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MEDICINA E DIREITO

DILEMAS DA MODERNIDADE
Terminalidade da vida, reprodução humana, novas relações
de família, responsabilidade médica e saúde suplementar
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

MEDICINA E DIREITO
DILEMAS DA MODERNIDADE

Terminalidade da vida, reprodução humana, novas relações


de família, responsabilidade médica e saúde suplementar

Reflexões e conferências do
VIII Congresso Brasileiro de Direito Médico
Brasília (DF), 30 e 31 de agosto de 2018

Diaulas Costa Ribeiro


Organizador

CFM
Brasília, 2019
Copyright © 2019 – Conselho Federal de Medicina
Medicina e direito: dilemas da modernidade. Terminalidade da vida, reprodução humana, novas
relações de família, responsabilidade médica e saúde suplementar.

Reflexões e conferências do VIII Congresso Brasileiro de Direito Médico, Brasília (DF),


30 e 31 de agosto de 2018

Conselho Federal de Medicina – CFM


SGAS 915, Lote 72
Brasília/DF, CEP 70390-150
Tel. (61) 3445 5900 / Fax (61) 3346 0231 / e-mail: cfm@cfm.org.br

Acesse a versão eletrônica em: portal.cfm.org.br


Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

Supervisão editorial: Thaís Dutra


Copidesque: Caique Zen e Mônica Silva | Tikinet
Revisão: Isabella Ribeiro | Tikinet
Capa, diagramação e impressão: Quality Gráfica e Editora
Tiragem: 3.000 exemplares
Apoio: Kelly Christiny R. de Oliveira Boaventura

Ficha catalográfica: Biblioteca do CFM

Medicina e direito: dilemas da modernidade. Terminalidade da vida, reprodução humana,


novas relações de família, responsabilidade médica e saúde suplementar / Organização de
Diaulas Costa Ribeiro. - Conselho Federal de Medicina. Brasília: CFM, 2019.

224 p. ; 13,5x20,5 cm.

Reflexões e conferências do VIII Congresso Brasileiro de Direito Médico, Brasília,


3 a 4 de agosto de 2018

ISBN 978-85-87077-70-7

1. Medicina-Direito. 2. Responsabilidade civil do médico. 3.Terminalidade da vida.


4. Técnicas reprodutivas assistidas-Relações familiares. 5. Cuidados paliativos. 6. Morte
encefálica. 7. Saúde suplementar-história. I. Ribeiro, Diaulas Costa, org. II. Congresso
Brasileiro de Direito Médico (8 : 2018: Brasília).

CDD 614.19
DIRETORIA DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA*

Carlos Vital Tavares Corrêa Lima


Presidente

Mauro Luiz de Britto Ribeiro


1º vice-presidente

Jecé Freitas Brandão


2º vice-presidente

Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti


3º vice-presidente

Henrique Batista e Silva


Secretário-geral

Hermann Alexandre Vivacqua von Tiesenhausen


1º secretário

Sidnei Ferreira
2º secretário

José Hiran da Silva Gallo


Tesoureiro

Dalvélio de Paiva Madruga


2º tesoureiro

Lúcio Flávio Gonzaga Silva


Corregedor

Dilza Teresinha Ambrós Ribeiro


Vice-corregedora

Para acessar a lista completa de conselheiros federais de medicina (efetivos e suplentes), visite o Portal
*

Médico em portal.cfm.org.br.
SUMÁRIO

Apresentação.......................................................................................................7

A terminalidade da vida e a jurisprudência estrangeira: olhares


múltiplos (comentários ao acórdão nº 531/2015 da Suprema Corte de
Recursos da África do Sul)......................................................................................9
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima, Diaulas Costa Ribeiro, Kelle Lobato Moreira

A rejeição dos quatro projetos de legalização da eutanásia em


Portugal: o debate terminou ou apenas começou?......................................43
Germano Marques da Silva

Constitucionalidade e judicialização do direito de morrer com


dignidade na Colômbia.....................................................................................69
Adriana González Correa

Morte encefálica e a resolução do Conselho Federal de Medicina


nº 2.173/2017.....................................................................................................95
Hideraldo Luis Souza Cabeça

Reprodução assistida......................................................................................111
Cláudia Navarro Carvalho Duarte Lemos

Reprodução humana medicamente assistida e as novas relações de


família dela decorrentes......................................................................................117
Hitomi Miura Nakagawa

O poder familiar e a morte digna dos filhos: breves reflexões sobre


o caso Charles Gard........................................................................................125
Heloisa Helena Barboza

Reflexões bioéticas sobre o morrer com dignidade: análise do caso


Nancy Cruzan...................................................................................................145
José Eduardo de Siqueira e Jussara Maria Leal de Meirelles
Terminalidade da vida e a jurisprudência estrangeira: análise de
caso paradigmático alemão...........................................................................169
Cynthia Pereira de Araújo e Silvana Bastos Cogo

Cirurgia plástica em respeito ao paciente e ao ato médico......................189


Níveo Steffen

O presente e o futuro na saúde suplementar..............................................203


Paulo Montenegro

ANEXO

VIII Congresso Brasileiro de Direito Médico.................................................219


APRESENTAÇÃO

A Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina


deliberou, em 2015, que as conferências do Congresso Brasileiro de
Direito Médico passariam a ser publicadas em um livro, a ser lançado
no congresso subsequente. Dos cinco congressos anteriores não foram
feitos registros. A primeira edição dos anais, lançada em agosto de 2017,
contemplou o VI Congresso, realizado em 2016 em Belo Horizonte,
no campus da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
No ano passado, também em agosto, foi publicada a edição referente
ao ano anterior.

O VIII Congresso, fonte deste livro, viabilizou relevantíssimas


contribuições, com conferências e debates que, pela primeira vez,
foram abertos em todas as exposições. A Comissão de Direito Médico
concluiu ser indispensável oferecer à assistência a oportunidade
de dialogar diretamente com renomados profissionais que, além do
conhecimento prévio e notório, prepararam suas exposições e passaram
horas em deslocamento para o Brasil e para Brasília. Não poderíamos
deixar a plateia com a pergunta que enamorava uma resposta imediata,
de viva voz. Era preciso, pelo menos, tentar respondê-la.

Todos os convidados colocaram-se à disposição para debater,


dando ao Congresso um ambiente de sala de aula de excepcional nível.

Ao organizar este livro, tivemos a oportunidade de ler e reler os


capítulos gentilmente cedidos pelos autores. Nessa condição privilegiada
de primeiros leitores de todos eles, podemos afirmar que, como nos
livros que inspiraram filmes, fica uma dúvida: foi melhor ouvir ou ler?
São experiências distintas. Foi muito bom ouvir; foi muito bom ler.

Assistir à conferência, respirando o mesmo ar do palestrante,


é o compartilhamento de um pedaço da vida dele com a nossa.
É indispensável. Nas artes cênicas, equivaleria ao teatro. A sensação
de estar frente a frente com o artista é insubstituível. Isso não anula a
relevância de ler a mesma peça, na solidão do autor com o leitor.

Conselho Federal de Medicina 7


Assistir a Hamlet no teatro não dispensa a leitura de Shakespeare.
Ler o texto em um novo contexto também desperta percepções
únicas. Cada palavra, cada vírgula, cada ponto; até as reticências dizem
muito. E no caso do direito médico, a documentação das conferências
contribui para a formação de uma biblioteca atualizada, indispensável
para o desenvolvimento acadêmico dos assuntos tratados.

As conferências agora publicadas representam um excerto do


melhor que se produziu sobre a matéria. A presença de professores de
países amigos e a abordagem de temas estrangeiros demonstram que
estamos em sintonia com o mundo. Mesmo no limiar do IX Congresso,
os temas tratados no Congresso de 2018 são atemporais, com grande
interesse para a medicina e para o direito, hoje e sempre.

Optamos, como ocorreu nas edições anteriores, por não usar


a expressão “Anais do Congresso”. Cada edição tem um título, que
representa o conjunto das reflexões e das conferências realizadas.
Neste livro, optamos por Medicina e direito: dilemas da modernidade. A
indicação do subtítulo dá a dimensão desses dilemas: terminalidade da
vida, reprodução humana, novas relações de família, responsabilidade
médica e saúde suplementar.

Agradecemos as contribuições de todos os autores e desejamos


aos nossos leitores momentos agradáveis com este livro. Que aquela
pergunta que enamorava uma resposta – se, por acaso, não foi
respondida nos debates –, encontre nele não apenas a solução, mas
uma nova inspiração.

Carlos Vital Tavares Corrêa Lima


Presidente do CFM

Mauro Luiz de Britto Ribeiro


Coordenador da Comissão de Direito Médico do CFM

Diaulas Costa Ribeiro


Organizador

8 Medicina e direito: dilemas da modernidade


A TERMINALIDADE DA VIDA E A JURISPRUDÊNCIA
ESTRANGEIRA: OLHARES MÚLTIPLOS
(COMENTÁRIOS AO ACÓRDÃO Nº 531/2015 DA SUPREMA CORTE DE
RECURSOS DA ÁFRICA DO SUL)

Carlos Vital Tavares Corrêa Lima


Médico. Presidente do Conselho Federal de Medicina.

Diaulas Costa Ribeiro


Desembargador. Tribunal de Justiça do Distrito Federal
e dos Territórios. Professor Titular do
IDP - Escola de Direito de Brasília.

Kelle Lobato Moreira


Advogada. NPJ da Universidade Católica de Brasília.
Mestre em Direito pela Universidade Católica
Portuguesa e pela Universidade de Rouen, França.

1. O acórdão

O acórdão decorreu do julgamento da Suprema Corte de


Recursos da África do Sul (Supreme Court of Appeal of South Africa
– SCA) que cassou a sentença de primeira instância da Circunscrição
Judicial de Gauteng Norte, Pretória. A disponibilização do resultado
ocorreu em 4 de novembro de 2016, e a publicação da decisão, em 6
de dezembro de 2016.

2. As cortes sul-africanas: breve histórico

A Suprema Corte de Recursos da África do Sul é a sucessora da


Divisão de Apelações (Appellate Division), instituída em 1910 como
última instância da Justiça local. Com a fundação da Corte Constitucional,
em 1993, que passou a funcionar com base na Constituição interina de

Conselho Federal de Medicina 9


1994 (NETO, 2004), o nome Appellate Division foi mudado, em 1996,
para Supreme Court of Appeal (SCA).

Entre 1994 e 2013 a Corte Constitucional e a Suprema Corte de


Recursos eram as mais altas cortes do país (apex courts), com diferentes
áreas de jurisdição. A Corte Constitucional tratava apenas de temas
constitucionais e a Suprema Corte julgava todos os demais recursos.
Entretanto, em agosto de 2013 a Corte Constitucional passou a ter,
também, competência para julgar outras matérias de relevante interesse
público, transformando-se na mais alta corte do país. A Suprema
Corte, por sua vez, tem jurisdição geral para julgar recursos contra
decisões do Tribunal de Justiça da África do Sul (High Court of South
Africa), um órgão nacional dividido em 14 províncias, exceto em
matéria trabalhista e de defesa econômica (direito da concorrência),
sendo, por consequência, a segunda mais alta corte nacional, com
jurisdição definitiva sobre muitos dos recursos que julga.  É factível
comparar a Suprema Corte de Recursos com o Superior Tribunal de
Justiça brasileiro, e não com o Supremo Tribunal Federal.

3. Os juízes

Utilizou-se neste texto o título de “juiz” (judge) para nomear


os magistrados responsáveis pelas decisões analisadas: a sentença de
primeira instância, da Circunscrição Gauteng Norte, que é uma das
14 províncias já referidas (High Court North Gauteng Division), com
sede em Pretória, de autoria do juiz Hans J. Fabricius, e o acórdão da
Suprema Corte de Recursos, relatado pelo juiz Malcolm John David
Wallis, com quórum unânime integrado pelas juízas Carole Hélène
Lewis e Nambitha Dambuza e pelos juízes Legoabe Willie Seriti e
Ashton Schippers.

4. Os recursos

Os recursos foram interpostos pelas seguintes autoridades:


(1) o ministro da Justiça e dos Serviços Prisionais); (2) o ministro

10 Medicina e direito: dilemas da modernidade


da Saúde; (3) o procurador nacional do Ministério Público; e
(4) o Conselho das Profissões de Saúde da África do Sul (Health
Professions Council of South Africa), órgão de regulação profissional
que inclui a medicina, para a qual equivale ao Conselho Federal de
Medicina. Para facilitar a narrativa, a referência, doravante, será feita ao
Conselho de Medicina.

Foram admitidos, na ordem dos pedidos, cinco amici curiae, três


favoráveis à causa, dois contrários: (1) a organização internacional
Doctors for Life (Médicos pela Vida), associação sem fins lucrativos
contrária à eutanásia e ao suicídio assistido; (2) Donrich Willem
Jordaan, advogado e acadêmico, favorável à causa; (3) Cause for Justice
(Causa da Justiça), organização não governamental também contrária
à eutanásia e ao suicídio assistido; (4) Centre for Applied Legal Studies
(Centro de Estudos Jurídicos Aplicados), favorável à causa; e (5) Justice
Alliance of South Africa (Aliança para a Justiça da África do Sul),
contra a sentença.

A parte recorrida foi o espólio de Robert James Stransham-


-Ford, falecido na mesma data da sentença, 30 de abril de 2015.

5. O paciente

Robert James Stransham-Ford, conhecido como Robin, era


um prestigiado advogado com cerca de 35 anos de profissão, tendo
exercido outras atividades, inclusive em Londres. Tinha 65 anos, quatro
filhos, três dos quais com mais de 25 anos, e uma filha com 12, que
estava sob a guarda da mãe. Tinha amplos conhecimentos inerentes à
profissão e sabia exatamente o que queria e porque queria.

Em 10 de abril de 2015, Robert James Stransham-Ford foi


avaliado por uma psicóloga clínica que concluiu em seu relatório que ele
não apresentava qualquer limitação cognitiva e não havia evidência de
distúrbios psiquiátricos. Mantinha pleno domínio de sua racionalidade,
com boa compreensão da sua doença, do seu prognóstico e dos
aspectos éticos e legais da morte assistida.

Conselho Federal de Medicina 11


6. A doença

Em 19 de fevereiro de 2013, uma biópsia de próstata confirmou


que o paciente tinha um adenocarcinoma (Gleason Score: 9/10). O
tumor foi classificado como agressivo, e em janeiro de 2015 o câncer já
havia se disseminado e atingido órgãos e estruturas do sistema linfático.
Em 13 de março de 2015, uma nova biópsia, com ultrassom transretal,
confirmou um linfoma. Em 15 de março, o paciente foi admitido em
um hospital na Cidade do Cabo com dor abdominal severa. Três dias
depois, já em outro hospital, foram implantados stents nos ureteres
para aliviar a obstrução entre rins e bexiga. Em 25 de março, Cameron
Bruce, um especialista em cuidados paliativos, assumiu a assistência
médica em regime de tratamento domiciliar, que compreendeu nove
visitas. Também foram prestados, regularmente, cuidados paliativos de
enfermagem, a cargo da irmã Yvonne Jackman, do hospice São Lucas.

O câncer estava no estágio quatro, o último grau da escala de


estadiamento desse tipo de tumor, que inclui metástase em outros
órgãos, com expectativa de algumas semanas de vida.

7. O processo

Em 17 de abril de 2015, uma sexta-feira, Robert James Stransham-


Ford ajuizou uma ação pedindo um alvará para que um médico pudesse
aplicar-lhe ou disponibilizar-lhe, para autoaplicação, drogas letais,
assegurando-se ao profissional, em qualquer das situações, imunidade
contra persecuções cíveis, penais, por iniciativa do Ministério Público,
e discilinares, por parte do Conselho de Medicina.

A ação judicial invocou o § 2º do artigo 39 da Constituição


sul-africana, que trata da interpretação da Bill of Rights, título do seu
capítulo 2, que compreende os artigos 7 a 39, chamados sections. Esse
capítulo equivale, na Constituição brasileira, ao artigo 5º, que cuida dos
direitos e garantias fundamentais.

12 Medicina e direito: dilemas da modernidade


O artigo 39 dispõe que as cortes, tribunais e juízes, quando
interpretarem a Bill of Rights, devem promover os valores que
sustentam uma sociedade aberta e democrática, baseada na dignidade da
pessoa humana, na igualdade e na liberdade; devem considerar o direito
internacional e podem considerar o direito estrangeiro. Determina,
ainda, que quando interpretarem as leis e quando desenvolverem
o common law e o direito costumeiro, devem considerar o espírito, a
intenção e os objetivos da Bill of Rights.

A urgência do pedido fez com que, em 24 de abril de 2015, todos


os réus tivessem apresentado contestação, vindo a réplica do autor no
dia 26, um domingo. Robert James Stransham-Ford foi patrocinado,
sem a cobrança de honorários (pro bono), por advogados designados
pela Dignity South Africa, uma organização não governamental que
faz campanhas pela legalização do suicídio (SMA) e da eutanásia
medicamente assistidos (EMA). Mas os pedidos, fundamentados na
deterioração diária das condições físicas do paciente, invocaram o
reconhecimento dos seus direitos fundamentais à dignidade humana,
à integridade física e psicológica, e a não ser submetido a tratamento
cruel, desumano ou degradante.

Tratou-se de ação individual para assegurar direitos fundamentais


do paciente e, de forma reflexa, a imunidade civil, penal e disciplinar
do médico que viesse a assisti-lo na morte, e não de uma ação para
a proteção de interesses difusos ou coletivos (class action), o que
imporia, inclusive, o chamamento de outros interessados ao processo,
como associações de idosos com necessidades especiais, sociedades
de especialidades médicas pertinentes à matéria discutida na ação e
organizações de assistência à saúde em geral.

O paciente afirmou que não tinha medo de morrer, mas que


tinha medo de morrer sofrendo. Por essa razão, buscou o direito de ter
sua morte medicamente assistida.

Nos relatórios médicos apresentados ao juiz com a petição


inicial, constou que o autor apresentava dor severa, náuseas, vômitos,

Conselho Federal de Medicina 13


constipação intestinal, desorientação, perda de peso, perda de apetite,
hipertensão arterial, fragilidade associada à metástase renal e fraqueza,
com necessidade de apoio para atividades rotineiras, como sair da
cama, tomar banho, escovar os dentes e comer. Estava preso ao leito,
com sondas e catéteres; demonstrava ansiedade crônica, não dormia
sem morfina ou outros analgésicos e permanecia sonolento com o
efeito dessas medicações.

Robert James Stransham-Ford submeteu-se a numerosos


tratamentos, incluindo medicina tradicional chinesa, medicina védica,
cirurgias, implante de stents ureterais, uso de Cannabis, administração de
morfina, Buscopan etc. Havia a previsão de entubação, condicionada
ao agravamento do quadro.

8. A sentença

A decisão judicial, favorável ao autor, foi expedida em 30 de abril


de 2015, quinta-feira, cerca de duas horas após a sua morte, ocorrida às
oito horas. O juiz Hans J. Fabricius afirmou, expressamente, que diante
da urgência e do limitado tempo que dispunha, a ordem foi dada antes
da conclusão dos fundamentos da sentença, publicada em 4 de maio de
2015. Nela, consta que o paciente já havia falecido:

Posto isso, em 30 de abril de 2015 deferi a


seguinte ordem:
[…]
1. 1 O autor é adulto e mentalmente capaz.
1.2 O autor, livre e voluntariamente, e sem
influências indevidas, requereu autorização
judicial para ser assistido em suicídio.
1.3 O autor é doente em fase terminal de
enfermidade grave e incurável, com expectativa
de vida de apenas algumas semanas.
1.4 O autor está autorizado, para pôr fim a sua
vida, a ser assistido por um médico qualificado

14 Medicina e direito: dilemas da modernidade


que se disponha a administrar-lhe drogas capazes
de produzir a morte ou a lhe disponibilizar, para
autoaplicação, drogas letais.
1.5 Nenhum médico está obrigado a atender aos
pedidos do autor.
1.6 O médico que se dispuser a atender aos
pedidos do autor não agirá ilegalmente, e,
consequentemente, não poderá ser processado
criminalmente, pelo Ministério Público, nem
disciplinarmente, pelo Conselho de Medicina.
2. Esta ordem não deve ser interpretada como
referendo às propostas contidas no Projeto
de Lei de Fim da Vida, que viabiliza os meios
ou estabelece as condições para que médicos
prestem assistência ao suicídio, como consta do
relatório da Comissão Especial, de novembro
de 1998 (Projeto 86).
3. A proibição legal absoluta imposta pelos
crimes de homicídio doloso e de homicídio
culposo,1 no contexto do suicídio medicamente
assistido, limita, sem motivo justo, os direitos
constitucionais do paciente a sua dignidade
humana (art. 10 da CAS) e a sua livre integridade
física e psicológica (art. 12, 2, b, c/c art. 1
e 7 da CAS), e, nessa extensão, é declarada
insubsistente e em conflito com as disposições
da Bill of Rights.
4. Salvo neste caso concreto e na forma acima
determinada, os crimes de homicídio doloso e
de homicídio culposo, no contexto do suicídio
medicamente assistido, continuam proibidos
pela legislação vigente. (SOUTH AFRICA,
2015, p. 5-7)2

1
A expressão culpable homicide, no sistema do common law, é polissêmica. Pode significar tanto homicídio
intencional menos grave (homicídio simples) do que o assassinato (homicídio qualificado) quanto o
homicídio não intencional (culposo), também classificado como involuntary manslaughter em alguns países. Na
África do Sul, a expressão significa the unlawful negligent killing of a human being, ou seja, homicídio culposo.
2
No original: “Accordingly, on 30 April 2015, I made the following order: […] 1.1. The Applicant is a mentally
competent adult; 1.2 The Applicant has freely and voluntarily, and without undue influence requested the
Court to authorize that he be assisted in an act of suicide; 1.3 The Applicant is terminally ill and suffering
intractably and has a severely curtailed life expectancy of some weeks only; 1.4 The Applicant is entitled

Conselho Federal de Medicina 15


Quanto à conclusão da sentença após a emissão da ordem, não
houve nenhuma irregularidade, e o juiz justificou sua conduta. Tratava-
se de uma situação complexa, com grandes indagações jurídicas, não
sendo possível que ele, um juiz singular, realizasse, no tempo exíguo
disponível, uma pesquisa ampla sobre o tema. Registrou, contudo,
que o caso seria analisado pela Corte Constitucional, que, com pelo
menos oito juízes e seus qualificados assessores, faria estudos mais
completos sobre a matéria. No Brasil, a propósito, é comum o acórdão
ser publicado após a proclamação do resultado.

9. A perda superveniente do objeto

Houve, então, dois tempos da sentença – relembrando que o


paciente morreu em 30 de abril de 2015, às oito horas. O primeiro, a
concessão da ordem, ocorreu em 30 de abril, às 10 horas. O segundo,
a publicação das razões de decidir, em 4 de maio de 2015, às 14 horas.

Estabelecida essa cronologia, os elementos do processo


evidenciam que o juiz Hans J. Fabricius não havia tomado conhecimento
da morte do paciente quando concedeu a ordem. O próprio médico
assistente, Bruce Cameron, foi avisado às 11 horas, tendo comparecido
ao local da morte às 12h15. Apenas nessa ocasião soube que Robert
James Stransham-Ford havia vencido a causa.

Esse detalhe tem relevância processual porque a Suprema


Corte registrou que os advogados declararam que não souberam da

to be assisted by a qualified medical doctor, who is willing to do so, to end his life, either by administration
of a lethal agent or by providing the Applicant with the necessary lethal agent to administer himself; 1.5
No medical doctor is obliged to accede to the request of the Applicant; 1.6 The medical doctor who
accedes to the request of the Applicant shall not be acting unlawfully, and hence, shall not be subject to
prosecution by the Fourth Respondent or subject to disciplinary proceedings by the Third Respondent for
assisting the Applicant. 2. This order shall not be read as endorsing the proposals of the draft Bill on End
of Life as contained in the Law Commission Report of November 1998 (Project 86) as laying down the
necessary or only conditions for the entitlement to the assistance of a qualified medical doctor to commit
suicide. 3. The common law crimes of murder or culpable homicide in the context of assisted suicide by
medical practitioners, insofar as they provide for an absolute prohibition, unjustifiably limit the Applicant’s
constitutional rights to human dignity, (S. 10) and freedom to bodily and psychological integrity (S. 12
(2) (b), read with S. 1 and 7), and to that extent are declared to be overbroad and in conflict with the said
provisions of the Bill of Rights. 4. Except as stipulated above, the common law crimes of murder and
culpable homicide in the context of assisted suicide by medical practitioners are not affected”.

16 Medicina e direito: dilemas da modernidade


morte antes da sentença, mas deixou subentendido que o juiz Hans
J. Fabricius não foi avisado, propositadamente, para que não fosse
impedido de decidir (“It is difficult to avoid the inference that his death
was not reported because it was thought that it might affect the judge’s
decision”), mesmo tendo os advogados o dever legal de participá-la,
imediatamente. Se tivesse sido informado da morte, o juiz não poderia
ter julgado os pedidos porque havia perda superveniente do objeto.

Por outro lado, o Conselho de Medicina requereu ao juiz


que reconsiderasse sua decisão ante a morte do paciente. O relator,
na Suprema Corte, registrou que não houve manifestação formal
sobre esse pedido, mas decorreu dos debates orais, sendo alegado e
não contestado, que o juiz Hans J. Fabricius teria justificado que não
reconsideraria porque a decisão tinha “amplas implicações sociais”.

A Suprema Corte decretou a perda superveninete do objeto


porque o pedido foi personalíssimo; não se tratou de class action para
proteção de interesses difusos ou coletivos. O acórdão observou,
ainda, que os itens 1.1, 1.3, 1.4 e 1.5 do dispositivo da sentença só
teriam pertinência se o paciente estivesse vivo. Quanto ao item 1.2,
classificou-o de acadêmico por se referir ao estado mental do autor
enquanto ele estava vivo, especificamente quando ajuizou a ação.

Também argumentou que não tendo havido assistência na morte


do paciente, a decisão tinha perdido o objeto na medida em que não
alcançava qualquer outro médico, assistente de qualquer outro doente,
porque foi limitada à morte de Stransham-Ford e à de mais ninguém.
Em resumo, a Suprema Corte quis afastar qualquer possibilidade de se
desenvolver, no common law, um precendente com repercussão geral,
uma consequência originária desse sistema.

Nota-se a maneira incisiva com que a sentença foi desconstituída


no julgamento dos recursos. No sistema do common law as decisões
podem ser rescindidas, dentre outros fundamentos, quando resultarem
de um justus error. Invocou-se, no caso, esse erro justificável porque a
sentença considerou que o autor ainda estava vivo. O erro, afirmou
o relator, “foi justo, mas não deixou de ser um erro”. Os advogados

Conselho Federal de Medicina 17


erraram porque não comunicaram a morte ao juiz; e o juiz errou
porque não reconsiderou a decisão tão logo soube da perda do objeto
pela efetivação irreparável do dano.

O acórdão apresenta uma longa fundamentação teórica sobre


a transmissibilidade ou não de algumas ações aos herdeiros do morto,
ao seu espólio, destacando que as ações personalíssimas, como a que
foi proposta por Robert James Stransham-Ford, “morrem com o seu
autor” (actio personalis moritur cum persona). Esse tema está tratado no
artigo 485, IX do Código de Processo Civil brasileiro.

10. Um precedente brasileiro de perda superveniente do


objeto

O Supremo Tribunal Federal, na sessão plenária de 4 de março


de 2004, no julgamento do Habeas Corpus nº 84.025, relatado pelo
ministro Joaquim Barbosa, recebeu a informação de que o parto havia
ocorrido. Tratava-se de habeas corpus preventivo para autorizar a gestante
a realizar a antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo. A
situação de urgência, com risco de efetivação irreparável do dano, era,
mutatis mutandis, a mesma tratada pela Suprema Corte sul-africana. A
transcrição de excertos do acórdão justifica-se pela sua pertinência
com o caso analisado. Em primeiro lugar, o dispositivo do voto que,
afinal, não se efetivou:

Ante o exposto, concedo parcialmente a ordem,


para cassar a decisão do Superior Tribunal de
Justiça, assegurando à paciente G.O.C. o direito
de tomar, caso seja essa sua vontade, a decisão
de, assistida por médico, interromper a gravidez,
desde que isso ainda seja viável do ponto de vista
médico, visto haver indícios de que a gravidez já
está em estágio avançado. Estendo igualmente a
ordem a todo o corpo médico e paramédico que
eventualmente venha a se envolver no possível
evento hospitalar. (BRASIL, 2004)

18 Medicina e direito: dilemas da modernidade


A seguir, a ementa do acórdão definitivo e trechos dos registros
do julgamento:

EMENTA: HABEAS CORPUS


PREVENTIVO. REALIZAÇÃO DE ABORTO
EUGÊNICO. SUPERVENIÊNCIA DO
PARTO. IMPETRAÇÃO PREJUDICADA. 1.
Em se tratando de habeas corpus preventivo,
que vise a autorizar a paciente a realizar aborto,
a ocorrência do parto durante o julgamento do
writ implica a perda do objeto. 2. Impetração
prejudicada.

ESCLARECIMENTO

SENHOR MINISTRO JOAQUIM


BARBOSA (RELATOR) – Sr. Presidente,
como informei ao vice-presidente do Tribunal,
meu gabinete entrou em contato com uma das
organizações impetrante do habeas corpus,
que informou que efetivamente a criança
nasceu e viveu apenas 7 minutos. Também falei
pessoalmente com a promotora que atuou no
caso e ela confirmou essa informação.

SENHOR MINISTRO MAURÍCIO


CORRÊA – (PRESIDENTE): Dando
conta do encargo que a mim me foi atribuído,
liguei para o Presidente do Tribunal da Justiça,
Desembargador Miguel Pachá, do Estado do
Rio de janeiro, e ele apurou, em Teresópolis,
que realmente a criança nasceu no Hospital São
José, e em seguida morreu.

O que V.Exa. propõe?

SENHOR MINISTRO JOAQUIM


BARBOSA (RELATOR) – A perda do objeto.
(BRASIL, 2004)

Conselho Federal de Medicina 19


11. Precedente colombiano de perda superveniente do
objeto: o caso Júlia

Na Colômbia, a situação foi idêntica à julgada pela Suprema


Corte sul-africana. A autora, referida pelo pseudônimo de Júlia (“Con
el fin de proteger el derecho fundamental a la intimidad de la actora
y de su familia, la Sala ha decidido reemplazar las referencias a su
identificación en el presente proceso por el seudónimo de Julia”),
requereu, em 5 de julho de 2013, o seu direito fundamental a uma vida
digna e, portanto, pleiteou uma sentença que fixasse dia e hora para
“morrer dignamente e de maneira tranquila, por meio de eutanásia”.

A Corte Constitucional, em 15 de dezembro de 2014, no


julgamento que resultou na Sentença T-970/2014, constatou que a
paciente havia morrido. A solução tradicional não seria diferente da
adotada pela Suprema Corte sul-africana e também pelo Supremo
Tribunal Federal: extinção do processo por perda superveniente do
objeto. Note-se que o pedido formulado pela cidadã colombiana
também era de uma sentença que assegurasse a ela o seu direito
fundamental, o direito fundamental de uma única pessoa, Júlia, e não a
proteção de direitos difusos ou coletivos.

Contudo, a Corte Constitucional seguiu outro caminho e superou


essa tradicional causa de extinção do processo sem julgamento do
mérito. Transcrevemos, pela sua pertinência e relevância e para facilitar
a leitura autônoma deste artigo, sem a desnecessária tradução, excerto
do acórdão relatado pelo magistrado Luis Ernesto Vargas Silva:

2. Carencia actual de objeto por daño


consumado. Reiteración de jurisprudencia.
2.1 De acuerdo con la metodología propuesta
para solucionar el caso concreto, a continuación
se abordará el estudio de las principales reglas
que ha fijado la Corte sobre carencia actual de
objeto, específicamente, daño consumado. Este
parece ser un tema ineludible para esta Sala a
partir de la exposición de los hechos reseñados

20 Medicina e direito: dilemas da modernidade


en párrafos anteriores. En el trámite de
instancia, la señora Julia falleció, motivo por el
cual se harán algunas precisiones metodológicas
y argumentativas a fin de proteger el ámbito
objetivo del derecho.
2.2 En este contexto, según lo dispuesto en
el artículo 86 de la Constitución, el objeto de
la acción de tutela consiste en la protección
expedita de los derechos fundamentales,
vulnerados o amenazados por la acción u
omisión de cualquier autoridad pública o de
un particular. En atención a esta norma, la
protección judicial se concreta en una orden
de inmediato cumplimiento para que aquel
respecto de quien se solicita la tutela, actúe o se
abstenga de hacerlo. Ello, con el propósito de
evitar, hacer cesar o reparar la vulneración.
Así, en reiterada jurisprudencia, esta
Corporación ha precisado que la acción de tutela,
en principio, pierde su razón de ser cuando
durante el trámite del proceso, la situación
que genera la amenaza o vulneración de los
derechos fundamentales invocados es superada
o finalmente produce el daño que se pretendía
evitar con la solicitud de amparo. En estos
supuestos, la tutela no es un mecanismo judicial
adecuado pues ante la ausencia de supuestos
fácticos, la decisión que pudiese tomar el juez
en el caso concreto para resolver la pretensión
resultaría, incluso, ineficaz. En efecto, si lo que
el amparo constitucional busca es ordenar a una
autoridad pública o un particular que actúe o
deje de hacerlo, y “previamente al pronunciamiento
del juez de tutela, sucede lo requerido, es claro que se
está frente a un hecho superado, porque desaparece la
vulneración o amenaza de los derechos fundamentales”.
En otras palabras, ya no existirían circunstancias
reales que materializaran la decisión del juez de
tutela.

