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Título: Juízo, Inferência e Dialética na Crítica da razão pura

Autor: Quesidonis Felipe da Silva


Resumo: Trata-se de reconhecer na unidade da razão, radicada na unidade do juízo, a
garantia da unidade da própria crítica da razão. Em uma argumentação indireta,
demonstra-se como a crítica das metafísicas especiais, na Dialética transcendental,
funda-se na mudança da noção kantiana de lógica e seu rompimento com a ontologia da
Schulmetaphysik. Como parte de um projeto maior, as conclusões desse texto devem
servir para, posteriormente, estabelecer a legitimidade da dedução das ideias da razão.

Introdução
Pode-se dirigir ao menos duas objeções à crítica da metafísica clássica apresentada na
Dialética transcendental da Crítica da razão pura. Em primeiro lugar, não se admite a
dedução dos conceitos da razão ou ideias transcendentes (alma, mundo e Deus) das
formas de silogismos ou inferências da razão (categóricas, hipotéticas e disjuntivas). Em
segundo lugar, não se admite o isomorfismo entre as formas da crítica da ilusão dialética
(paralogismos, antinomias e ideal da razão) e as disciplinas que constituíam as metafísicas
especiais (psicologia, cosmologia e teologia racionais). Admitida a tese geral da não
aplicação dos conceitos e princípios puros ao incondicionado, pois limitados ao campo
da experiência possível, a literatura parece ter aplicado à dedução metafísica das ideias
da razão as mesmas críticas usadas contra a dedução dos conceitos puros do entendimento
a partir das funções lógicas do juízos. Viu-se neste duplo paralelismo, desde a época do
autor1, apenas a expressão da mania arquitetônica de Kant. Citando-se apenas um
exemplo, para Peter Strawson “esta estrutura lógica, em sua conexão com os tópicos da
Dialética [...], é totalmente forçada e artificial para ser considerada serialmente, e me
dispenso de discuti-la. O que não quer dizer que tudo que lhe concernente seja inútil ou
irrelevante”2.
Mas, talvez seja possível uma leitura em consonância com a estrutura arquitetônica
da Crítica da razão pura que, baseada na noção kantiana de lógica, preserve da unidade

1
Conforme nos apresenta Paulo Licht, na resenha Garve-Feder pode-se ler: “O autor [Kant] encontra, não
sabemos como, um nexo entre as regras lógicas do silogismo e essas investigações metafísicas [acerca da
alma, do mundo e de Deus]. Que a premissa maior tenha de ser universal é para Kant um motivo pelo qual
a razão presumivelmente procura a universalidade, isto é, a completude total da série do mundo. O
silogismo categórico leva-o à psicologia, o hipotético à cosmologia, e o disjuntivo à teologia. O resenhista
confessa que não sabe segui-lo nesse caminho” (Paulo Licht. Licht dos Santos, P. Algumas observações
sobre a Dialética Transcendental: o fim da Crítica da razão pura” In: Studia Kantiana 6, 2008, p. 135).
2
Peter Strawson. The Bounds of Sense. New York: Routledge, 2019, p. 159. Cf. Jonathan Bennett. Kant’s
Dialectic. Cambridge: Cambridge University Press, 2016, p. 4, 284-287.

