de jurisdições, porque com a
quebra do prestígio da autoridade eclesiástica para com os
respectivos Párocos, que procuram a Autoridade Secular
para ausentarem-se de suas Paróquias, pois que é ela pelos
citados Avisos a única competente para os licenciar com
vencimentos, vem de envolta os graves prejuízos dos Fieis
confiado à cura dos Párocos, cujos deveres espirituais
são esquecidos, porque deles só pode curar o Bispo, que,
não sendo ouvido acerca de tais licenças, tarde poderá
remediar os males, que possam resultar do abandono das
Freguesias (p. 287).

Chama-se a atenção para o fato de que, por essa época,


agrava-se a percepção de que o Piauí constituía unidade distante
da velha sede maranhense, aqui em franco viço, uma inclinação
à prática de padroalismo sem peias, padres, em regra, na
condução de negócios da política entendida como apanágio
da esfera civil. Ora, um bispo distante, noutra província, e um
pároco sob a autoridade secular de um presidente mais próximo
dele, certamente existe aí um potencial conflito, que logo se
manifesta. Na época do chamado Segundo Reinado, restam
aguçadas essas assimetrias e contradições, num contexto que,
cada vez mais, postula por republicanização, livre-pensamento
e fim do padroado, isto é, com implicações imediatas nas
funções paroquiais, remuneradas pelo Estado imperial.
O conjunto da historiografia maranhense dá pistas de
um período bastante conturbado quanto às relações Igreja &
Sociedade – a segunda metade do Oitocentos – tempo episcopal
de Dom Saraiva e Dom Antonio Candido de Alvarenga.18 Grassa

Posse no bispado em 13 de março de 1878, ficando nele até 3 de


18

fevereiro de 1899.

284  Antonio Fonseca dos Santos Neto


um acirrado e desabrido debate, nas folhas jornalísticas,
sobretudo de São Luís, mas também de Teresina, além de Caxias
e Parnaíba, tendo os rumos da instituição eclesiástica, e da
própria religião, como referente de embates que ganhou o corpo
social como um todo. A vida do clero foi atacada sob todas
as formas, numa verdadeira guerra sectária, não deixando o
clero de responder a todos os ataques, mobilizando as energias
de inteligência plasmada em milênios. Toda e qualquer fato
havido na cotidianidade eclesiástica, a rés do chão social, onde
ela realiza seu desiderato, nas folhas que se fizeram anticlericais
se tornavam pólvora. De seu lado, a Igreja do Maranhão, e a do
Piauí, como já se viu acima, acumulavam problemas seculares,
até mazelas, potencializados pelos arranjos do regalismo
exercido nos enleios gerais da governação geral e local. Aliás,
inscreve-se nesse diapasão de fortuidades infelicitando a vida
social, a inescusável participação dos clérigos nos chamados
“negócios da política-partidária”.
Condurú alude ao que seria um rumoroso caso, do tempo
de D. Saraiva, envolvendo o arcipreste e vigário de Teresina,
Mamede Antonio de Lima, que envolveu o então presidente
do Piauí, Franklin Dória, como denunciador, e o referido
sacerdote como denunciado. Em 1865, o primeiro queixou-se
do segundo ao bispo, ressaltando que o vigário encontrava-
se “pronunciado como incurso no artigo 247 do Código
Criminal”. Pedia o governante “providências urgentes, para não
ficar a freguesia [do Amparo] desamparada como se acha”. D.
Saraiva responde com esperta evasiva, isto é, nem assina recibo
do conhecimento da pronúncia, que trata de questão na esfera
civil e estaria Lima errado “em abandonar suas ovelhas” e nem
desautoriza o clérigo, dizendo a este, que somente o prelado
pode suspendê-lo de ordens” – apenas lembra que ele não está
suspenso por decisão canônica. Contudo, escreve ao pároco
e o instrui que, sobrevindo sua suspensão do cargo imposta