Conselho Federal de Medicina 21


[…]
2.10 Es por lo anterior que esta Sala considera
que el desconocimiento de la decisión tomada
por la accionante de poner fin a su vida – lo que
en últimas significó imponerle la obligación de
vivir en condiciones que ella valoraba indignas
–, constituye la causa del daño pues si se hubiera
tramitado su petición del acto eutanásico, la
paciente no habría continuado experimentando
el dolor y el sufrimiento que sólo terminó con la
muerte natural. Así las cosas, se ha de concluir
que en el presente caso se configura la carencia
actual de objeto por daño consumado, el cual
se originó en la violación del derecho de la
accionante a decidir cómo y cuándo morir y
se concretó en su imposibilidad de finiquitar
el dolor que experimentaba por medio del
procedimiento que consideraba más adecuado
para el efecto.
Como bien se indicó en la argumentación que
precede a este análisis, la situación descrita, la
cual ha de ser declarada en la parte resolutiva
de la presente sentencia, obliga a la Sala no sólo
a pronunciarse de fondo sobre la vulneración
de derechos fundamentales, sino a adoptar las
medidas necesarias para evitar que situaciones
similares se produzcan en el futuro. Ambas tareas
se llevarán a cabo en seguida. (COLOMBIA,
2014)

12. Precedente argentino de quase perda superveniente


do objeto: o caso M.A.D.

Na Argentina, havia precedentes de ações judiciais com o


mesmo objeto e que foram extintas pela morte do paciente no curso
do processo. No caso do paciente M.A.D., suas irmãs buscaram
autorização judicial para que houvesse suspensão de esforço terapêutico
(“para que se ordenara la supresión de su hidratación y la alimentación

22 Medicina e direito: dilemas da modernidade


enteral, así como de todas las medidas terapéuticas que lo mantienen
con vida en forma artificial”). A decisão da Corte Suprema de Justiça
(CSJ 376/2013), de 7 de julho de 2015, foi favorável ao pedido, que
havia sido negado, originariamente, por um juiz de primeira instância
da província de Neuquén, localizada no noroeste da Patagônia, cuja
capital tem o mesmo nome.

Essa decisão foi mantida pelo Tribunal Superior de Justiça


provincial, equivalente aos tribunais de Justiça dos estados brasileiros,
havendo, então, recurso à Corte Suprema de Justiça da Nação. Não
se tratou de um caso de eutanásia, como amplamente divulgado pela
imprensa local e internacional, mas de ortotanásia, de suspensão de
esforço terapêutico.

As decisões das instâncias anteriores não negaram o direito


à suspensão de tratamentos. Limitaram-se a afirmar que não havia
necessidade de uma ordem judicial porque a questão já estava prevista
na “Lei dos Direitos do Paciente em suas Relações com Profissionais e
Instituições de Saúde (Lei nº 26.529, modificada pela Lei nº 26.742)”.

O Tribunal Superior de Justiça de Neuquén acrescentou que havia


um conflito aparente entre direitos constitucionais – o direito à vida e
o direito à autonomia pessoal – e que a pessoa pode, em determinadas
circunstâncias, adotar decisões que terão como consequência previsível
a sua morte, e que essas decisões estão compreendidas na reserva
constitucional que assegura o direito à autonomia individual.

Destacou que no âmbito dessa reserva constitucional o indivíduo


é dono absoluto de si, e pode fazer escolhas sobre sua própria vida, sem
intromissão do Estado, desde que não afetem a moral, a ordem pública
nem terceiros. Concluiu que são essas decisões livres de cada indivíduo,
que constituem a dignidade da pessoa humana e confirmam o pleno
exercício de sua liberdade, e que a Lei nº 26.529, modificada pela Lei
nº 26.742, garante o gozo do direito à autonomia na etapa final da vida,
direito esse que assegura as alternativas de se aceitar ou de se recusar
determinadas terapias ou procedimentos médicos ou biológicos.

Conselho Federal de Medicina 23


O Tribunal Superior enfatizou, ainda, que a lei exige o
consentimento informado, que deve ser prestado pelo paciente ou seus
representantes legais, quando for o caso, procurando, assim, evitar que
esses assuntos deixem o âmbito íntimo do paciente, de sua família e do
médico assistente e migrem para a esfera judicial.

Consequentemente, o tribunal provincial decidiu que as irmãs


de M.A.D., que eram também suas curadoras, poderiam, com base na
legislação mencionada, firmar o termo de consentimento informado
e requerer à equipe médica a retirada, a interrupção e a abstenção de
hidratação, de alimentação enteral e de qualquer outro suporte vital
usado na manutenção do paciente em estado vegetativo persistente e
irreversível, o que ocorria desde 1994.

A Corte Suprema de Justiça da Argentina, com quórum


composto pelos juízes Ricardo Lorenzetti, Elena Highton de Nolasco
e Juan Carlos Maqueda, seguiu esse mesmo entendimento, mas decidiu
julgar o recurso para reafirmar que não se deve exigir autorização judicial
para convalidar a decisão tomada pelo paciente sobre a continuidade
de tratamentos médicos, na medida em que essa decisão se ajuste
aos requisitos previstos na legislação vigente. Determinou, ainda,
que fossem criados protocolos para, de um lado, assegurar o direito
à objeção de consciência dos profissionais de saúde, especialmente
dos médicos, mas, de outro, impedir que o exercício desse direito se
traduzisse em demora que pudesse comprometer o respeito à vontade
do paciente. A Corte Suprema indicou como solução para esse
possível conflito que o profissional, ao iniciar suas atividades em um
determinado estabelecimento de saúde, informasse, na admissão, sua
objeção para atuar em casos dessa natureza.

Poucas horas após essa decisão, o paciente M.A.D. morreu em


consequência do quadro que o acometia há mais de 20 anos, inferindo-
se que foi mantido vivo, com suporte artificial, para que o processo
não fosse extinto por perda do objeto, o que impediria a manifestação
definitiva da Corte Suprema sobre essa matéria (ARGENTINA, 2015).

24 Medicina e direito: dilemas da modernidade


No Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, em
Brasília, há um precedente muito semelhante, envolvendo interrupção
voluntária da gravidez nos casos de estupro. Temerosos de persecuções
pela prática do crime de aborto, médicos passaram a exigir uma
autorização judicial para o procedimento, mesmo no caso previsto em
lei. Em 1984, o Tribunal decidiu que a autorização era desnecessária:

EMENTA. APELAÇÃO CRIMINAL.


CONHECIMENTO. PEDIDO DE
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA
REALIZAÇÃO DE ABORTO ÉTICO,
HUMANITÁRIO OU SENTIMENTAL.
Não se conhece do pedido uma vez que é
desnecessária autorização judicial para que o
médico o pratique. Cabe aos médicos decidirem,
de acordo com as condições reguladas pelo
Conselho de Medicina, tendo em vista o art. 128
do Código Penal.
(BRASIL, 1984, p. 1)

13. O efeito mootness e a relevância constitucional da


matéria

Após exaurir a discussão sobre a natureza da ação e a perda


superveniente do objeto pela morte do autor, a Suprema Corte sul-
africana discutiu se havia conteúdo constitucional a ser decidido.
Se a resposta fosse positiva, justificaria a remessa dos autos à Corte
Constitucional. Esse debate teve lugar, também, porque o juiz
Hans J. Fabricius, no primeiro parágrafo da sentença, fez expressa
menção à expectativa de julgamento de eventual recurso pela Corte
Constitucional:

Esta é uma ação urgente, que, em minha


opinião, requer uma decisão imediata. Dentro
do limitado tempo do qual dispus, fiz o que
estava ao meu alcance para conceder a ordem,
cujos fundamentos, por escrito, apresentarei o

Conselho Federal de Medicina 25


mais breve possível. Tendo em consideração
o tema, é preferível, e sem nenhuma dúvida
ocorrerá no momento processual oportuno, que
a Corte Constitucional se pronuncie sobre os
relevantes princípios envolvidos na causa. Pelo
menos oito juízes terão tempo suficiente para
considerá-los, ainda mais com a colaboração
de qualificados assessores que se encarregarão
das pesquisas necessárias para a decisão. Um
juiz singular, oficiando em juízo de urgências,
tem desvantagens nesse contexto. Apesar
disso, deve atuar com coragem e firmeza,
independente da matéria que tem em mãos.
O ideal, naturalmente, teria sido o Parlamento
considerar a inteira dimensão do tema e legislar
sobre ele, disponibilizando uma lei para ser
aplicada pelo Poder Judiciário.3

Contudo, a Suprema Corte concluiu que, a partir da perda do


objeto, o processo deixou de ter conteúdo real e passou a ser um
processo abstrato (moot). Ressaltou que, quando da sentença, já não
havia mais a controvérsia originária; não havia mais interesse processual
que justificasse a decisão.

Após definir o conceito de moot case – uma situação que, apesar


de ser uma controvérsia juridicamente possível, é abstrata em termos
fáticos, e portanto não pode ser judicializada, porque não cabe aos
juízes prestar consultoria nem emitir opiniões sobre proposições
fáticas e legais em tese –, o acórdão destacou uma peculidaridade
do efeito mootness, quando a perda do objeto é intercorrente e surge
entre a sentença e o julgamento do recurso. Nessa situação, a Corte

3
No original: “This is an urgent application which in my view requires an immediate decision, and accordingly
in the limited time available to me, I have done everything I could to enable me to make an order and give
written reasons shortly thereafter. Having regard to the topic it will be preferable and, no doubt this will
occur in due course, that the Constitutional Court pronounce on the relevant principles. At least eight Judges
will have sufficient time to consider all relevant aspects and they are also assisted by qualified law clerks who
will do all the necessary research. A single Judge in the Urgent Court is therefore somewhat at a disadvantage
in this context. Nevertheless one must proceed with courage and fortitude no matter what the topic at hand
is. The ideal of course would have been that legislature consider the whole topic and then produce a Bill
which could be subject to the scrutiny of the Courts”.

26 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Constitucional admite julgar o recurso se se tratar de questão com
destacada importância, alta complexidade e relevantes argumentos.

O acórdão indicou exemplos nacionais de processos em


que houve a perda superveniente do objeto e, mesmo assim, foram
julgados pela Corte Constitucional, por entender, no uso do seu
poder discricionário, que havia interesse prático para as partes ou
para terceiros. Ressalvou, entretanto, que neles a decisão de primeira
instância foi substituída ou substancialmente modificada no julgamento
do apelo, tendo a Corte Recursal exercido sua jurisdição ao reconhecer
o relevante interesse público envolvido, afetando questões que, no
futuro, deveriam ser decididas por ela mesma, havendo, por isso, a
necessidade de antecipação do precedente da Corte Constitucional.

O relator destacou, contudo, que o juiz de primeira instância


não tem poderes para julgar questões abstratas e antecipar posições
a serem aplicadas em processos futuros. O seu papel é julgar casos
que apresentem questões vivas, concretas. A expressão live issues, no
original, não decorreu de um trocadilho indelicado para a causa, mas
do esforço para evidenciar os limites de cada instância jurisdicional e a
proibição de se desenvolver precedente, na primeira instância, a partir
de um caso que era ou se tornou abstrato. As observações do relator
adequam-se integralmente ao conceito da ripeness doctrine, do sistema
jurídico dos Estados Unidos (UNITED STATES OF AMERICA,
2001).

No caso de Robert James Stransham-Ford a perda do objeto


foi retroativa, ocorreu antes da sentença, não sendo cabível aplicar
as consequências do efeito mootness, que poderiam levar os recursos à
Corte Constitucional.

14. Considerações bioéticas sobre suicídio e suspensão


de esforço terapêutico

Terminadas as discussões sobre a perda superveniente do


objeto e afastada a relevância para a remessa dos recursos à Corte

Conselho Federal de Medicina 27


Constitucional, a Suprema Corte avançou com considerações teóricas
sobre o conteúdo da ação. Começou por uma referência contida no §
10 da sentença, no qual o juiz afirmou que tanto o suicídio assistido
quanto a eutanásia são ilegais na África do Sul:

10. Current legal position:


Current Law:
The current legal position is that assisted suicide or active
voluntary euthanasia is unlawful.
See: S vs De Bellocq 1975 (3) SA 538 (T) at 539
d; and S vs Marengo 1991 (2) SACR 43 (W) 47
A – B; and Ex parte Minister van Justisie: In re
S vs Grotjohn 1970 (2) SA 355 A.

A partir dessa afirmação, a Suprema Corte repudiou alguns


precedentes invocados no processo, concluindo que nenhum deles
tinha pertinência com o caso. O relator passou à diferenciação
bioética entre o suicídio e a recusa do paciente em aceitar o início
ou a continuidade de tratamentos médicos, lembrando que o
suicídio, tentado ou consumado, não é crime na África do Sul e, por
consequência, o pedido de Robert James Stransham-Ford não visava
isentá-lo, antecipadamente, das consequências de eventual crime de
mão própria, posto que a ação estaria compreendida no seu direito
individual de morrer; o pedido buscava assegurar o direito do paciente
de escolher os meios a serem empregados na sua morte. No caso, a
morte assistida por médico, terceiro não beneficiado pela atipicidade
do suicídio.

O objetivo da ação era esse. Mesmo com rebuscamentos


jurídicos, também comuns na Justiça sul-africana, o que se pretendia era
isentar de responsabilidade civil, penal e disciplinar, antecipadamente,
o médico que participasse do processo terminal, quer ministrando
drogas letais, quer disponibilizando-as para autoaplicação.

A proteção jurídica antecipada para o médico, naquela ação, não


constitui novidade no Brasil. Voltando ao caso da gestante de feto com

28 Medicina e direito: dilemas da modernidade


anencefalia, o que se pediu no Habeas Corpus nº 84.025 foi a proteção da
paciente contra a imputação do crime de aborto – que, diferentemente
do suicídio, é crime praticável pela própria gestante, punido pelo artigo
124 do Código Penal –, e o afastamento da antijuridicidade da conduta
de médicos e demais profissionais assistentes (paramédicos), que, sem
a salvaguarda judicial, seriam responsabilizados pela prática de crime
de aborto com consentimento da gestante, punido pelo artigo 126 do
mesmo Código. Pediu-se ao Supremo Tribunal Federal, em resumo,
um writ of indemnity, uma ordem contra a incidência da lei penal para
pessoas específicas, em um caso concreto. Foi isso o que também pediu
Robert James Stransham-Ford.

O relator, na Suprema Corte sul-africana, citou vários precedentes


locais e internacionais de suspensão de esforço terapêutico, expressão
que compreende tanto a interrupção de tratamentos já iniciados
quanto a não implementação de novos procedimentos. Um desses
precedentes ficou conhecido como “Re Conroy”, da Nova Zelândia,
que concluiu: “Recusar tratamento médico que mantém a própria vida
não é tentativa de suicídio. Essa recusa autoriza a doença a seguir o seu
curso natural, tendo a morte como consequência da enfermidade, e
não de uma autolesão”.4

Essa mesma conclusão, prosseguiu o juiz Malcolm John


David Wallis, é aplicável às cirurgias invasivas, à administração de
medicamentos ou terapias e, ainda, ao uso de aparelhos, como os
respiradores e de nutrição e hidratação artificiais, como consequência
do respeito ao direito à dignidade, previsto na Seção 10, e do direito
à integridade corporal, assegurado pela Seção 10, 2, b da Constituição
sul-africana, que impõe um único requisito: a capacidade jurídica e
mental do paciente.

4
“Re Conroy 486 A.2d 1209 (N.J.S.C. 1985) at 1224. The distinction is possibly a fine one, but it is hard to see
why the refusal of continued treatment is distinguishable from the refusal of treatment in the first place. It
is a different matter whether the disconnection of the ventilator is a cause of death. From the perspective
of the criminal law it will be so, but the question then will be whether it was unlawful. Auckland Area Health
Board v Attorney-General [1993] 1 NZLR 235 (HC) (Auckland Area Health Board) at 248 line 23 – 249 line 38.
This court in S v Williams supra fn 4 held that the act of switching off a ventilator did not interrupt the chain
of causation between the criminal act of shooting the deceased and her death.”

Conselho Federal de Medicina 29


O acórdão citou vários exemplos de familiares que buscaram,
na Justiça, autorização para a suspensão de esforço terapêutico em
favor de pacientes que não tinham mais capacidade para decidir e que
não deixaram, expressamente, diretivas antecipadas de vontade. Citou
o caso Clarke v Hurst NO, da África do Sul, o caso Bland, do Reino
Unido, e os conhecidos casos Cruzan e Quinlan, ambos dos Estados
Unidos.

Acrescentou, com detalhes, um outro precedente da Nova


Zelândia, ocorrido na jurisdição da Secretaria de Saúde de Auckland,
em que o paciente, acometido pela forma mais grave da síndrome de
Guillain-Barré, apesar de manter algumas funções cerebrais, não tinha
mais nenhuma conexão entre elas e o restante do corpo, tornando-se
dependente de um respirador. Apesar da total falta de consciência das
suas circunstâncias e de sentimento de si, não havia diagnóstico de
morte cerebral, sendo necessária uma ordem judicial para pôr fim à
obstinação terapêutica. A Justiça determinou a remoção do respirador,
declarando que essa decisão não atentava contra o Código Penal e não
tipificava crime de homicídio.

Casos como esses, reafirmou o relator, também não seriam


considerados crimes na África do Sul, onde é lícita a suspensão de
tratamentos ou outras formas de intervenção médica que não têm
finalidades terapêuticas nem paliativas, não havendo necessidade de
intervenção judicial. A decisão é tomada pelos médicos, em conjunto
com a família ou outras pessoas responsáveis pelo paciente. Havendo
divergências de opiniões ou incertezas sobre a conduta a ser tomada,
é recomendável uma ordem judicial, como ocorreu no caso Clarke v
Hurst NO, já mencionado.

Também não há crime quando o médico prescreve, como


tratamento paliativo, analgésicos que, sabidamente, reduzem o tempo
de vida. Conhecido como “duplo efeito”, essas drogas têm indicação
para tratamento do quadro, mas apresentam, como efeito colateral,
detrimento à vida. No precedente Clarke v Hurst NO, foi feita remissão

30 Medicina e direito: dilemas da modernidade


a uma citação contida no caso R v Adams: “Mesmo quando não for
possível restaurar a saúde, que é a primeira proposta da medicina, ainda
há muito a ser feito pelo médico, como tomar medidas indicadas e
necessárias para aliviar a dor e o sofrimento, ainda que elas possam,
incidentalmente, abreviar a vida do paciente”.

O acórdão sinalizou alternativas para médicos e pacientes


com sofrimento intolerável, cuja assistência não deve resultar em
intermináveis tratamentos, sem qualquer propósito, ou na manutenção
da vida como um processo puramente mecânico e artificial. Nesse
ponto, o relator passou a defender os cuidados paliativos, concluindo,
contudo, que essas disposições não se aplicavam a Robert James
Stransham-Ford, no seu fim de vida, sem justificar as razões dessa
inexorável exclusão.

Relembramos, para complementar essas referências do acórdão,


dois processos recentes do Reino Unido, o primeiro de Londres, de
abril de 2017; o segundo, de Liverpool, de 2018, em que os hospitais
buscaram ordens judicias para a suspensão de esforço terapêutico ante
a divergência de opiniões entre médicos e pais das respectivas crianças,
ambas com o mesmo quadro neurodegenerativo: o caso Charlie Gard
(Great Ormond Street Hospital v Constance Yates, Chris Gard e
Charles Gard, menor representado por curador judicial) (UNITED
KINGDOM, 2017); e o caso Alfie Evans (Alder Hey Children’s NHS
Foundation Trust v Thomas Evans, Kate James e Alfie Evans, também
representado por curador judicial) (UNITED KINGDOM, 2018).

15. A suspensão de esforço terapêutico no Brasil

No Brasil, também não é crime a suspensão de esforço


terapêutico. A terminalidade da vida já constou de vários anteprojetos
de lei, tanto da Câmara dos Deputados quanto do Senado Federal. Mas
imprecisões técnicas, confusio linguarum e oposições religiosas, filosóficas,
morais e de ordem variada impediram uma solução humanizada para
o fim da vida humana. Não custa anotar que a Lei nº 11.794, de 8 de

Conselho Federal de Medicina 31


outubro de 2008, que regulamentou o inciso VII do § 1º do artigo
225 da Constituição Federal, estabelece que os animais têm direito
à eutanásia, à morte por meios humanitários, definida nos seguintes
termos: “Art. 3º Para as finalidades desta Lei entende-se por: […] IV
– morte por meios humanitários: a morte de um animal em condições que
envolvam, segundo as espécies, um mínimo de sofrimento físico ou
mental”.

Leis estaduais, distrital e municipais trataram da suspensão


de esforço terapêutico, com textos semelhantes, inspirados pela Lei
dos Direitos dos Usuários dos Serviços de Saúde do Estado de São
Paulo (Lei nº 10.241/1999), conhecida como “Lei Mário Covas”, que
assegura em seu artigo 2º: “São direitos dos usuários dos serviços de
saúde no Estado de São Paulo: XXIII – recusar tratamentos dolorosos
ou extraordinários para tentar prolongar a vida”.5 No entanto, essas leis
tiveram pouca efetividade (RIBEIRO, 2010).

Nesse contexto, o Conselho Federal de Medicina assumiu


como prioridade ética para o exercício profissional a regulamentação
da suspensão de esforço terapêutico, editando, em 9 de novembro de
2006, a Resolução CFM nº 1.805/2006, assim resumida:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou


suspender procedimentos e tratamentos que
prolonguem a vida do doente em fase terminal,
de enfermidade grave e incurável, respeitada a
vontade da pessoa ou de seu representante legal.
Art. 2º O doente continuará a receber todos os
cuidados necessários para aliviar os sintomas que
levam ao sofrimento, assegurada a assistência
integral, o conforto físico, psíquico, social e
espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da

5
Distrito Federal, Lei nº 2.804, de 25/10/2001; Estado de Pernambuco, Lei nº 12.770, de 08/03/2005;
Estado de Roraima, Lei nº 687, de 17/10/2008; Estado do Mato Grosso, Lei Complementar nº 283, de
09/10/2007; Estado do Rio de Janeiro, Lei nº 3.613, de 25/10/2001; Município de Belo Horizonte, Lei nº
8.926, de 02/08/2004; Município de Marília, Lei nº 5.280, de 13/09/2002; Município de São Paulo, Lei nº
14.413, de 31/05/2007.

32 Medicina e direito: dilemas da modernidade


alta hospitalar. (CONSELHO FEDERAL DE
MEDICINA – CFM, 2006)

O processo de elaboração dessa resolução durou mais de


dois anos, iniciando-se pela disponibilização pública do anteprojeto
e terminando com uma série de conferências de profissionais da
medicina e de diversas outras áreas, como bioética, direito, filosofia e
religião.

Em 9 de maio de 2007, o então procurador regional dos


Direitos do Cidadão no Distrito Federal ajuizou ação civil pública
contra o Conselho Federal de Medicina, requerendo a revogação
dessa resolução. Em 23 de outubro de 2007 o juiz federal da 14ª Vara
Federal do Distrito Federal concedeu antecipação de tutela (liminar) e
suspendeu os seus efeitos. A ação foi processada regularmente e, ao final,
o próprio Ministério Público Federal, representado pela procuradora da
República Luciana Loureiro Oliveira, concluiu que havia equívoco na
proposição inicial e que:

(1) O Conselho Federal de Medicina tinha competência para


editar a Resolução CFM nº 1.805/2006, que não versa sobre
direito penal e, sim, sobre ética médica e as consequências
disciplinares ante a sua inobservância;

(2) A ortotanásia não constitui crime de homicídio, interpretando-


se o Código Penal à luz da Constituição Federal;

(3) A Resolução CFM nº 1.805/2006 não determinou


modificações significativas no dia a dia dos médicos que lidam
com pacientes terminais; não gerou, portanto, os efeitos danosos
propugnados na inicial da ação civil pública;

(4) A Resolução CFM nº 1.805/2006 incentiva os médicos a


descreverem, exatamente, os procedimentos que adotam e os
que deixam de adotar, em relação a pacientes terminais, de
modo a permitir mais transparência quanto aos procedimentos
adotados e a possibilitar maior controle da atividade médica.

Conselho Federal de Medicina 33


Em 1º de dezembro de 2010, o juiz federal da 14ª Vara, Roberto
Luís Luchi Demo, o mesmo que havia concedido a liminar, julgou
improcedente a ação civil pública e revogou a antecipação de tutela. A
sentença transitou em julgado; a Resolução CFM nº 1.805/2006 está
em vigor e constitui o marco jurídico do direito a uma morte digna no
Brasil.

Ao contrário do processo de Robert James Stransham-Ford,


cuja sentença de primeira instância assegurou direitos individuais, essa
decisão da Justiça Federal assegurou o direito a uma morte digna a
todos os cidadãos que a demandarem como prerrogativa de não
serem submetidos a esforço terapêutico. É o chamado efeito erga omnes
nacional, que decorre da natureza jurídica do Conselho Federal de
Medicina, uma autarquia pública especial que tem competência para
regular o exercício da medicina no país (CFM, 2010).

O Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931, de 17 de


setembro de 2009) repetiu, no parágrafo único do artigo 41, o teor
da Resolução CFM nº 1.805/2006 (CFM, 2006). E igual caminho
foi cumprido quando o Conselho Federal de Medicina aprovou a
Resolução CFM nº 1.995/2012, que instituiu as diretivas antecipadas de
vontade, definidas como o conjunto de desejos, prévia e expressamente
manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer ou
não receber no momento em que estiver incapacitado de expressar,
livre e autonomamente, sua vontade. O Ministério Público Federal
em Goiás ajuizou ação civil pública impugnando essa resolução. O
Poder Judiciário Federal decidiu que não havia qualquer ilegalidade ou
inconstitucionalidade na norma (CFM, 2012).

16. Considerações sobre eutanásia e suicídio assistido no


direito comparado

O próximo capítulo do acórdão da Suprema Corte sul-africana


foi dedicado ao suicídio assistido e à eutanásia, no país e no direito
comparado. Há destaque expresso aos países do Benelux (Bélgica,

34 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Holanda e Luxemburgo) e ao Canadá,6 que autorizam a eutanásia, com
ressalva do relator de que esses exemplos não eram exaustivos. Por isso,
acreditamos, não houve menção à Colômbia, que teve o primeiro caso
de eutanásia na América do Sul em 4 de julho de 2015 (caso Ovidio
González), quase um ano e meio antes do julgamento que deu origem
ao acórdão em análise, de novembro de 2016.

Além de questões pontuais, como a admissão da eutanásia


para crianças, autorizada na Bélgica (e também na Colômbia), e para
doentes com enfermidades incuráveis ou sofrimento psicológico, na
Holanda, que foram as últimas mudanças relevantes no panorama
mundial, o relator analisou sistemas jurídicos que autorizam o suicídio
assistido, como a Suíça, os estados do Oregon (1997), Washington
(2008), Vermont (2013), Califórnia (2015) e Colorado (2016),7 nos
Estados Unidos, observando que na Holanda, Canadá, Colômbia e no
estado americano de Montana (2009) a autorização originária foi dada
pelos tribunais, e não pelo Parlamento. Ao concluir essa abordagem
comparada, o relator tratou de algumas especificidades desses sistemas,
como na Suíça, onde o paciente precisa estar apto à autoaplicação da
medicação letal.

17. Críticas ao juiz e às partes

Encerrada a fundamentação com base no direito comparado, o


relator retomou a discussão interna do caso Robert James Stransham-
Ford, ficando evidente o seu desconforto com a sentença do juiz Hans
J. Fabricius, a quem fez inúmeras críticas, uma delas sobre a proibição,
no sistema do common law, de se desenvolver – o verbo é esse – solução
para casos individuais, o que não foi observado pelo magistrado. O
desenvolvimento do sistema é feito para a sociedade e não pode ter por

6
O Canadá passou a permitir, em 17 de junho de 2016, com alterações no Código Penal, tanto o suicídio
quanto a eutanásia medicamente assistidos.
7
A lei do estado do Colorado, que trata das opções para o fim da vida com dignidade, entrou em vigência
em 16 de dezembro de 2016, após a decisão da SCA. Mas os debates, inclusive com referendo popular,
iniciaram-se em 2015.

Conselho Federal de Medicina 35


destinatária pessoa determinada. Nesse ponto, o acórdão destaca que,
ao desenvolver o common law, há incoerência na sentença porque ela
deixa expresso que a ordem não é extensiva a qualquer outra situação,
mas tão somente aos médicos e demais envolvidos na assistência à
morte do paciente Robert James Stransham-Ford, como consta do § 4º
do dispositivo da decisão: “Salvo neste caso concreto e na forma acima
determinada, os crimes de homicídio doloso e de homicídio culposo,
no contexto do suicídio medicamente assistido, continuam proibidos
pela legislação vigente”.8

Os próximos capítulos do acórdão trazem redundâncias do


conteúdo já analisado, com críticas mais incisivas à própria ação. O
relator afirmou, por exemplo, que a Dignity South Africa estava, na
verdade, litigando em causa própria e não no interesse de Robert James
Stransham-Ford ou do seu espólio. Registrou que a organização havia
feito uma campanha na internet para arrecadar fundos (crowdfunding)
para financiar sua atuação e que já havia patrocinado outro caso
semelhante, em novembro de 2014. Com o suicídio – sem assistência –
desse primeiro paciente, em janeiro de 2015, iniciou, dois meses após,
as tratativas para a ação de Robert James Stransham-Ford. Sem meias
palavras, o relator insinua, literalmente, que a Dignity tinha interesses
escusos no processo.

Na mesma linha de críticas, tratou como exíguo o prazo de 13


dias que decorreu entre o ajuizamento da ação e a sentença; ressaltou
que as decisões judiciais dilatórias não são recomendáveis, mas nos
temas de grande relevância não devem ser tomadas de maneira açodada,
sem uma adequada reflexão e fundamentação, como ocorreu no caso.

Ao afirmar que a urgência não pode vencer a relevância, o relator


citou como paradigma de um processo bem instruído e bem julgado
o caso Seales, outra referência da Nova Zelândia, em que a ação foi
proposta em 20 de março de 2015, quando a paciente, Lecretia Seales,
uma advogada de 42 anos, de Wellington, tinha entre 3 e 18 meses

8
No original: “Except as stipulated above, the common law crimes of murder and culpable homicide in the
context of assisted suicide by medical practitioners are not affected”.

36 Medicina e direito: dilemas da modernidade


de expectativa de vida. Mesmo com a deterioração rápida das suas
condições gerais, a paciente, com um tumor cerebral diagnosticado em
2011, foi ouvida dois meses depois, durante a instrução que se deu
entre os dias 25 e 27 de maio de 2015, sendo informada em 2 de junho
da conclusão do juiz, cuja sentença, negando os pedidos, foi publicada
em 4 de junho de 2015. Por coincidência, a paciente morreu no dia
seguinte, 5 de junho, de causas naturais.

Nesse processo, destacou o relator, havia 36 testemunhas e 51


depoimentos; foram feitos estudos sobre o tema em vários países,
não se comparando a consistência do processo neozelandês com a
superficialidade da sentença do juiz Hans J. Fabricius.

O acórdão prosseguiu analisando os fatos, o que não deixa de ser


contraditório, porque já estava decidido que houve perda do objeto. Na
prática forense, essa perda leva à extinção do processo. Nessa análise
final, o relator concluiu que o paciente não teve morte indigna, nem
passou por uma experiência tenebrosa, que era o que ele temia quando
ajuizou a ação. E levantou dúvidas se Robert James Stransham-Ford
queria, efetivamente, auxílio médico para morrer.

No § 89 do acórdão o relator apresentou dúvidas sobre, afinal, o


que se pretendia com a ação e quem estava por trás dela:

Não há nem paciente nem médico, perante


esta corte, procurando alívio. Na verdade, é
um tanto quanto misterioso saber quem está,
neste estágio, perante esta corte. O espólio não
tem interesse legal na matéria, e como todas as
declarações juntadas e todos os requerimentos
para ter acesso aos autos ou para ser admitido
como amicus curiae foram apresentados pela
dra. Buitendag, a advogada que lidou com essa
matéria o tempo todo, não podemos identificar,
através do litigante ostensivo, quem é a parte
real deste processo.9

9
No original: “So there is neither a patient nor a doctor before the court seeking relief. Indeed precisely who

Conselho Federal de Medicina 37


18. O subdesenvolvimento: óbice para a prevalência da
sentença

O acórdão apresentou, quase no epílogo, o óbice do


subdesenvolvimento do sistema de saúde local, que não permitiria que
soluções encontradas em estados americanos, no Canadá e em países
europeus – mas sem menção à Colômbia – fossem aplicadas na África
do Sul, um país com desafios diários e disparidades no acesso à saúde e
aos recursos em geral. Decisões burocráticas ou idealistas, tomadas em
gabinetes judiciais, afirmou o relator, não levam em conta as condições
práticas e operacionais do país, sendo uma ameaça à população permitir
o suicídio e a eutanásia medicamente assistidos.

Essa posição foi reforçada pelas declarações de uma assistente


social do Conselho de Profissões de Saúde, lotada em um hospital
universitário de Soweto, especializado em cuidados paliativos para
pacientes com HIV/aids, tuberculose e câncer. Ela afirmou que, na
cultura sul-africana, cuidar dos idosos e dos doentes é um dever da
família e da comunidade próxima. A vida é considerada uma dádiva a
ser preservada com atitudes comunitárias. Nesse contexto cultural, o
suicídio é uma prática estranha, de forma que autorizá-lo, bem como
autorizar a eutanásia, com assistência médica, seria uma ameaça real,
tendo em conta essas cincunstâncias socioeconômicas.

19. Conclusão

O relator concluiu que a decisão recorrida seria aplicada em


um país com grandes diferenças sociais, que incluem desde subúrbios,
assentamentos informais e cidades superpovoadas até vastas áreas
rurais, podendo, como consequência, valorizar ou menosprezar o
direito à vida. Por essas razões, a noção de morte digna deveria ser

is before the court at this stage is something of a mystery. The estate has no legal interest in the matter and as
the affidavits in all the motions to secure access to evidence and to be admitted as amici were deposed to by
Ms Buitendag, the attorney who has been handling the matter at all times, we cannot penetrate behind the
ostensible litigant to identify the real party pursuing the case” (destaque da transcrição).

38 Medicina e direito: dilemas da modernidade


debatida com toda a sociedade, e não apenas com um segmento dela.
“Isso não foi feito neste caso, e não poderia ter sido feito ante as
inadequações da prova e o açodamento da sentença proferida.”