1
da razão e da crítica à metafísica transcendente. Na medida em que a faculdade superior
do conhecimento pode ser dividida, conforme a lógica geral, nas faculdades dos
conceitos, juízos e inferência correspondentes, respectivamente, ao entendimento, à
faculdade de julgar (Urteilskraft) e à razão3, e na medida que as atividades da faculdade
superior do conhecimento, também chamada de entendimento em geral, podem ser
resumidas à atividade do poder de julgar (Vermögen zu urtheilen) ou poder de pensar
(Vermögen zu denken)4, trata-se demonstrar as relações entre a doutrina das inferências
na lógica geral e a doutrina da ilusão dialética na lógica transcendental, tendo em vista a
concepção lógica de Kant. Como as atividades do entendimento em geral se resumem ao
juízo, o qual define-se como a subsunção de intuições sob conceitos e a subordinação de
conceitos mais extenso a conceitos menos extensos, deve-se compreender como a
referência constante a algo individual = x, própria à forma lógica dos juízos5 e, por
desdobramento, dos silogismos (inferências mediatas)6, interfere na determinação dos
limites do uso da razão ao campo da experiência possível e não ao incondicionado.
Não se trata, nesse trabalho, de reproduzir os argumentos da crítica a ilusão dialética,
nem de reproduzir a dedução subjetiva das ideias da razão. Apesar da importância e
pertinência do empreendimento, trata-se apresentar um momento anterior: a relação entre
a ontologia wolffiana e a lógica kantiana. Na primeira parte busca-se demonstrar como a
passagem da lógica intensional para a extensional cria os mecanismos com os quais,
posteriormente, serão operados na própria Dialética transcendental, nas bases da crítica
kantiana à ontologia da Schulmetaphysik. Na segunda parte desse texto busca-se
demonstrar como é nessa concepção que fundamenta-se toda a unidade arquitetônica da
crítica da razão, incluindo-se a crítica às metafísicas especiais e sua fundação sob a lógica.
Deste modo, longe de ser um acréscimo arquitetônico desprovido de justificativa, a
unidade da lógica transcendental e, também, da dialética transcendental só pode ser
justificada tendo em vista seu substrato lógico.

I.

3
KrV, B169-170.
4
KrV, B94. Cf. Béatrice Longuenesse. Kant et le pouvoir de juger. Paris : PUF, 1993, p. ix-xx, e Les
concepts a priori kantiens et leur destin. In : Revue de métaphysique et de morale 44, 2004, p. 485-510.
5
“Nos juízos categóricos, x, que está contido sob b, está também sob a [...]. Nos juízos disjuntivos x, que
está contido sob a, está contido seja sob b, seja sob c, etc.” (Logik §29, Ak. 9: 108; 127).
6
Cf. Refl. 3096. Ak. 16: 658.

2
Em coerência com o pensamento escolástico tardio, a Schulmetaphysik estabeleceu a
possibilidade do objeto da metafísica em relação com a não-repugnância lógica7. Existem
dois sentidos de possibilidade na filosofia wolffiana. A possibilidade como não-
contradição lógica e a possibilidade como aptidão para a existência8. Como algo só pode
existir se for logicamente possível, admite-se uma dependência da ontologia em relação
à lógica em Wolff. Da mesma forma, a lógica como parte da filosofia depende de uma
definição ontológica de possibilidade9. Ainda assim, pode-se estabelecer o paralelo, por
um lado, entre o possível lógico e o contraditório e, por outro lado, entre o possível lógico
e o não-existente. O segundo sentido de possibilidade define o objeto da metafísica. O
ente é o que pode existir por não repugnar a existência. A existência é o complemento de
sua possibilidade lógica10. De modo geral, a não-repugnância lógica e a não-repugnância
à existência correspondem à coordenação harmônica dos componentes de uma coisa. No
plano lógico, trata-se da não-repugnância entre as notas internas de uma noção; no plano
ontológico, da não-repugnância mútua dos atributos (os essentialia) que compõem em
conjunto uma essência11. Como as notas internas de uma noção correspondem aos
essentialia, a possibilidade intrínseca de uma essência consiste na não-repugnância
lógica. Deste modo, lógica e ontologia encontram-se vinculadas. A impossibilidade, o
irrepresentável, o nada e o não-ser são identificados ao contraditório. Contudo, se há uma
correspondência próxima entre possibilidade lógica e possibilidade real na filosofia de
Wolff, a passagem da mera possibilidade para a existência ou efetividade é condicionada