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 285


pelo Governo, “passe-o ao Vigário de Cajazeiras (Timon) ou
ao Pe. Marcelino José da Cunha”. Doria secunda sua queixa
afirmando que o padre continua no exercício de suas funções
paroquiais, zombando assim da justiça do país e ‘‘nulificando
um dos efeitos principais da pronúncia a que está sujeito”.
Disso decorre uma momentosa discussão jurídico-legal sobre
a qualidade do cargo paroquial, se ocupado por “empregado
público” ou “empregado eclesiástico”, posto que o dito Código
Criminal, noutro artigo, o 155, § 4º, quando dispunha que, “a
formação da culpa dos empregados públicos [cabe às] justiças
ecclesiasticas nos crimes de responsabilidade dos empregados
ecclesiasticos para imposição sómente das penas espirituaes
decretadas pelos Canones recebidos” (BRASIL, CPC, 1832).
Condurú, pesquisando a matéria, logo parece descobrir
que o “crime do Padre Mamede” decorre de não ter ele solicitado
ao juiz de órfãos “licença para abençoar o casamento da órfã
Liberata Gonçalves Pedreira, livre de qualquer impedimento
[não havendo] porque inibir-se das funções paroquiais” (p.
337-38). Aqui uma consideração oportuna, que repõe um lapso
informativo do operoso autor da HEMA: pouco tempo depois,
o vigário do Amparo estaria no centro de outro episódio que
mexeu, fundo, com os paroquianos e a própria cidade-capital.
Trata-se do assassinado de um escrivão durante processo de
votação para escolha de senador, como era costume, realizado
no recinto da Igreja Matriz do Amparo. Briga e violência
características das disputas entre liberais e conservadores.
No conflito com o Paraguai, Dom Saraiva liderou a
criação de uma Associação Eclesiástica de Socorros, na sede
diocesana, com “comissões subordinadas” em Teresina, Caxias
e Oeiras, e demais paróquias, para constituírem “Caixas de
Socorros para prover às necessidades das famílias dos bravos
piauienses que venhão a sofrer mutilações ou percam a vida”.
Arrecadou quase 7 contos de réis, aplicados nos “bons socorros

286  Antonio Fonseca dos Santos Neto


às famílias dos militares”, conforme anotaria mais tarde Dom
Francisco de Paula e Silva.
O bispo que sucedeu a Saraiva, Dom Alvarenga faz,
depois de Dom Manoel da Cruz, no Setecentos, a mais longa
viagem de um bispo ao Piauí – 7 meses –, segundo semestre de
1882 a fevereiro de 1883 (p. 381) ao contrário de Dom Saraiva
que não fez nenhuma, senão por intermédio de “visitadores”.19
Não há mais registro dessa longa viagem na obra de Condurú,
porém, seus provimentos, muitos, encontram-se lavrados nos
livros de Tombo das paróquias de Norte a Sul da província.
Voltaria mais tarde ao Piauí, em viagens mais rápidas. Faz a
sagração da capela de São Benedito, em Teresina, 1886, uma
iniciativa da Irmandade de São Benedito, instituída na década
de 1860, por trabalhadores negros da capital do Piauí e que
contou, na construção, com o decisivo engajamento do italiano
frei Serafim de Catânia.
Sabe-se, pela aportagem conduruana, que Dom Alvarenga
pusera o dedo na grave questão do patrimônio da igreja de NS
do Carmo, em Piracuruca, tido por praticamente usurpado por
“administradores” com ânimo de “locupletação”. Pelo menos
logrou o bispo, no que lhe coube agir, garantir o reconhecimento
do direito eclesiástico sobre o dito patrimônio. Estando em
Visita Pastoral em Parnaíba, em maio de 1888, por outro
lado, coube a Dom Alvarenga anunciar o decreto do dia 13
declarando o “fim” do regime escravista, o que lhe valeu uma
louvação direta dos “pretos, no auge da alegria, organizarem


19
Essa omissão pesou muito sobre sua reputação, de par com muitas
queixas sobre sua pessoa e atuação, justas e injustas, com “paternais
reprimendas” da Sé romana. Acusações que acharam fundamento,
menos na realidade dos fatos capitulados contra ele, do que na sua
nímia bondade, quase fraqueza, que tudo deixou de fazer, sem arcar
nunca com a corrente que o avassalava e submergia...”. “Informaram-
nos ouvintes de contemporâneos seus que então saía à noite em traje
civil ou de clergyman a visitar amigos” (PACHECO, 1969, p. 362-63).