Ao fim do fim, afirmou que questões morais não devem ser


resolvidas pelos juízes, mas pelo Parlamento, com a aprovação de leis
específicas sobre elas. A sentença do juiz Hans J. Fabricius foi cassada,
e o espólio de Robert James Stransham-Ford condenado a pagar as
custas processuais.

20. Post scriptum

Este artigo foi concluído, originariamente, em 30 de abril de


2018, terceiro aniversário da morte de Robert James Stransham-Ford.
Nesse mesmo dia, David Goodall, de 104 anos, o cientista mais velho
da Austrália e um dos mais notáveis ecologistas do país, anunciou
que viajaria, no início de maio, à Suíça, para encerrar sua vida. David
Goodall não tinha doença incurável em fase terminal, mas alegava que
sua qualidade de vida estava muito deteriorada: “Estou infeliz. Quero
morrer. Isso não é particularmente triste. O que é triste é ser impedido
de fazê-lo. Sinto que uma pessoa velha como eu deve ter plenos direitos
de cidadania, incluindo o direito ao suicídio assistido”, completou.

O suicídio assistido ainda era totalmente proibido na Austrália.


Em 2017, foi legalizado no estado de Victoria; a nova lei entrou em
vigor em junho de 2019, mas contempla apenas os pacientes capazes,
com doença incurável, em fase terminal, com expectativa de vida de
menos de seis meses (DAVID, 2018).

David Goodall morreu em 10 de maio de 2018, quinta-feira, às


12h30, na Basileia, Suíça, ao som da Nona Sinfonia de Beethoven. Fez
a última ceia com familiares: peixe com batatas; de sobremesa, comeu
cheesecake, seus pratos preferidos. Ele mesmo abriu a válvula para a
injeção da droga (Nembutal: pentobarbital de sódio), um barbitúrico/
sedativo muito potente que, em doses elevadas, paralisa os batimentos

Conselho Federal de Medicina 39


cardíacos. Suas últimas palavras foram: – Isso está terrivelmente
demorado! (“This is taking an awful long time!”). A morte ocorreu em
dois minutos.

O suicídio assistido (ou morte voluntária assistida, como também


é conhecida essa prática), contou com a assistência das fundações
Exit International e Eternal Spirit, ambas da Suíça. O médico Philip
Nitschke, da Fundação Exit, prestou as informações sobre os últimos
instantes do professor australiano acima transcritas (104-YEAR-OLD,
2018).

Referências

104-YEAR-OLD Australian scientist dies after flying to Switzerland to end


his life. The Telegraph, London, 10 maio 2018. Disponível em: https://www.
telegraph.co.uk/news/2018/05/10/australias-oldest-scientist-104-dies-
flying-switzerland-end/. Acesso em: 6 maio 2019.

ARGENTINA. Suprema Corte de Justicia de la Nación. Proceso CSJ 376/2013


(49-D)/CS1. D.M.A. s/ declaración de incapacidad. Buenos Aires: Corte Suprema
de Justicia de la Nación, 2015. Disponível em: http://www.cij.gov.ar/nota-
16952-La-Corte-Suprema-reconoci--el-derecho-de-todo-paciente-a-decidir-
su-muerte-digna.html. Acesso em: 7 maio 2019.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Apelação


Criminal nº APR-661083/DF. Relator: Des. Lúcio Arantes, 20 set. 1984.
Diário da Justiça, Brasília, DF, p. 1, 20 set. 1984.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 84.025/DF. Relator:


Min. Joaquim Barbosa, 4 mar. 2004. Diário da Justiça, Brasília, DF, p. 4, 25 jun.
2004.

COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-970/14. Bogotá, DC: Corte


Constitucional, 2014. Disponível em: http://www.corteconstitucional.gov.
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CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 1.805, de 9


de novembro de 2006. Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis
[…]. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, 2006. Disponível em:

40 Medicina e direito: dilemas da modernidade


https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2006/1805.
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de 2009. Código de Ética Médica. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, 2010.
Disponível em: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content
&view=category&id=9&Itemid=122. Acesso em: 19 jan. 2018.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 1.995, de 9


de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade. Brasília,
DF: Conselho Federal de Medicina, 2012. Disponível em: https://sistemas.
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DAVID Goodall: 104-year-old scientist to end own life in Switzerland. The


Guardian, London, 30 abr. 2018. Disponível em: https://www.theguardian.
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NETO, J. C. A Corte Constitucional sul-africana e os direitos fundamentais:


um paradigma a ser seguido? Observatório da Jurisdição Constitucional, Brasília,
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RIBEIRO, D. C. Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte.


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UNITED KINGDOM. High Court of Justice Family Division. Case nº


FD17P00103. London: British and Irish Legal Information Institute, 2018.
Disponível em: http://www.bailii.org/ew/cases/EWHC/Fam/2018/953.
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Conselho Federal de Medicina 41


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v. Gardner, 387 U.S. 136 (1967). Washington, DC: US Supreme Court, 2001.
Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/387/136/
case.html. Acesso em: 30 abr. 2018.

42 Medicina e direito: dilemas da modernidade


A REJEIÇÃO DOS QUATRO PROJETOS DE LEGALIZAÇÃO
DA EUTANÁSIA EM PORTUGAL: O DEBATE TERMINOU OU
APENAS COMEÇOU?

Germano Marques da Silva


Professor catedrático da Faculdade de Direito da
Universidade Católica Portuguesa.

1. Introdução

O tema que me foi proposto para esta comunicação ao


Congresso1 não implica forçosamente que tome posição sobre o tema
da eutanásia e os projetos de legalização rejeitados pelo Parlamento
português em maio deste ano. É inevitável que o faça, porém, por
muito que me esforce por ser objetivo. Até porque, na interpretação e
proposição de qualquer norma de conduta há sempre uma componente
subjetiva do intérprete, tanto mais tratando-se de questões muito
sensíveis e com uma vertente ética essencial. Nestas questões, o perigo
vem dos neutros, não dos que tomam partido na discussão, sobretudo
se são penalistas. Porque o penalista não pode ter um papel de mero
intérprete do direito positivo; deve esforçar-se por abrir novas vias
de reflexão, por descobrir sinais de novos sentidos a partir do direito
positivo para tornar o mundo que o rodeia humanamente vivível (COSTA,
2005, p. 153). Fica o alerta.

Devo, por questão de lealdade, anunciar desde já que a minha


posição é contrária à eutanásia por razões morais, éticas, religiosas
e sobretudo sociais, mas que também entendo que, num Estado de
direito democrático, a consagração legal da eutanásia é pura questão de
tempo e de aprofundamento e enraizamento na comunidade dos ideais
e princípios democráticos. De qualquer modo, para lá dos argumentos,

1
Este texto foi originalmente apresentado no VIII Congresso Brasileiro de Direito Médico, realizado em
Brasília (DF) no dia 30 de agosto de 2018.

Conselho Federal de Medicina 43


sobretudo de natureza social, que a meu ver justificam a rejeição dos
projetos submetidos ao Parlamento português, considero que os
projetos de lei que estavam em discussão eram tecnicamente muito
maus, demasiado maus para serem aprovados. Mas foi por pouco que
não o foram!

O desafio principal que me é posto consiste em responder à


questão: o debate terminou ou apenas começou? Deixo a resposta para o fim,
mas avanço desde já que não começou nem terminou, está em curso.
Aliás, logo no dia da rejeição dos quatro projetos sobre a legalização
da eutanásia pelo Parlamento português, a deputada Maria Antónia
Almeida Santos, uma das subscritoras de um dos projetos e porta-
voz do Partido Socialista português, o partido do governo, declarou
que “na próxima legislatura estaremos todos com certeza ainda mais
conscientes de que temos de discutir e que temos de votar” (PSF
ADMITE…, 2018) – pela legalização, era pressuposto. Recordo-lhes
só que o projeto do Partido Socialista foi rejeitado por uma diferença
de apenas cinco votos: 110 a favor e 115 contra, sendo só 129 os
deputados chamados a votar.

O tema da legalização da eutanásia em Portugal não é de hoje,


embora a composição política da Assembleia da República, com uma
maioria de esquerda, tenha proporcionado condições de especial
oportunidade para a abertura do debate político. É significativo que
os quatro projetos apresentados na Assembleia tenham tido como
proponentes o Partido Socialista (PS), o Bloco de Esquerda (BE), o
Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e o Partido Ecologista os Verdes
(PEV), e que todos invoquem simplesmente como justificação
essencial a liberdade de cada um, liberdade de escolher como viver e
como morrer. Mas, se os projetos de despenalização da morte assistida
foram apresentados por partidos da esquerda parlamentar, não deixa
de ser relevante que o presidente do principal partido da oposição, o
Partido Social Democrata (PSD), que se posiciona ao centro do espetro
político português, tenha tomado posição pública pela legalização da
eutanásia, embora dando liberdade de voto aos deputados do partido.

44 Medicina e direito: dilemas da modernidade


O mais significativo, porém, ou pelo menos mais interessante
neste debate – e digo mais significativo e interessante simplesmente
em razão da fundamentação apresentada – foi o voto contra do Partido
Comunista Português (PCP) (2018), segundo o qual:

A vida não é digna apenas quando (e enquanto)


pode ser vivida no uso pleno das capacidades e
faculdades físicas e mentais e a sociedade deve
assegurar condições para uma vida digna em
todas as fases do percurso humano. […] O que se
impõe é que o avanço e progresso civilizacionais
e o aumento da esperança de vida decorrente
da evolução científica sejam convocados para
garantir uma vida com condições materiais
dignas em todas as suas fases.

Com esta fundamentação, o PCP respondeu aos argumentos


não só dos subscritores dos projetos submetidos ao Parlamento, mas
também pôs em sentido os opositores à sua aprovação, afirmando
a dignidade da pessoa humana em todas as suas fases, na vida e na
morte, afastando qualquer ideia do utilitarismo social em seu abono e
sobretudo vincando que a liberdade não é apenas formal: só criando
condições para uma vida digna em todas as fases do percurso da vida
humana se poderá depois falar em liberdade de escolher o fim da vida,
o momento da morte.

Importa salientar desde já que a discussão no Parlamento –


e fora dele, ainda que o assunto não tenha merecido aprofundada
discussão na sociedade, e por isso a crítica sobre a falta de discussão
e esclarecimento dos cidadãos2 a justificar alguns dos votos contra os
projetos – ultrapassou os limites ideológicos da “esquerda” e “direita”,
embora alguns tenham pretendido que se tratasse de uma luta entre
“conservadores” e “liberais”, como penso resultar claramente do
bem fundamentado voto de rejeição do PCP e dos votos dispersos de
2
No parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (2018, p. 7) aponta-se para a falta de
discussão aprofundada sobre a questão: “Melhorar a informação e a capacidade dos cidadãos para formar
opinião e tomar posição própria sobre as decisões em final de vida, nas quais se projecta incluir a decisão de
pedir a morte, exige um debate sério, livre, clarividente e informado”.

Conselho Federal de Medicina 45


alguns deputados que votaram contra a orientação dos seus partidos.
“A tendência maniqueísta de tudo arrumar em categorias herméticas e
irrevogavelmente separadas gera um mundo irreal” (COSTA, 2018) e
compromete a clareza da discussão.

A problemática é complexa e não se reduz à simples questão


“a favor ou contra a eutanásia”. Bem pelo contrário, trata-se de criar
uma regra geral e abstrata suscetível de ter em conta as particularidades
de cada caso particular. Talvez seja bom recordar que o uso do termo
“eutanásia” no domínio da medicina remonta ao princípio do século
XVII, na obra de Francis Bacon (LETELLIER, 2003, p. 14), filósofo
empirista e um dos criadores da ciência moderna, que preconizava já
então que o trabalho do médico não consistia somente em tratar o
doente, mas igualmente procurar proporcionar-lhe uma morte doce,
na ausência de esperança de cura. E recordemos também que o
empirismo consiste em uma teoria epistemológica que indica que todo
o conhecimento é fruto da experiência e, por isso, uma consequência
dos sentidos. A experiência estabelece o valor, a origem e os limites do
conhecimento, donde uma moral pragmática e utilitarista. Voltaremos
à questão a propósito do ato médico.

Permitam-me ainda, à guisa de introdução, um breve excurso


sobre o tema da morte provocada, recordando o conto “O Alma-
Grande”, também conhecido pelo título de “O Abafador”, de Miguel
Torga (Novos contos da montanha), escritor português do século passado
e médico. Nas discussões sobre a eutanásia é frequente o apelo a este
conto, vendo nele, porém, intencionalidades diversas.

Os defensores da eutanásia a interpretam no conto como um


ato de compaixão, para acabar com o sofrimento do doente em agonia,
preconizando um tratamento da eutanásia ativa direta mais favorável
do que o que já estabelece o Código Penal português, que a considera
homicídio a pedido da vítima. Por outro lado, os adversários da
eutanásia invocam o conto de Torga para justificar que até ao último
momento de vida há sempre uma esperança: a presença inesperada de
Isaac, o filho do moribundo, desencorajando o Alma-Grande de abafar
o seu pai, salvando-lhe a vida que todos os familiares consideravam já

46 Medicina e direito: dilemas da modernidade


fatal. Há sempre uma esperança. Ou seja, equiparando a eutanásia a um
assassinato. E por isso, mais tarde, Isaac mata o Abafador, vingando
todos quantos tinham sido mortos, abafados, contra a sua vontade, só
porque eram velhos e doentes.

Mas há outra interpretação da moral da história: o repúdio à


eutanásia involuntária. Tratava-se de evitar que o moribundo, que
era cristão novo, pudesse, à hora da morte, denunciar ao padre ou ao
médico que afinal a sua “conversão” fora fictícia, pondo assim em
causa também a família ou a comunidade “convertida”. Era o interesse
coletivo daquela comunidade a justificar a morte de um dos seus. Não se
tratava, pois, de ato de compaixão para com o doente agonizante, mas
um puro homicídio justificado pelo interesse coletivo, para proteção
da própria comunidade, embora a motivação fosse disfarçada por um
exterior e formal ato de compaixão. Era aquilo a que agora se chama
“eutanásia involuntária”, ditada por um qualquer utilitarismo social. E
porque a eutanásia involuntária é crime, a vingança de Isaac, matando
o Alma-Grande, o Abafador.

O conto de Miguel Torga, que abria à discussão o tema da


eutanásia, foi publicado em 1941, em plena ditadura em Portugal e
no decurso da Segunda Guerra Mundial. O livro foi imediatamente
apreendido pela censura, mas continuou a circular no Brasil, onde,
aliás, foi primeiramente publicado.

2. Os projetos de lei votados em maio de 2018 pela


Assembleia da República

Todos os projetos submetidos a votação tinham por objeto a


eutanásia voluntária, a pedido do doente; eram limitados no seu âmbito
e com muitas condicionantes. A eutanásia só poderia ser pedida pelo
próprio paciente, maior de 18 anos, sem doenças mentais, em situação
de sofrimento e com doença incurável, através de um médico e com
salvaguarda da avaliação por comissões técnicas, sendo necessário
confirmar várias vezes essa vontade. Na motivação dos quatro projetos

Conselho Federal de Medicina 47


(do PAN, BE, PS e PEV) o mesmo fundamento: mero exercício de
liberdade e autonomia individual.

A título de exemplo, no projeto do PS a condição para pedir


a antecipação da morte é “uma decisão da própria pessoa, maior,
em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença
incurável e fatal”. Fundamento: a autonomia da pessoa para fazer livre
e esclarecidamente as suas escolhas pessoais.

Todos os projetos de lei, sem exceção, têm um âmbito de


permissão muito circunscrito a situações terminais, de doença incurável
e fatal. Daí que, com razão, se deva dizer de todos e cada um dos
projetos que não se trata propriamente da consagração de um direito
a morrer em razão da liberdade e autonomia de cada um e de exigir
de um terceiro a provocação da morte,3 mas tão só da possibilidade de
disposição da própria vida em circunstâncias de sofrimento intolerável,
ou seja, o respeito da autonomia individual aceitando que a pessoa deve
ter um espaço de liberdade para decidir quanto à sua própria morte
em situações-limite. O que se propunha, verdadeiramente, era que o
auxílio médico à morte, pedido livremente por uma pessoa em situação
de doença incurável e fatal, em sofrimento duradouro e insuportável,
não fosse criminalizado como homicídio ou ajuda ao suicídio. Tratava-
se, no fundo, de aprofundar a regulamentação dos homicídios por
compaixão e a pedido da vítima, previstos nos artigos 133 e 134 do
Código Penal português.

Como referido, a fundamentação comum a todos os projetos


era o exercício de liberdade e autonomia individual, equiparando
axiológica e normativamente a autolesão à heterolesão consentida,
considerando que as duas são apenas formas diferentes de expressão
da autonomia do portador do bem jurídico. A doutrina maioritária vai,
porém, no sentido da descontinuidade, acentuando que a diferença não

3
Caso em que seria previsível o alargamento dos pressupostos do direito de exigir de terceiro que lhe cause
a morte, por exemplo, por a pessoa simplesmente estar farta de viver. É a problemática da denominada
“ladeira sucessiva”, ou “passos sucessivos”, em que progressivamente se vão alargando as permissões de
causar o evento.

48 Medicina e direito: dilemas da modernidade


radica na pessoa do portador do bem jurídico, mas no do terceiro que,
de forma ativa, atinge o portador do bem jurídico.4 Por isso que na
proibição da eutanásia avulta o propósito, “no plano político-criminal
e axiológico-material”, “de não abrir brechas na proteção penal da vida
humana, em torno da qual o direito (penal) deve erigir um verdadeiro
tabu” (ANDRADE, 2012, p. 59). Ajuntam-se argumentos de natureza
pragmática: o perigo de “um consentimento apressado ou influenciado
por perturbações psíquicas não conhecidas, que pode provocar
danos irreparáveis, e as dificuldades de prova do consentimento”
(ANDRADE, 2012), e motivações laterais, como o desespero por
falta de condições de vida digna.5 E acrescenta-se também o perigo
dos “passos sucessivos”, ou seja, que a legalização abra a porta ao
alargamento dos pressupostos da eutanásia.

3. Os antecedentes

A discussão pública em Portugal sobre a legalização da eutanásia


não é de agora; vem pelo menos desde os anos 80 do século passado,
na sequência da Declaração sobre a Eutanásia da Congregação para a
Doutrina da Fé, e foi suscitada numa entrevista de um médico legista, o
professor Pinto da Costa, ao tempo presidente do Instituto de Medicina
Legal do Porto, que reconheceu existir, cada vez mais, tendência para
aceitar a eutanásia voluntária. Esta declaração originou viva polémica,
envolvendo sobretudo a Igreja Católica, as organizações que lhe são
próximas e a Ordem dos Médicos, todas a repudiarem a legalização
da eutanásia, embora com argumentos diversos, em posição que ainda
agora mantêm.

A Igreja Católica a permanecer fiel à sua doutrina, de que, sendo


a vida uma dádiva divina, só Deus a pode tirar: “a vida vale a pena
até ao último momento” (padre Feitor Pinto, alto comissário para o
Projeto Vida). A Ordem dos Médicos a considerar que o médico não
4
Este um dos principais argumentos contra a aprovação dos projetos no parecer do Conselho Nacional de
Ética para as Ciências da Vida.
5
Um dos principais fundamentos do voto contra a aprovação do Partido Comunista Português.

Conselho Federal de Medicina 49


pode ser juiz da vida ou da morte de alguém, cabendo-lhe cumprir o
juramento hipocrático, agindo sempre com correção e delicadeza, no
exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e
a sua qualidade, suavizar os sofrimentos (nomeadamente nos doentes
sem esperança de cura ou em fase terminal), no pleno respeito pela
dignidade do ser humano. As primeiras discussões incidiram sobre a
distinção entre eutanásia e distanásia, ou obstinação terapêutica, que
quer a Igreja quer a Ordem condenaram.

Já o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no


parecer que emitiu sobre os projetos de despenalização da eutanásia e
da morte medicamente assistida, se mostrou dividido, ainda que o seu
parecer fosse maioritariamente contrário à aprovação, por considerar
que ela poderia criar clivagens na sociedade. O conselho não considera
a despenalização uma necessidade coletiva imediata, não estando
formado, portanto, um consenso social. Além disso, o parecer chama
atenção para a necessidade de transformação da ética médica.

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (2018,


p. 3) destacava ainda dois outros argumentos: a inexistência de escolhas
viáveis nos cuidados em fim de vida (os chamados cuidados paliativos) e
a equiparação entre o “ato de concretizar a morte por si próprio e o ato
de reclamar a obrigação de terceiros como executores dessa vontade”,
ou seja, como já referido, a equiparação da autolesão à heterolesão do
bem vida, sendo que a autolesão não é punível criminalmente.

A discussão mais recente começou em 2016, com uma petição


do Movimento Cívico Direito a Morrer com Dignidade (Petição nº
103/XIII/I) apresentada à Assembleia da República, subscrita por
8.428 eleitores, em que era pedida à Assembleia a despenalização da
morte assistida e da eutanásia, como expressão concreta dos direitos
individuais à autonomia, à liberdade religiosa e à liberdade de convicção
e consciência. A petição considerava que

A Morte Assistida é um direito do doente que


sofre e a quem não resta outra alternativa, por
ele tida como aceitável ou digna, para pôr termo

50 Medicina e direito: dilemas da modernidade


ao seu sofrimento. É um último recurso, uma
última liberdade, um último pedido que não se
pode recusar a quem se sabe estar condenado.
Nestas circunstâncias, a Morte Assistida é
um ato compassivo e de beneficência. […] O
direito à vida faz parte do património ético
da Humanidade e, como tal, está consagrado
nas leis da República Portuguesa. O direito a
morrer em paz e de acordo com os critérios de
dignidade que cada um construiu ao longo da
sua vida também tem de o ser. […] Um Estado
laico deve libertar a lei de normas alicerçadas em
fundamentos confessionais. Em contrapartida,
deve promover direitos que não obrigam
ninguém, mas permitem escolhas pessoais
razoáveis. A despenalização da morte assistida
não a torna obrigatória para ninguém, apenas
a disponibiliza como uma escolha legítima.
(MOVIMENTO CÍVICO, 2016)

Esta petição como que desencadeou o processo que veio a


culminar nos projetos de lei rejeitados em maio de 2018 pela Assembleia
da República.

Julgo de interesse referir que também a academia está dividida,


mas depois do notável estudo do professor de Coimbra José de Faria
Costa (2003, p.  759 ss.), a tendência dominante entre os penalistas,
mas também entre os constitucionalistas (MEDEIROS; SILVA, 2010,
p. 410 ss.), vai no sentido da sua admissão.

Uma sondagem feita em 1999 apontava para uma divisão de 40%


a favor e 41% contra a eutanásia. Outra sondagem de 2000 concluiu
que cerca de 62% dos inquiridos tinham opinião favorável à morte
assistida, enquanto cerca de 50% admitiam que a eutanásia “é um ato
aceitável dentro de certos limites”. Noutra sondagem mais recente,
realizada em 2016, apenas 22,1% do total de inquiridos se manifestaram
contra a legalização da eutanásia, e 10,5% não responderam ou não
tinham opinião formada.

Conselho Federal de Medicina 51


4. Os cuidados paliativos como alternativa

O argumento mais frequente na discussão dos projetos em


causa, e vindo de vários quadrantes, foi a inexistência de cuidados
paliativos generalizados e eficazes. Foi assim que o Conselho Nacional
de Ética para as Ciências da Vida começou por argumentar no seu
parecer apresentado ao Parlamento. Pode ler-se:

O propósito de legislar em favor de uma


opção subentende que o Estado proporciona,
de forma equitativa a todos os cidadãos,
alternativas a que os doentes poderão recorrer
quando se encontrem nas situações referidas.
Na ausência de alternativas, a proposta de
legalização da morte a pedido abrirá uma
lacuna de relevante significado ético e social
pela assimetria das condições disponibilizadas
e das iniquidades no acesso aos cuidados de
saúde pelos cidadãos. […] O Estado não pode
concentrar os seus deveres na legalização e
regulação de pedidos de morte, eximindo-se
das preocupações primordiais de satisfazer as
carências que combatam as desigualdades e
criem condições para um acesso efectivo aos
cuidados. Não é, por isso, eticamente aceitável
legislar sobre tais procedimentos sem assegurar,
ao mesmo tempo, uma oferta de cuidados
organizados em fim de vida aos quais todos os
cidadãos possam recorrer se assim o desejarem.
(CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA
PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA, 2018)

Também no voto de rejeição do PCP era acentuado que só


criando condições para uma vida digna em todas as suas fases se
poderá depois falar em liberdade de escolher o fim da vida, o momento
da morte. Por isso, a solução não seria desresponsabilizar a sociedade,
promovendo a morte antecipada das pessoas nessas circunstâncias, mas
sim o progresso social no sentido de assegurar condições para uma vida
digna, mobilizando todos os meios e capacidades sociais, a ciência e a

52 Medicina e direito: dilemas da modernidade


tecnologia para debelar o sofrimento e a doença e assegurar a inclusão
social e o apoio familiar. Na discussão dos projetos foi repetidamente
afirmado que a necessidade de conceder o direito de escolher morrer e
desistir de ser tratado seria eliminada por uma generalização eficaz de
cuidados paliativos.

Não parece que o argumento seja procedente. A paliação é uma


alternativa, mas não substitui a eutanásia: “Não haverá paliação para
que não haja eutanásia, nem haverá eutanásia por não haver cuidados
paliativos, embora a vontade de morrer possa resultar de não haver
paliação” (COSTA, 2018). Era a alternativa também reclamada pelo
Conselho Nacional de Ética, sem a qual muitos entendem, e parece
que com alguma razão, que a liberdade de escolha entre viver e morrer
é muito condicionada.

Já depois da rejeição dos projetos sobre a legalização da morte


assistida e da eutanásia, foi publicada em Portugal a Lei nº 31, de 18 de
julho de 2018, que estabelece um conjunto de direitos das pessoas em
contexto de doença avançada e em fim de vida, consagrando o direito
a não sofrerem de forma mantida, disruptiva e desproporcionada,
prevendo medidas para a realização desses direitos, nomeadamente
o direito a receber cuidados paliativos, incluindo sedação profunda
terminal (só aos pacientes com prognóstico vital estimado em semanas
ou dias) e apoio espiritual e religioso. A lei prevê ainda um conjunto de
direitos dos familiares das pessoas nesse contexto, que julgo tratar-se
de uma primeira resposta do legislador à necessidade de estabelecer
alternativas à eutanásia, reclamada pelo Conselho Nacional de Ética
para as Ciências da Vida. É um diploma importantíssimo, caso a sua
execução seja eficaz, como se espera.

5. Argumentos de caráter social contra a eutanásia

Não deixa de ser significativo, embora coerente com o seu


programa político, que o PCP tenha sido o primeiro a apresentar os
principais argumentos de caráter social contra a consagração legislativa

Conselho Federal de Medicina 53


da eutanásia: a necessidade de condições de vida dignas para que o
eventual direito a morrer seja uma escolha livre. Argumenta o partido
que a liberdade de escolha pressupõe não uma liberdade meramente
formal, mas material: é necessário que a pessoa não seja empurrada para
a morte por falta de condições de vida em dignidade, sem sofrimento
insuportável.

Considerava o PCP (2018) que “o que se impõe é que o avanço e


progresso civilizacionais e o aumento da esperança de vida decorrente
da evolução científica sejam convocados para garantir uma vida com
condições materiais dignas em todas as suas fases”. Num quadro
em que o valor da vida humana surge relativizado com frequência
em função de critérios de utilidade social, de interesses económicos,
de responsabilidades e encargos familiares ou de gastos públicos,
a legalização da provocação da morte antecipada acrescentaria uma
nova dimensão de problemas. Desde logo, contribuiria para consolidar
opções políticas e sociais que conduzem à desvalorização da vida
humana e introduziria um relevante problema social resultante da
pressão do encaminhamento para a morte antecipada de todos aqueles
em situação de especial fragilidade ou necessidade a quem a sociedade
recusa apoio. Além disso, a legalização dessa possibilidade limitaria
ainda mais as condições para o Estado promover, no domínio da saúde
mental, a luta contra o suicídio. E conclui o seu voto, em síntese:

O PCP continuará a lutar para a concretização,


no plano político e legislativo, de medidas que
respondam às necessidades plenas dos utentes
do Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente
no reforço de investimento sério nos cuidados
paliativos, incluindo domiciliários; na garantia
do direito de cada um à recusa de submeter-
se a determinados tratamentos; na garantia de
a prática médica não prolongar artificialmente
a vida; no desenvolvimento, aperfeiçoamento
e direito de acesso de todos à utilização dos
recursos que a ciência pode disponibilizar, de
forma a garantir a cada um, até ao limite da vida,
a dignidade devida a cada ser humano.

54 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Perante os problemas do sofrimento humano, da doença, da
deficiência ou da incapacidade, a solução não é a de desresponsabilizar
a sociedade, promovendo a morte antecipada das pessoas nessas
circunstâncias, mas sim a do progresso social no sentido de assegurar
condições para uma vida digna, mobilizando todos os meios e
capacidades sociais, a ciência e a tecnologia para debelar o sofrimento
e a doença e assegurar a inclusão social e o apoio familiar.

Estes argumentos calaram fundo na sociedade portuguesa, que,


embora entendendo tratar-se de planos diferentes e empiricamente não
contraditórios, percebeu que a autodeterminação e a liberdade de cada
um não é absoluta, antes condicionada por múltiplos fatores sociais,
desde logo as condições de vida. É preciso assegurar, em homenagem
à dignidade da pessoa, que em situações de desespero a primeira
alternativa ou pelo menos a mais fácil não seja apressar a morte.

Não se trata de oposição à eutanásia por razões de princípios


filosóficos, morais ou éticos. Trata-se de criar as alternativas a que
também já se referia no seu parecer o Conselho Nacional de Ética para
as Ciências da Vida, que considerava não ser razoável legislar sobre a
liberdade de morrer sem antes assegurar alternativas para uma vida
digna, condição da própria liberdade de escolha do momento da morte.

6. Argumentos de caráter técnico contra os projetos e


sobre a legitimidade da discussão no Parlamento e
apelo a referendo

Várias entidades e personalidades que se pronunciaram


publicamente questionaram a legitimidade da discussão e aprovação
dos projetos sobre a legalização da eutanásia, uma vez que os partidos
que os promoveram não incluíram nos programas com que se
apresentaram às eleições a sua posição sobre a matéria – só um, o
PAN, o fez –, entendendo alguns que o assunto deveria ser objeto de
referendo.

Conselho Federal de Medicina 55


São argumentos de natureza puramente política, naturalmente
defensáveis, mas que não bolem com a legitimidade da discussão e
aprovação ou rejeição pelo Poder Legislativo. No sistema político
português, os deputados não estão limitados por mandato expresso
dos eleitores, nem o referendo, indubitavelmente democrático, é
exigido pela Constituição portuguesa. E, a nosso ver, tal instituto nem
se afigura adequado quando se trata de matérias em que, ao que parece,
a opinião pública não se mostra suficientemente esclarecida, como
o refere o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e a
Ordem dos Médicos.6

De facto, não há um conhecimento geral sobre o que é eutanásia,


suicídio assistido, morte assistida, eutanásia passiva, sedação paliativa e
as várias designações que se usam para falar de abreviar o sofrimento
no final da vida. Muitas pessoas chamadas a votar num referendo deste
tipo teriam dificuldades em ultrapassar a torrente de desinformação
e demagogia que se derramaria sobre o eleitorado. O referendo é um
processo democrático para apurar a vontade soberana dos cidadãos
sobre as regras de conduta a estabelecer na comunidade, mas no
sistema jurídico português o referendo tem caráter excecional.

Em geral, todas as entidades que foram chamadas a pronunciar-


se sobre os projetos de lei submetidos ao Parlamento apontaram
graves deficiências técnicas ou apresentaram objeções às soluções
preconizadas e ao procedimento. A Ordem dos Médicos, em carta
entregue ao presidente da República, assinada pelos seis últimos
bastonários, afirma que a eutanásia ou a morte assistida, sob qualquer
argumento, mesmo o de aliviar o sofrimento, é matar, é tirar a vida,
é homicídio e, por isso, constitui violação grave e inaceitável da ética
médica. A instituição repudia, por isso, qualquer participação médica
no procedimento e alerta para os perigos da prática da morte assistida
e/ou eutanásia em hospitais que integram o Serviço Nacional de
Saúde, o que inviabilizaria qualquer dos projetos apresentados.

6
Carta da Ordem dos Médicos ao Presidente da República: “A maior parte das pessoas não estão informadas,
ainda não se sabe distinguir eutanásia de distanásia. É necessária mais informação, mais debate, melhor
esclarecimento, para que as pessoas formem uma opinião e a transmitam aos partidos políticos”.

56 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Também o Conselho Superior da Magistratura e a Ordem dos
Advogados foram a debate, limitando-se, porém, às questões técnico-
jurídicas relativas aos projetos e que me não parecem relevantes no
contexto desta comunicação. Destaco entre elas apenas a necessidade
de clarificação de conceitos e garantias de procedimentos para assegurar
que o pedido é livre, e não motivado por falta de assistência médica
ou outras dificuldades de natureza social; a exclusão da possibilidade
de eutanásia em caso de doenças mentais como esquizofrenia
ou perturbação obsessivo-compulsiva indutora de sofrimento
insuportável; a classificação das causas da morte, nomeadamente para
efeito de aplicação do clausulado das apólices de seguro de vida e de
doença; a disponibilidade dos órgãos do eutanasiado para transplantes;
a admissibilidade da prática da eutanásia fora dos hospitais etc.

Evidentemente, as questões técnicas são as mais fáceis de


resolver. Passemos adiante.

7. Argumentos de caráter jurídico

Os principais argumentos jurídicos sobre a legalização da


eutanásia consistiram, num primeiro momento, na dúvida sobre
a legitimidade constitucional da criminalização da totalidade das
condutas qualificáveis como eutanásia. E, num segundo momento,
numa perspetiva de confronto entre o direito à vida e o direito à
autodeterminação pessoal.