7
A literatura reconhece a recepção da escolástica tardia ou ibérica na filosofia universitária alemã (Cf. Max
Wund, M. Die deutsche Schulmetaphysik des 17. Jahrhunderts. Hildesheim: G. Olms, 1992, p. 14-29). Em
resumo, a “essencialização” da filosofia primeira em Francisco Suárez teve por efeito separar da teologia
natural uma filosofia primeira dissociada de qualquer compromisso com o existente (Cf. Étienne Gilson.
L’être et l’essence. Paris: Vrin, 1981, p. 144), graças a fixação do ente real como objeto da metafísica (Cf.
Francisco Suárez, Disputes métaphysiques. Trad. J. –F. Coujou. Paris: Vrin, 1998, p. 70; DM I, 1, §26). O
ente (ens) é o particípio passado do verbo ser (esse), mas Suárez o entende como nome, uma vez que tomado
como particípio, reduziria a filosofia primeira apenas ao que é existente, sem considerar os possíveis (idem,
p. 255; DM II, 4, §1). A essência é real por não implicar contradição, ser fonte de efeitos reais e poder ser
criada por Deus (idem, p. 259; DM II, 4, §7). Não contradição e ser fonte de efeitos reais (derivados dos
essentialia) são os atributos que permanecem em Christian Wolff, que identifica o ens ao que não envolve
contradição e que tem aptidão intrínseca à existência (Wolff. Philosophia prima sive Ontologia. Frankfurt
und Leipzig, 1736. In: Gesammelte Werke II, 2-3. Hildesheim: G. Olms, 1962, §§ 132, 134, p. 113-115).
8
“É possível o que não envolve contradição [...]. É possível o que pode existir”. (Wolff. Philosophia prima
sive Ontologia §§85, 133).
9
A definição wolffiana depende da noção de possibilidade: “a filosofia (Welt-Weisheit) é uma ciência de
todas as coisas possíveis, de como e por que são possíveis [...]. “Chamo possível a tudo o que pode ser,
independente se realmente (wirklich) seja ou não” (Wolff. Vernünftige Gedanken von den Kräften des
menschlichen Verstandes, 1712. In: Gesammelte Werke I, 1. Hildesheim: G. Olms, 1983, p. 115).
10
“Chama-se ente (ens) ao que pode existir ou que não repugna a existência” (Wolff. Philosophia prima
sive Ontologia, op. cit. §§134).
11
Cf. Jean École. L’existence comme complément de la possibilité et les rapports de l’essence et de
l’existence selon Christian Wolff. Les études philosophiques 2, 1996, p. 261-273.

3
exteriormente. A existência é o complemento da possibilidade e deve ser acrescentada à
essência (possibilidade real) para que esta se efetive. Porque a existência é um dos
predicados que compõem de modo não-contraditório a noção do ens realissimum, apenas
em Deus vinculam-se essência e existência de maneira necessária. Para que a existência
seja anexada à essência nos seres contingentes, Deus deve atualiza-la em acordo com sua
compossibilidade total com os seres no universo. Numa palavra, Deus, a razão suficiente
de tudo o que é12, atualiza tão-somente aquilo que é compossível no melhor dos mundos
possíveis. A filosofia wolffiana marca-se por uma estreita relação entre lógica e ontologia
no campo da possibilidade, mas os critérios de efetividade são de natureza ontoteológica.
Cada uma das metafísicas particulares ou especiais (psicologia e cosmologia) trata da
existência de um campo determinado dos objetos possíveis atualizados por Deus
(teologia).
Dessa base teórica mínima, desenvolvem-se as articulações internas do wolffianismo
e, a cada nova apresentação, as relações entre lógica e ontologia são reconstruídas com
acréscimos e variações. Para Thüming, não contradição e razão suficiente são os
primeiros princípios da filosofia primeira, “ciência do ente em geral (scientia entis in
genere), e da aplicação destes princípios deriva-se que: “impossível (impossibilile) é o
que envolve contradição […], possível (possibile) o que não envolve contradição, ou o
que não é impossível. Chama-se possibilidade interna (possibilitas interna) ou intrínseca
(intrínseca)”13. Para Baumeister, ente é “o que é possível [...] ente de razão (ens rationis)
é o que não existe, uma ficção na mente (mentis ficione).14” Para Baumgarten, há dois
sentidos de nada: o nihil negativum e o nihil privativum. Cada sentido de nada é