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 287


uma passeata, indo dar vivas o Senhor Bispo, que lhes trouxera a
nova de sua libertação”. O bispo tinha “entusiasmo” pela ideia,
chegando a concitar o clero diocesano a celebrar o Jubileu do
papa Leão XIII (1887), libertando-os, padres e instituições que
ainda os possuíam.
Para o historiador da temática eclesiástica católica, os
“apontamentos” de Dom Francisco/Condurú são relevantes
para se estabelecer a época/data de criação de várias freguesias
piauienses, pois repassa muitos relatórios apontando
seu número, provisões vicariais etc. Tem, porém, limites e
incorreções puramente resultantes de assentamentos errôneos.
Contudo, imprescindíveis quando cotejadas com outros
suportes informativos. Do relatório com que recebe o governo
episcopal de D. Saraiva, a inauguração (1876-77) do tempo
prelatício de Dom Alvarenga apresenta o Piauí como tendo
28 paróquias, inclusive uma capela curada na Capital, e 2
paróquias na Província do Ceará, para cujo bispado passariam
brevemente”. Diz o bispo-autor que não conseguiu “localizar a
paróquia piauiense de Uhyca, criada por Provisão de 9 de janeiro
de 1867”. E que a “capela dos Humildes parece ter existido em
Teresina. Não foi erecta canonicamente...” (p. 387). Complete-
se, pois, o esforço de entendimento dele, esclarecendo que a
paróquia de NS da Conceição da Uhyca localizava-se na Manga
ou Passagem da Manga, povoação-vila-município ribeirinha
do Parnaíba, depois freguesia mudada para o interior, hoje
Bertolínia. Quanto à capela dos Humildes, que pertencera até
há pouco à paróquia de NS das Dores, Teresina, vem a ser a
secular “capela curada” – citada noutro ponto da própria obra
– e que dá origem ao município e paróquia de Alto Longá,
também devidamente arrolada como tal (p. 391).
A criação do bispado do Piauí, no início do século XX é
outro assunto do qual se ocupa D. Felipe Condurú Pacheco.
Seu texto, fundado em documentos e testemunhos, é muito

288  Antonio Fonseca dos Santos Neto


acatado na historiografia de base piauiense. Também seu
texto e abordagem já foram objeto de algumas necessárias
complementações e revisões à luz de novos aportes documentais.
Com efeito, o que diz respeito, por exemplo, à criação das
freguesias setecentistas no sertão do Piauí, as suas datas já
foram devidamente estabelecidas, inclusive no que tange às
dúvidas em relação às “freguesias de Piracuruca e Longá ou
Campo Maior”, citadas por ele e por historiadores cuidadosos
como existentes em 1723, contudo, sem base mais sólida
para assinalar afirmações precisas. Agora se sabe, com fontes
seguras, que eram essas “freguesias” apenas capelas curadas
mas não entidades paroquiais canonicamente eretas. Curas
licenciados pelo prelado, sim, mas estipendiados privadamente
por aristocratas-fazendeiros da região. No caso dessas duas,
instituídas no ano de 1740. Também requer a devida revisão
a data de incorporação definitiva do Piauí à jurisdição
maranhense: 1726-28 e não “1738”, tal acentua Condurú,
sucumbindo, aliás, à essa espécie de traição, que certo datismo
impinge aos estudiosos.
Na questão do bispado, expõe claramente a posição
moderadamente contrária de Dom Alvarenga, repetindo
antigas alegações de míngua de meios de sustentação material
de uma, quanto mais de duas dioceses, na velha base territorial
medeada pelo rio Parnaíba. Pouco trata do embate Igreja &
Maçons no Piauí, ao contrário do que faz em relação à parte
maranhense do bispado. Mas cita, com lamento, pois “pouco
edificante”, o combate que o jornal teresinense O Reactor,
chefiado por “corifeus da Maçonaria em Teresina”, moveu
contra Dom Alvarenga e depois contra Dom Antonio Xisto
Albano20 em suas visitas pastorais a Teresina.