Devo avançar que não é líquido – muito longe disso – que estas
questões possam ser respondidas a partir do artigo 24 da Constituição
da República Portuguesa,7 em particular, e da Constituição, em geral,
sem reconhecer ao legislador democraticamente legitimado uma
margem de intervenção mediadora entre as posições extremas que
neste domínio se digladiam (MEDEIROS; SILVA, 2010, p. 499 ss.).

7
CRP, art. 24: “1. A vida humana é inviolável. 2. Em caso algum haverá pena de morte”.

Conselho Federal de Medicina 57


Além disso, as soluções legislativas isentas de
laivos paternalistas – isto é, que reconheçam a
cada uma das pessoas a faculdade de renunciar
aos seus direitos fundamentais, no pressuposto
de que o fazem de forma consciente,
informada e voluntária –, sempre permitirão a
subsistência de sérias dúvidas sobre a natureza
verdadeiramente livre e racional da decisão
contra natura de pôr termo à própria vida, quer
porque tomada por um doente terminal em
grande sofrimento, quer porque adoptada num
momento distante por meio de um testamento
de vida. Trata-se de um domínio em que todas
as garantias de autenticidade da declaração
parecem ser escassas. (MEDEIROS; SILVA,
2010, p. 499 ss.)

Da mesma forma, pesadas dúvidas permanecerão também sobre


a admissibilidade de transferir para um terceiro, ainda que médico, o
poder sobre a vida de um doente. Uma coisa é renunciar à vida, outra
bem diferente é a possibilidade de envolver de uma forma determinante
terceiros na concretização dessa decisão, concedendo-lhes imunidade
pelas suas atuações (e outra coisa ainda será a faculdade de exigir a
disponibilidade de meios públicos para o efeito) (MEDEIROS; SILVA,
2010, p. 499 ss.).

Não parece, em todo o caso, ser sustentável no plano


estritamente constitucional a defesa intransigente de quaisquer sinais
de uma vida que já não pretende ser vivida, sob pena de se poder
perguntar, afinal, “que respeito é esse pela santidade da vida que
desrespeita completamente a vontade autónoma que através dela se
exprime?” (MEDEIROS; SILVA, 2010, p. 499 ss.).

Na verdade, a absolutização da vida, traduzida na incriminação


indiferenciada de todas as condutas eutanásicas, redundará
inevitavelmente no esmagamento da autonomia de cada ser humano
para tomar e concretizar as decisões mais centrais da sua própria
existência. Ora, da circunstância de um direito fundamental como o

58 Medicina e direito: dilemas da modernidade


direito à vida constituir uma condição sine qua non de todos os demais
direitos não decorre necessariamente a sua permanente superioridade
axiológica sobre os restantes direitos, bem podendo entender-
se que apenas a vida compatível com a liberdade é objeto de pleno
reconhecimento constitucional – o direito à vida compreenderia, nesta
acepção, a faculdade de dispor dela livremente, escolhendo, se for caso
disso, a própria morte (MEDEIROS; SILVA, 2010; ARAÚJO, 1999,
p. 116 e 155).

Considerando, por outro lado, que a interrogação sobre se


satisfaz os melhores interesses de certa pessoa o facto de a sua vida
terminar de uma maneira ou de outra depende de uma multiplicidade
de aspectos particulares – p. ex., o carácter imprimido pela pessoa à sua
vida, os seus interesses pessoais, as suas convicções, o seu sentido de
integridade –, muito dificilmente o Estado-legislador poderá estabelecer
de forma imperativa uma solução geral e uniforme que, acentuando
em demasia a proteção da vida nos seus últimos momentos e mesmo
nos seus derradeiros vestígios, seja suscetível de aceitação generalizada
(MEDEIROS; SILVA, 2010).

8. O ato médico: crise e abandono do modelo paternalista

Como referi anteriormente, a maior das dificuldades no plano


jurídico é a atribuição a terceiros do poder de matar. Esta questão
foi destacada no parecer do Conselho Nacional de Ética para as
Ciências da Vida (2018, p. 3), nos termos seguintes: a justificação pela
“liberdade de decidir e exercer a autonomia individual […] colide com
uma ponderação ética distinta consoante esteja em causa o ato de
concretizar a morte por si próprio ou o ato de reclamar a obrigação de
terceiros como executores dessa vontade”.

Já referi que a maioria da doutrina vai no sentido da


descontinuidade entre a autolesão e a heterolesão do bem jurídico,
acentuando que a diferença não radica na pessoa do seu portador, mas
na do terceiro que, de forma ativa, atinge o portador do bem jurídico.

Conselho Federal de Medicina 59


Se o princípio da dignidade, nas suas componentes de autonomia e
liberdade, pode consentir que cada um decida da sua própria vida, o
mesmo princípio parece impedir que um terceiro atente contra o bem
jurídico vida de outrem.

A maioria das legislações penais não pune o suicídio (autolesão),


mas proíbe o homicídio a pedido em qualquer das suas manifestações,
nomeadamente a eutanásia, com o propósito “de não abrir brechas
na proteção penal da vida humana, em torno da qual o direito (penal)
deve erigir um verdadeiro tabu” (ANDRADE, 2012, p. 59). E quando
a lei equipara a autolesão à heterolesão fá-lo expressamente e a título
excepcional, como sucede com as ofensas consentidas à integridade
física (artigo 149 do Código Penal português), ainda que com a
limitação de não ofensa dos bons costumes.

Todos os projetos submetidos ao Parlamento português


atribuíam ao médico o poder de pôr termo à vida do doente que o
pedisse, verificados que fossem os respetivos pressupostos. Como
justificar esta atribuição ao médico do poder de matar em nome da
autonomia e da liberdade do doente requerente da eutanásia? É esta
atribuição do poder (dever) aos médicos de praticar a eutanásia que a
Ordem dos Médicos e o Conselho Nacional de Ética para as Ciências
da Vida questionam, no entendimento de que esse poder (dever) viola
a deontologia médica.

Mas os códigos – e também os códigos deontológicos – alteram-


se para se adaptar às realidades de cada tempo. Foi assim já nos países
em que a eutanásia é legalmente admitida e até noutros em que não
o é, como sucede na França. Foi assim já também em Portugal com
a legalização do aborto. E importa recordar que já no século XVII
Francis Bacon considerava que o ato médico não se limitava ao ato de
curar.

É, pois, sobre a delimitação do conceito de ato médico que é


necessário refletir, e aceitar que também a prática da medicina tem
de se adaptar aos valores morais, jurídicos, políticos e sociais de cada

60 Medicina e direito: dilemas da modernidade


tempo. E os normativos deontológicos vigentes mostram claramente
que a deontologia médica do nosso tempo não é a mesma que vigorava
no tempo de Hipócrates!

Abreviando, socorremo-nos da lição do ilustre penalista de


Coimbra, professor José de Faria Costa, ao considerar que hoje o ato
médico pode e deve ir muito para além do ato de curar, e que esta
evolução resulta da passagem de um modelo de relação paternalista
para um modelo de autonomia do doente, que deixou de ser um sujeito
meramente passivo e passou a ser um sujeito capaz de construir a sua
própria vida. Por isso, por imposição dos textos internacionais e internos
sobre os direitos, é ilícito qualquer ato médico sem consentimento do
paciente.

É assim que “o modelo compreensivo do ato médico alterou-se


radicalmente no nosso tempo. O cuidado que hoje se convoca para o
mundo da medicina está longe de poder ser exclusivamente percebido
como o cuidado da exasperada conservação da vida” (COSTA, 2005,
p. 144). Acrescenta Faria Costa (2005, p. 147-151):

Quando a esperança de vida é nula, segundo


os dados da ciência, a qualidade de vida atinge
níveis de humilhação, o sofrimento é para lá do
razoável, então o deixar de viver não é indigno
de ser visto como uma alternativa, uma saída.
Por isso, o conteúdo e o sentido ético-jurídico
daquele que reivindica para si o poder de deixar
de viver é um valor a que a ordem jurídica não
pode ficar indiferente. […]
E deste modo, aquilo que estava fora do âmbito
de uma noção de ato médico entra, com toda
a legitimidade, para o domínio do ato médico.
A aceitação de que certos atos ofensivos,
criminalmente ofensivos, não são ilícitos,
corresponde a uma ideia forte de proteção de
certos interesses ou valores.

Conselho Federal de Medicina 61


Só mais uma nota para a reflexão: será o ato médico de
interrupção do tratamento por vontade do doente substancialmente
diferente ao ato de lhe provocar a morte a seu pedido? Sou tentado a
considerar que a distinção entre matar e deixar morrer é insubsistente.

Tradicionalmente entende-se que é moral e juridicamente diverso


matar ou deixar morrer. Porém, tenho para mim que não há diferença
substancial entre a interrupção de tratamento de que resultará a morte
do ato de administração de uma injeção letal, porque em ambos os
casos há uma conduta ativa, clara quando o tratamento foi iniciado,
e em ambos os casos causal ou concausal da morte. O fundamento
da licitude do ato reside na vontade livre do paciente, e por isso se
questiona porque deve haver um relevo diverso se a conduta é ativa
ou omissiva. Ou seja, se o fundamento da licitude e moralidade é o
consenso do doente, a conduta de quem administra uma injeção letal
(consentida) deverá ser pior do que a outra, que interrompe a terapia
(igualmente com o consentimento)? A intenção é a mesma em ambos
os casos, mesma é a preferência do paciente; mesma é a consequência.

Para dizer que matar e deixar morrer são condutas moral e


juridicamente diferentes, devíamos dizer que ação e omissão podem
ser consideradas sem ter em conta as suas consequências. Quando o
desvalor se centra no evento, mais que sobre a conduta, como é o
caso do homicídio, não há razão para um tratamento diferenciado: não
conta a conduta, conta o evento.

Acresce que o agir não é necessariamente pior que o omitir. Se


se considera lícito deixar morrer, isto quer dizer que ser causa da morte
não constituiu uma condição reprovável. Não é nada reprovável ser
a causa da morte de alguém se a morte é, em algumas circunstâncias,
considerada um bem. “Se, pelo contrário, a morte é considerada, dadas
as mesmas circunstâncias, como um mal, então o deixar morrer é
também moralmente reprovável” (CRICENTI, 2017, p. 119). E assim
teremos que deixar morrer ou apressar a morte, ou seja, a ação ou a
omissão, podem igualmente ser considerados atos médicos.

62 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Uma última referência: o Instituto Borja de Bioética, da
Universidade Ramon Llull, numa declaração de janeiro de 2005 a
propósito da legalização da eutanásia em Espanha, aceitando-a em
condições restritas, defende que a prática deve ser sempre praticada por
um médico ou outro profissional de saúde sob a direção do médico, a
fim de garantir a ausência de dor e sofrimento no paciente. O instituto
considera, portanto, a eutanásia um ato médico. Num dado momento
de sua declaração pode ler-se:

Estes requisitos distanciam-nos do paternalismo


médico levado a cabo até ao momento da morte.
Ao longo dos séculos, incluindo o século XX,
prescindia-se com frequência da vontade do
paciente e o médico responsável determinava,
juntamente com a família, o que era mais
conveniente para o enfermo, nomeadamente
o procedimento da morte. Hoje, esta conduta,
por boa que fosse a intenção do profissional e
da família, é reprovável ética e juridicamente,
e atenta contra os direitos básicos da pessoa.
(INSTITUT BORJA DE BIOÈTICA, 2005, p.
2)

E sendo a participação do profissional no procedimento da


eutanásia a pedido do paciente qualificado como um ato médico para
proporcionar uma boa morte e a ausência de dor e sofrimento, de
acordo com as leges artis da medicina, então teremos que o seu ato não
pode ser considerado juridicamente reprovável, não pode ser ilícito,
como resulta do artigo 156 do Código Penal português, ainda limitado,
por enquanto, às ofensas à integridade física.

Nesta perspetiva, a intervenção ativa do médico na eutanásia,


enquanto esta intervenção se fizer de acordo com as leges artis da
medicina, não deve ser considerada como ofensa ao bem jurídico vida;
não é homicídio.

Conselho Federal de Medicina 63


9. Considerações finais

Estamos num congresso de direito médico e numa sociedade


democrática. Por isso que, quase no fim desta comunicação, me
atrevo a apontar brevíssimos traços sobre o direito penal democrático.
Perdoem: sou penalista por ofício e democrata por convicção. Em
democracia, a pessoa é o centro de todos os interesses, a razão de
todas as coisas. Tudo deve ser ordenado em vista da maior felicidade,
da melhor realização de todos e de cada um dos cidadãos.

O direito penal democrático mantém firme a relevância concreta


do interesse tutelado. Reconduzida à dimensão humana, a vida do
homem como valor é a vida quotidiana, é a realidade empírica, a vida
que vivemos – não como vida puramente biológica, mas em diversos
níveis de experiência: do corpo, da alma, do espírito. A vida, entendida
como afirmação da liberdade, compreende a autonomia e o bem-estar
do homem segundo as suas preferências particulares, e é esta vida que
reclama ser tutelada pelo direito.

[…] A pretensa natureza divina da vida reduz a


sua essência a uma vida que não é nossa, ainda
que viva em nós. A qualquer coisa de inumano,
a um valor transcendente que se toma posse do
homem e lhe decide a sorte. E que recusa ao
doente terminal o direito de decidir quando e
como morrer. (MERLI, 2008, p. 400 ss.)

Por isso que a vida humana, a vida de cada um de nós, só é digna


de ser vivida enquanto é livre. Respeitar a vida da pessoa é o mesmo
que respeitar a sua liberdade, a sua autonomia. O traço humano da
vida remete o governo da vida primeiro às mãos da pessoa interessada
e concebe a morte como extrema garantia de um limite ao sofrimento.
Se a vida merece ou não ser vivida é questão eminentemente pessoal, é
questão de cada um que a vive.

O Estado laico assegura o pluralismo das ideias, a plena liberdade


de pensamento na reflexão e no debate público, ou seja, a garantia
de que concessões e valorações muito distantes entre si tenham igual

64 Medicina e direito: dilemas da modernidade


dignidade e legitimação na sociedade, sem que alguma das posições
em confronto tenha a pretensão de exclusividade. E por isso que a
discussão a favor ou contra a eutanásia não foi em Portugal
– e não é no nosso tempo em parte alguma – uma discussão
entre beneficência e maleficência, e muito menos reservada a
“assassinos” e “torcionários”. É simplesmente uma questão de
aprofundamento de direitos humanos na sociedade democrática.

No termo desta comunicação, devo pronunciar-me, conforme


me foi proposto pela organização do congresso, sobre se o debate em
Portugal terminou ou se apenas começou. É chegado o momento de
responder a esta questão.

É minha convicção que a rejeição parlamentar dos quatro


projetos de lei sobre a eutanásia em Portugal não encerrou o debate
sobre o tema; vários dos partidos proponentes, aliás, prometem
retomá-lo. Mais: a discussão que sobre o assunto se trava na Europa,
nas diversas instâncias políticas, jurídicas e sociais, e a recentíssima
aprovação em Espanha (26 de junho de 2018) de uma lei proposta
pelo Partido Socialista espanhol – em tudo semelhante ao projeto
do Partido Socialista português –, fazem-me crer que já na próxima
legislatura se reabrirá o debate, e que a curto prazo a legalização será
aprovada.

Entretanto, espero que o legislador português possa corrigir as


questões técnicas e responder positivamente às objeções de natureza
social apresentadas, e que se garantam os meios necessários para que a
assistência sanitária no final da vida seja uma assistência de qualidade,
isto é, que se proporcione uma assistência global ao doente, nos seus
aspetos físicos, psíquicos, sociais, emocionais e espirituais, para que a
escolha por deixar de viver, antecipando a morte, seja verdadeiramente
uma escolha livre – admitindo que é possível ser ainda livre quando a
pessoa está em máximo sofrimento.

Quero crer que é esse também o propósito do governo, e que


a recente Lei nº 31/2018 é um passo significativo nesse caminho,
embora não seja o bastante, porque do que a lei agora aprovada trata
é de doentes terminais, e os cuidados paliativos não se podem limitar

Conselho Federal de Medicina 65


a estes doentes, mas devem ser instituídos o mais precocemente
possível, como recomendam várias instituições ligadas à saúde e a
própria Organização Mundial de Saúde. Mais: não se trata apenas de
facultar cuidados paliativos, de cuidados médicos, mas também de
outros apoios de âmbito social.

Creio que estamos no caminho certo. Creio que vamos lá. E


vamos lá porque, à medida que se vão enraizando os ideais democráticos
no coração do povo, as pessoas saberão reivindicar o seu direito a viver
e a morrer com dignidade.

Utopia?

Será porventura uma utopia, um sonho, mas como canta o


poeta Manuel Freire:

[…] o sonho comanda a vida


E sempre que um homem sonha
O mundo pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança.
(PEDRA…, 1993)

Agradecimentos

Desde os anos 1990 mantenho uma relação estreita com o Brasil,


especialmente na área dos direitos e liberdades fundamentais, quer
acompanhando em Portugal estudantes brasileiros quer participando
em eventos pertinentes. Participei no primeiro Congresso Luso-
Brasileiro sobre Direitos Fundamentais, promovido aqui em Brasília
pelo saudoso ministro Luiz Vicente Cernichiaro, a quem peço licença
para render pública homenagem.

Por isso, não fiquei surpreendido com o convite, que me foi


veiculado pelo meu querido amigo desembargador Diaulas Costa
Ribeiro, brasileiro de gema, mas também português pelo coração, para

66 Medicina e direito: dilemas da modernidade


participar neste VIII Congresso de Direito Médico, sobretudo para
tratar de um tema tão complexo e difícil como é o da eutanásia, que
é da essência problemática dos direitos e liberdades das pessoas: a
liberdade de escolher viver e de morrer.

Agradeço muito o convite porque me sinto muito honrado por


estar aqui convosco para vos dar conta do que se passa em Portugal
neste domínio. Muito obrigado.

Referências

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(dir.). Comentário conimbricense do Código Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2012.
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Coimbra Editora, 1999.

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Parecer sobre o Projeto de Lei nº 418/XIII/2ª “Regula o acesso à morte medicamente
assistida”. Lisboa, mar. 2018. Disponível em: http://www.cnecv.pt/admin/
files/data/docs/1520844932_P%20101_CNECV_2018.pdf Acesso em: 10
maio 2019.

COSTA, F. L. Antes da eutanásia. Observador, Lisboa, 2 jun. 2018. Disponível


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Conselho Federal de Medicina 67


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In: PEDRA Filosofal. Intérprete: Manuel Freire. Lisboa: Strauss, 1993. 1 CD,
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PSF ADMITE nova votação sobre eutanásia na próxima legislatura. TSF


Rádio Notícias, Lisboa, 29 maio 2018. Disponível em: https://www.tsf.pt/
politica/interior/ps-admite-nova-votacao-sobre-eutanasia-na-proxima-
legislatura-9391234.html. Acesso em: 10 maio 2019.

68 Medicina e direito: dilemas da modernidade


CONSTITUCIONALIDADE E JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO DE
MORRER COM DIGNIDADE NA COLÔMBIA1

Adriana González Correa


Advogada. Mestre em Cidadania e Direitos Humanos:
Ética e Política. Foi advogada do primeiro caso de
eutanásia legal na Colômbia e nas Américas.

Muitos morrem demasiadamente tarde e outros


demasiadamente cedo. Ainda soa estranha a doutrina que
diz: “morra no tempo certo!”
Friedrich Nietzsche

Introdução

O marco constitucional dos direitos fundamentais na Colômbia


se deu a partir da Constituição Política de 1991, que instituiu a Corte
Constitucional como o novo tribunal supremo do País, encarregado
de revisar a constitucionalidade das leis e normas que possam violar a
Carta Magna, impondo-lhe, ainda, a função de revisar as ações de tutela
ou ações constitucionais que procuram proteger, de maneira imediata,
os direitos fundamentais dos cidadãos.

Essa nova Constituição Política estabeleceu, entre outros


princípios, o Estado Social de Direito, o respeito à dignidade da pessoa
humana e a laicidade do Estado, ao contrário do que ocorreu na
Constituição de 1886, que havia declarado o Estado como confessional.

Essa transformação constitucional foi o que impulsionou o


reconhecimento dos direitos fundamentais na Colômbia, direitos que
a própria Constituição de 1991 não consagrou no momento devido.

A legalização do consumo de drogas em quantidades mínimas,


o aborto legal, a equiparação dos direitos dos casais homoafetivos

Tradução, adaptação e notas: Diaulas Costa Ribeiro.


1

Conselho Federal de Medicina 69


e a eutanásia, entre outros, foram direitos reconhecidos como
fundamentais a partir da interpretação constitucional feita pela Corte
por meio de sentenças. Isso significa que as normas examinadas ou
foram declaradas exequíveis, porque não violavam a Constituição,
ou inexequíveis,2 porque eram contrárias a ela. Sob esse marco
constitucional, a Sentença C-239/1997, descriminalizou a eutanásia na
Colômbia.

O artigo 326 do Código Penal estabelecia: “Quem matar alguém


por piedade, para pôr fim a sofrimentos intensos, provenientes de lesão
corporal ou de doença grave ou incurável, incorrerá em prisão de seis
(6) meses a três (3) anos”.

Na análise da constitucionalidade, a Corte decidiu que o


homicídio piedoso, no Estado Social de Direito estabelecido pela
Constituição de 1991, não pode ser considerado crime ou conduta
punível porque o móbil da ação, nesse caso, não é exterminar uma vida
porque o assassino a considera inútil; pelo contrário, quem comete um
homicídio motivado por sentimentos de compaixão e de misericórdia,
diante dos intensos sofrimentos de um ser humano, não pode ser
punido.

Além disso, a Corte utilizou critérios concretos para determinar


os casos que podem ser considerados eutanásia legal, não deixando
dúvidas sobre a conduta descrita. A Sentença C-239/1997 estabeleceu
que o homicídio eutanásico deve conciliar os seguintes elementos:

(1) O primeiro deles é o padecimento de uma doença terminal ou


incurável, que leve o paciente a suportar sofrimentos intensos,
para os quais só restam tratamentos paliativos que podem manter
algumas condições de vida, sem implicar melhoria substancial
da saúde do paciente e/ou a cura de sua doença.

A Ação Pública de Inconstitucionalidade é um meio de controle de constitucionalidade em abstrato,


2

consagrado no sistema constitucional colombiano. É uma ação judicial que pode ser exercida por qualquer
cidadão com o fim de impugnar perante a Corte Constitucional uma norma de hierarquia inferior. Por
sua vez, as decisões – sentenças – que a Corte emite como resultado da análise de constitucionalidade são
denominadas exequíveis, quando a norma impugnada é considerada constitucional, ou inexequíveis, quando a
norma é considerada inconstitucional.

70 Medicina e direito: dilemas da modernidade


(2) O segundo elemento é o consentimento do sujeito passivo.
A autonomia do paciente assegura que só a ele cabe a decisão de
pôr fim a sua vida, ou seja, compete, exclusivamente, ao doente
terminal, como ato de vontade livre e consciente, solicitar a
prática da eutanásia ao respectivo sistema de saúde. Todavia,
não se classifica como homicídio eutanásico aquele em que a
decisão de pôr fim à vida é tomada pela equipe médica ou pela
família do paciente, ainda que haja doença terminal. Em todo e
qualquer caso, a autonomia pessoal é o direito fundamental que
sustenta a decisão de se praticar a eutanásia.

(3) O terceiro elemento é a motivação do sujeito ativo.


Amparado pela Corte Constitucional, o elemento volitivo, a
intenção que move o autor de uma eutanásia, não é provocar
um dano e extinguir uma vida que ele despreza. Pelo contrário,
é o sentimento de piedade e de compaixão que leva o médico
a produzir essa morte. A finalidade altruística – compreender
e ter empatia com a dor do paciente – é a exata razão de ser
da conduta, que seria antijurídica se não fosse a piedade que a
impulsiona.

Esses três elementos substanciais na análise da eutanásia – sob os


princípios do Estado Social de Direito, da dignidade da pessoa humana,
da autonomia pessoal (na Colômbia, o “livre desenvolvimento da
personalidade”) e da determinação de um Estado laico – fundamentaram
a interpretação constitucional da Corte. Ficou claro que a dignidade
humana ou o respeito à vida digna comporta a morte digna, e que
o dever que compete a um estado liberal ou Estado de Direito de
respeitar e fazer respeitar a vida, enquanto um direito fundamental,
deve dar lugar ao respeito à autonomia pessoal do paciente que deseja
pôr fim a sua vida em razão de uma doença.

Finalmente, a Corte entendeu que, em um Estado laico, a


partir de uma perspectiva pluralista, a vida não é um valor absoluto.
As crenças religiosas ou morais, que são opções pessoais, não podem
ser impostas a qualquer cidadão. Consequentemente, é um ato cruel

Conselho Federal de Medicina 71


prolongar, em nome de crenças alheias, a vida daqueles que sofrem e
que não professam os mesmos credos.

Literalmente, a Corte declarou:

[No homicídio] a pessoa mata porque não


reconhece dignidade alguma em sua vítima,
enquanto no homicídio piedoso […] o sujeito
ativo não mata por desrespeito ao outro, mas
por sentimentos totalmente opostos. O sujeito
ativo considera a vítima uma pessoa com igual
dignidade e direitos, mas que está em tal situação
de sofrimento que a morte pode ser vista como
um ato de compaixão e misericórdia. […]
A Constituição se inspira na consideração da
pessoa como sujeito moral, capaz de assumir
de forma responsável e autônoma as decisões
sobre os assuntos que só competem a ele,
devendo o Estado limitar-se a impor deveres,
em princípio, em função dos outros sujeitos
morais com quem está destinado a conviver,
e, portanto, se a forma como as pessoas veem
a morte reflete suas próprias convicções, elas
não podem ser forçadas a continuar vivendo
quando as circunstâncias extremas em que
se encontram não podem ser consideradas
desejáveis ou compatíveis com a própria
dignidade, sob o argumento inadmissível de que
a maioria considera isso um imperativo religioso
ou moral. O Estado não pode exigir condutas
heroicas de ninguém, tampouco se a base delas
é restrita a uma crença religiosa que, em um
sistema pluralista, só poderia decorrer de uma
opção. […]
Além disso, se o respeito à dignidade humana
é o fundamento do ordenamento jurídico, resta
claro que a vida não pode ser vista simplesmente
como algo sagrado, a ponto de se desconhecer a
situação real em que se encontra o indivíduo e a
sua posição quanto ao valor da vida para si. Para
a Corte, o direito à vida não pode ser reduzido

72 Medicina e direito: dilemas da modernidade


à mera subsistência, mas implica o viver
adequadamente em condições de dignidade.
[…]
O direito fundamental de viver de forma
digna implica, assim, o direito de morrer com
dignidade; condenar uma pessoa a viver por
um curto período de tempo de sua existência,
quando não o deseja e padece de profundas
aflições, equivale não só a um tratamento cruel
e desumano, proibido pela Carta, mas a uma
anulação de sua dignidade e de sua autonomia
como sujeito moral. (COLÔMBIA, [1997])

Nessa ordem de ideias, cabe esclarecer que a Sentença de


Constitucionalidade C-239/1997 tem efeito erga omnes, com força
vinculativa para todos os cidadãos colombianos, mas ela não equivale
a uma lei.

Para resolver esse conflito, a Corte Constitucional exortou


o Congresso da República a, no menor tempo possível, realizar as
regulamentações apropriadas com base nos princípios constitucionais
e, assim, emitir a legislação para regulamentar a morte digna.

Apesar de tal pedido, passaram-se 17 anos sem que o Congresso


aprovasse a lei de regulamentação da eutanásia. Ao contrário, os
projetos apresentados com esse objetivo sempre foram arquivados
antes dos debates parlamentares necessários.

Graças à Ação de Amparo Constitucional (ou ação de tutela)


ajuizada por uma doente terminal que solicitou a prática da eutanásia
na instituição de saúde a que estava vinculada, a Corte Constitucional,
por meio de “Revisão”, decidiu escolher o tema para emitir o seu
posicionamento. Foi assim que, reunida em Câmara de Revisão, a
Corte emitiu a decisão contida na Sentença T-970/2014 (COLÔMBIA,
[2014]).

É importante ressaltar que as ações de amparo constitucional


têm, diferentemente das decisões de constitucionalidade das normas,

Conselho Federal de Medicina 73


efeito inter partes; a sentença alcança e é obrigatória exclusivamente para
as partes envolvidas na ação de tutela.

1. Determinações constitucionais contidas na Sentença


T-970/2014

A sentença de tutela da Corte Constitucional, amparada na


decisão de constitucionalidade C-239/1997, apesar de não poder
ordenar a prática de eutanásia para a autora – que morreu de morte
natural durante o trâmite da ação –, foi clara ao reconhecer a omissão
do Congresso que, 17 anos após aquela primeira sentença, continuava
omisso ante a exortação da Corte para regulamentar e determinar os
protocolos necessários para a prática da eutanásia como um direito
fundamental.

Na decisão de tutela, a Corte, para salvaguardar um direito que


ela própria erigiu como fundamental, ordenou ao Ministério da Saúde
que emitisse o regulamento correspondente para a prática da eutanásia
em todos os centros de saúde, a partir das determinações da decisão de
tutela T-970/2014 (COLÔMBIA, [2014]). Em cumprimento à referida
ordem judicial e acatando as diretrizes fixadas pela Corte, o Ministério
da Saúde expediu a Resolução nº  1.216/2015, que estabeleceu o
protocolo a ser seguido pelas entidades prestadoras de serviços à saúde
nos casos de eutanásia.

Naquela resolução, o Ministério da Saúde regulamentou os


“Comitês Científicos Interdisciplinares para o Direito de Morrer com
Dignidade”, esclareceu algumas disposições da Sentença C-239/1997 e
estabeleceu parâmetros a serem levados em conta, a saber:

(1) Definiu doença terminal como aquela com prognóstico fatal


iminente ou em curto prazo;

(2) Criou os Comitês Científicos Interdisciplinares para o Direito


de Morrer com Dignidade e definiu suas funções;

74 Medicina e direito: dilemas da modernidade


(3) Estabeleceu o procedimento a ser seguido pela entidade
prestadora de serviços de saúde nas solicitações de eutanásia;

(4) Fixou o prazo máximo para a prática do procedimento;

(5) Por fim, vedou a objeção de consciência às entidades


prestadoras de serviços de saúde e as obrigou a respeitar o
direito de objeção individual declarado por integrante da equipe
médica nos casos de eutanásia.

Com essa resolução, o Ministério da Saúde cumpriu a ordem da


Corte Constitucional e, finalmente, estabeleceu um protocolo para a
prática da eutanásia na Colômbia.

Exatamente um mês após o Ministério emitir essa resolução,


avancei o “Litígio de Alto Impacto” em defesa da prática da primeira
eutanásia legal na Colômbia e na América Latina, tendo como paciente
Ovídio González Correa, no processo mais conhecido como “O caso
do pai do cartunista Júlio César González, o ‘Matador’”.

2. Trâmite do processo de eutanásia de acordo com a


Resolução nº 1.216/2015

Uma vez que o paciente solicita a eutanásia ao médico assistente,


este deve encaminhar o pedido para que seja constituído o Comitê
Científico Interdisciplinar para o Direito de Morrer com Dignidade.
Deve ser feita, então, a avaliação psicológica do paciente, a ser incluída
em seu prontuário médico. Esses documentos devem ser enviados ao
Comitê para análise do caso, cabendo a ele concluir se os requisitos
legais estão efetivamente preenchidos.

O Comitê é composto por um médico especialista na doença que


acomete o paciente, um psicólogo ou psiquiatra que possa confirmar
a valoração inicial e determinar se o paciente está em plena posse de
suas faculdades mentais e, finalmente, por um advogado, que deve

Conselho Federal de Medicina 75


verificar o cumprimento das normas. O Comitê é exclusivo para cada
caso porque as patologias dos que solicitam a eutanásia são variáveis.

Basta a solicitação inicial do paciente para a instalação do


Comitê, não sendo necessário ratificar o seu consentimento nessa
fase. A avaliação psicológica é que determina se ele está em uso de sua
autonomia pessoal. No entanto, o paciente pode desistir da solicitação
a qualquer momento, inclusive no instante que anteceder ao início do
procedimento eutanásico.

O quórum do Comitê será a totalidade de seus membros


(três pessoas), e a decisão não será, necessariamente, tomada por
unanimidade. Caso não se consiga chegar a um consenso, admite--
se que a decisão seja tomada por maioria. O procedimento deve ser
realizado no prazo máximo de 15 dias corridos, a partir do momento
em que o paciente o solicitar.

O Comitê não pode ser integrado por profissionais com


objeção de consciência, ainda que, na Colômbia, em virtude de outras
decisões constitucionais, as instituições médicas não tenham o direito
de ser objetoras de consciência. Consequentemente, devem ter equipes
médicas dispostas a realizar a eutanásia.

3. Resolução nº 1.051/2016, do Ministério da Saúde

Após a Resolução nº 1.216/2015, o Ministério da Saúde expediu


a Resolução nº  1.051/2016, que regula a “diretiva antecipada de
vontade” ou “testamento vital”.

Essa resolução é de grande importância porque buscou resolver


os problemas que podem surgir pela falta de consentimento do paciente
no momento da eutanásia ou do não prolongamento da vida por meios
artificiais, nos casos de doenças que restrinjam o uso da razão ou de
situações repentinas que não permitam a decisão ipso facto.

76 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Na resolução, a “diretiva antecipada de vontade” é entendida
como “a declaração da vontade de qualquer pessoa capaz, saudável ou
doente, em plena posse de suas faculdades legais e mentais, e com pleno
conhecimento das implicações da declaração de recusa de se submeter
a meios, tratamentos e/ou procedimentos médicos desnecessários, que
visam prolongar sua vida” (COLÔMBIA, [2016]).

A diretiva antecipada de vontade, que pode ser lavrada por


escritura pública, perante um tabelião, busca garantir o direito à
autonomia da pessoa e sua decisão de não prolongar a vida, mesmo
que seja incapaz de se manifestar.