12
“Porque do nada nada se pode pensar (Weil von nichts sich nichts Gedanken lasset), então tudo o que
pode ser tem um fundamento (Grund) suficiente (ou uma raison) a partir do qual se pode ver por que é,
bem como por que não é: o que é apresentado em seu devido lugar” (Wolff. Vernünftige Gedanken von den
Kräften des menschlichen Verstandes, op. cit. p. 115). Refere-se aos parágrafos correspondentes aos temas
de ontologia, ou, propriamente, aos primeiros princípios do conhecimento humano e à todas as coisas em
geral (allen Dingen überhapt) presentes na Metafísica Alemã: “§29: O que é o fundamento (Grund) e o que
significa fundado (gegründet). Quando uma coisa A contém em si algo pelo qual se pode entender por que
B é, sendo B algo em A ou fora de A; chama-se o que é encontrado em A o fundamento (Grund) de B, A
chama-se a causa (Ursache) e se diz de B que é fundado (gegründet) em A. Nomeadamente, o fundamento
é aquilo pelo qual se pode entender porque algo é, e a causa é uma coisa que contém em si o fundamento
de outra. (Vernünftige Gedanken von Gott, Welt und der Seele des Menschen, auch allen Dingen überhaupt.
Halle, 1751. In: Gesammelte Werke I, 2. Hildesheim: G. Olms, 1983, §29)”. Trata-se da aplicação lógica e
ontológica do princípio de contradição, responsável pela delimitação do impossível e do possível:
impossível é o que envolve contradição, possível, o que não envolve. Segue-se que “tudo o que pode ser,
independente se realmente é ou não, nós chamamos uma coisa (ein Ding)” (Wolff, Ch. Vernünftige
Gedanken von Gott, Welt und der Seele des Menschen, auch allen Dingen überhaupt, op cit, §15).
13
L. P. Thümming. Institutiones philosophiae wolffianae. Halle, 1725, §§1, 11.
14
F. Ch. Baumaister. Institutiones metaphysicae, Halle, 1738, §4; 7-8: “nada negativo (Nihil negativum),
irrepresentável (irrepraesentabile), impossível, contraditório (repugnans), envolve contradição
(contradictionem involvens)”, “ não-nada é algo (Nonnihil est aliquid), representável, [...], é possível”.

4
contraposto a um dos sentidos abordados de possibilidade. Ao nihil negativum contrapõe-
se a possibilidade lógica, ao nihil privativum contrapõe-se a possibilidade real. O primeiro
é o algo (aliquid), o segundo é o ente (ens)15. Enquanto o algo define-se por sua não-
repugnância lógica, o ente define-se por sua aptidão à existência. O ente é o objeto da
ontologia e sua compossibilidade no mundo que confere-lhe a atualidade (actualitas) ou
efetividade (Wirklichkeit).
Mas, na mudança de uma lógica intensional, na qual o predicado está contido na
noção do sujeito, para uma lógica extensional, na qual o conceito-sujeito está contido sob
o conceito predicado, Kant cinde lógica e ontologia16. A primeira consequência é a
desvinculação na noção de ser entre predicação e existência: sob a hipótese de que o ser
supremo pode analisar completamente uma noção individual, não é contraditório que algo
efetivamente existente seja pensado como apenas possível, assim a existência não é um
predicado ou posição relativa, mas a posição absoluta de uma coisa17. A segunda
consequência distingue oposição lógica e oposição real. A oposição em geral é o conflito
entre dois predicados em uma coisa (Etwas) pensável (cogitabile). A oposição lógica
funda-se na contradição, a oposição real não funda-se na contradição. Em ambas, a dupla
predicação conduz à supressão de algo. Na primeira, a supressão resulta no nada como