20
Bispo de 5 de julho de 1901 a 5 de dezembro de 1905.

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 289


Convém ressaltar a contribuição relevante que a obra
de Condurú assenta no tocante ao papel de diversos clérigos
naturais do Piauí na condução geral da Igreja diocesana comum,
até 1901, quando Maranhão e Piauí passaram a caminhar
separados. Sobretudo na segunda metade do Oitocentos, entre
eles, alcançaram posições de muito destaque, seja junto à Sé,
em São Luís, seja laboriando junto à vicararia geral do Piauí:
cônego João de Sousa Martins, cônego Honório José Saraiva,
cônego mestre-escola Raimundo Alves da Fonseca, cônego e
monsenhor Constantino de Sousa Nogueira Boson e Lima,
cônego Raimundo Ferreira Damasceno, cônegos e monsenhores
Raimundo Gil da Silva Brito e Joaquim de Oliveira Lopes. Além
do muito destacado monsenhor Vicente Ferreira Galvão, que
serviu ao bispado, por 45 anos consecutivos, em São Luís,
como secretário, vigário geral e vigário capitular. Há outros
notáveis que desfilam com especial destaque pelas páginas
do recorrente livro, notadamente o monsenhor-doutor João
Tolentino Guedelha Mourão, nascido, embora, em Passagem
Franca, MA, tinha ascendência, e muito considerada, no Piauí,
secular freguesia do Senhor do Bonfim da Serra dos Cocos e
dos Caratiús, hoje centrada em Crateús, sede diocesana, na
jurisdição estadual cearense. Mourão, com certeza, homem
que ajudou a tornar proeminente o referido clérigo Vicente
Galvão, de ascendência serrana comum. Condurú não atina,
mas Mourão foi também um artífice discreto, decisivo, para a
consecução da criação do bispado do Piauí, inclusive nomeando
o padre Lopes, pró homem desse projeto e dessa luta, pároco
da freguesia de NS da Conceição, em Itamaraty, depois Pedro
II, urbe amena assentada sobre a sua serrania ancestral entre
Piauí e Ceará. Na prática, liberou o futuro monsenhor Lopes
para liderar as jornadas decisivas que resultaram na criação do
bispado do Piauí. Uma prova mais de que os filhos do Piauí, às

290  Antonio Fonseca dos Santos Neto


vezes, nas plagas longínquas, obram mais por sua terra que os
inarredados dela.
Dom Antonio Xisto Albano foi o primeiro bispo do
Maranhão/Piauí no século XX, um filho da aristocracia cearense.
Fez Visita Pastoral no Piauí, ainda que curto seu período à
frente do bispado. Quando criada a Diocese do Piauí foi ele
designado na respectiva bula – por ser o bispo da diocese-mãe –,
o Administrador Apostólico da nova entidade eclesiástica, fato
sobre o qual aparentemente manteve silêncio, até 1903. Xisto
ordenou quatro padres piauienses, um deles, com opção de
permanência no Maranhão: Eurípedes da Costa e Silva, depois
cônego, nascido em Amarante, ordenado em Codó, em 8 de
dezembro de 1903; José Gomes da Silva, também amarantino,
em 17 de abril de 1904; Benedito Basílio Alves, de Barras, o
primeiro dos quatro ordenados; José Paulino de Miranda, de
Campo Maior, ordenado em 6 de janeiro de 1904. Para ilustrar,
registre-se que Eurípedes era o irmão mais velho do conhecido
poeta amarantino Antonio da Costa e Silva e não voltou ao
Piauí, senão a passeio. Contudo, a vida inteira, servindo a
freguesias maranhenses avizinhadas de Amarante: vigário
da secular paróquia caxiense de NS da Conceição, depois de
Passagem Franca/Picos, e de Pastos Bons, onde faleceu e tem
sepultura.
Como acima vem assinalado, em 1902, Dom Xisto fez
visita pastoral, na capital piauiense, missão frustrada, porém,
por “interdição” levantada pelo ativismo maçônico-anticlerical.
Em Teresina estava no centro do embate o já citado cônego
Joaquim de Oliveira Lopes, que, inclusive, a tudo precipitou,
recusando-se a celebrar uma missa – segundo Condurú –,
“em sufrágio da alma de um maçon...”. Esse autor, muito
ponderado em avançar opinião sobre a fartura documental
que o embasa, sugere que o primeiro bispo nomeado para a
diocese do Piauí, monsenhor Fabrício Pereira, “do clero de