Resta claro que a Resolução nº  1.051/2016 visa estabelecer


parâmetros para que um paciente ou uma pessoa em pleno estado
de saúde e capaz, do ponto de vista legal, possa determinar, com
antecedência, ante uma doença terminal ou crônica ou qualquer evento
súbito catastrófico, a possibilidade de eutanásia ou de simplesmente
não prolongar sua vida por meios artificiais.

4. Sentença T-544/2017: eutanásia de crianças e de


adolescentes

É importante destacar que, até 2017, na Colômbia, tanto a


jurisprudência quanto as resoluções do Ministério da Saúde não haviam
regulamentado, expressamente, a prática da eutanásia em crianças e
adolescentes. Ao contrário, havia uma grande lacuna sobre o tema.

A Corte Constitucional expediu, então, a decisão de tutela


T-544/2017 (COLÔMBIA, [2017]), que, assim como a decisão
T-970/2014, declarou a perda do objeto da ação em razão da morte
natural do menor requerente, em consequência das graves doenças
de que padecia desde o nascimento. A perda do objeto, no entanto,
como já ficou esclarecido, não impediu que a Corte emitisse um
pronunciamento e que exortasse ou ordenasse a prática de atos que
visavam remediar a violação do direito fundamental tutelado.

Conselho Federal de Medicina 77


A Corte ordenou ao Ministério da Saúde que emitisse
regulamentação garantindo o direito à morte digna a crianças e
a adolescentes, nos mesmos termos estabelecidos para adultos,
incluindo o consentimento substitutivo estabelecido pela Resolução
nº 1.216/2015. O Tribunal declarou, ainda:

(vii) em virtude dos princípios da igualdade e


da não discriminação, da defesa do interesse
superior da criança e do adolescente, da
efetividade e absoluta prioridade dos direitos
da criança e do adolescente, e da ausência de
argumentos razoáveis para diferenciação dos
adultos, é necessário aplicar um tratamento
análogo, ou seja, crianças e adolescentes também
são titulares desse direito fundamental.
(viii) um argumento em contrário apoiaria a
falta de reconhecimento do interesse superior
da criança e do adolescente e levaria a admitir
que o Estado impede que adultos sofram
intensamente por causa de uma doença
terminal, mas não faz o mesmo pela criança
e pelo adolescente, permitindo, para eles, o
sofrimento que decorre do tratamento cruel e
desumano, com consequente afetação de sua
dignidade. […]
(xi) a falta de regulamentação nega, de fato, a
aplicabilidade da lei e, com isso, permite um
tratamento cruel e desumano, humilhando
a dignidade da criança e do adolescente.
(COLÔMBIA, [2017])

Dando cumprimento à decisão de tutela da Corte Constitucional,


o Ministério da Saúde expediu a resolução que estabelece o procedimento
para aplicação da eutanásia em crianças e adolescentes. Trata-se da
Resolução nº  825, de 9 de março de 2018, que contém importantes
condicionamentos sobre a capacidade deles exigida para se tomar tal
decisão: “(i) capacidade de comunicar a decisão; (ii) capacidade de
entendimento; (iii) capacidade de raciocinar e (iv) capacidade de julgar”
(COLÔMBIA, [2018]).

78 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Da mesma forma, a resolução excluiu a aplicação da eutanásia
para um grande grupo de crianças e adolescentes: (1) recém-nascidos
e neonatos; (2) crianças na primeira infância (até os 6 anos de idade);
(3) crianças de 6 a 12 anos, a menos que atinjam um desenvolvimento
neurocognitivo e psicológico excepcional, que lhes permita tomar uma
decisão livre e voluntária, e que tenham o conceito pessoal de morte
esperado de uma criança com mais de 12 anos – a criança deve ser capaz
de entender que a morte é um fato irreversível, universal e inexorável;
(4) crianças e adolescentes com estados alterados de consciência; (5)
crianças e adolescentes com deficiências intelectuais; e (6) crianças e
adolescentes com distúrbios psiquiátricos que alterem a capacidade de
entender, raciocinar e emitir um juízo reflexivo.

A eutanásia para crianças e adolescentes acabou sendo muito


restrita e, independentemente da necessidade de regulamentação, os
pais de um determinado grupo populacional não podem solicitar a
eutanásia para filhos com doenças crônicas, catastróficas e/ou em
estado terminal, o que significa dizer que estes terão o sofrimento físico
e mental provocado pela enfermidade prolongado indefinidamente, o
que acabará, mais cedo ou mais tarde, em morte.

Em resumo, a Resolução nº  825/2018 assegura o direito


de morrer com dignidade a um determinado grupo de crianças e
adolescentes, que se reduz a:

♦♦ Crianças e adolescentes entre 12 e 18 anos que não


apresentem:

• estados alterados de consciência;

• incapacidade intelectual;

• transtornos psiquiátricos diagnosticados que alterem


a capacidade de entender, raciocinar e expressar um
julgamento reflexivo.

Conselho Federal de Medicina 79


♦♦ Crianças e adolescentes entre 6 e 12 anos que:
• alcancem um desenvolvimento cognitivo e psicológico
excepcional, que lhes permita tomar uma decisão livre,
voluntária, informada e inequívoca;
• tenham um conceito de morte que atinja o nível esperado
de uma criança com mais de 12 anos de idade, isto é, a
criança entre 6 e 12 anos deve conceber a morte como
um fato irreversível, universal e inexorável.

Vendo as coisas dessa forma, fica mais do que claro que é


pequeno o grupo populacional de crianças e adolescentes, e de pais,
que podem aspirar à prática da eutanásia como meio de encurtar o
sofrimento quando o resultado inevitável e forçoso é a morte, em um
tempo mais curto ou mais longo.

Essas restrições submetem um grande grupo de menores a


sofrimento e a um tratamento cruel que não pode ser reduzido por
meios médicos legalizados.

Prolongar o sofrimento de um menor sem argumentos de peso


é, nas palavras da Sentença C-239/1997, obrigar a criança a realizar atos
heroicos, o que constitui tratamento indigno diante do olhar sofrido e
impotente de seus pais que, mesmo que queiram, não podem fazer
nada por simples vedação legal. É ignorar que, também para a criança
e o adolescente, a vida digna, por curta que seja, implica o direito de
morrer com dignidade. E ignorar esse direito fundamental para os
menores sem capacidade para decidir equivale a anular a sua dignidade
enquanto sujeitos morais na sociedade. Isso constitui indolência do
Estado diante de um menor que, por simples questões naturais, não
tem capacidade para tomar uma decisão ou para expressá-la.

A Resolução nº  825/2018 também ignora completamente o


processo de formação psicológica e moral da pessoa humana, um
processo suficientemente abordado pela ciência e que emana do ser
humano como uma questão “natural”, no sentido grego desse termo.
A resolução só permite a prática da eutanásia em crianças de forma

80 Medicina e direito: dilemas da modernidade


excepcional, vale dizer, para aquelas abençoadas pela natureza para
atingir um desenvolvimento cognitivo e racional superior ao de sua
idade biológica.

A resolução marca uma distinção irracional entre menores,


ignora a capacidade jurídica e a tutela legal dos pais e, finalmente,
submete, sem argumentos, um grande grupo de crianças e adolescentes
que sofrem de doenças terminais ou crônicas, com sofrimento severo,
a tratamento cruel e discriminatório.

5. Eutanásia: direito legitimado em um debate público

Graças ao monitoramento feito na internet sobre a prática da


primeira eutanásia legal na Colômbia e na América Latina, o caso
Ovídio González Correa teve um impacto efetivamente mundial na
mídia. Há, inclusive, registros na imprensa da China, da Índia e de
outros países do Oriente.

O que é habitual na prática profissional é fazer o projeto de


toda uma estratégia jurídica que permita levar adiante o objetivo do
processo – no caso, alcançar com êxito a reivindicação do direito que
cabia a Ovídio González Correa.

Planejei uma estratégia legal que, ante a liquidez e a certeza do


direito fundamental, contemplava, na última instância judicial, uma ação
de tutela; obviamente, não tinha a intenção de expor publicamente a
família do paciente. Mas quando a clínica cometeu o erro de não realizar
a eutanásia no dia marcado, procedimento que estava já autorizado, o
cenário mudou.

Inicialmente, o Comitê Científico autorizou a prática da eutanásia;


Ovídio e Alícia, sua esposa, marcaram-na para 26 de junho de 2015,
sexta-feira. No dia agendado, estávamos a caminho do estabelecimento
de saúde quando nos foi informado que o Comitê havia determinado
a suspensão do procedimento. A recusa, no último minuto, foi

Conselho Federal de Medicina 81


apresentada por um oncologista que se juntou ao Comitê. Sua razão
era clara: Ovídio era um paciente ideal para a eutanásia; no entanto, esse
médico não tinha claro se aquele era o momento certo para a realização
do procedimento, referindo-se a tratamentos paliativos que poderiam
melhorar sua qualidade de vida e ignorando, com isso, sua autonomia
pessoal e sua decisão de não continuar vivendo. Mais tarde, quando
impetrei a ação de tutela, argumentei perante a Corte que a atuação
do oncologista constituiu um ato de paternalismo médico que violou
o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à autonomia
pessoal protegido na sentença de despenalização da eutanásia.

A situação me fez compreender o temor da equipe médica


quanto à repercussão – na cidade e no País – da realização da primeira
eutanásia na Colômbia, e me levou a apelar para um “Litígio de Alto
Impacto”, uma figura pouco conhecida e raramente utilizada na
Colômbia, que pode ser definida como o uso da mídia para colocar um
processo judicial em debate público.

Vale esclarecer que os demais membros da equipe médica e


assistencial do estabelecimento de saúde, com quem tivemos contato
desde o pedido inicial, se mostraram sempre respeitosos com relação à
decisão de Ovídio González e dispostos a realizar a eutanásia. O único
contratempo, que deu origem à estratégia do litígio de alto impacto, foi
a recusa tardia do referido oncologista, que não era o médico assistente
e, mesmo assim, cancelou o procedimento.

A envergadura do direito em jogo, a necessidade de sua


legitimação na opinião pública e nas equipes médicas do País, que
passariam a ter que realizar o mesmo procedimento, bem como a
urgência para sua realização no caso concreto, me permitiram o acesso
ao litígio de alto impacto, atendendo rigorosamente às regras éticas que
deveriam ser respeitadas na sua abordagem no debate público.

Em primeiro lugar, era preciso contar com a autorização do


paciente – uma vez que o direito à eutanásia surge da sua autonomia
pessoal – e com o acompanhamento familiar para poder tratar do caso

82 Medicina e direito: dilemas da modernidade


midiaticamente. Para isso, foi fundamental envolver essas pessoas nas
consequências do debate público. Não havia espaço para erro porque
estava em questão a legitimidade de um direito fundamental que nascia
no espectro da prática legal colombiana, com grande repercussão na
América Latina. Cada movimento deveria ser pensado e articulado
meticulosamente.

Tudo isso me produziu certa vertigem. A experiência


como defensora dos direitos humanos deu-me um conhecimento
suficientemente sólido para entender a fragilidade da defesa dos
direitos fundamentais em um País que transitou entre a negação e a
violação constante desses direitos. O acompanhamento do debate
público que fiz, quando das sentenças da Corte Constitucional sobre
a despenalização do consumo de drogas, em 1994, e do aborto, em
2006, me dava um panorama preciso do que enfrentaria. Além disso,
devo reconhecer o papel político que tenho desempenhado na defesa
dos direitos humanos em Pereira, minha cidade, e no País, e o meu
compromisso ético e de vida com tais direitos; por tudo isso, repito,
não havia espaço para erro.

Possivelmente, entre todos os sujeitos envolvidos, eu era a


única ciente das implicações que teríamos quando a bomba midiática
explodisse. Também era lógico que apenas eu compreendia a situação.
O meu papel era ser a advogada de defesa, e os sentimentos pessoais,
nesse caso, não podiam entrar no meu terreno. Minha atuação deveria
ficar dentro da estrutura da racionalidade política e, embora as questões
humanas se destacassem, conter o “impulso da natureza” era outro
papel a se cumprir.

Abstraindo o lado pessoal, passei a concretizar os impactos


previstos e alcançados com o caso da eutanásia legal na Colômbia como
litígio de alto impacto e como exemplo fundamental para a sociedade
colombiana do alcance positivo de uma opinião pública formada.

Eis o resumo do planejamento feito:

Conselho Federal de Medicina 83


Primeira intenção: dar conhecimento aos cidadãos em geral
de que a eutanásia é um direito fundamental na Colômbia, com todas
as garantias para o seu verdadeiro exercício, a partir da Resolução
nº 1.216/2015 do Ministério da Saúde.

Segunda intenção: legitimar a eutanásia em um País


extremamente religioso. Não era fácil conseguir vencer o debate na
opinião pública porque, além de tudo, havia um homem pré-moderno
como Procurador-Geral da Nação,1,2,3 capaz de usar a fé para avançar
seu conjunto de ataques autoritários e inconstitucionais para reduzir
os direitos fundamentais ao mínimo possível. Sua intenção estava
centrada em alcançar, novamente, a penalização do aborto e do
consumo de drogas e, sem dúvida, a eutanásia seria sua nova frente
de batalha.

Assim, o debate não poderia ser levado à fronteira da moralidade


ou da ética, devendo ser mantido nos limites do Direito. O fator
fundamental para enfrentar o debate público dentro do marco jurídico
foi inseri-lo em seu próprio contexto, e seu contexto era justamente o
dos “direitos”. Retirar do âmbito jurídico o direito a uma morte digna
poderia ter enterrado sua legitimidade. Quando se descontextualiza
um tema ou uma situação, ele sempre acaba mal interpretado, mal-
entendido, penalizado e demonizado.

1
N.  T.: A Procuraduría General de la Nación não equivale à Procuradoria-Geral da República nem ao
Ministério Público do Brasil. A função de persecução penal do Ministério Público brasileiro está a cargo,
na Colômbia, da Fiscalía General de la Nación. No original: “La Fiscalía General de la Nación hace parte de la
Rama Judicial. Su función constitucional es la de investigar y acusar a los presuntos infractores de la ley penal
ante juzgados y tribunales competentes y velar por la protección de la víctimas y testigos intervinientes en
los procesos judiciales (Artículo 250 de la Constitución Política).”
2
N. T.: A Procuraduría General de la Nación, cúpula do Ministério Público colombiano, não tem um órgão
homólogo no Brasil, apesar dos nomes muito próximos à nossa nomenclatura. A Procuraduría General
de la Nación reúne funções que, no âmbito federal, estão atribuídas à Procuradoria-Geral da República, à
Advocacia-Geral da União, à Controladoria-Geral da União, entre outros órgãos brasileiros. No original: “El
Procurador General de la Nación es el supremo director del Ministerio Público (Artículo 275 de la Constitución
Política). Entre otras funciones le corresponde: Proteger los derechos humanos, vigilar el cumplimiento
de la Constitución, las leyes y las decisiones judiciales, además de ejercer el poder disciplinario contra los
funcionarios estatales.”
3
N. T.: A propósito da confusio linguarum no uso desses nomes institucionais, confira-se: RIBEIRO, Diaulas
Costa. Ministério Público: dimensão constitucional e repercussão no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003.
p. 19-33.

84 Medicina e direito: dilemas da modernidade


No debate público, pisar nessas minas implica mandar para o
espaço, em átomos, o tema tratado. Portanto, um elemento a ser levado
em conta, com clareza, são as fronteiras do debate e o papel de cada
sujeito político. Daí que Ovídio González tenha assumido o papel de
alguém que, sem buscar sentimentos de pena, de comiseração, e com
toda a dignidade à sua frente, demonstrou o que realmente implica
o sofrimento desumano. “Matador” nunca extrapolou o seu papel
de filho e de cartunista; pelo contrário, contribuiu para a solidez dos
argumentos e do debate. De minha parte, nunca tive a pretensão de
ser a protagonista do caso ou de ir além do meu papel de defensora.

Os limites de cada um estavam claros, os limites éticos e jurídicos


estavam compreendidos e, hoje, a discussão sobre o direito de morrer
com dignidade na Colômbia está resolvida.

A última pesquisa realizada sobre o assunto mostrou que


73% dos colombianos4 aprovam a eutanásia no caso de uma doença
terminal ou crônica que imponha sofrimentos ao paciente.

O debate moral corresponde à esfera exclusivamente privada


do paciente ou do cidadão; não compete ao debate público e muito
menos ao Estado, porque é apenas um direito que surge do foro íntimo
de cada indivíduo, daqueles comportamentos soberanos “em que a
pessoa, uma vez reconhecida como sujeito moral e, consequentemente,
responsável e autônomo, não pode ser privada da capacidade de tomar
decisões em assuntos que só a ela dizem respeito” (DÍAZ, 2015, p. 16).

Finalmente, o humor – tanto o do cartunista “Matador” como,


claro, o de Dom Ovídio – teve um papel essencial à época do debate
público e da compreensão da decisão no meio familiar. O humor
dessacralizou o tema, reduzindo-lhe o peso e a dramaticidade, e
dando-lhe certa objetividade que permitiu ao cidadão comum entender
que a morte pode ser acompanhada de dignidade, que o sofrimento
desnecessário pode ser encurtado na batalha que sempre levará ao fim,

Conforme pesquisa realizada pela cadeia de rádio RCN. Disponível em: https://bit.ly/2ZmmUpn. Acesso
4

em: 30 jul. 2018.

Conselho Federal de Medicina 85


e que, fundamentalmente, as decisões autônomas que correspondem
exclusivamente ao indivíduo – e, quando muito, se estendem ao
ambiente familiar – não podem estar sujeitas a restrições normativas.

O debate superou as subjetividades religiosas, sendo conduzido


e construído com objetividade política e jurídica. Isso permitiu criar
uma razão pública suficientemente bem sustentada entre os cidadãos
para abordar o debate sem as visões confessionais pretendidas por um
setor da Igreja e, claro, pela Procuradoria-Geral da Nação, liderada por
um “lefebvrista”.5

O grande sucesso dessa estratégia de mídia foi introduzir a


eutanásia nos lares, fazendo as famílias discutirem, quando reunidas
à mesa, as fronteiras individuais entre o íntimo e o pessoal, o ético e
o religioso, a dor e a dignidade, e o limite dos direitos. Esses debates
familiares, que ocorreram em muitos lares, permitiram que o debate
público, por sua vez, vencesse a institucionalidade pré-moderna da
Colômbia, que ainda conserva algum poder político.

6. Alguns esclarecimentos sobre o “Caso Ovídio


González Correa”

Esclareço que, apesar da coincidência dos sobrenomes do


paciente e dos meus, “González Correa”, não há nenhum parentesco
entre nós. Conheci Ovídio González Correa no início do processo,
quando manifestei à família o meu apoio jurídico sobre o tema, a
pedido de um dos seus filhos. Dom Ovídio já estava magro, perturbado
por um carcinoma metastático na cavidade oral, ou “câncer vestibular”
(um câncer de boca), de que sofria havia cinco anos. Tinha lutado
contra a doença todo esse tempo e, vencido por ela, estava disposto a
acabar com o sofrimento que também não podia derrotar e que afligia
o seu corpo.

N. T.: Marcel Lefebvre, controverso arcebispo francês (1905-1991), líder de movimentos ultraconservadores
5

católicos.

86 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Ovídio González Correa não queria que o curso natural dos
acontecimentos continuasse, porque estava claro que sua condição ia
de mal a pior. Em pouco tempo se tornaria completamente dependente
da esposa e dos filhos – para as funções vitais e no mais íntimo do seu
ser. Por isso, para ele, a morte digna era um imperativo, uma morte
que corresponderia à ode à vida que foi sua passagem por este planeta.

Dom Ovídio foi um homem portentoso, robusto e corado em


seus dias mais jovens, apesar de sua pequena estatura; de um humor
retumbante – que mostrou em seu leito de morte e do qual se lembram
a família e os amigos –, de filosofia anarquista, mas sem militância,
simplesmente fazendo uso de sua liberdade. Casado por 47 anos, teve
quatro filhos e três netos, que conheceu e apreciou antes de morrer. Foi
sapateiro de profissão, falido pela abertura econômica, que promoveu a
importação de calçados de má qualidade da China a custo muito baixo.

A família, capaz de superar suas crenças religiosas, apoiou


incondicionalmente o marido e pai – como Alícia, sua esposa, e seus
filhos que, entre humor, risos e barulho, esconderam a tristeza de ver
o pai, oprimido, morrer lentamente. Todos permaneceram unidos
em torno de Dom Ovídio, a quem apoiaram sem questionamentos,
compreendendo seu desejo de morrer antes de ser completamente
destruído pela doença.

Esse foi o Ovídio González Correa que conheci, já no último


suspiro de sua vida, na batalha para alcançar a morte, algo paradoxal
nesta sociedade que se dedica ao espalhafato e ao apetite luxurioso pela
vida, passando muitas vezes ao largo de reflexões sobre as questões
mais vitais e profundas de nossa própria condição humana.

O pedido de eutanásia foi assinado por Ovídio González Correa


que, superando a minha orientação, entregou três cópias adicionais: ao
médico que o assistia, à clínica oncológica em que fazia tratamento e
ao médico que tinha feito a cirurgia maxilofacial para reconstruir parte
do seu rosto.

Conselho Federal de Medicina 87


Ao fazer essas quatro solicitações, o paciente demonstrava
sua vontade inquebrantável em relação à eutanásia. Portanto, a prova
necessária do primeiro elemento constituinte do direito de morrer com
dignidade, para o processo que inauguraria, já estava demonstrada.

O estabelecimento que lhe prestava serviços de saúde pediu ao


psiquiatra de plantão que avaliasse sua condição mental. Esse médico
produziu um fundamentado relatório e reconheceu a ausência de
qualquer estado depressivo que levasse o paciente a solicitar a eutanásia,
anotando que Ovídio González Correa tinha boa saúde mental e que
sua decisão era livre, consciente e autônoma.

No entanto, o estabelecimento de saúde decidiu não assumir


o caso e transferiu-o para a clínica oncológica que implementava o
tratamento terapêutico do câncer sofrido pelo paciente havia mais
de um ano. A clínica aderiu à Resolução nº  1.216/2015 e iniciou o
procedimento estabelecido. Quando as etapas foram concluídas, em
menos de uma semana, foi convocada uma reunião com Dom Ovídio
para comunicar-lhe a decisão de realizar a eutanásia.

Era quarta-feira, às 2h da tarde, e o verão estava devastador.


O médico que o atendia explicou – a ele, a seus filhos e a mim –, na
ausência de Alícia, a esposa, o que implicava a morte digna e, como
último requisito, perguntou novamente ao paciente: “Dom Ovídio,
o senhor deseja que se realize a sua morte digna?”. Ele, olhando
fixamente para o médico, respondeu: “Doutor, quero que me faça uma
eutanásia!”.

Essa foi a confirmação de sua decisão ante o corpo médico. De


fato, entendi que Dom Ovídio chamava a morte e seu contexto pelo
nome próprio. Talvez lhe parecesse um eufemismo chamar a eutanásia
de “morte digna”. No entanto, mais tarde, confirmei, no leito de morte,
que sim, tratava-se de uma morte digna.

Visitei Ovídio González Correa em sua última noite de vida.


Aquele ambiente médico gerava tristeza, mas também a paz de quem

88 Medicina e direito: dilemas da modernidade


vai compreendendo que a sua vontade foi respeitada e que a dor, se não
pode ser combatida, simplesmente não se combate, mesmo que isso
signifique terminar a própria vida.

A família também se sentia tranquila por respeitar e fazer


respeitar a decisão de Dom Ovídio. Alícia, com os olhos sempre
lacrimosos, olhava-nos consternada, mas em paz; despedia-se do
companheiro de sua vida e, embora religiosa, sabia que acompanhar
o marido na decisão mais difícil que havia tomado era a prova do seu
amor e da sua fidelidade.

Volto-me àquela quarta-feira, ao consultório médico e à resposta


de Dom Ovídio: “Doutor, quero que me faça uma eutanásia!”. O
médico oncologista informou que ele precisava tomar a decisão sobre
o dia e o lugar do procedimento. Dom Ovídio respondeu com a
mesma atitude impressionante da resposta anterior, mas acrescentando
um pouco de humor para aliviar a tensão do ambiente: “Doutor, na
minha casa eu não quero que seja feito. Já criei muita tragédia para
adicionar mais uma. Quanto ao dia, isso eu decido com Alícia, senão
ela me mata”.

O riso transformou a situação. Compreendi que a morte não era


uma tragédia, como tradicionalmente a vivemos no Ocidente. Entendi
que ela podia ser mais leve, que era um fato tão natural da vida como
o próprio nascimento. Naquele dia, por volta das 17h, Ovídio decidiu
com Alícia que a eutanásia seria praticada dois dias depois, na sexta-
feira, dia 26 de junho de 2015.

Naquela sexta-feira, quando estávamos indo para a clínica, dez


minutos antes de chegarmos, a assistente social telefonou para um dos
filhos de Dom Ovídio e o informou de que o processo tinha sido,
mais uma vez, cancelado; não era necessário irmos até lá. Decidi que
deveríamos prosseguir e que a clínica tinha a obrigação de nos informar
pessoalmente a retratação da decisão.

Ao chegar, pedi para conversar com o médico que deveria realizar


a eutanásia. Na verdade, fomos ao consultório do anestesiologista-

Conselho Federal de Medicina 89


intensivista que concordara em fazê-la. Ele nos disse que tinha o leito
reservado na unidade de cuidados intensivos (UCI) e os medicamentos
necessários para o procedimento, mas que a retratação tinha sido
decidida na cidade de Manizales, pelo mesmo médico oncologista que
havia integrado o Comitê Científico Interdisciplinar para o Direito de
Morrer com Dignidade de Ovídio González Correa.

Em meio à discussão respeitosa com o anestesiologista, atrevi-


me a dizer: “Doutor, é uma verdadeira tortura isso que a clínica está
fazendo. Dom Ovídio e sua família prepararam-se para a morte, inclusive
para Dona Alícia, que é uma mulher católica. Devem compreender o
que esse momento significa para ela”.

O médico imediatamente disse algo que me surpreendeu:


“Dona Alícia, acredite em mim, sou católico como a senhora e,
porque sei do sofrimento de Dom Ovídio, decidi realizar a eutanásia.
Mas o cancelamento não foi uma decisão minha; eu sou apenas um
empregado desta clínica”.

Era quase como ler em voz alta a frase da despenalização da


eutanásia na Sentença C-239/1.097: “O sujeito ativo considera a vítima
uma pessoa com igual dignidade e direitos, mas que está em tal situação
de sofrimento que a morte pode ser vista como um ato de compaixão
e misericórdia”.

A sentença era simplesmente uma cópia fiel da realidade e


corroborava sua pertinência e validade ao apontar a razão pela qual o
sujeito ativo do delito – o médico – não poderia ser condenado por um
ato de compaixão.

Durante o processo, nunca vi Dom Ovídio desanimado, a não


ser naquele dia, naquele momento que fez renascer sua tristeza. Então,
após o encontro com o anestesiologista, encontrei a família e ali propus
minha segunda estratégia: novamente, o litígio de alto impacto.

Após retomarmos os passos já descritos, vencemos o processo


e conseguimos legitimar o direito dos colombianos a uma morte digna.

90 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Foi assim que Ovídio González Correa foi informado de que a clínica
realizaria a eutanásia.

Epílogo: Colômbia, 3 de julho de 2015, sexta-feira

Na quarta-feira seguinte, comparecemos à clínica para a


notificação a Dom Ovídio da decisão de se realizar o procedimento, o
que ocorreu na presença do gerente médico e do diretor científico da
clínica. Ele, calmo como sempre, assinou o termo de consentimento
informado e, mais uma vez, ratificou verbalmente sua decisão de
morrer com dignidade. Dois dias depois, na sexta-feira, 3 de julho de
2015, ele foi submetido à eutanásia.

Inicialmente, foi aplicada uma sedação profunda na UCI;


três horas depois, foram aplicados dois medicamentos, sendo um
depressor do sistema respiratório e outro para reduzir a frequência
cardíaca. A medicação levou à paralisação de todas as funções vitais em
53 minutos, com supervisão do anestesiologista. Durante esse tempo, a
família se reuniu ao redor do corpo de Dom Ovídio González Correa,
até o momento em que foi declarada a sua morte.

Como resultado desse primeiro caso, estabeleceu-se o protocolo


médico para a eutanásia nesse estabelecimento de saúde, uma clínica
oncológica que, além de tratamentos, oferece cuidados paliativos.

Referências

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21 maio 2019.

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el derecho a morir con dignidad de los niños, niñas y adolescentes. Bogotá:
Ministerio de Salud y Protección Social, [2018]. Disponível em: https://bit.
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postmodernidad. Bogotá: Siglo del Hombre Editores: Universidad de los
Andes, 2012.

TOURAINE, A. ¿Qué es la democracia? México: Fondo de Cultura Económica,


2006.

Conselho Federal de Medicina 93


MORTE ENCEFÁLICA E A RESOLUÇÃO DO CONSELHO FEDERAL
DE MEDICINA Nº 2.173/2017

Hideraldo Luis Souza Cabeça


Médico neurologista.
Conselheiro federal pelo estado do Pará.

Desde os primórdios da humanidade, o conceito de “morte”


tem evoluído de forma exponencial. Trata-se de assunto que sempre
domina a curiosidade e as discussões dos meios científicos no mundo,
sendo tema de grande relevância ao Conselho Federal de Medicina e à
própria sociedade.

Para melhor compreensão sobre a morte encefálica (ME),


alguns conceitos relacionados à consciência se fazem necessários.
A consciência é um perfeito conhecimento de si e do ambiente. E
há uma estrutura anatômica que desempenha papel de fundamental
importância em tal conhecimento: o tronco encefálico, estrutura que
apresenta função primordial na vida do indivíduo, funcionando como
um interruptor que carreia inúmeras informações até o córtex cerebral.

Em vigília, o indivíduo domina todas as suas funções de


alerta; na outra ponta, no extremo da incapacidade de alerta, está
o indivíduo em estado de coma, em que há extrema diminuição da
resposta de alerta e de percepção do meio interno e externo. São várias
as etiologias que podem levar alguém ao estado de coma, sobretudo
alterações metabólicas (como disfunções renais e do fígado, podendo
surgir uremia, hepatopatia, alterações da tireoide etc.) e tumores e
hematomas intracranianos, entre outras. O indivíduo em coma pode
se restabelecer através de medidas médicas terapêuticas, entretanto,
em algumas situações, ocorre o agravo das manifestações clínicas, e
o estado de coma pode se tornar irreversível, evoluindo, em algumas
situações, para morte encefálica.

A ME é a cessação irreversível de todas as funções do encéfalo,


inclusive do tronco encefálico, avaliada mediante todos os métodos

Conselho Federal de Medicina 95


disponíveis, clínicos e laboratoriais. Este conceito demonstra de
forma inequívoca que, ao se estabelecer o diagnóstico de ME com
base em todo o criterioso fluxograma de avaliação clínico-laboratorial,
não ocorrerá, do ponto de vista médico, retorno desta situação. São
princípios fundamentais para constatar a ME: irreversibilidade do
estado de coma; ausência de reflexos do tronco encefálico; e ausência
de atividade cerebral cortical.

Para estabelecer a morte encefálica, há quatro critérios clínicos:


(1) conhecimento da causa do coma; (2) exclusão de causas reversíveis;
(3) confirmação da condução neuromuscular intacta; e (4) ausência de
reflexos do tronco cerebral.

A seguir detalha-se cada um desses critérios:

(1) Ter o conhecimento da causa do estado de coma: é preciso


saber por que o paciente se encontra em coma.

(2) Exclusão de causas reversíveis: é preciso excluir causas


tratáveis. Há uma disfunção na tireoide? Há um hematoma
no crânio que precisa de cirurgia imediata? Há uma sedação
importante, inadvertida, desse paciente? Desta forma, deve-se
corrigir tudo o que for tratável. Afastar as causas tratáveis ou
reversíveis é de fundamental importância quando da avaliação
clínica de paciente em estado de coma. Entre os aspectos a
serem observados, a temperatura é item obrigatório de avaliação;
na vigência de hipotermia (temperatura central menor que 35º
C), esta deverá ser corrigida. Não se pode definir o diagnóstico
de ME em pacientes em hipotermia. Na mesma esteira, não se
pode definir o diagnóstico em caso de uso de drogas com efeito
sedativo no sistema nervoso central e de insuficiência hepática
ou renal. Os valores de glicemia e sódio também necessitam
de avaliação laboratorial para afastar a suspeita de disfunções
metabólicas graves que mimetizem a morte encefálica. O médico
deve estar atento a aspectos clínico-laboratoriais que interfiram
no nível e conteúdo da consciência, levando o paciente ao
estado de coma.

96 Medicina e direito: dilemas da modernidade


(3) Avaliar a condução neuromuscular: deve-se obter
informações com os médicos de plantão e a partir da análise de
prontuário a fim de se ter absoluta certeza de que o paciente não
recebeu nenhuma substância que possa bloquear a condução
neuromuscular nem tem doenças que interfiram em tal
condução, como a síndrome de Guillain Barré, que pode evoluir
até que o paciente perca totalmente os movimentos.

(4) Ausência de reflexos do tronco encefálico: ausência de


movimentação ocular, sem reflexo pupilar à luz, de tosse, de
reação ao estímulo da córnea, dentre outras). Na ME, mesmo
que se vire a cabeça do paciente para a direita, para a esquerda,
para cima e para baixo, não ocorrerá qualquer movimentação dos
olhos, o que indica falência dos mecanismos de funcionamento
do tronco encefálico. A prova calórica é outro teste que se
faz para avaliar a função do tronco encefálico. Nesta prova,
o médico estimula o ouvido do paciente com água gelada no
intuito de avaliar a resposta a este estímulo, analisando assim
a motricidade dos olhos, o movimento ocular. Nos pacientes
em morte encefálica, não é observado qualquer movimento
dos olhos. No último teste, de reflexo de tosse, são estimuladas
regiões específicas para verificar se há reação no paciente.