15
A. G. Baumgarten. Metaphysica, §7: “Nada negativo (Nihil negativum) cf. §54, irrepresentável,
impossível, contraditório [...] o que envolve contradição [...] é A e não-A [...] nada é, e não é.” §54: “o
possível é determinado por todas as afecções que lhe são compossíveis ou não. No primeiro caso é ente
atual (actuale) no segundo é não-ente (nada cf. §7). Chama-se privação (mera possibilidade)”.
16
A diferença entre a extensão (Umfang) e o conteúdo (Inhalt) de um conceito (Logik, §§7-8; Ak. 9: 95-
96), expressas pelas locuções “conter sob” (enthalten unter) e “conter em” (enthalten in), distingue dois
modos de consideração da relação entre sujeito e predicado (L. Codato. Lógica formal e transcendental. In:
Analytica, v. 10, 2006, p. 128). No primeiro, trata-se da relação intensional de inclusão do conceito-
predicado no conceito-sujeito. No segundo, da relação extensional de subordinação do conceito-sujeito sob
o conceito-predicado. Em ambos o predicado é nota característica do sujeito, ora assumindo a função de
conceito parcial (Teilbegrif), ora a função de fundamento de cognição (Erkenntnisgrund, ratio
cognoscendi). Toda extensão implica uma intensão e vice-versa. Essa correspondência também demarca a
passagem do discurso lógico para o discurso metafísico. A lógica é a ciência da mera forma do pensamento
e não trata do poder do entendimento relativo a objetos, as perguntas pelos limites e modos do conhecimento
pertencem ao campo da metafísica (Logik, Ak. 9: 13-15). Assim, pode-se ler que “a relação [S é P] é dupla:
1) lógica, em que considero os conceitos segundo a relação das extensões; 2) metafísica, se as noções são
representadas tal como estão contidas uma na outra. O sujeito está contido sob o predicado, i. e., como um
constituinte do conceito (Ak. 24: 473) [...] “a maneira pela qual o predicado reside no sujeito compete à
metafísica; a maneira pela qual o sujeito está sob o predicado compete à lógica” (Refl. 4295; Ak. 17: 499)
(Trad. L. Codato). A Crítica da razão pura, “metafísica da metafísica” (Ak. 10: 269), também formula sua
questão diretora (“como são possíveis os juízos sintéticos a priori?”) em termos intensionais (Prol. §2; Ak.
4: 266; KrV, A6/B10). Assim, pode-se dizer que “a lógica é o cânone de todo uso formal do entendimento
[...] A filosofia transcendental é o cânone de todo uso real” (Refl. 1608; Ak. 16: 34).
17
“O conceito de posição (Position oder Setzung) é extremamente simples e equivale ao conceito de ser
em geral (Sein überhaupt einerlei). Ora, algo (Etwas) pode ser posto apenas relativamente, ou antes, pode
ser pensada apenas a relação de algo (respectus logicus) como uma nota característica a uma coisa; assim,
o ser ou seja, a posição dessa relação, é apenas a cópula (Verbindungsbegriff) em um juízo. Se não
considera-se apenas essa relação, mas a coisa posta em si e para si, então o ser significa existência (Dasein)
(Beweisgrund §2, Ak 2: 73).

5
irrepresentável (nihil negativum) em um conceito contraditório; na segunda, resulta no
nada como privação ou ausência (nihil privativum), como na contraposição de forças que
anulam o movimento18. A terceira consequência é a distinção entre regras sensíveis e
intelectuais de representação. Como as regras intelectuais fundam-se na análise e as
regras sensíveis fundam-se na síntese, é possível que algo seja irrepresentável segundo
uma legislação, mas possível segundo a outra legislação: representável e impossível não
são sinônimos19. Em resumo, a mudança da concepção lógica permite o reconhecimento,
no período pré-crítico, de novas articulações no limite do campo ontológico.

II.
Quando se pensa na reforma crítica da metafísica, nota-se a princípio a restrição, no
âmbito teórico, do conhecimento com validade objetiva ao campo da experiência
possível. No contexto da revolução copernicana, as condições objetivas do conhecimento
subordinam-se às condições sensíveis e intelectuais de representação. Em termos
conceituais, atribuir à sensibilidade regras próprias de representação, irredutíveis às
regras intelectuais, significa romper a identidade entre ser e pensar: impossível e
irrepresentável não são mais sinônimos. A possibilidade do pensamento conduz-se por
critérios analíticos, mas as condições sintéticas do conhecimento, que são as condições
da experiência possível, não são redutíveis às regras do entendimento20. Para que algo
seja objeto da experiência os únicos conceitos do entendimento que são predicados