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 291


Pernambuco e moralista abalisado”, teria renunciado ao cargo
antes da sagração, em face do estado de conflagração reinante
no Piauí contra a Igreja. Após isso viria Dom Joaquim Antonio
de Almeida, chegado em Teresina e empossado entre os dias
12 e 13 de março de 1906. E é ainda Condurú a narrar que o
próprio Dom Xisto seria, praticamente, “expulso” de São Luís
por mações sectários. Celebrou missa de corpo presente de
um deles, médico afamado Tarquínio Lopes, havido por amigo
pessoal-familiar, indo à beira do túmulo à última absolvição.
Isso feito, imediatamente, um “irmão” do maçon morto, lança
sobre o féretro a “luva simbólica” da referida “agremiação,
publica e reiteradamente condenada pela Igreja [e o] Sr. Bispo
protesta contra o fato”. E replicam os “tripingados”, enquanto
se estabelecia “a balburdia...” (p. 480). Xisto estaria fora do
bispado pouco mais de um mês depois, uma renúncia induzida
e até hoje em busca de mais dedicada historiografia.
Realizada a implantação da diocese do Piauí, com a posse
de Dom Joaquim de Almeida, em 1906, Dom Felipe Condurú
Pacheco utiliza esse fato para reorientar o foco de seus estudos
e publicação apenas ao Maranhão, este constituindo, ainda,
uma única diocese, até criada (e implantada, no tempo de
Dom Octaviano Pereira de Albuquerque21) a prelazia de São
José de Grajaú, por bula papal de 10 de fevereiro de 1922;
anos depois, tempo de Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos e
Mota, a criação da diocese de Caxias, jurisdicionando todo o
território ribeirinho esquerdo do Parnaíba, até suas nascentes,
e o vale médio e alto do Itapecuru.
Num esforço finalizante do presente estudo, ao modo
do dele, pergunte-se: Felipe Benício Condurú Pacheco, bispo
e escritor eclesiástico, quem é esse laborioso autor, que tanto
serve à historiografia? Quem é esse homem? Dom Felipe


21
Antes de ser trasladado para São Luís, e seu primeiro arcebispo, Dom
Octaviano foi o segundo bispo do Piauí, de 1914 a 1923.

292  Antonio Fonseca dos Santos Neto


Condurú Pacheco insere-se na história da Igreja particular do
Piauí como notável estudioso de sua história e primeiro bispo
de Parnaíba. Antes fora bispo de Ilhéus, na Bahia. É maranhense
da vila-sede e município de São Bento dos Perys, nascido a18
de julho de 1892. Deixou Parnaíba por problemas de saúde,
nomeado bispo titular de Decoriana, Tunísia, enquanto se
recolhia, Emérito e honrado, ao recinto, insular, da secular, São
Luís do Maranhão. Jaz seu pó corpóreo no sacro recinto da
Catedral de Parnaíba, Piauí.
A obra que serve de objeto da presente releitura,
avidamente lida e respeitada por nós e por muitos, precisa ser
tomada nos devidos termos, isto é, enquanto imenso repositório
documental-transcrito, ou apenas seletivamente recortado,
constituindo, sobretudo, uma fonte primordial para novos
pesquisadores da temática geral que foca e de outras questões
da vida social nela enredadas. Em parte, assim o fizemos. Mas
é preciso fazer mais, porque o acervo a consultar ainda é bem
maior que aquele do volume trazido à luz pelo bispo de São
Bento.
E em homenagem às muitas curiosidades reveladoras –
que tornam mais degustável sua História Eclesiástica do Maranhão,
sem comprometer-lhe o rigor documental –, apenas lembramos
que ele chamou a si uma ligação especial com o Piauí desde
quando fez sua primeira confissão, ao ouvido de um padre,
ainda jovem, mas que seria muito conhecido dos piauienses,
Joaquim de Oliveira Lopes, fato ocorrido em sua São Bento
natal. Lopes em São Bento? Acompanhava o primeiro arcebispo
de Olinda e Recife, Dom Raimundo da Silva Brito, também
filho de São Bento, visitando a terra natal. Era o tempo de
Dom Xisto Albano e o padre Lopes, com certeza, entre rezas e
outros missionamentos, estava fazendo diplomacia em prol da
implantação da Diocese do Piauí, da qual é o maior arquiteto,
e artesão. Mais sobre as heranças condurenhas: seu sucessor

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 293


em Parnaíba, hoje no sólio, também é historiador da Igreja
piauiense, Dom Juarez Sousa da Silva.

Referências bibliográficas

CARVALHO JR., Dagoberto F. de. História episcopal do Piauí.


2ª ed. Recife: Editorial Thormes, 2011.

COELHO, Moisés. O imprimatur do venerando arcebispo


da Paraíba... In: NÓBREGA, Apolônio. Dioceses e bispos do
Brasil. Rio de Janeiro: Revista do IHGB, janeiro/março 1954.