A reunião desses critérios em um paciente em estado de


coma, sem qualquer resposta aos estímulos, estabelece critérios
para determinar o estado de coma aperceptivo, ou seja, o paciente
encontra-se em coma sem resposta ao estímulo doloroso, sem
reflexos no tronco encefálico e com resultado positivo para o teste
de apneia (em que o paciente é submetido a prova de apneia após 10
minutos de hiperoxigenação, e controle de oxigênio, pressão arterial e
frequência cardíaca). Não havendo incursão respiratória, estabelece-se
clinicamente o diagnóstico de morte encefálica. No indivíduo que se
encontra em morte encefálica não há qualquer reação aos estímulos
sonoros, táteis ou mesmo dolorosos.

Conselho Federal de Medicina 97


1. A evolução do diagnóstico de morte encefálica:
aspectos gerais da legislação e históricos

O diagnóstico de morte encefálica tem evoluído nas últimas


cinco décadas. Desde a publicação de “The depassed coma (preliminary
memoir)” (MOLLARET; GOULON, 1959), que definiu pela primeira
vez o conceito de ME, e de sua consolidação em 1968, pelo Ad Hoc
Committee of the Harvard Medical School to Examine the Definition
of Brain Death. Nos Estados Unidos, em 1981, o relatório da
President’s Commission for the Study of Ethical Problems in Medicine
and Biomedical and Behavioral Research, Defining death: a report on the
medical, legal, and ethical issues in the determination of death, determinou que
cabe à ciência médica o estabelecimento de critérios para o diagnóstico
de morte.

Em 1997, a Lei nº 9.434 deu competência ao Conselho Federal


de Medicina (CFM) para definir os critérios para diagnóstico de morte
encefálica. A lei dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do
corpo humano para transplantes e tratamento e dá outras providências.
Destaca-se, em seu artigo 3º, que “a retirada pós mortem de tecidos,
órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou
tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica,
constatada e registrada por dois médicos […], mediante a utilização de
critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho
Federal de Medicina” (BRASIL, 1997).

A lei, como citado, atribui ao Conselho Federal a definição de


critérios clínicos e tecnológicos. Surge então a Resolução CFM nº
1.480/1997, que estabeleceu o diagnóstico de morte encefálica no
Brasil, obrigando o reconhecimento da causa do coma, o intervalo
mínimo das provas de exame do paciente (em indivíduos acima de
dois anos de seis horas entre cada avaliação), exame complementar
obrigatório e dois médicos diferentes, sendo um destes especialista em
neurologia, neurocirurgia ou neuropediatria.

98 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Wijdicks (1995) realizou levantamento dos critérios para
determinar a ME em 80 países. Destes, 70 possuíam diretrizes clínicas
definidas para o diagnóstico da ME, com presença de coma e ausência
de reflexos de tronco encefálico e de resposta motora. A participação
de dois médicos era exigida em 34%. Em apenas 59% dos países era
exigido teste de apneia com nível de hipercapnia definido.

Shappel et al. (2013) revisaram a determinação da ME em 226


doadores de órgãos de 68 hospitais dos EUA. Os profissionais que
realizaram procedimentos foram intensivistas (37%), neurologistas
(28%), neurocirurgiões (15%) e de outras especialidades (20%).

As normas adotadas no Brasil pela Resolução nº 1.480/1997


incorporaram os procedimentos internacionais com maior grau de
rigidez e segurança. Tais normas se mostraram consistentes e seguras.
Entre os anos de 2001 e 2016 foram realizadas no Brasil 104.268
determinações de ME em conformidade com a Resolução CFM
nº 1.480/1997 e com a Lei nº 9.434/1997 (do Sistema Nacional de
Transplantes do Ministério da Saúde).

Com o avanço do conhecimento fisiopatológico da morte


encefálica, as sociedades médicas especializadas e o CFM determinaram
debates e análise do assunto no intuito de aprimorar os procedimentos
de determinação da ME no Brasil.

O Decreto Presidencial nº 9.175, de 18 de outubro de 2017,


que regulamenta a Lei nº 9.434/1997, estabelece através do artigo
17, parágrafo 1º, que “o diagnóstico de morte encefálica será com
base nos critérios neurológicos definidos em resolução específica do
Conselho Federal de Medicina”, e no parágrafo 3º que “os médicos
participantes do processo de diagnóstico de morte encefálica deverão
estar especificamente capacitados” (BRASIL, 2017).

Conselho Federal de Medicina 99


2. Os critérios de morte encefálica no mundo

Ao analisar como se estabelece o diagnóstico de morte encefálica


no mundo, observa-se uma variabilidade nos critérios:

• No Uruguai, por exemplo, a causa do coma pode ser definida


ou não, diferentemente do Brasil, em que há obrigatoriedade
desta definição; são realizadas duas provas clínicas sem
intervalo mínimo entre elas; o período de observação é de
uma hora e meia ou mais; o exame complementar é realizado
desde que não se comprove através do exame clínico o
diagnóstico de morte encefálica.

• Nos Estados Unidos todos os médicos podem diagnosticar


a morte encefálica; a causa do coma precisa ser conhecida;
o exame complementar deve ser feito na impossibilidade de
realização da prova clínica, ou na necessidade de otimizar
o protocolo de determinação de morte encefálica. Fato
interessante é que, nos EUA, a depender do estado, pode
ocorrer variabilidade na determinação da ME.

• No Canadá é obrigatório o exame de imagem ou outro


que comprove a ausência de fluxo ou atividade cerebral,
utilizando um dos meios de diagnóstico, e a causa do coma
precisa ser conhecida; duas provas clínicas são realizadas por
dois médicos diferentes com experiência comprovada no
método.

• Em Portugal há a obrigatoriedade de identificar a causa


do coma; duas provas clínicas são realizadas, e o exame
complementar não é obrigatório; dois médicos diferentes
realizam o exame clínico, sendo um deles neurologista ou
neurocirurgião e outro intensivista.

• No Reino Unido o exame clínico é o fundamental; duas


provas clínicas são realizadas, sem intervalo definido entre
cada prova; o exame complementar é necessário quando

100 Medicina e direito: dilemas da modernidade


não for possível fazer um exame clínico completo, que seja
definitivo para estabelecer clinicamente o diagnóstico de
morte encefálica; são necessários dois médicos registrados
há pelo menos cinco anos, com experiência na determinação
de morte encefálica.

• A Espanha exige fatores de exclusão semelhantes aos


utilizados no Brasil. Há obrigatoriedade de paciente em
coma arreativo, ausência de reflexos do tronco encefálico
e um teste de apneia mostrando uma pCO2 maior que 60
mmHg.

Como se pode perceber, há variações na determinação de


morte encefálica no mundo, e isto é fruto da estrutura de cada país, do
conhecimento da população sobre morte encefálica e da capacidade
desta população compreender que não há retorno à vida após se
estabelecer o diagnóstico de ME. É comum a necessidade de um período
maior de observação em paciente com diagnóstico de encefalopatia
anóxica, necessitando-se nestas circunstâncias de 24 horas ou mais de
acompanhamento para estabelecer o diagnóstico de ME.

3. A Resolução CFM nº 2.173/2017: a definição de


critérios da morte encefálica no Brasil

Após a publicação do Decreto Presidencial nº 9.175/2017,


surge a Resolução CFM nº 2.173/2017, fruto de muita discussão no
sentido de avançar com a norma de forma segura, com metodologia
bem definida para determinar o diagnóstico de morte encefálica no
Brasil.

Com a publicação da Resolução CFM nº 2.173/2017 alguns


pontos de avaliação foram modificados, outros aprimorados. Da
publicação da resolução, em dezembro de 2017, até o momento,
tem-se discutido em todo o Brasil a morte encefálica. Alguns pontos
merecem destaque:

Conselho Federal de Medicina 101


• A determinação da morte encefálica passa a ser uma
etapa obrigatória do atendimento dos pacientes com lesão
encefálica conhecida, irreversível e capaz de causar um
quadro de coma não reativo e apneia persistente.

• A obrigatoriedade de análise dos pré-requisitos na


determinação da ME trouxe maior segurança ao processo,
sendo necessários no momento da avaliação: temperatura
corporal (esofagiana, vesical ou retal) superior a 35º C;
saturação de oxigênio acima de 94%; pressão arterial sistólica
maior ou igual a 100 mmHg ou conforme tabela para
menores de 16 anos. O teste de apneia passa a ser realizado
uma única vez.

• A necessidade de o médico estar capacitado e ter adequada


experiência para diagnosticar a morte encefálica

Essa obrigatoriedade de capacitação dos médicos proporcionou


discussões e trouxe a oportunidade de aprimorar e compartilhar o
conhecimento. Em todas as regiões do Brasil, já ocorreram cursos de
capacitação de determinação de ME.

No dia 18 de outubro de 2017 foi aprovado o Decreto nº


9.175/2017, que regulamenta a Lei nº 9.434/1997 e cria o Sistema
Nacional de Transplante em modelo modificado. Neste decreto,
estabelece-se que:

Art. 17. A retirada de órgãos, tecidos, células e


partes do corpo humano poderá ser efetuada
após a morte encefálica, com o consentimento
expresso da família, conforme estabelecido na
Seção II deste Capítulo.
§ 1º O diagnóstico de morte encefálica será
confirmado com base nos critérios neurológicos
definidos em resolução específica do Conselho
Federal de Medicina - CFM.
§ 2º São dispensáveis os procedimentos previstos
para o diagnóstico de morte encefálica quando

102 Medicina e direito: dilemas da modernidade


ela decorrer de parada cardíaca irreversível,
diagnosticada por critérios circulatórios.
§ 3º Os médicos participantes do processo de
diagnóstico da morte encefálica deverão estar
especificamente capacitados e não poderão ser
integrantes das equipes de retirada e transplante.
(BRASIL, 2017)

Da análise deste artigo, depreende-se a incumbência do


Conselho Federal de Medicina de definir quais são os critérios para
o diagnóstico de morte encefálica. Pela primeira vez, a lei traz a
necessidade de capacitação específica do médico participante do
processo de diagnóstico. Com este encaminhamento estabelecido pelo
Decreto nº 9.175/2017, o CFM publica a Resolução nº 2.173/2017,
que define os critérios de morte encefálica. A resolução destaca:

Art. 1º - Os procedimentos para determinação


de morte encefálica (ME) devem ser iniciados
em todos os pacientes que apresentem coma
não perceptivo, ausência de reatividade
supraespinhal e apneia persistente, e que
atendam a todos os seguintes pré-requisitos:
a) presença de lesão encefálica de causa
conhecida, irreversível e capaz de causar morte
encefálica;
b) ausência de fatores tratáveis que possam
confundir o diagnóstico de morte encefálica;
c) tratamento e observação em hospital
pelo período mínimo de seis horas […].
(CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA,
2017)

É obrigatório que sejam ofertadas ao indivíduo todas as


condições para tentar salvá-lo. Passadas seis horas em que esforços são
realizados na perspectiva de recuperação, e permanecendo o paciente
em coma aperceptivo, inicia-se o processo de avaliação clínica para
morte encefálica. E é obrigatório que, ao ser avaliado, o paciente esteja
dentro de parâmetros de temperatura superior a 35º C, saturação de

Conselho Federal de Medicina 103


oxigênio acima de 94% e pressão sistólica igual ou superior a 100
mmHg, ou conforme os parâmetros de sua idade, conforme Tabela 1.

Tabela 1 – Parâmetros de pressão arterial por idade para diagnóstico de morte


encefálica
Pressão Artetial
Idade Sistólica (mmHg) Pam (mmHg)
Até 5 meses 60 43
De 5 meses a 2 anos incompletos 80 60
De 2 anos a 7 anos incompletos 85 62
De 7 a 15 anos 90 65

É obrigatória a realização de dois exames clínicos, teste de apneia


e exame complementar. O exame clínico precisa demonstrar que há
estado de coma e que não existe resposta à avaliação de todos reflexos
do tronco encefálico, sendo realizado por médico especificamente
capacitado. Entende-se por médico especificamente capacitado aquele
que tenha pelo menos um ano de experiência no atendimento de
pacientes em coma e já tenha realizado 10 determinações de morte
encefálica. De preferência, o médico especificamente capacitado deverá
ter uma das seguintes especialidades: medicina intensiva ou medicina
intensiva em pediatria, neurologia, neuropediatria, neurocirurgia ou
medicina de emergência.

O intervalo de avaliação médica para o procedimento de


determinação de morte encefálica, em maiores de 2 anos de idade,
passou a ser de uma hora. O teste de apneia é feito através de exame
de gasometria arterial pCO2; o valor de 55 mmHg é estabelecido como
parâmetro, pois, a partir dele, o paciente obrigatoriamente ativa os
centros respiratórios no tronco encefálico.

4. A equipe médica

Nenhum médico responsável por realizar procedimentos


de determinação de ME poderá participar de equipe de retirada e
transplante, conforme estabelecido no artigo 3º da Lei nº 9.434/1997

104 Medicina e direito: dilemas da modernidade


e no Código de Ética Médica. A direção técnica de cada hospital deverá
indicar os médicos capacitados a realizar e interpretar os procedimentos
e exames complementares para determinação de ME em seu hospital,
conforme estabelecido no artigo 3º da resolução. Essas indicações e
suas atualizações deverão ser encaminhadas para a Central Estadual de
Transplantes (CET).

São considerados capacitados médicos com no mínimo um ano


de experiência no atendimento de pacientes em coma, que tenham
acompanhado ou realizado pelo menos dez determinações de ME
e realizado treinamento específico para esse fim em programa que
atenda as normas determinadas pelo Conselho Federal de Medicina.
Na ausência de médico indicado pela direção técnica do hospital,
caberá à CET da respectiva unidade federativa indicar esse profissional,
e à direção técnica, disponibilizar as condições necessárias para sua
atuação.

5. Dos exames complementares utilizados na


determinação da morte encefálica

O exame complementar é obrigatório e deve comprovar de


forma inequívoca uma dessas condições: (a) ausência de perfusão
sanguínea encefálica; (b) ausência de atividade metabólica encefálica;
ou (c) ausência de atividade elétrica encefálica. A escolha do
exame complementar levará em consideração a situação clínica e a
disponibilidade local, logo será dependente da estrutura da cidade ou
do hospital em que ocorre a determinação da ME. Na realização do
exame complementar escolhido, deverá ser utilizada a metodologia
específica para determinação de morte encefálica, e o laudo do exame
deverá ser elaborado e assinado por médico especialista no método em
situações de morte encefálica.

Um avanço na resolução está relacionado à presença de


alterações morfológicas ou orgânicas, congênitas ou adquiridas, que
impossibilitam a avaliação bilateral dos reflexos fotomotor, córneo-

Conselho Federal de Medicina 105


palpebral, oculocefálico ou vestíbulo-calórico, sendo possível o
exame em um dos lados; constatada ausência de reflexos do lado sem
alterações morfológicas, orgânicas, congênitas ou adquiridas, dar-
se-á prosseguimento às demais etapas para determinação de morte
encefálica, havendo obrigatoriedade de fundamentar em prontuário
estas alterações morfológicas ou orgânicas.

Este aspecto da resolução traz a oportunidade de que um


paciente que desde tenra idade é portador de disfunção ocular, por
exemplo, por uma toxoplasmose congênita, com perda da capacidade
visual, seja diagnosticado com ME, respeitados todos os critérios até
aqui estabelecidos na avaliação clínica e complementar.

O exame complementar em geral é realizado entre o primeiro


exame clínico e o segundo exame, ou após o segundo exame clínico,
devendo respeitar os fundamentos estabelecidos na resolução,
concernentes à sistematização do exame e laudo padronizado realizado
por médico capacitado para este fim.

Os principais exames a serem executados em nosso meio são:

(1) Angiografia cerebral – após cumpridos os critérios clínicos


de ME, a angiografia cerebral deve demonstrar ausência de
fluxo intracraniano. Na angiografia com estudo das artérias
carótidas internas e vertebrais, essa ausência de fluxo é definida
por ausência de opacificação das artérias carótidas internas, no
mínimo acima da artéria oftálmica e da artéria basilar.

(2) Eletroencefalograma – constata a presença de inatividade


elétrica ou silêncio elétrico cerebral (ausência de atividade
elétrica cerebral com potencial superior a 2 μV), conforme as
normas técnicas específicas divulgadas pela Sociedade Brasileira
de Neurofisiologia Clínica.

(3) Doppler transcraniano – constata ausência de fluxo sanguíneo


intracraniano pela presença de fluxo diastólico reverberante e
pequenos picos sistólicos na fase inicial da sístole.

106 Medicina e direito: dilemas da modernidade


(4) Cintilografia, SPECT Cerebral – constata ausência de
perfusão ou metabolismo encefálico.

O médico assistente deve esclarecer a família sobre todas as


etapas do diagnóstico de ME, registrando no prontuário cada etapa
estabelecida – estes fundamentos favorecem a compreensão da família
quanto ao procedimento de determinação de ME.

Outro aspecto importante da resolução é a existência de


manual de procedimento para determinação de ME, que de forma
detalhada informa o passo a passo do diagnóstico, com comentários
e informações sobre drogas que levam ao coma, meia-vida destas
drogas, tempo de observação do paciente e informação sobre os pré-
requisitos obrigatórios para a determinação de ME, dirimindo também
dúvidas quanto a distúrbios metabólicos relacionados a disfunções do
rim, fígado e sódio.

Como já mencionado, dois médicos capacitados devem proceder


ao exame clínico em momentos diferentes, e em pacientes de 2 anos
ou mais o intervalo entre os exames é de pelo menos uma hora. O
primeiro examinador deverá, de forma sistemática, obedecer a todos
os itens elencados no termo de determinação de morte encefálica,
tendo o cuidado de observar os pré-requisitos para iniciar o exame
clínico, que visa analisar o tronco encefálico. O segundo examinador,
da mesma forma, procederá ao exame clínico. O primeiro ou o segundo
examinador deverá realizar o teste de apneia, em que não se espera
movimentos respiratórios em pacientes em morte encefálica.

Aspecto importante do diagnóstico de morte encefálica


é a determinação da hora da morte do indivíduo, a qual ocorre no
momento da última análise da determinação, que pode ser após o
exame complementar ou após o segundo examinador estabelecer os
critérios clínicos da ME. Isto dependerá de qual será o último ato da
determinação, o segundo exame clínico ou o exame complementar.

A determinação da ME apresenta caráter legal ao se estabelecer


este diagnóstico em paciente não doador. Este fundamento está

Conselho Federal de Medicina 107


ancorado na Resolução CFM nº 1.826/2007, que dispõe sobre a
legalidade e o caráter ético da suspensão dos procedimentos de
suporte terapêutico quando da determinação de morte encefálica de
indivíduo não doador de órgãos. Nesta situação, recomenda-se uma
conversa com os familiares para estabelecer os parâmetros éticos e a
sensibilidade do médico em perceber o melhor momento e melhor
abordagem quanto ao suporte terapêutico e a condutas empregadas a
partir de estabelecida a ME.

6. Termo de determinação de morte encefálica

A equipe médica que determinou a morte encefálica deverá


registrar as conclusões dos exames clínicos e os resultados dos exames
complementares no termo de declaração de morte encefálica (DME)
ao término de cada etapa e comunicar a ME ao médico assistente do
paciente ou a seu substituto.

Esse termo deverá ser preenchido em duas vias. A primeira


via deverá ser arquivada no prontuário do paciente, junto com o(s)
laudo(s) de exame(s) complementar(es) utilizados no diagnóstico. A
segunda via ou cópia deverá ser encaminhada à Central Estadual de
Transplantes (CET), complementarmente à notificação da ME, nos
termos da Lei nº 9.434/1997, artigo 13.

Nos casos de morte por causa externa, uma cópia da declaração


será necessariamente encaminhada ao Instituto Médico Legal (IML).
A Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para
Transplante (CIHDOTT), a Organização de Procura de Órgãos (OPO)
ou a CET deverão ser obrigatoriamente comunicadas nas seguintes
situações: (a) possível morte encefálica (início do procedimento de
determinação de ME); (b) após constatação da provável ME (primeiro
exame clínico e teste de apneia compatíveis); e (c) após confirmação da
ME (término da determinação com o segundo exame clínico e exame
complementar confirmatório).

108 Medicina e direito: dilemas da modernidade


A declaração de óbito (DO) deverá ser preenchida
pelo médico legista nos casos de morte por causas externas
(acidente, suicídio ou homicídio), confirmada ou suspeita.
Nas demais situações caberá aos médicos que determinaram o
diagnóstico de ME ou aos médicos assistentes ou seus substitutos
preenchê-la. A data e a hora da morte a serem registradas na DO
deverão ser as do último procedimento de determinação da ME,
registradas no termo de DME.

7. Aspectos finais

No intuito de favorecer a adequada interpretação da resolução,


foi realizado o Fórum de Morte Encefálica do CFM”, em março de
2018, em Brasília, com a participação de médicos de todo o Brasil
interessados em discutir a resolução e as modificações da norma.

O Conselho Federal de Medicina vem acompanhando a


repercussão trazida pela Resolução CFM nº 2.173/2017. Trata-se
de resolução criteriosa, segura, inovadora, que tem proporcionado
enorme discussão sobre o assunto. O Brasil se destaca mundialmente
por apresentar um diagnóstico de morte encefálica bem estruturado,
com exame clínico bem sedimentado, exigindo dois médicos para
estabelecer o diagnóstico e um exame complementar.

A Câmara Técnica de Morte Encefálica do CFM tem trabalhado


de forma ininterrupta por oito anos, e nos últimos três tem se dedicado
à capacitação do médico para determinar a morte encefálica no Brasil.
Inúmeros cursos de capacitação foram realizados em todo o território
nacional no intuito de fomentar discussões e melhor preparar o
médico brasileiro para este ato. O Brasil é reconhecido mundialmente
pelo rigor e segurança na determinação de ME, o que ocorre em
razão da experiência na determinação da ME, da capacitação dos
médicos, do detalhamento da resolução do Conselho Federal de
Medicina, da exigência de dois examinadores e da obrigatoriedade
de exame complementar. A Resolução CFM nº 2.173/2017 trouxe

Conselho Federal de Medicina 109


critérios modernos, práticos e seguros que podem ser utilizados em
todo o território nacional, favorecendo a maior credibilidade ante
a comunidade científica internacional e a melhor compreensão da
determinação de ME pela população brasileira.

A ME é a forma mais atual de entendimento da morte do


ser humano. Com a Resolução nº 2.173/2017, o CFM renova seu
compromisso com a sociedade, garantindo que todo cidadão tenha
direito ao diagnóstico seguro de morte, almejando que esse momento
seja o menos doloroso possível para os familiares.

Referências

BRASIL. Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção


de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e
tratamento e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, p.
2191, 5 fev. 1997.

BRASIL. Decreto nº 9.175, de 18 de outubro de 2017. Decreto Presidencial


nº 9.175, de 18 de outubro de 2017. Diário Oficial da União: Brasília, DF, p. 2,
19 out. 2017.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.173, de 23 de


novembro de 2017. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ed. 240, p.
50-275, 15 dez. 2017.

MOLLARET, P., GOULON, M. The depassed coma: preliminary memoir.


Revue Neurologique, Paris, v. 101, p. 3-15, jul. 1959.

WIJDICKS, E. F. M. Determining brain death in adults. Neurology, Minneapolis,


v. 45, n. 3, p. 1003-1011, 1995.

SHAPPELL, C. N. et al. Practice variability in brain death determination: a call


to action. Neurology, Minneapolis, v. 81, n. 23, p. 2009-2014, 2013.

110 Medicina e direito: dilemas da modernidade


REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Cláudia Navarro Carvalho Duarte Lemos


Médica especialista em Reprodução Assistida. Presidente
do Conselho Regional de Medicina de
Minas Gerais (CRM-MG).

Entre os temas de interface entre o direito e a medicina, talvez


a reprodução assistida (RA) esteja entre os mais polêmicos. Em nosso
país não existe legislação sobre RA, e o que norteia a conduta dos
médicos é o Código de Ética Médica e a Resolução CFM nº 2.168/2018,
que normatizam o que deve ou não deve ser feito neste campo. Muitas
vezes, mesmo o Judiciário se utiliza das resoluções e do Código de
Ética Médica para nortear as suas decisões no assunto da reprodução
assistida.

Louise Brown, o primeiro bebê nascido após uma RA,


na Inglaterra, completou em 2018 40 anos, data que foi muito
comemorada pela ciência e pela comunidade. E hoje, 40 anos após
o nascimento de Louise Brown, já temos mais de 8 milhões de bebês
que nasceram pelas técnicas de reprodução assistida. O crescimento do
número de ciclos realizados, assim como de clínicas, mostra a evolução
da medicina reprodutiva. Para se ter uma noção, em 1990, tínhamos
apenas 19 centros de reprodução assistida na América Latina; em 2013,
esse número já estava em 158. E os dados da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária Anvisa mostram que, de 2011 a 2017, houve um
crescimento de quase 170% no número de ciclos de fertilização in vitro
no país.

No entanto, apesar desse grande aumento, houve uma queda


importante em 2016, devido à epidemia de zika no Brasil. Esta queda
ocorreu tanto nos serviços privados quanto nos serviços públicos, onde
as pacientes, em 2015 e início de 2016, mesmo depois de esperarem de
quatro a cinco anos, se recusavam a fazer a fertilização com medo da
epidemia.

Conselho Federal de Medicina 111


Em relação ao Código de Ética Médica, quais as abordagens
sobre o tema? O Código de Ética Médica de 1965 foi o primeiro a
citar a RA. Ele colocava em seu artigo 53 que a inseminação artificial
heteróloga (com sêmen de um banco de gametas) não era permitida,
ou seja, não se podia fazer inseminação artificial utilizando o sêmen
que não fosse do marido; e a inseminação homóloga, utilizando o
sêmen do marido, poderia ser realizada com o consentimento expresso
dos cônjuges.

O Código Brasileiro de Deontologia Médica de 1984 não trazia


absolutamente nada sobre reprodução assistida. Já o código de 1988
abordava melhor o assunto, vedando ao médico praticar inseminação
artificial sem o acordo dos cônjuges. Por fim, o Código de Ética Médica
publicado em 2009 já era mais detalhista com relação à reprodução
assistida, orientando o médico a cumprir a legislação específica nos
casos de transplante de órgão e de fecundação artificial.

O código atual mantém a maioria das recomendações do Código


de 2009 e fala também que, no caso de procriação medicamente assistida,
não se deve conduzir sistematicamente a embriões supranumerários,
quer dizer, a clínica deve sempre tentar fazer só o número de embriões
que serão transferidos para o útero daquela mulher. É vedado ainda
o uso da procriação medicamente assistida para criar seres humanos
geneticamente modificados, para evitar a eugenia e a criação de
embriões para investigação.

E quando a escolha de sexo é permitida? Quando há uma doença


ligada ao sexo do bebê. Nesse caso pode-se realizar a reprodução
assistida, fazer o estudo genético dos embriões e selecionar apenas os
de determinado sexo, que não serão portadores da doença. Finalmente,
o artigo 18 do Código de Ética Médica veda ao médico desobedecer
aos acórdãos e resoluções do Conselho Regional de Medicina. Portanto,
com base nesse artigo, a desobediência à Resolução nº 2.168/2017, que
rege a reprodução assistida, constitui infração ao próprio Código de
Ética Médica.

112 Medicina e direito: dilemas da modernidade


E quais seriam os pontos básicos da Resolução 2.168/2017?
Com relação aos seus princípios fundamentais, há a questão da idade
máxima das candidatas à reprodução assistida. O limite é de 50 anos,
mas são aceitas exceções, desde que o médico que fará o procedimento
se responsabilize e que a paciente esteja em condições de saúde para
uma gravidez saudável.

Essas regras estipulam também que pessoas solteiras, tanto


homens quanto mulheres, e casais homoafetivos possam recorrer ao
tratamento. Antes a resolução dizia que todos os casais capazes poderiam
fazer o tratamento. Hoje a resolução já coloca que todas as pessoas
podem fazer o tratamento. A resolução passada se referia genericamente
a “pessoas”; essa nova resolução, acrescenta que é permitido o uso das
técnicas de reprodução assistida para relacionamentos homoafetivos
e pessoas solteiras – respeitando, obviamente, o direito de objeção de
consciência do médico que fará o procedimento.

A resolução prevê também a possibilidade de congelamento


de material germinativo: a criopreservação. Com a cura cada vez mais
frequente do câncer, aumenta a preocupação com a qualidade de vida
destes pacientes. E esta qualidade de vida inclui a capacidade de formar
uma família. Anteriormente, perante um paciente com câncer, a
preocupação era evitar a morte. Hoje, há uma chance muito grande de
sobrevida. E sabendo que os tratamentos para câncer, principalmente a
quimioterapia, podem diminuir a fertilidade dos pacientes, desenvolveu-
se a chamada oncofertilidade, ramo da RA que desenvolve técnicas de
congelamento de óvulos e de sêmen para garantir fertilidade futura
para pacientes oncológicos.

Paralelamente, devido a mudanças sociais, as mulheres têm


adiado cada vez mais a maternidade. Como a capacidade reprodutiva
da mulher declina acentuadamente após certa idade, o congelamento
de óvulos quando ainda se tem uma reserva ovariana adequada – a
preservação social da fertilidade – também é prevista na resolução.

O prazo de descarte de embriões, que era de cinco anos, passou


para três. Além disso, a resolução aborda também a gravidez múltipla,

Conselho Federal de Medicina 113


uma das principais complicações da RA. O controle do número de
embriões a serem transferidos diminuirá a chance desse tipo de gravidez
que aumenta os riscos de diabetes gestacional, pré-eclâmpsia, internação
no CTI e morte; e as crianças, consequentemente, apresentam risco
maior de prematuridade, de internação em UTI neonatal, de contraírem
infecções e de apresentarem sequelas permanentes.

O CFM entendeu que uma maneira de diminuir a chance


de gravidez múltipla seria limitar o número de embriões a serem
transferidos para o útero das mulheres. E essa limitação varia com a
idade da paciente. No caso da doação de óvulo, considera-se a idade
da mulher que doou o óvulo. Então, em pacientes com até 35 anos,
podemos transferir no máximo dois embriões; em pacientes entre 36 e
39, até três embriões; e em pacientes com 40 anos ou mais no máximo
quatro embriões. A redução de embriões também não é permitida.

A resolução aborda também a doação de gametas (óvulos ou


espermatozoides), que deve sempre ser anônima e altruísta – isto é,
não pode haver comércio de gametas. Estes pontos geram polêmicas,
principalmente quanto ao direito da criança de conhecer seus pais
genéticos. Não seria um direito constitucional da criança saber sua
origem? Não teria ela, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), o direito a saber quem é seu pai? Pode existir uma família
monoparental, mas não seria um direito constitucional da criança
saber sua origem genética completa? No entanto, aqui no Brasil, ainda
seguimos as determinações de anonimato do CFM.

Já o caráter altruísta torna o processo mais difícil, principalmente


em relação à doação de óvulos, pois no país há muito mais receptoras
que doadoras. O principal argumento para o caráter altruísta seriam as
questões legais. A lei da doação de órgãos e tecidos, em seu artigo 15,
determina que vender tecidos, órgãos ou partes do corpo leva a uma
pena de reclusão de três a oito anos e uma multa 200 a 600 dias-multa.
Mas questiona-se: óvulos e espermatozoides seriam tecido humano?
Seriam parte do corpo? A polêmica continua.

114 Medicina e direito: dilemas da modernidade


A sociedade evolui e a ciência se desenvolve de maneira
exponencial. É necessário que a bioética permaneça atenta e aja com
equilíbrio para permitir que tal desenvolvimento se dê na medida certa.

Conselho Federal de Medicina 115


REPRODUÇÃO HUMANA MEDICAMENTE ASSISTIDA E AS
NOVAS RELAÇÕES DE FAMÍLIA DELA DECORRENTES

Hitomi Miura Nakagawa


Presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução
Assistida (2016-2019). Membro do Núcleo de
Reprodução Assistida do Conselho Federal de Medicina.

1. Introdução

A infertilidade, segundo a Organização Mundial da Saúde


(OMS), é um problema de saúde que impede uma pessoa de exercer
a função básica de perpetuar a espécie. A introdução de meios que
levem à sua correção é legítima – uma vez que a criação da família é um
direito humano básico – e mitiga implicações médicas e psicológicas
decorrentes de tal condição.

Em mais de 40 anos de reprodução assistida (RA) já ocorreram


mais de 8 milhões de nascimentos, e temos que estar preparados para
no dia a dia dos consultórios, mesmo os não especializados, informar
e esclarecer dúvidas sobre as técnicas e evoluções na área. A mídia
tem avançado muito na divulgação dos feitos em RA, e inúmeros dos
nossos pacientes desejam se inteirar do tema. Portanto, precisamos
estar preparados para suprir essas necessidades.

2. Novas famílias

A formação de novas famílias e os modelos de relação delas


decorrentes trazem dilemas de conduta que não envolvem apenas
aspectos médicos (como riscos advindos de gestações múltiplas,
gestação em faixa etária avançada e repercussões psicológicas para os
casais que esperam solucionar a ausência involuntária de filhos), mas
também questões sociais, éticas e legais.

Conselho Federal de Medicina 117


3. “Ser pais” no melhor momento

A preservação de gametas (a chamada “preservação social”)


tornou possível o adiamento da maternidade. Na Resolução nº
2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina (CFM), a idade-limite
estabelecida para a mulher ser beneficiária da técnica de RA seria a de 50
anos. Mas, com base em critérios técnicos e científicos fundamentados
pelo médico responsável, que comprovem a ausência de comorbidades
da mulher, e após esclarecimento dos candidatos quanto aos riscos para
a paciente e para os descendentes eventualmente gerados a partir da
intervenção, respeitando-se a autonomia da paciente, esse limite pode
ser reconsiderado, e a responsabilidade pela decisão, compartilhada.

Até que ponto podemos limitar a idade dos pais? Qual é o direito
de autonomia reprodutiva num contexto de riscos médicos, tanto para
os pais como para os filhos? Como mitigar consequências psicológicas,
como o choque de gerações que envolve essas decisões? Em casos
como os de mães que deram à luz depois dos 70 anos – e, no Brasil,
após os 60 –, considerando a vida média de nossa população é provável
que a criança gerada perca os pais ainda muito jovem, em um momento
em que a orientação e a proteção deles ainda são fundamentais. Claro
está que os detentores dessas decisões devem agir com consciência.
Então, qual é o impacto que estamos gerando para a sociedade e as
futuras gerações? Estaríamos tolhendo o relacionamento e convívio
desses rebentos com seus avós e privando-os das ricas experiências
vividas por crianças nascidas numa fase reprodutiva ideal?