18
“O oposto um ao outro é quando um suprime aquilo que é posto pelo outro. Essa oposição é dupla: ou
lógica, pela contradição, ou real, isto é, sem contradição. A primeira oposição, vale dizer, lógica, é a única
para a qual até agora se dirigiu a atenção. Ela consiste no seguinte: de uma única e mesma coisa, afirma-se
e nega-se algo ao mesmo tempo. A consequência dessa conexão lógica é absolutamente nada (nihil
negativum irrepraesentabile) como o exprime o princípio de contradição [...]. A segunda oposição, vale
dizer, a real, é aquela em que dois predicados de uma coisa são opostos, mas não pelo princípio de
contradição. Aqui também se suprime algo que é posto pelo outro; contudo a consequência é algo
(cogitabile) [...]. A consequência disso é também nada, porém num outro sentido que o de contradição (nihil
privativum, repraesentabile)” (NG §2. Ak 2: 171; 57-58).
19
“Pois tudo o que contradiz as leis do entendimento e da razão é forçosamente impossível; não o é, porém,
aquilo que, por ser objeto da razão pura, tão-somente não está sob as leis do conhecimento intuitivo. De
fato, esse desacordo entre a faculdade sensitiva e a intelectual [...] não indica senão que a mente muitas
vezes não pode executar in concreto e converte em intuições as ideias abstratas que recebeu do
entendimento”. (Diss. §1. Ak. 389; 229).
20
“O critério (criterium) analítico da possibilidade é que não exista contradição [...]. O critério sintético da
possibilidade não pode ser visto no conceito (aus Begriffen). As condições de possibilidade sintéticas da
experiência são também as condições de possibilidade dos objetos da experiência. Mas não é a possibilidade
das coisas em si mesmas (Dinge an sich selbst)” (Refl. 5184. Ak. 18: 111-112); “A possibilidade analítica
baseia-se no princípio de contradição e é a possibilidade dos conceitos; a possibilidade sintética, que deve
ser adicionada, isto é, para que um objeto (Gegenstand) corresponda ao conceito, baseia-se em que algo
(Etwas) deve estar em conformidade com as condições de um objeto da experiência em geral. Apenas na
experiência um objeto pode ser dado” (Refl. 5556. Ak. 18: 232).

6
ontológicos devem receber seu conteúdo da sensibilidade, sem o qual são apenas formas
lógicas de conceitos em geral21. Enquanto ciência dos primeiros princípios do
conhecimento humano, a metafísica deve reconhecer que os critérios analíticos do
pensamento são condições apenas negativas do conhecimento. Numa palavra, o
impossível lógico é por si incognoscível. Mas, ao possível lógico, deve-se acrescentar o
referencial sensível para sua possibilidade real que se efetiva em uma posição absoluta.
Assim, duas correções são subscritas à metafísica geral. Em primeiro lugar, o ens
inquantum ens da ontologia é substituído pelo objeto em geral, conceito supremo de todo
conhecimento humano22. Em segundo lugar, este objeto só é conhecível quando
subordinado às regras sensíveis de representação. Todo objeto, conquanto pensável, só é
conhecível sob essas condições. As categorias, que são derivadas das funções lógicas do
juízo, ordenadas segundo uma tábua e que são os únicos conceitos que referem-se aos
objetos em geral23, só são princípios para o conhecimento quando vinculadas à
sensibilidade.
A Crítica da razão pura não é, sabe-se, uma crítica dos livros e dos sistemas, mas da
faculdade da razão em geral e da extensão do seu conhecimento a priori; um método para
se decidir acerca da possibilidade ou impossibilidade de uma metafísica em geral. A razão
(Vernunft) pode ser ou a faculdade superior de conhecimento, oposta a sensibilidade
(também chamada às vezes de entendimento), ou a terceira parte da divisão da faculdade
superior, que compreende razão, entendimento (Verstand) e faculdade de julgar
(Urteilskraft). Ao primeiro pode-se chamar sentido geral, ao segundo sentido estrito de
razão. A possibilidade da metafísica repousa, conforme exposto, na determinação da

21
Trata-se das categorias: “[...] o corpo só precisa ser pensado através de predicados ontológicos (os
conceitos puros do entendimento) – como substância, por exemplo – para que a proposição seja conhecida
a priori.” (KU, Ak. 5: 181; 82); “que um conceito deva ser gerado inteiramente a priori e referir-se a um
objeto, embora não pertencendo ele próprio ao conceito de experiência possível, nem consistindo em
elementos de uma experiência possível, é completamente contraditório e impossível. Pois ele não teria
então conteúdo algum (keinen Inhalt), já que nenhuma intuição corresponderia a ele, e são as intuições em
geral, pelas quais os objetos podem ser-nos dados, que constituem o campo ou o objeto total da experiência
possível. Um conceito a priori que não se referisse a esta seria apenas a forma lógica para um conceito
(logische Form zu einem Begriff), mas não o próprio conceito pelo qual algo fosse pensado” (KrV, A95);
22
Cf. Tillmann Pinder. Kants Begriff der transzendentalen Erkenntnis. In: Kant-Studien 77, 1986, p. 14;
Ludwig Honnefelder. Raison et métaphysique : les trois étapes de la constitution de son objet chez Duns
Scot et Kant. In: Philosophie 70, 2001, p. 38; Luciano Codato. Kant e o fim da ontologia. In: Analytica 13,
2009, p. 42.
23
“As categorias são os únicos conceitos que se referem a objetos em geral (Gegënstande überhaupt)”
(KrV, A290/ B346); “O conceito puro do entendimento é a função lógica determinada de uma representação
em geral (Vorstellung überhaupt)” (Refl. 4638. Ak. 17: 620); “Através da categoria eu represento para mim
um objeto em geral como determinação em relação às funções lógicas do juízo [...]. A categoria é, pois, o
conceito de um objeto em geral (obiecte überhaupt) na medida em que é determinado em si em relação à
função lógica dos juízos a priori [...]” (Refl. 5932. Ak 18: 391-392).