FONSECA NETO. Antonio. De frei Serafim a frei Benedito. In:


FONSECA NETO, Antonio. (org.). Teresina 160 anos. 2ª. ed.
rev. e amp. Teresina: O Dia, 2012.

LEONI, Aldo Luiz. Copiador de cartas particulares do Senhor


Dom Frei Manuel da Cruz. Bispo do Maranhão e de Mariana
(1739-1762). Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial,
2008.

MARQUES, César Augusto. Dicionário Histórico-Geográfico


da Província do Maranhão. Notas e apuração textual de Jomar
Moraes. – 3ª ed. – São Luís: Edições AML, 2008.

MATOS, Ilmar R. de. Pensar o Império. In: Formas do


Império... 2016.

MELO, Cláudio. Fé e civilização. Teresina: Edição do Autor,


1991.

PACHECO, Felipe Condurú. História Eclesiástica do


Maranhão. São Luís: S.E.N.E.C Departamento de Cultura,
Maranhão, 1969.

294  Antonio Fonseca dos Santos Neto


SALES, João Victor de Araújo. O processo de criação da
diocese do Piauí (1822-1906). Monografia (Licenciatura em
História). Teresina: UFPI, 2015.

SANTOS NETO, Antonio Fonseca dos; LIBÓRIO, Paulo B.


Dom Joaquim. Teresina: Nova Aliança, 2014.

SANTOS NETO, Antonio Fonseca dos; LIBÓRIO, Paulo B.


Dom Octaviano. Teresina: Nova Aliança, 2018.

CONDURÚ E A PIAUIDADE ECLESIÁSTICA 295


SOBRE OS AUTORES

Natália Maria da Conceição Oliveira


Mestrado em História da Igreja pela Pontifícia Universidade
Gregoriana de Roma – PUG (2016-2018) e História do Brasil
pelo Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da
Universidade Federal do Piauí-PPGHB/UFPI (2013-2015).
Especialização em História e Docência pela Faculdade São
Judas Tadeu e Catequese e Evangelização pelo Instituto
Católico de Estudos Superiores do Piauí – ICESPI. Graduada
em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual
do Piauí – UESPI (2008-2011). Desenvolve pesquisas na área
de Patrimônio e Arquitetura (Igrejas), Memória e História da
Igreja Católica. Atualmente professora de História da Igreja no
Instituto Católico de Estudos Superiores do Piauí.

Tanya Maria Pires Brandão


É Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco
e Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo USP
em 1993. É professora da Universidade Federal de Pernambuco
e do Programa de Pos-Graduação em História da UFPE, é
autora de livros, capítulos de livro e artigos científicos versando
sobre: Escravidão, História do Piauí colonial,  abordando as
famílias e as redes sociais de poder construídas no Piauí dos
finais do século XVIII. E-mail: tanyampb@gmail.com

SOBRE OS AUTORES 297


João Vitor Araújo Sales
Mestre em História do Brasil pelo Programa de Pós-Graduação
em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí-PPGHB/
UFPI. Bacharel em História pela Universidade Federal do Piauí
- UFPI Membro honorário do Instituto Histórico e Geográfico
do Piauí e servidor público do estado do Piauí. Pesquisa as
relações entre Igreja Católica e Estado, especialmente no Norte/
Nordeste brasileiro. E-mail: vitorjhon@hotmail.com.

Marcelo de Sousa Neto


Professor Associado da Universidade Estadual do Piauí e do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Piauí. Doutor em História pela UFPE (2009) e Mestre
em Educação pela UFPI (2003). Possuí ainda Pós-Doutorado
em História do Brasil pela UFPI (PNPD/Capes - 2015). Tem
experiência na área de História da Educação, História e Cidade,
História das Religiões, Biografia Histórica e História do Brasil
Imperial. E-mail: marcelo@ccm.uespi.br.

Juarez José Tuchinski dos Anjos


Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná
(2015), com estágio pós-doutoral na mesma instituição.
Professor Adjunto de História da Educação e História
da Educação Brasileira no Departamento de Teorias e
Fundamentos da Faculdade de Educação da Universidade
de Brasília. Professor permanente do Programa de Pós-
Graduação em Educação, modalidade profissional, da UnB.
Coordenador do Centro de Documentação e Memória da FE/
UnB. Possui livro, capítulos de livros e artigos publicados sobre
história da educação e história da infância, nos séculos XIX e
XX. Atualmente, é membro da editoria científica da Revista
Brasileira de Estudos Pedagógicos, do INEP.