Um mito que deve ser quebrado diz respeito ao “o que é o


limite”. Há uma idade biológica ideal em que a saúde reprodutiva
é exercida de forma plena, mas muitas pessoas ainda acham que
congelando gametas ou embriões estão definitivamente preservando
“bebês microscópicos”. Portanto, é fundamental repetir que apenas
uma parcela dos pacientes realizará o sonho de completar a família por
meio da RA, e esse é um ponto importante de esclarecimento, para que
não se torne motivo de litígio.

118 Medicina e direito: dilemas da modernidade


A oncofertilidade é um segmento da RA que tem beneficiado
os pacientes oncológicos por meio do congelamento de gametas,
embriões ou tecidos germinativos, propiciando uma condição
reprodutiva posterior, graças também aos altos índices de sobrevida e
cura após o câncer. O medo que se tinha de reativar o câncer sensível a
hormônio, ou de piorar o prognóstico da doença devido à estimulação
ovariana para obtenção dos oócitos, tem sido superado com protocolos
específicos, aplicáveis entre a suspeita diagnóstica e a efetivação dos
exames complementares ou entre esses e o planejamento terapêutico,
sem prejuízo do tempo de início dos tratamentos concernentes. A
estimulação ovariana pode ser realizada em qualquer fase do ciclo
menstrual, e a perspectiva de se ter filhos tem sido considerada um
destacado estímulo psicológico para a luta contra a doença.

4. Pais sós, homoafetivos e transgêneros

O reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade


familiar, assim como a família monoparental, tem ampliado o papel
da RA no auxílio à resolução dos problemas de reprodução humana,
facilitando o processo de procriação.

A formação de famílias por meio de gametas doados em


bancos de sêmen é conhecida há tempos. Com a urgência do relógio
biológico, por ausência de parceiro ou por convicção, muitas mulheres
têm optado por ter filhos de forma independente. A depender do
caso, pode-se utilizar a inseminação artificial: induz-se a ovulação
com medicamentos para que haja no máximo três oócitos maduros,
e no dia programado para a liberação do oócito pelo ovário o sêmen
processado do banco, de doador anônimo, é depositado no útero –
nessa modalidade deve haver pelo menos uma tuba uterina em boas
condições de funcionamento.

Nas situações em que a inseminação não é possível, a fertilização


in vitro é realizada. A estimulação ovariana é mais intensa para que
se obtenha o máximo de oócitos maduros coletados para serem

Conselho Federal de Medicina 119


inseminados em laboratório. Após o desenvolvimento dos embriões,
eles são transferidos ao útero – de acordo com a qualidade, tempo de
evolução e faixa etária da mulher –, sendo os excedentes congelados
para utilização futura, aumentando assim a chance cumulativa de
gestação a partir de um ciclo de tratamento.

A procura por ser pai sozinho é menor, e exige, além de uma


doadora anônima de oócitos (o que é difícil de se conseguir devido às
restrições existentes no nosso país), uma parente de até quarto grau
como cedente temporária do útero. Para os homoafetivos masculinos,
também é necessário uma doadora anônima de óvulos e uma cedente
temporária de útero que seja parente de até quarto grau de um dos
parceiros. Os oócitos serão inseminados com o sêmen de um deles
numa fertilização in vitro.

Em homoafetivas, a gestação compartilhada também é possível.


Nesse caso, uma das parceiras tem os ovários estimulados e se submete
à coleta dos oócitos. Após a fertilização in vitro com sêmen de banco,
os embriões obtidos são transferidos ao útero da parceira – de acordo
com a qualidade, tempo de evolução e faixa etária da mulher –, sendo
os excedentes congelados para utilização futura, aumentando assim a
chance cumulativa de gestação a partir de um ciclo de tratamento.

No caso de mulheres transgêneros, com corpo de aspecto


masculino, que ainda não tenham se submetido à cirurgia de
transgenitalização, com redesignação do sexo, existe a possibilidade
de utilizar os próprios gametas e engravidar: a suspensão temporária
da testosterona pode permitir a recuperação de oócitos após a
estimulação ovariana ou gestação no próprio útero. A tecnologia de
RA, que permite a preservação de gametas previamente ao tratamento
cirúrgico, é desejável para que a pessoa tenha a opção de prole com
utilização de material genético próprio.

120 Medicina e direito: dilemas da modernidade


5. Famílias com participação de terceiros

A RA possibilitou a formação de famílias sem material biológico


de um ou ambos os pais por meio da doação de gametas ou embriões.
A doação deve ser anônima e sem remuneração, ou compartilhada
(no caso de oócitos, em que doadora e receptora compartilham
tanto o material biológico obtido de uma delas quanto os custos
financeiros do tratamento), com compatibilidade fenotípica e seleção
sob responsabilidade do médico assistente. A doadora deve ter idade
máxima de 35 anos, e o doador até 50 anos. No caso de doação de
oócitos, questiona-se a exposição da doadora aos riscos anestésicos,
ao procedimento de coleta ou mesmo à síndrome do hiperestímulo
ovariano, e a reparação ou ressarcimento pelo tempo e disponibilidade
para tomar injeções de hormônios, se deslocar para a monitorização
ultrassonográfica etc.

Na doação de embriões, geralmente resultante de excedentes


de famílias que se completaram com a técnica de RA, a idade mínima
da doadora poderia ser revista, com conhecimento e aceitação pelo(s)
receptor(es), o que seguramente ampliaria o número de beneficiados e
mitigaria o problema dos embriões abandonados.

Um mesmo doador pode doar de forma ilimitada para uma


mesma família receptora; caso contrário, calcula-se um limite de dois
nascimentos de sexos diferentes para uma população de 1 milhão de
habitantes. Na eventualidade de ser necessário útero de substituição
ou cessão temporária de útero – por exemplo, para mulheres com
condições específicas de saúde com alto risco gestacional, ou na
ausência de útero – a cedente será sempre parente de até quarto grau
(primeiro grau: mãe/filha; segundo grau: avó/irmã; terceiro grau:
tia/sobrinha; quarto grau: prima) de um dos membros do casal. E,
na eventualidade de não se conseguir tal parente, pode-se recorrer
ao Conselho Regional de Medicina (CRM) local para autorização do
procedimento em outra pessoa, sem ônus financeiro.

Conselho Federal de Medicina 121


6. Famílias especiais e selecionadas

O diagnóstico genético pré-implantacional (PGT) trouxe a


possibilidade de identificação de doenças perpetuadas na prole, por
alteração no número de cromossomos (PTG-A, para aneuploidias),
em um único gene, doenças monossômicas (PGT-M) ou alterações
estruturais nos cromossomos (PGT-SR), como inversão, translocação.

Apesar de ser uma técnica desenvolvida para evitar doenças no


rebento, pode haver questionamentos quanto ao desejo de transferência
de um embrião portador de trissomia do cromossomo 21 (síndrome
de Down), que pode sobreviver e ter uma vida sem tantas limitações.
Ainda não se consegue avaliar o grau de acometimento que o indivíduo
resultante daquele embrião pode ter com base apenas na biópsia
embrionária. Nesse caso, o médico pode ser acusado de iatrogenia?
Por outro lado, o embrião é da pessoa ou do casal? Por que não haveria
direito à transferência?

Quando da avaliação genética embrionária, o laudo completo


traz a identificação do sexo. Como há proibição de seleção social do
sexo pela resolução do CFM, há casais que procuram a técnica para
rastreamento de aneuploidias (que são mais comuns com o avançar
da idade da mulher), e dessa forma acabam selecionando o sexo do
embrião a ser transferido primeiro, em processo que tem gerado
questionamentos éticos.

A seleção embrionária pela pesquisa de compatibilidade HLA


permite que embriões com possibilidade de cura de irmão doente por
meio da doação de células-tronco tenham prioridade na transferência
ao útero, gerando famílias selecionadas.

Novas tecnologias vêm surgindo dia a dia. No embrião com


material genético de três genitores, o núcleo do oócito materno
pode ser transferido para o citoplasma enucleado de um oócito de
doadora sadia, e o gameta reconstituído ser inseminado por injeção
intracitoplasmática de espermatozoide (ICSI) para se evitar a doença
fatal acarretada pela mutação no DNA de mitocôndrias – procedimento

122 Medicina e direito: dilemas da modernidade


já anunciado, com bebê nascido, porém até o momento considerado
apenas em contexto de pesquisa clínica.

Outra perspectiva diz respeito à edição genética de células ou


embriões: uma vez reparada a anomalia, haveria a correção definitiva
da doença hereditária, dos genes defeituosos ou de aberrações nos
cromossomos afetados da geração em tratamento, prevenindo e
impedindo a transmissão para a descendência, ou seja, eliminando a
doença daquela família.

7. Parentalidade post mortem

Desde a primeira resolução do CFM, datada de 1992, o uso


de material biológico póstumo é possível. Nas últimas resoluções,
a orientação é de que a pessoa deve deixar declaração específica de
destinação dos seus gametas ou embriões. Dessa forma, a questão
familiar extrapola o campo da medicina para criar situações a serem
solucionadas no campo jurídico, em termos sucessórios, e outras
questões pertinentes à proteção da prole e da família.

8. Considerações finais

A reprodução humana medicamente assistida e as novas relações


de família dela decorrentes nos convocam a refletir e enfrentar desafios
de toda ordem para proteger as pessoas que compõem esses núcleos
que vêm sendo formados, em modalidades que se ampliam com os
novos tempos por meio de técnicas cada vez mais revolucionárias,
que auxiliam a realização do grande projeto de ter filhos e completar
famílias.

Conselho Federal de Medicina 123


O PODER FAMILIAR E A MORTE DIGNA DOS FILHOS: BREVES
REFLEXÕES SOBRE O CASO CHARLES GARD1

Heloisa Helena Barboza


Professora titular de Direito Civil da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Direito
pela UERJ e em Ciências pela Escola Nacional de Saúde
Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz.

1. Introdução

Acontecimento rumoroso ocorrido no Reino Unido, que ficou


conhecido como caso Charles Gard, dá ensejo a questionamentos
de variada natureza, sobretudo os pertinentes aos campos jurídico,
bioético e médico. No presente trabalho o foco será limitado ao
primeiro aspecto, com incursões no segundo, visto que interessantes
questões se colocam quando se examina o alcance do poder familiar
em face da morte digna dos filhos. O objetivo é analisar, à luz do direito
brasileiro, até que ponto os pais têm o poder de decidir sobre a morte
dos filhos, ou de tentar impedi-la, como ocorrido no caso em pauta.

A partir dos dados e fundamentos constantes da decisão proferida


pela 1ª Seção da Corte Europeia de Direitos Humanos, tomada em 28
de junho de 2017, no pedido  nº  39793 (EUROPEAN COURT OF
HUMAN RIGHS, 2017), e com base em pesquisa bibliográfica, são
tecidas considerações sobre o caso à luz do entendimento médico,
bioético e jurídico adotado no Brasil, para fins de identificação dos
possíveis encaminhamentos que seriam dados para solução à luz da
normativa brasileira.

O presente artigo contém o texto integral referente à apresentação durante o VIII Congresso Brasileiro de
1

Direito Médico, promovido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em 31 de agosto de 2018, do estudo
feito pela autora em conjunto com a professora doutora Marilena Cordeiro Dias Villela Corrêa e com o
professor doutor Vitor de Azevedo Almeida Júnior, que se encontra publicado sob o título “Morte digna na
Inglaterra: análise do caso Charles Gard” (BARBOZA; CORRÊA; ALMEIDA JÚNIOR, 2018).

Conselho Federal de Medicina 125


Para tanto, será narrada de modo breve a situação médica de
Charles Gard, bem como traçados os contornos atuais da compreensão
do poder familiar pelo direito brasileiro, para que se chegue à indicação
da solução possível e aplicável a situações dessa natureza. Os princípios
bioéticos serão igualmente invocados, por sua inegável importância
como fator de legitimação das conclusões apresentadas. Não se trata
de um estudo de direito comparado, mas de uma breve apreciação
do caso, que apresenta múltiplas faces. Busca-se, em última análise,
contribuir para a solução de situações similares, que envolvam crianças,
portanto, sempre difíceis em sua delicadeza e complexidade.

2. O caso Charles Gard

Em 4 de agosto de 2016 nasceu Charles Gard, um bebê de


aparência saudável. Pouco tempo depois se verificou que a criança não
tinha o ganho de peso esperado, bem como apresentava respiração
crescentemente letárgica e fraca. Em 11 de outubro de 2016, a criança
foi admitida no Great Ormond Street Hospital (Gosh), onde permaneceu.
Constatou-se, sem divergência, que Charles sofria de encefalomiopatia
mitocondrial, que deve ser descrita como uma síndrome, ou seja, uma
patologia cujos quadros clínicos variam bastante, mas cuja etiologia
é partilhada: trata-se de uma anomalia do metabolismo energético de
estruturas intracelulares conhecidas como mitocôndrias, vale dizer,
de doença multissistêmica, ou seja, que pode afetar muitos órgãos e
tecidos, e que tem como manifestações predominantes o envolvimento
muscular (paralisias gerais ou parciais) e o cerebral (epilepsia, cegueira
etc.). Seu início se dá na infância, sendo uma doença rara. Nem todas
as formas clínicas assumem a gravidade extremíssima do caso Gard.
A doença genética do pequeno Charles – na forma de encefalopatia do
DNA mitocondrial de início precoce (MDDS, como identificada na sigla em
inglês) – é uma doença gravíssima e muito rara, para a qual não existe
tratamento e cuja evolução muito sombria conduz invariavelmente à
morte precoce.

126 Medicina e direito: dilemas da modernidade


No caso, em curtíssimo espaço de tempo, se sobrepõe outra
sintomatologia extremamente severa e incompatível com a vida: Gard
precisa de suporte respiratório permanente para obter o fluxo de
oxigênio necessário à manutenção “artificial” da vida; não manifesta
o mais vital de todos os comportamentos humanos instintivos
(portanto, primitivos), que é a reação à dor; e não apresenta atividade
cerebral. Pelos relatos médicos divulgados, não resta dúvida quanto a
ser o quadro irreversível, que configura uma situação de fim de vida.
Esforços de prolongamento do tempo de vida nesses casos configuram
a chamada obstinação terapêutica, portanto, esforços fúteis.

De modo mais simples, não havia dúvida quanto a padecer


Charles de uma rara e severa doença genética infantil, que atingia todas
as suas células, privando-o da energia essencial para viver, e não havia
tratamento capaz de promover sua reversão. Não obstante, os pais de
Charles foram informados sobre uma terapia possível (“tratamento
nucleosídeo”), acenada por um médico nos Estados Unidos, que fora
usada em pacientes com problema genético menos severo, que não tinha
sido, todavia, testada em animais ou humanos, para fins de aplicação
à enfermidade de Charles. Havia, porém, em tese a possibilidade de o
aludido tratamento beneficiar Charles.

A aplicação do tratamento a Charles deveria, contudo, ser


precedida de análise e aprovação de um Comitê de Ética, visto
tratar-se de procedimento experimental, na verdade sequer indicado
especificamente para a doença de Charles. Contudo, em 13 de janeiro
de 2017, antes da apresentação do protocolo de pesquisa ao competente
Comitê de Ética, Charles iniciou uma série intermitente de convulsões,
em razão de epilepsia, por cerca de 17 dias. Diante desse quadro, os
médicos entenderam que o tratamento experimental previsto, ainda
que autorizado, seria fútil e só prolongaria o sofrimento de Charles.

Em fevereiro de 2017 o citado hospital requereu judicialmente


autorização para retirada da ventilação e fornecimento de cuidados
paliativos, entendendo que tais procedimentos seriam legais e feitos no

Conselho Federal de Medicina 127


melhor interesse de Charles. Os pais contestaram o pedido, insistindo
no tratamento experimental, apoiados na opinião de um médico que
receberia Charles para aplicação da terapia. A Alta Corte (High Court)
ouviu vários especialistas e visitou Charles no Gosh, e em 11 de abril
de 2017 deferiu o pedido do hospital, reconhecendo que o melhor
interesse da criança compreende sua situação médica, emocional e
todas as outras questões relativas ao bem-estar, o qual deve prevalecer
sobre o poder dos pais de consentir no tratamento de seus filhos.
Segundo o referido tribunal, o juiz deve olhar a questão presumindo o
ponto de vista da criança.

Os pais de Charles recorreram à Corte de Apelação, afirmando


ter havido ofensa ao artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos do
Homem2, em razão de interferência injustificada nos direitos dos pais,
dentre outros argumentos. Em 23 de maio de 2017, a apelação foi
rejeitada. Houve recurso à Corte Suprema, que veio a ser rejeitado em
8 de junho de 2017. Por fim, o caso foi levado à Corte Europeia de
Direitos Humanos, que declarou, por maioria, o pedido inadmissível,
por não se caracterizar a alegada violação de direitos humanos.

Charles Gard morreu no dia 28 de julho de 2017, aos 11 meses


de idade, poucos dias antes de completar um ano. Um intenso conflito
judicial, que durou cerca de quatro meses, se desenvolveu entre o
Gosh, onde o pequeno menino se encontrava, e seus pais. Argumentos
relevantes foram apresentados por ambas as partes. Os pais, que
insistiam em buscar tratamento (experimental) nos Estados Unidos,
impugnaram a interferência arbitrária das cortes internas em sua vida
privada e familiar, como referido. O hospital, diante do difícil e agudo
dilema ético, como assinalado pela Suprema Corte, que consistia em
dar ou não continuidade a um tratamento que sabia não atender o
melhor interesse do paciente, provocou o debate judicial. Buscou, por
tal motivo e com base em vários pareceres médicos, autorização para
retirada da ventilação e aplicação de cuidados paliativos, como meio de

2
Denominação atribuída internacionalmente à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais, firmada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (CONSELHO DA EUROPA,
2001).

128 Medicina e direito: dilemas da modernidade


proporcionar bem-estar a Charles. Como concluiu o juiz da Alta Corte,
na decisão que ao final prevaleceu, este era o único procedimento no
melhor interesse de Charles: “deixá-lo dormir imediata e pacificamente
e não sujeitá-lo a mais dor e sofrimento”.

3. O entendimento atual do poder familiar no Brasil

O pedido formulado pelos pais de Charles à Corte Europeia


de Direitos Humanos teve por fundamento a alegação de suposta
interferência em seus direitos parentais com base no princípio do
“melhor interesse” (best interests) da criança, que somente se justificaria
na hipótese de risco de “dano significativo” (significant harm) para esta.
Por isso, os pais de Charles argumentavam que não era apropriado os
tribunais tomarem a decisão a respeito da vida de seu próprio filho,
o que configuraria ingerência injustificável no âmbito de atuação
parental. Este caso descortina a discussão a respeito dos limites do
poder familiar em face das práticas médicas, sobretudo quando a
orientação clínica conflita com a decisão dos pais.

Na experiência constitucional brasileira, o princípio da


parentalidade responsável,3 ao lado da dignidade da pessoa humana,
funda e informa o direito ao planejamento familiar, previsto no artigo
226, § 7º. O escopo do exercício da responsabilidade parental,4 a partir
da livre e consciente decisão sobre a liberdade de procriar, se assenta na

3
Em que pese à expressa menção ao termo “paternidade responsável” no artigo 226, § 7º, da CR de 1988,
deve-se conjugar este dispositivo com o artigo 229, o qual atribui aos pais o dever de assistir, criar e educar
os filhos menores, razão pela qual se prefere denominar de princípio da parentalidade responsável. A
responsabilidade no cuidado e criação dos filhos cabe a ambos os genitores, cujo objetivo é promover o
sadio e livre desenvolvimento dos infantes.
4
Leciona Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2004, p. 21-24) que “[…] a consciência a respeito da
paternidade e maternidade abrange não apenas o aspecto voluntário da decisão – de procriar –, mas
especialmente os efeitos posteriores ao nascimento do filho, para o fim de gerar a permanência da
responsabilidade parental principalmente nas fases mais importantes de formação e desenvolvimento da
personalidade da pessoa humana: a infância e a adolescência, sem prejuízo logicamente das consequências
posteriores relativamente aos filhos na fase adulta”. Em outras palavras, deve-se desvincular da ideia do
direito ao estado de filiação para entender que “[…] a parentalidade responsável representa a assunção
de deveres parentais em decorrência dos resultados do exercício dos direitos reprodutivos – mediante
conjunção carnal, ou com recurso a alguma técnica reprodutiva”.

Conselho Federal de Medicina 129


assunção de deveres em relação ao filho, seja durante a fase gestacional,
em que deve se garantir o sadio desenvolvimento in utero do nascituro
e lhe assegurar condições dignas de existência, seja a partir do seu
nascimento com vida, quando se efetivam, em concreto, os deveres de
assistência, criação e educação dos pais para com os filhos menores,
conforme disposto no artigo 229 da Constituição da República (CR).

Em sede infraconstitucional, pode-se dizer que uma das


dimensões do princípio da parentalidade responsável se converte no
múnus da autoridade parental, a qual, de acordo com o artigo 1.634
do Código Civil, compete aos pais exercer em conjunto, guiados pelo
prioritário interesse da criança e do adolescente, a partir de uma ótica
emancipatória e de cuidado (BARBOZA, 2016). O poder familiar
(rectius: autoridade parental)5 foi um dos institutos da órbita do direito
civil centralmente atingidos pelos fenômenos da constitucionalização e
funcionalização do direito, ganhando nova roupagem, bem distante da
conformação original moldada a partir de uma sociedade patriarcal, na
qual se desconsideravam a autonomia dos infantes e sua condição de
sujeitos de direitos. Assim, da pretérita conformação do pátrio poder,
cuja origem deita raízes no direito romano,6 até o atual conteúdo do
poder familiar, não foram poucas as transformações pelas quais passou
o instituto nas últimas décadas.7

5
A doutrina contemporânea, a nosso ver, de forma correta, tem adotado o termo “autoridade parental”
em detrimento do “poder familiar”, embora a legislação nacional ainda utilize esta expressão em já feliz
substituição ao antigo “pátrio poder”. Gustavo Tepedino (2006) observa que a “utilização dogmática de uma
estrutura caracterizada pelo binômio do direito-dever, típica de situações patrimoniais, apresenta-se como
incompatível com a função promocional do poder conferido aos pais. […] Daqui resulta a crítica justamente
oposta por parte da doutrina mais atenta à utilização da expressão poder inserida na dicção do Código Civil
de 2002, tanto na noção de pátrio poder como na de poder familiar, adotando-se, ao revés a perspectiva da
autoridade parental como ‘múnus, significado que transcende o interesse pessoal’, numa visão dinâmica e
dialética de seu exercício, de modo que ‘filhos não são (nem poderiam ser) objeto da autoridade parental’,
alvitrando-se ao contrário ‘uma dupla realização de interesses do filho e dos pais’” (TEPEDINO, 2006, p.
182-183, grifos no original). Cf. Teixeira (2009).
6
José Carlos Moreira Alves (2012, p. 621) ensina: “A patria potestas (pátrio poder) é o conjunto de poderes que
o pater familias tem sobre seus filii familias. Segundo Gaio – e isso é exato, pois, nos tempos históricos, não se
encontra em nenhum outro povo instituto jurídico com características semelhantes –, a patria potestas é uma
instituição exclusiva do direito romano. A princípio, os poderes do pater familias enfeixados na patria potestas
são absolutos: o pater familias pode ser comparado a um déspota. A pouco e pouco, porém – e essa tendência
se avoluma decididamente a partir do início do período pós-clássico –, os poderes constitutivos da patria
potestas se vão abrandando […]”.
7
Para um profundo estudo a respeito dessas transformações, ver Silva (2002, passim).

130 Medicina e direito: dilemas da modernidade


O legislador ordinário previu uma série de atribuições aos pais
em relação aos filhos no artigo 1.634 do Código Civil,8 reforçando a
responsabilidade parental já estabelecida na Constituição (artigo 226, §
7º, e artigo 229, 1ª parte) e assegurando a prioridade de seus interesses,
nos termos do artigo 227. A autoridade parental se transforma
assim em instrumento de valorização da autonomia existencial de
crianças e adolescentes, cuja finalidade se volta para a promoção do
livre desenvolvimento da personalidade desses que mereceram tutela
especial protetiva por parte de legislador constitucional.

A autoridade parental deve ser compreendida, a partir do desenho


constitucionalmente previsto, como relação pedagógica direcionada
à emancipação do filho, na qual, por um lado, se procura garantir o
direito à liberdade dos menores, mas, por outro, se acentua o dever de
cuidado dos pais.9 Já se afirmou sobre a autoridade parental que “entre
a liberdade e o cuidado cerca-se a atual configuração desse importante
instituto do direito de família” (MEIRELES; ABÍLIO, 2012, p. 353).
A rigor, os pais são titulares de um poder jurídico que se revela como um
conjunto de deveres. Os poderes sobre os filhos que lhes são legalmente
atribuídos devem ser exercidos exclusivamente no interesse do filho.

8
Código Civil (Lei nº 10.406/2002): “Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I –
dirigir-lhes a criação e educação; II – tê-los em sua companhia e guarda; III – conceder-lhes ou negar-lhes
consentimento para casarem; IV – nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro
dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V – representá-los, até aos
dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-
lhes o consentimento; VI – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII – exigir que lhes prestem
obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”.
9
Com clareza, expõe Gustavo Tepedino (2009, p. 211-212) que: “À luz dos princípios constitucionais […], há
de se encontrar o equilíbrio entre o exercício dos direitos fundamentais dos filhos e a autoridade parental dos
pais, de modo a concretizar a liberdade da criança e dos adolescentes no processo educacional que atenda
às exigências constitucionais de igualdade e solidariedade. Do ponto de vista da capacidade para o exercício
de direitos, mais intensa será a atuação dos pais quanto maior a falta de discernimento. Na medida em que,
gradualmente, no curso do processo educacional, os filhos adquirem aptidão para valorar e tomar decisões,
a ingerência dos pais deve diminuir, de modo a incentivar o exercício autônomo de escolhas existenciais”.
Nesse sentido, acertadamente também leciona Ana Carolina Brochado Teixeira (2009, p. 218): “As relações
parentais giram em torno dos filhos, orientando-os para uma formação com autonomia, não obstante
a imposição de limites. Diante disso, a verdadeira finalidade do instituto é a promoção do autogoverno
progressivo dos filhos, proporcionalmente à possibilidade deles assumirem responsabilidades na condução
da própria vida, de acordo com seu discernimento”.

Conselho Federal de Medicina 131


Segundo Ana Carolina Brochado Teixeira,

[…] a autoridade parental deve ser um


instrumento de garantia dos direitos
fundamentais do menor, bem como uma forma
de resguardar seu melhor interesse, tendo em
vista que deve ser voltada exclusivamente para a
promoção e desenvolvimento da personalidade
do filho. (2009, p. 85)

Com efeito, as disposições constitucionais e estatutárias


impuseram uma reformulação do conteúdo da autoridade parental,
que passa a ter como finalidade precípua a promoção da personalidade
e a dignidade dos filhos, considerando a situação peculiar de pessoa em
desenvolvimento (artigo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente,
doravante ECA10) e a condição de sujeitos de direito (artigo 15 do
ECA11), sob orientação do princípio do melhor interesse da criança e
do adolescente, ao qual se assegura prioridade absoluta (artigo 227 da
CR/1988).

A CR de 1988 incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro


a denominada doutrina da proteção integral, que se pode traduzir,
portanto, pelo atendimento ao princípio do melhor interesse da criança
e do adolescente (the best interest of the child12), assegurando, com absoluta
prioridade, direitos próprios a sua condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento (artigo 227 da CR). A Lei nº 8.069/1990 (ECA), que
dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, considera
criança a pessoa até 12 anos incompletos, e adolescente o indivíduo
maior de 12 e menor de 18 anos. A lei, de matriz constitucional, além
de assegurar a essas pessoas em desenvolvimento todos os direitos

10
“Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do
bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente
como pessoas em desenvolvimento.”
11
“Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas
em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na
Constituição e nas leis.”
12
A locução foi consagrada na Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959. Ver sobre o assunto
Pereira (2000, p. 4).

132 Medicina e direito: dilemas da modernidade


fundamentais inerentes à pessoa humana, determina que é dever da
família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
à convivência familiar e comunitária, em plena consonância com os
ditames da Constituição.

Na linha de promoção dos direitos dos infantes, o Estatuto


reconhece a autonomia da criança e do adolescente, apesar de serem
pessoas em desenvolvimento (artigo 6º), como decorrência do direito
à liberdade1 e ao respeito que lhes é assegurado2 – uma autonomia
que se revela progressiva, na medida em que o desenvolvimento e as
habilidades são gradualmente conquistados pelos menores. O direito à
liberdade, especificamente garantido aos infantes nos artigos 15 e 16 do
ECA, reforça a autonomia desse grupo. Além disso, uma interpretação
do artigo 142, parágrafo único, à luz do princípio constitucional do
melhor interesse da criança e do adolescente impõe que o poder familiar
deve ser exercido em respeito à intrínseca autonomia individual dos
menores,3 que na qualidade de pessoas humanas em desenvolvimento
gozam de absoluta prioridade na promoção de seus direitos
fundamentais, conforme determina o constituinte no artigo 227 da

1
Segundo Ana Carolina Brochado Teixeira (2009, p. 206), “a criança e adolescente não são apenas titulares do
direito fundamental à liberdade do artigo 5º da Constituição de 1988, que atinge a toda e qualquer pessoa,
mas também, das disposições especiais dirigidas diretamente a eles, tanto da própria Constituição quanto do
ECA, exatamente em função da sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”.
2
“Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança
e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e
crenças, dos espaços e objetos pessoais”.
A melhor doutrina tem construído o conteúdo normativo da autoridade parental à luz do princípio do
3

melhor interesse: “A família democrática impõe uma relação coordenada entre pais e filhos, a assimetria
existente entre ambos os polos seja mediada pelo perfil funcional que tem o poder familiar de promoção da
pessoa do vulnerável. Cabe à autoridade parental acompanhar o menor no paulatino processo de construção
da personalidade, reconhecendo-lhes as possibilidades de protagonizar sua própria história. Como
indivíduos em formação, sua personalidade ainda está em desenvolvimento e seu direito geral de liberdade
não é pleno. Gozam de uma liberdade assistida, eventualmente vigiada, que vai se expandindo na proporção
do seu amadurecimento. A permissão exagerada, embora seja apreciada pela população infanto-juvenil, não
representará, frequentemente, a solução mais adequada. Por vezes, é a limitação saudável e motivada que
promoverá o melhor interesse do adolescente ou da criança” (MENEZES; BODIN DE MORAES, 2015,
p. 527-528).

Conselho Federal de Medicina 133


Lei Maior.4 Visa-se promover a tutela da criança e do adolescente em
perspectiva emancipatória, com fins à formação da sua personalidade e
futura independência, funcionalizando a autoridade parental ao melhor
interesse de seus filhos.

No julgamento do caso de Charles Gard, a Corte Europeia de


Direitos Humanos reiterou que existe um amplo consenso de que
todas as decisões relativas às crianças devem levar em conta os seus
melhores interesses, embora os pais tivessem exatamente contestado
tal justificativa para impugnar a interferência em seus poderes parentais.
Ademais, ainda que tal parâmetro não fosse o mais adequado, como
argumentaram os pais, o critério do risco de “dano significativo”,
suscitado pelos pais para legitimar a interferência no âmbito parental,
também foi avaliado pelos tribunais no referido julgamento. Ao
analisarem o caso, com base em provas periciais e na manifestação
dos envolvidos nos cuidados diários do menino, os tribunais
concluíram que era provável que Charles estivesse sendo exposto a
dor contínua e sofrimentos inúteis. Com suporte nessas evidências, os
tribunais ingleses também consideraram que a submissão a tratamento
experimental, sem probabilidade de sucesso, não ofereceria nenhum
benefício e prolongaria seu sofrimento.

Portanto, à luz das decisões tomadas pelos tribunais internos


ingleses, a Corte Europeia registrou que os fundamentos eram
minuciosos e completos, avaliando com igual peso todos os argumentos
levantados, com a produção de provas periciais consistentes e de alta
qualidade, revisadas em três níveis de jurisdição. Assim, concluiu que as
decisões não foram arbitrárias ou visaram interferência desproporcional
de autoridade pública na vida familiar, em respeito ao artigo 8º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

No direito brasileiro, o conteúdo normativo da autoridade


parental tem sido reconstruído à luz do princípio do melhor

Teixeira (2009, p. 218) entende que: “As relações parentais giram em torno dos filhos, orientando-os para
4

uma relação para uma formação com autonomia, não obstante a imposição de limites. Diante disso, a
verdadeira finalidade do instituto é a promoção do autogoverno progressivo dos filhos, proporcionalmente
à possibilidade deles assumirem responsabilidades na condução da própria vida, de acordo com seu
discernimento”.

134 Medicina e direito: dilemas da modernidade


interesse da criança e do adolescente, o que consiste no seu
exercício exclusivamente em favor do filho. O melhor interesse de
crianças e adolescentes, portanto, é a medida e o limite de atuação
dos pais e é atendido pela observância dos direitos que lhes foram
constitucionalmente assegurados.

O caso Charles Gard deixa claro que nem sempre as decisões


dos pais quanto aos procedimentos médicos a serem adotados em
seus filhos são as melhores e respeitam sua dignidade, sendo legítima
a intervenção da autoridade judiciária para resguardar, sobretudo, os
interesses do filho que não pode exprimir sua vontade. Tal decisão da
Corte Europeia, que manteve o entendimento dos tribunais ingleses,
revela que o primordial melhor interesse da criança e do adolescente
deve ser sempre analisado a partir de perspectiva do filho, seja com base
na sua vontade presumida ou com o auxílio dos princípios bioéticos,
e nunca na direção dos interesses dos pais, ainda que justificáveis, mas
cujo atendimento cause dano ou sofrimento inútil e evitável à criança.