7
relação entre representações sensíveis e intelectuais, problema não solucionado na
Dissertação e tematizado na Carta a Herz24.
O segundo prefácio traduz o problema e a solução proposta na Crítica na metáfora da
revolução copernicana: as condições de referência ao objeto são internas ao sujeito que o
representa. Em primeiro lugar, trata-se da sensibilidade: caso a intuição tivesse de se
regular pela constituição dos objetos, não há como determinar nenhuma relação a priori
entre representação e representado, uma vez que toda representação se torna produto de
afecção empírica. Contudo, se o objeto (Gegestand), como objeto (Objekt) dos sentidos,
se regular pela faculdade representativa sensível, então é possível determinar uma relação
a priori entre representação e representado25. Em segundo lugar, trata-se do
entendimento: uma vez que a mera intuição sensível não é suficiente para o
conhecimento, mas é necessário a referir a algo como objeto e determinar esse algo como
objeto de conhecimento por meio de conceitos, se impondo a necessidade destes para
referência. Se, não obstante, admito que esses conceitos se regulam pela experiência, o
problema da representação a priori é recolocado e não é possível qualquer referência por
conceitos a priori. Deste modo, “assumo que os objetos, ou o que dá no mesmo, a
experiência em que eles podem ser conhecidos (como objetos dados) é regulada por esses
conceitos”26.
Pode-se derivar que a Crítica da razão pura, como investigação da possibilidade ou
impossibilidade da metafísica, é uma investigação sobre a essência da metafísica ou, caso
se prefira, sobre a validade do discurso metafísico. A metafísica como conhecimento puro
do ente em geral e de suas regiões exige que se ultrapasse a simples experiência e que se
vise seu fim último, o conhecimento do ser suprassensível, ou seja, que a investigação

24
Entre a Carta a Herz e a Crítica, ou, antes, entre a formulação do problema na carta e a sua reformulação
e solução na Crítica é possível inferir variantes formulativas. Por exemplo, Kemp Smith (A Commentary,
op. cit, p. 26-27) entende que o problema assim formulado é essencialmente metafísico (como é possível a
metafísica transcendente?), derivado das funções da inteligência, conformes descritas na Dissertação e
passando, na Crítica, a versar sobre a possibilidade de uma metafísica imanente. De modo semelhante,
Longuenesse (Kant et le pouvoir de juger, op. cit., p. 19-26), argumenta que Kant reformula o problema de
uma relação de causalidade, na Carta a Herz, para uma relação de condições de possibilidade, a
interiorização do objeto-de-representação no interior do campo de representação, conforme o § 14 da
Crítica.
25 Por objeto (Objekt) dos sentidos, neste trecho, se pode entender tanto o objeto indeterminado de uma

intuição empírica, como o objeto determinado categorialmente. Toda determinação intuitiva e conceitual
deste objeto depende das qualidades representativas do sujeito, isso significa que, por um lado, os acidentes
das substâncias que afetam nossos órgãos sensitivos e produzem em nós a sensação (matéria do
conhecimento sensitivo) são eles mesmos frutos da determinação categorial considerados não-
categorialmente. Assim, a existência de algo extra-categorical e extra-lógico, ontologicamente distinto da
representação e fora do nosso aparato cognitivo se impõe.
26
KrV, Bxviii.