298 
Rafaela da Costa Sousa
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História do
Brasil da Universidade Federal do Piauí-PPGHB/UFPI. Bolsista
da Coordenação de aperfeiçoamento de pessoal de nível
superior (CAPES). Desenvolve pesquisa com ênfase das áreas
de História e Memória, História da Educação, História do
Catolicismo. E-mail: rafaelasousa1993@gmail.com.

Camila de Macêdo Nogueira e Martins Oliveira


Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do
Piauí - UFPI. Graduou-se em Licenciatura em História pela
Universidade Federal do Piauí em 2017.Pesquisa História e
gênero, História e literatura e a obra do literato Clodoaldo
Freitas. E-mail: camilademacedo89@gmail.com.

Elisângela Barbosa Cardoso


É graduada em História pela Universidade Federal do Piauí,
Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco
e Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense
UFF. É Professora do Departamento de História e membro
Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da
UFPI, autora de livros capítulos de livro e artigos científicos
versando sobre História e Gênero. E-mail: elibcardoso@yahoo.
com

Pedro Vilarinho Castelo Branco


É graduado em História pela Universidade Federal do Piauí,
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco
(2005) É Professor do Departamento de História e membro
Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da
UFPI. É Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí
- IHGPI e autor de artigos, livros e capítulos de livros versando

SOBRE OS AUTORES 299


Sobre: História das mulheres, História e Gênero e História e
Catolicismo. E-mail: pedrovilarinho@uol.com.br

Maria Dalva Fontenele Cerqueira


Doutoranda Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Piauí – PPGEd/UFPI. Mestrado em
História do Brasil Programa de Pós-Graduação em História
do Brasil da Universidade Federal do Piauí-PPGHB/UFPI.
Especialização em História do Brasil pela Universidade Federal
do Piauí. Graduada em História pela Universidade Estadual do
Piauí - UESPI. Bolsista da Coordenação de aperfeiçoamento
de pessoal de nível superior (CAPES). Desenvolve pesquisas
com publicações de livros, capítulos de livros e artigos sobre
História e Cidade, História e Memória, História da Educação.
Membro Consultivo do corpo editorial da Revista Piauiense de
História Social e do Trabalho (RPHST) e do Núcleo de Pesquisa
Educação, Sociedade e Cultura – NESC. E-mail: dalvaclio@
gmail.com

Lanna Karen Lima Araujo


Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História
do Brasil da Universidade Federal do Piauí-PPGHB/UFPI.
Bolsista da Coordenação de aperfeiçoamento de pessoal de
nível superior (CAPES) E-mail: <lannaklima@outlook.com>.
Pesquisas com ênfase nas subáreas de História e Memória;
História e Gênero (História das mulheres) e Histórias do
catolicismo.

Francisco de Assis Sousa do Nascimento


Pós-doutor em História pela Universidade de São Paulo - PUC-
SP e vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em
História do Brasil - PPGHB da Universidade Federal do Piauí.

300 
E-mail: <franciscoufpi@gmail.com>. Pesquisas com ênfase em
História e memória, teatro, Regime civil militar

Teresinha de Jesus Araújo Magalhães Nogueira


Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Piauí – PPGEd/UFPI. /
sanduíche na Universidade de Lisboa. Professora da UFPI em
colaboração técnica com a Universidade de Brasília (UnB).
E-mail: teresinhanogueira@unb.br.

Antonio Fonseca dos Santos Neto


Doutorado em Ciências Sociais (Políticas Públicas) estudando
os processos de patrimonialização histórico-cultural. Tese: A
Pátina do Tempo – concepção e prática do patrimônio histórico em São
Luís do Maranhão. Mestrado estudou o processo de fundação
da Universidade Federal do Piauí, seus avanços e impasses.
Obra recente na área de História Eclesiástica: Sucessores dos
Apóstolos em Teresina (Coleção 2 volumes, com co-autoria):
Dom Joaquim e Dom Octaviano (Coleção, 2 volumes). Colunista
do Diário do Povo e da Revista Cidade Verde. Cadeira 1 da
Academia Piauiense de Letras. Professor do Departamento
de História da Universidade Federal do Piauí. Sócio efetivo do
Instituto Histórico e Geográfico Piauiense. E-mail: fnetopf@
gmail.com

SOBRE OS AUTORES 301

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