8
nos conduza à metafísica especial, cujo conhecimento do objeto não pode ser indiferente
à natureza humana. Assim, somos levados à teologia racional e desta, por sua vez, aos
demais campos da metafísica especial, a saber, a cosmologia e a psicologia racionais,
enquanto campos cujos objetos (a liberdade da vontade e a imortalidade da alma), assim
como o da teologia racional (Deus), são transcendentes. Segundo Heidegger 27, pode-se
dizer que a questão da possibilidade do conhecimento do ser suprassensível em específico
reconduz à questão mais abrangente da possibilidade do ente em geral e assim a
passagem, no linguajar heideggeriano, do conhecimento ôntico ao conhecimento
ontológico. O projeto da possibilidade interna da metaphysica specialis é trazido de volta,
passando pela questão da possibilidade do conhecimento ôntico do ente suprassensível ao
conhecimento do ente em geral. Assim, a tentativa de instauração do fundamento da
metafísica especial conduz à questão do fundamento da metaphyisica generalis, da
ontologia. Sabe-se que a ontologia se converte, na filosofia transcendental, em analítica
do entendimento puro e que esta reconhece o próprio entendimento, como vimos, como
um poder de julgar ou poder de pensar. Michel Fichant28 (1999, 529), neste ponto, nos
recorda que se, de fato, a pergunta diretriz sobre a possibilidade dos juízos sintéticos a
priori conduz a elaboração da investigação crítica, ela se torna uma discriminação e
avaliação do próprio poder de julgar em geral: é o próprio poder de julgar que está em
juízo, sendo que a elaboração arquitetônica da Crítica da razão pura obedece esta
intenção. Desse modo, na Estética transcendental se isolam as formas puras do espaço e
do tempo (formas puras da intuição), que constituem o primeiro elemento para a solução
da questão acerca da possibilidade dos juízos sintéticos a priori, na Analítica
transcendental, a noção de juízo fornece a tábua das funções lógicas do pensamento em
geral que, por sua vez, serve de fio condutor para o estabelecimento da tábua dos
conceitos puros do entendimento (categorias), mostrando-se, na Analítica dos conceitos,
como eles podem se referir a objetos empíricos mediante a dedução transcendental e, na
Analítica dos princípios, como um juízo a priori pode se referir à forma e à matéria
sensível em geral na experiência. Por fim, a Dialética transcendental determina certas
inferências que nos conduzem inevitavelmente a ilusões, dada a pretensão de determinar
seus objetos sem nenhuma intuição que lhes corresponda. Deste modo, se a investigação

27
Heidegger, M. Kant et le problème de la métaphysique. Trad. A. Waelhens et W. Biemel. Paris :
Gallimard, 1953, p. 70-71.
28
M. Fichant. L’idée critique et l’histoire de la raison. Les Lumières et la réflexion. In : Revue de
Métaphysique et de Morale 4, 1999, p. 529.

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é posta sob a condução da ideia da ciência como princípio diretor estando sua unidade
garantida pela unidade da razão, entendida como a faculdade superior de conhecimento
em geral – oposta à sensibilidade e que engloba o entendimento como faculdade dos
conceitos e das inferências imediatas, a faculdade de julgar como a da subsunção e a razão
como a faculdade das inferências mediatas – sua unidade se funda sob a unidade do juízo.
As condições de unidade do juízo, a despeito de sua diversidade, são, portanto, condições
da própria unidade da crítica da razão.

Conclusão
As considerações apresentadas não são uma dedução das ideias da razão a partir
das inferências mediatas. Se tentou demonstrar apenas que a crítica das metafísicas
especiais funda-se, como todo o projeto crítico, na própria cisão entre lógica e ontologia
que encontra-se nas origens da elaboração do pensamento kantiano. Também se tentou
apresentar como o juízo é o garantidor da articulação de toda a Crítica da razão pura.
Trata-se assim, de uma argumentação indireta: não reconhecer a unidade entre formas das
inferências, ideias da razão e crítica da metafísica especial é não reconhecer a própria
unidade da crítica da razão e da noção kantiana de juízo. Resta-nos ainda duas tarefas
complicadas: apresentar a legitimidade da dedução das ideias da razão e demonstrar seus
desdobramentos nos paralogismos, nas antinomias e no ideal da razão. Contudo,
esperamos ter lançado as bases desse projeto.

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