4. A questão sob o ponto de vista da bioética aplicada no


Brasil

O caso Gard configura uma situação limite que desafia


francamente a bioética. Várias questões de natureza ética ali envolvidas
vêm sendo objeto de debate pela bioética, nos casos de prolongamento
da vida, ou melhor, de adiamento da morte, cabendo algumas
considerações em caráter preliminar.

Deve-se destacar, desde logo, que a orientação bioética é de


todo importante, em especial quando se trata da decisão sobre a morte
de outrem, o que ocorre com frequência nas situações que envolvem
crianças e adolescentes, das quais é bom exemplo a aqui examinada.
O respaldo bioético justifica e autoriza eticamente o encaminhamento
a ser adotado, vale dizer, confere legitimidade às condutas e decisões
médicas e jurídicas que sejam tomadas. Indispensável, por conseguinte,
é a análise do caso Gard, ainda que breve, sob o prisma bioético.

Conselho Federal de Medicina 135


A Alta Corte, ao admitir o pedido do Gosh, destacou que o
ponto inicial é a “presunção de santidade da vida”, conforme expressão
utilizada por aquele tribunal, diante do curso da ação que prolongará
a vida. Apesar da menção à “santidade” da vida, a apreciação do caso
foi feita em bases estritamente jurídicas. Nesse sentido, o tribunal
considerou obrigatório o exame da questão a partir do ponto de vista
presumido da criança e do seu “melhor interesse”, expressão que
abrange os aspectos médicos, emocionais e outros temas relacionados
ao seu bem-estar, reconhecido como fator prevalente para se tomar a
decisão. Este tipo de entendimento autoriza o exame da questão sob as
diretrizes da bioética laica e o afastamento de indagações pertinentes à
bioética de natureza religiosa.

A breve análise proposta será feita à luz dos princípios que


constituem a matriz da bioética principialista, não só em razão de sua
adoção pelas normas e jurisprudência brasileiras, mas em particular
por emergir das decisões judiciais no caso Gard a preocupação com a
garantia do bem-estar de Charles, o que permite indagar de imediato
se pelo menos dois dos princípios bioéticos foram ali contemplados.
Em primeiro lugar, deve-se considerar o princípio da beneficência,
que valoriza os atos que proporcionam algum bem a terceiros e,
em segundo, o princípio da não maleficência, que requer se evitem
danos injustificados a terceiros. Observe-se que esses dois princípios
correspondem, de certo modo, a princípios da ética hipocrática (primum
non nocere e bonum facere), mas que devem ser reinterpretados conforme o
contexto atual de saúde, o qual compreende necessariamente qualidade
de vida e bem-estar.

Embora não sejam menos importantes, o princípio da autonomia,


que atribui valor à escolha livre e intencional de agentes cognitiva e
moralmente competentes, e o da justiça, que requer sejam ponderados
equitativamente benefícios, riscos e custos entre os envolvidos, não
serão neste trabalho objeto de direta reflexão. O primeiro em razão
da tenra idade de Charles, um bebê de menos de 1 ano, incapaz de
exercer sua autonomia, ou mesmo de expressar sensação de dor,
em decorrência do mal congênito de que padecia, visto que sequer

136 Medicina e direito: dilemas da modernidade


chorava, conforme consta do relatório da decisão tomada no Pedido
nº 39793/2017. O segundo escapa, em verdade, ao foco das reflexões
propostas, voltadas para o confronto entre os deveres dos pais e os
direitos do filho.

Pela mesma razão, a despeito de os julgados envolverem de modo


importante temas muito estudados pela bioética, como a pesquisa em
seres humanos e a utilização de seus resultados, bem como o debate
sobre o que se deve entender por “futilidade” do tratamento, a retirada
de aparelhos e a aplicação de cuidados paliativos, conflito de interesses,
dentre outros, neste trabalho apenas alguns desses aspectos, e de modo
sucinto, serão trazidos à pauta.

Como proposto, é preciso verificar se a conduta ao final adotada


no caso, por força de decisão judicial, é condizente ou não com os
princípios da beneficência e da não maleficência. Três situações de fato
serão consideradas para esse fim: a) as condições físicas de Charles
constantes do relatório referido; b) a inexistência de tratamento para
o caso e a irreversibilidade das lesões constatadas; e c) o sofrimento
evitável de Charles.

Logo de início foi assinalado que a rara doença sofrida por


Charles afeta severamente seu cérebro, músculos e a habilidade para
respirar. O bebê tem falência respiratória progressiva e depende de
ventilação. Ele não pode mais mover seus braços e pernas e não é
mais capaz de sistematicamente abrir os olhos. Em razão de persistente
encefalopatia, não há sinais usuais de atividade cerebral normal, tais
como capacidade de resposta, interação ou choro. Charles tem surdez
congênita e um distúrbio epiléptico severo. Seu coração, fígado e rins
estão também afetados, mas não severamente.

De acordo com provas apresentadas pelo Gosh, Charles estava


tão lesionado que não havia mais qualquer movimento, nem mesmo
evidência de um ciclo de sono/vigília. Para a equipe do hospital não
havia mais tratamento que pudesse tirá-lo dessa situação, entendendo
um dos especialistas consultados que Charles experimentava dor, mas
era incapaz de reagir a ela de modo significativo.

Conselho Federal de Medicina 137


No tocante à possibilidade de tratamento, foi cogitada a
submissão de Charles a um tratamento experimental, não testado em
animais ou humanos, mas no qual havia uma “possibilidade teórica”
de gerar algum benefício ao menino. A aplicação do tratamento seria
feita no Reino Unido, mas por sua natureza, exigia prévia autorização
de um Comitê de Ética. Contudo, uma série de intermitentes
convulsões epilépticas sofrida por Charles frustrou o planejado. Em
consequência, os médicos assistentes de Charles concluíram que o
tratamento experimental seria fútil e apenas prolongaria o sofrimento
do paciente. O significado de “fútil” foi objeto de discussão judicial
quanto à existência de distinção entre a definição médica de futilidade
e o conceito de futilidade no direito, tendo a Corte de Apelação (Court
of Appeal) assinalado que:

[…] a Medicina procura “uma probabilidade


de cura ou pelo menos de um paliativo no
tratamento das doenças ou enfermidades
sofridas pelo paciente”, enquanto, para o
Direito, isto coloca um objetivo muito alto
nos casos onde o tratamento “pode trazer
algum benefício para o paciente mesmo se não
há nenhum efeito na doença ou deficiência
subjacente” […]. (EUROPEAN COURT OF
HUMAN RIGHS, 2017, tradução livre)

Concluiu a referida Corte que no caso Gard, tragicamente, esta


é uma diferença sem uma distinção à luz da conclusão do juízo de que
o potencial benefício da terapia experimental seria “zero”, “inútil” e
de nenhum benefício efetivo (EUROPEAN COURT OF HUMAN
RIGHS, 2017, tradução livre).

Os pais de Charles desejavam levá-lo para a América, onde um


médico, mesmo sem ter examinado a criança e reconhecendo que ela
se encontrava no estágio terminal de sua doença, gostaria de oferecer a
ela o que se podia fazer naquele país. Seria improvável funcionar, mas
a alternativa é que Charles morreria.

138 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Como destacou um dos professores consultados, considerado
um dos maiores especialistas em doenças genéticas, mesmo que
houvesse habilidade para cruzar as barreiras existentes, o tratamento,
nunca testado anteriormente, não reverteria os danos estruturais já
feitos no cérebro de Charles. Embora concordasse com o médico
americano quanto a ser extremamente improvável ajudar Charles, o
professor esclareceu que havia uma diferença cultural na filosofia entre
o tratamento nos Estados Unidos e no Reino Unido. Neste país se
tentaria ter a criança no centro das ações e pensamentos, enquanto
nos Estados Unidos, eles tentariam qualquer coisa, enquanto houvesse
financiamento.

Os fundamentos constantes das decisões das Cortes do Reino


Unido evidenciam a ratificação do referido entendimento, na medida
em que convergiram quanto à garantia do bem-estar de Charles e
prevalência do seu melhor interesse. Neste sentido, a Corte de Apelação
(Court of Appeal), ao decidir sobre o pedido de avaliação de “dano
significante”, seguiu a unanimidade dos profissionais e especialistas,
segundo os quais mover Charles para tratamento na América seria
o mesmo que o expor a dor, sofrimento e angústia continuados,
sem qualquer perspectiva de melhora. Essa orientação foi reiterada
pela Suprema Corte (Supreme Court), ao salientar que provavelmente
Charles sofreria dano significante se seu padecimento presente fosse
prolongado, sem que isso garantisse melhora.

Constata-se, assim, que houve constante preocupação com a


submissão de Charles à situação de dor e sofrimento, sem qualquer
possibilidade de melhora. Nada justificaria, portanto, a continuidade
do tratamento, salvo os cuidados paliativos, propostos pelo Gosh,
proposta que suscitou o debate judicial da questão.

Esta apertada síntese dos fatos permite identificar que houve, o


quanto possível, observância do princípio da beneficência, entendida,
de modo sintético, como o “fazer o bem”, isto é, buscar “o bem
do paciente, o seu bem-estar e os seus interesses, de acordo com os
critérios do bem fornecidos pela medicina” (KIPPER; CLOTET,

Conselho Federal de Medicina 139


2004), mas não de modo absoluto, pois deve ser respeitada a dignidade
do paciente. É sempre preciso ponderar se os riscos para o paciente
serão muito maiores do que os possíveis benefícios, e respeitá-lo como
pessoa humana e não apenas como objeto de pesquisa. Isto foi feito
no caso Gard.

O mesmo pode ser dito com relação ao princípio da não


maleficência, ou seja, “primeiramente ou acima de tudo não causar
danos (primum  non nocere)”, o que inclui “prevenir danos e retirar os
danos”. Como esclarecem Délio José Kipper e Joaquim Clotet (2004),
na maioria das vezes o princípio de não maleficência envolve abstenção
e é devido a todas as pessoas, enquanto o princípio da beneficência
requer ação e, na prática, é menos abrangente. Como recomendam os
autores, sua análise deve ser feita conjuntamente nos diversos casos.
Nestes termos, constata-se que o princípio da não maleficência foi
igualmente observado.

No caso Gard fica nítida a aplicação dos dois princípios. O


tratamento dado pelo hospital até determinado ponto foi benéfico
e continuaria sendo, mesmo sob a forma de cuidados paliativos,
que dariam algum conforto a Charles. A submissão ao tratamento
experimental, considerado fútil, principalmente se houvesse sua
movimentação para a América, resultaria em sofrimento e danos a
Charles, visto não haver qualquer perspectiva de melhora, mas, ao
contrário, probabilidade alta de dor ou ao menos de grande desconforto.
O atendimento ao princípio da não maleficência se deu pela abstenção,
pela não insistência fútil, pelo afastamento da denominada “obstinação
terapêutica”, em um tratamento que nada acrescentaria a Charles, se
não dor e sofrimento.

É imperativo bioético, sob a ótica laica, assegurar aos pacientes,


principalmente aos que não podem exprimir sua vontade, o quanto
possível, a observância do princípio da qualidade de vida, segundo o
qual é considerada “legítima qualquer intervenção na vida humana,
desde que isso implique em redução do sofrimento evitável e em

140 Medicina e direito: dilemas da modernidade


maior/melhor bem-estar para os sujeitos objeto da intervenção”
(SCHRAMM, 2009, p. 377).

5. Considerações finais

Como se procurou demonstrar, a decisão tomada em 28 de


junho de 2017 pela Corte Europeia de Direitos Humanos, ratificando
o entendimento dos tribunais do Reino Unido, encontra amparo nos
princípios bioéticos. No Brasil, o julgamento em igual sentido estaria
legitimado pelos mesmos princípios bioéticos e, sob o ponto de vista
jurídico, teria fundamento nos princípios constitucionais do melhor
interesse da criança e da dignidade da pessoa humana.

Merece igualmente referência a regulamentação do CFM sobre


o tema. No que tange a situações de terminalidade da vida, há mais
de dez anos foi firmado o entendimento de que na fase terminal de
enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou
suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida
do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os
sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência
integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal
(Resolução CFM nº 1.805/2006).

No mesmo sentido dispõe o Código de Ética Médica (CEM)


vigente (Resolução CFM nº  2.217/2018), que contempla vários
aspectos da conduta médica envolvidos na questão analisada. Assim, o
CEM estabelece, dentre os Princípios Fundamentais, que “nas situações
clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de
procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará
aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados
(XXII)”. No que diz respeito a tratamentos experimentais, parece clara
a posição brasileira, diante do que prevê o item XXIII do capítulo de
“Princípios gerais”: “Quando envolvido na produção de conhecimento
científico, o médico agirá com isenção, independência, veracidade e

Conselho Federal de Medicina 141


honestidade, com vista ao maior benefício para os pacientes e para a
sociedade”.

Ao tratar da relação com pacientes e familiares, o CEM veda ao


médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu
representante legal, mas admite que

Nos casos de doença incurável e terminal, deve


o médico oferecer todos os cuidados paliativos
disponíveis sem empreender ações diagnósticas
ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando
sempre em consideração a vontade expressa do
paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu
representante legal. (artigo 41, parágrafo único)

No que tange ao “representante legal”, quando se tratar de


crianças e adolescentes, há de se considerar sempre que, no caso de
divergência entre pais e médicos, hipótese que exige apreciação judicial
para salvaguarda dos direitos de todos os envolvidos no procedimento,
o melhor interesse do menor tem prioridade absoluta, por força de
norma constitucional, como esclarecido, observados os princípios
bioéticos que lhe conferem legitimidade em cada caso.

O caso Charles Gard, sem dúvida, se mostra de todo útil para


reflexão quanto aos questionamentos e encaminhamentos ético-
jurídicos a serem dados a situações semelhantes, nas quais esteja em
jogo a morte digna de crianças e adolescentes e haja divergência entre
a orientação médica e o entendimento/determinação dos pais ou
representantes do infante. Constata-se, porém, que as normas jurídicas
e bioéticas, bem como a regulamentação médica no Brasil permitem
a busca da solução adequada para cada caso, vale dizer, o que for
melhor para a criança em dada situação, podendo ser, como assinalou
o Tribunal do Reino Unido, “deixá-la dormir imediata e pacificamente
e não sujeitá-la a mais sofrimento”.

142 Medicina e direito: dilemas da modernidade


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144 Medicina e direito: dilemas da modernidade


REFLEXÕES BIOÉTICAS SOBRE O MORRER COM DIGNIDADE:
ANÁLISE DO CASO NANCY CRUZAN

José Eduardo de Siqueira


Doutor em Medicina pela Universidade Estadual
de Londrina. Mestre em Bioética pela Universidade
do Chile. Professor titular do curso de Medicina da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

Jussara Maria Leal de Meirelles


Doutora em Direito das Relações Sociais pela
Universidade Federal do Paraná. PhD pelo Centro de
Direito Biomédico da Universidade de Coimbra.

1. Breve histórico do caso

Na noite do dia 11 de janeiro de 1983, a jovem de 25 anos


Nancy Cruzan, ao dirigir próximo à cidade de Carteville, no estado
de Missouri, Estados Unidos, perdeu o controle de seu carro e,
após capotar, teve o corpo arremessado para fora do veículo. Ela
foi encontrada por profissionais paramédicos inconsciente e sem
sinais vitais. Os atendentes procederam às manobras de reanimação
cardiorrespiratória e a transportaram para hospital da região. O
neurocirurgião que a examinou estimou ter transcorrido mais de dez
minutos para a recuperação dos dados vitais da paciente, condição
que teria promovido anoxia severa no sistema nervoso central. Assim,
formulou a hipótese diagnóstica de dano cerebral irreversível com
provável estado vegetativo persistente (EVP).

Após a internação, Nancy permaneceu em estado de coma por


três semanas, sem esboçar qualquer sinal de retomada de contato com o
meio ambiente. Como deglutia irregularmente, a equipe médica optou
por alimentá-la por sonda gástrica, procedimento consentido pelo seu

Conselho Federal de Medicina 145


esposo. Passados dez meses de internação, em outubro do mesmo
ano, não tendo ocorrido mudança no quadro clínico, com diagnóstico
definitivo de EVP, os pais e o marido da paciente solicitaram aos médicos
a suspensão dos procedimentos de suporte vital, incluindo alimentação
e hidratação. Argumentaram os familiares que, conforme explicação
detalhada dos profissionais de saúde, o EVP constituía condição
clínica irreversível e que Nancy jamais recuperaria vida de relação,
permanecendo indefinidamente em estado vegetativo. O hospital
e a equipe médica se negaram a atender à solicitação dos familiares,
admitindo rever a decisão somente diante de uma ordem judicial que
determinasse expressamente a suspensão dos procedimentos que
mantinham a vida da paciente. A busca empreendida pelos familiares
para obter a ordem desencadeou um prolongado debate na esfera
judicial, cujos pormenores vêm apresentados neste ensaio.

2. O processo judicial e seus desdobramentos

Em primeiro grau de jurisdição, o pedido dos familiares de


Nancy foi julgado procedente, tendo sido concedida a ordem de
interrupção do tratamento. No entanto, um curador nomeado pelo
mesmo Tribunal do Estado de Missouri, considerando haver possível
conflito de interesses entre Nancy e seus familiares peticionantes,
recorreu à Suprema Corte do Estado, que reformou a decisão,
recusando o pedido de interrupção dos procedimentos de suporte
vital, por entender inexistir, no momento, prova clara e convincente de
expressão da vontade autônoma da paciente.

Os pais recorreram, então, à Suprema Corte do país, alegando


violação a um direito constitucional de Nancy, qual seja, o de rejeitar um
tratamento médico não desejado. Alegaram os familiares peticionantes
que a jovem, em conversa pretérita mantida com colega de quarto,
por ocasião do período de graduação acadêmica, havia explicitamente
declarado sua vontade de renunciar a tratamentos fúteis caso padecesse
de enfermidade incurável que a mantivesse em estado vegetativo.

146 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Observa-se que a grande questão que chegou à Suprema Corte
dos Estados Unidos, de início, era se as cláusulas constitucionais do
devido processo legal e da igual proteção concedida pela lei permitiriam
que os pais de Nancy decidissem pela recusa em manter a vida da filha,
ainda que em EVP. No entendimento dos progenitores, na condição
de autênticos representantes da paciente, então inconsciente, teriam
sim o direito de solicitar que fossem cumpridas as manifestações
prévias de vontade da filha, o que justificaria, portanto, a suspensão das
medidas de suporte vital que mantinham Nancy artificialmente viva.
Argumentaram, outrossim, que o direito constitucional à privacidade
permitiria que a decisão de suspender as medidas de suporte artificial
da vida da paciente fosse tomada diretamente com os médicos.

Entretanto, o problema passou a assumir contornos ainda


mais abrangentes e de difícil solução imediata, pois qualquer decisão
tomada pela Suprema Corte não afetaria somente o caso em pauta,
já que à época outras 10 mil pessoas nos EUA sobreviviam em EVP
dependentes dos mesmos procedimentos de suporte artificial da vida
que eram ofertados à Nancy. Por essas razões, enquanto os familiares
de Nancy lutavam pela ordem judicial que desse fim ao estado
vegetativo da filha, tanto o procurador geral do Estado de Missouri,
Robert Pressen, quanto o representante do presidente Bush, Kenneth
Starr, defenderam a tese de que ao Estado cabia, acima de quaisquer
outros interesses, o dever de proteger a vida como um bem de valor
superior e, portanto, indisponível.

Em 25 de junho de 1990, a Suprema Corte dos Estados


Unidos, em uma decisão bastante estreita – por cinco votos a quatro –
concluiu que, embora todos os cidadãos norte-americanos detivessem
o direito de recusar tratamento médico, pessoas incapacitadas para
fazê-lo expressamente estariam inaptas para exercê-lo. Assim sendo,
os estados só poderiam autorizar medidas dessa natureza quando o
próprio paciente fosse capaz de expressar sua vontade de forma “clara
e convincente”. Tais precauções se mostravam procedentes, posto que
era razoável considerar a possibilidade real da ocorrência de eventuais
“abusos” em outras circunstâncias clínicas similares ao EVP, e que

Conselho Federal de Medicina 147


igualmente poderiam postular a suspensão de terapias consideradas
fúteis. Nesse ponto, a Corte demonstrou estar em dúvida sobre se
a família, na ausência de uma prova “clara e convincente”, estaria a
cumprir o real desejo da paciente. Por outro lado, foram consideradas
as consequências irreversíveis de uma eventual decisão errônea, pois
teria como resultado inevitável a morte da paciente.

Em agosto de 1990, os pais da paciente ajuizaram outra ação no


Tribunal do Estado de Missouri, alegando terem obtido novas provas,
reveladas por depoimentos de três amigas que conviveram com Nancy,
as quais declaravam ter ouvido dela própria o desejo de não ser mantida
artificialmente com vida e que se dispunham a testemunhar em favor do
pedido dos pais para suspender as medidas extraordinárias de suporte
vital que mantinham Nancy viva. Desta feita, o tribunal concedeu
provimento ao pedido dos pais, e o procurador geral do Estado
entendeu por bem não recorrer da decisão. Tendo sido suspensas todas
as medidas de suporte artificial de vida, Nancy Cruzan faleceu em 26 de
dezembro de 1990.

3. Outras reflexões derivadas da decisão da Suprema


Corte

Muito embora a decisão da Suprema Corte dos EUA tenha negado


o pedido dos familiares de Nancy Cruzan, alguns dos fundamentos
utilizados pelos julgadores foram considerados, à época, um avanço
na maneira de compreender casos de EVP ou outros que guardassem
semelhança, a exemplo da condição reconhecida como “suicídio
assistido”. Importa aqui fazer a devida distinção entre a expressão
“suicídio assistido” e os termos eutanásia, distanásia, mistanásia e
ortotanásia, em rápidas palavras, pois o espaço reservado para este
ensaio não comporta considerações mais profundas. A eutanásia
caracteriza-se por ser um ato de compaixão, no sentido de causar a
morte sem sofrimento a um doente que sofre de enfermidade grave
e reconhecidamente incurável e terminal. Trata-se, entretanto, de uma

148 Medicina e direito: dilemas da modernidade


prática ativa, realizada por meio de injeção de droga com a declarada
intenção de promover a morte do paciente, procedimento esse vedado
pelo Código de Ética Médica brasileiro. A mistanásia ou eutanásia
social é compreendida como a eliminação de pessoas em decorrência
de condições sociais iníquas, como a fome e a miséria absoluta. É a
chamada “morte severina”, descrita no poema de João Cabral de Melo
Neto como “a morte da velhice antes dos trinta e de fome um pouco
por dia”. A distanásia consiste no prolongamento artificial da vida
do paciente em estado terminal por meio de procedimentos médicos
desproporcionais e fúteis, já que em nada modificam o prognóstico do
caso, apenas adiando o momento do passamento do enfermo, também
denominado pelos autores de língua espanhola como “encarniçamento
terapêutico”. Já o termo ortotanásia é utilizado para definir a morte
natural, no seu tempo certo, de forma digna, com o emprego de
medidas terapêuticas proporcionais, por meio de cuidados paliativos
que visam o bem-estar do paciente, condição essa reconhecida como
boa prática médica pelo ordenamento deontológico do exercício da
medicina. Por fim, o suicídio assistido – muitas vezes erroneamente
confundido com a prática da eutanásia – ocorre quando o paciente,
impossibilitado de praticar por si mesmo o ato de tirar a própria vida,
recebe auxílio de terceiro para concretizar sua vontade, seja mediante
a administração de drogas letais, seja mediante mero encorajamento,
instigação ou indução ao ato propriamente dito (FERREIRA, 2013).

Nota-se também que a maioria dos juízes norte-americanos,


ao deixarem de atender ao pleito dos pais de Nancy por entenderem
inexistir uma prova convincente do desejo da paciente em não ser
mantida em estado vegetativo, reconheceram, embora de forma
um pouco oblíqua, a liberdade constitucional de qualquer outro
enfermo em rejeitar tratamento médico que o mantivesse vivo
contra sua própria vontade. Também se percebe que a Suprema
Corte não estabeleceu distinção entre alimentação, hidratação, uso
de medicamentos ou quaisquer outros procedimentos médicos
de manutenção da vida humana. Daí ser possível concluir que a
preocupação dos juízes era autorizar ou não a interrupção da vida
da paciente, não interessando ao foco do julgado quais meios a

Conselho Federal de Medicina 149


mantinham viva. Isso é bastante significativo, pois afasta a ideia
muitas vezes simplista de que a decisão de interromper a vida humana
somente poderia ser autorizada se os métodos de manutenção
fossem considerados “artificiais”, o que poderia levar à conclusão
equivocada de que tanto a alimentação, quanto a hidratação, por
serem consensualmente consideradas procedimentos naturais, não
poderiam merecer o amparo de tal decisão.

Por fim, importa ressaltar o relevo dado pela Suprema Corte às


manifestações de vontade dos pacientes antes de entrarem no estado
de inconsciência. Nesse sentido, vale aqui lembrar a importância da
Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1995, de 9 de agosto de
2012, que trata das chamadas Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV),
as quais consistem no “[…] conjunto de desejos, prévia e expressamente
manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou
não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar,
livre e autonomamente, sua vontade” (CFM, 2012).

Registre-se, de igual forma e até o momento, a tramitação de


dois projetos de lei do Senado (PLS) sobre o tema, ambos de 2018:
a) o PLS nº 7, que, dentre outras medidas, altera o Decreto-Lei
nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para isentar do
crime de omissão penalmente relevante a falta de instituição de suporte
de vida ou a não realização de tratamento ou procedimento médico
recusados; e b) o PLS nº 149, que pretende transformar em lei formal a
possibilidade de toda pessoa maior e capaz declarar, antecipadamente,
o seu interesse de se submeter ou não a tratamentos de saúde futuros,
caso se encontre em fase terminal ou seja acometida de doença grave
ou incurável.

4. Sobre a morte e o morrer na era da medicina


tecnológica

Houve um tempo em que nosso poder perante


a morte era muito pequeno. E, por isso, os

150 Medicina e direito: dilemas da modernidade


homens e as mulheres dedicavam-se a ouvir a
sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de
viver. Hoje, nosso poder aumentou, a morte
foi definida como inimiga a ser derrotada,
fomos possuídos pela fantasia onipotente de
nos livrarmos de seu toque. Com isso, nós nos
tornamos surdos às lições que ela pode nos
ensinar. E nos encontramos diante do perigo
de que, quanto mais poderosos formos perante
ela (inutilmente, porque só podemos adiar…),
mais tolos nos tornamos na arte de viver. E,
quando isso acontece, a morte que poderia ser
conselheira sábia transforma-se em inimiga que
nos devora por detrás. (ALVES, 2003, p. 76)

A partir da segunda metade do século passado, a medicina


passou a incorporar um extraordinário avanço tecnológico que
facultou aos profissionais de saúde a manutenção de suporte artificial
da vida mesmo em pacientes portadores de enfermidades incuráveis
em situações clínicas de terminalidade da vida. Se no início do século
XX o tempo estimado de sobrevida desses pacientes não ultrapassava
cinco dias, com os recursos disponíveis a partir dos anos 1970 esse
intervalo de tempo cresceu dez vezes, e os médicos passaram a se
sentir obrigados a utilizar todos os procedimentos disponíveis, não
importando quão limitado fosse o prognóstico do caso em pauta
(SIQUEIRA, 2000).

Esse comportamento desarrazoado passou a ser conhecido


como distanásia, obstinação ou futilidade terapêutica, ou seja, além
de não proporcionar cura, prolongava de maneira insensata a agonia
do paciente, motivo pelo qual os Conselhos Médicos incluíram em
suas normativas deontológicas a vedação dessa prática. Autores como
Bernard Lown, entre outros, apontaram como principal responsável
por esse desvio na formação profissional a exagerada ênfase dada a
disciplinas curriculares que ministram ensinamentos referentes à área
de tecnologias médicas, em detrimento daquelas que deveriam oferecer
conteúdos de humanidades médicas. Assim se expressou o então
professor de Cardiologia da Faculdade de Medicina de Harvard:

Conselho Federal de Medicina 151


As escolas de medicina e o estágio nos hospitais
os preparam [os estudantes] para tornarem-
se oficiais-maiores da ciência e gerentes de
biotecnologias complexas. Muito pouco se
ensina sobre a arte de ser médico. A realidade
mais fundamental é que houve uma revolução
biotecnológica que possibilita o prolongamento
interminável do morrer. (LOWN, 1996, p. 286)

Com semelhante percepção, Sherwing Nuland, professor de


Cirurgia e História da Medicina da Universidade de Yale, publicou em
1993 How we die, obra traduzida para vários idiomas, sendo de 1995 a
versão em português, na qual o eminente cirurgião assim descreveu o
processo de despersonalização do paciente:

O paciente é a cada dia menos um ser humano


e mais um complicado desafio na terapia
intensiva, testando o gênio de alguns dos mais
brilhantemente agressivos dos guerreiros clínicos
do hospital […] permanece um pouco da pessoa
que ele foi, mas para os superespecialistas que
titulam as últimas evidências moleculares de
sua vitalidade reduzida, ele é um caso. Se ao
moribundo ainda restou alguma sorte, ele, a essa
altura, não está mais consciente do drama em
que é o ator principal. (NULAND, 1995, p. 167)

Concordamos com os supracitados professores norte-


americanos que parte significativa desse desvio na formação profissional
deve ser atribuída ao aparelho formador, esmerado em preparar
médicos com conhecimentos e habilidades técnicas, subestimando
os aspectos psicossociais e espirituais do enfermo, circunstância
que acabou por descaracterizar a verdadeira arte médica, segundo o
propósito originalmente descrito por Hipócrates, no século IV a.C.
O fato é que cresceu enormemente o poder da medicina tecnológica
sem que ocorresse simultaneamente a necessária reflexão ética sobre o
impacto dessas condutas na qualidade de vida dos pacientes.

152 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Todavia, seria ocioso ressaltar os benefícios obtidos com a
adoção de procedimentos médicos invasivos em pacientes portadores
de doenças agudas ameaçadoras da vida, bastando para tanto considerar
a impressionante queda na mortalidade decorrente de infarto agudo do
miocárdio. Igualmente importante é destacar o fato de haver pessoas
que foram beneficiadas por cirurgia de revascularização miocárdica
ou pela introdução de stents na luz das artérias coronárias ocluídas
por ateromas, o que restituiu o fluxo sanguíneo arterial e garantiu a
plenitude da função mecânica do coração, condição indispensável para
manter a vida do organismo como um todo.

Ocorre que as Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) brasileiras,


ao mesmo tempo que realizam esses verdadeiros “milagres”, continuam
recebendo pacientes portadores de doenças crônicas incuráveis ou em
EVP, como Nancy Cruzan. A morte desses pacientes é adiada às custas
de uma agonia prolongada e preenchida por injustificável sofrimento.
Desse modo, os médicos permaneceram moralmente imobilizados e
dominados pela dúvida sobre o real significado da vida e da morte,
tornando-se impotentes para reconhecer o momento sensato de
suspender os procedimentos de suporte artificial da vida, aturdidos
ante a questão de quando interrompê-los e quais deveriam ser os
valores morais e legais que suportariam tais decisões.

A pediatra norte-americana Karen Teel publicou em 1975, no


periódico jurídico Baylor Law Review, o artigo “The Physician’s dilema –
a doctor’s view: what the law should be”. No texto, a autora pede auxílio
aos operadores do direito para produzir um instrumento que pudesse
oferecer amparo legal às decisões médicas diante dos complexos
problemas morais presentes na finitude da vida. Argumentou, a autora,
que várias crianças portadoras de enfermidades terminais estavam
sendo mantidas artificialmente vivas, ao tempo que se lhes impunham
enormes sofrimentos, extensivos a seus familiares. Como o Poder
Judiciário poderia auxiliar os médicos a tomar decisões mais humanas e
sensatas com vistas a minimizar os injustificáveis sofrimentos impostos
aos pequenos enfermos e seus familiares, era o que indagava a pediatra
(TEEL, 1975).

Conselho Federal de Medicina 153


Por certo há muito a ser feito na formação profissional, iniciando-
se com a incorporação de novos conteúdos sobre a temática na grade
curricular dos cursos de medicina, de maneira a permitir a formação
de egressos mais bem preparados para acolher os pacientes como seres
biográficos que carregam o gene da finitude da vida física. Ademais, é
tempo de adotar o paradigma de cuidar em substituição ao improvável
projeto de curar, pois torna-se cada vez mais evidente que o maior
desafio da hodierna medicina é conviver com a prevalência de doenças
crônico-degenerativas incuráveis que culminarão inexoravelmente com
a morte dos pacientes. Em suma, todas essas circunstâncias impõem
aos médicos que cuidam de pacientes portadores de enfermidades
terminais dois compromissos que se complementam, quais sejam: o de
subestimar a inconsequente prevalência do saber técnico e o de cultivar
a humildade para reconhecer que a finitude da vida integra o cenário
da existência humana, qualidades essas já há muito consagradas pelo
aforismo “curar às vezes, aliviar frequentemente e confortar sempre”.

Nos EUA, o debate sobre essa temática teve início em 1976, no


estado da Califórnia, com o reconhecimento do direito de qualquer
pessoa registrar suas vontades prévias em forma de um documento
dotado de validade jurídica, instrumento que ficou conhecido como living
will. Nesse mesmo ano, a Suprema Corte do estado de New Jersey emitiu
uma sentença acolhendo o pedido de suspensão dos procedimentos
médicos artificiais que mantinham viva a jovem Karen Ann Quinlan,
que há meses permanecia inalterada em EVP. Os pais de Karen, tais
quais os de Nancy, enfrentaram uma longa batalha judicial até a decisão
unânime da Suprema Corte do estado que lhes reconheceu o direito de
decidir pela filha. Importa resgatar o roteiro adotado pelo tribunal para
assentir com o pleito dos genitores da jovem. Foram examinados vários
argumentos, sempre partindo do pressuposto de que a questão central
não era simplesmente a morte, mas sim a pertinência de interromper
o tratamento de uma pessoa que sofrera danos neurológicos severos e
irreversíveis. Considerou-se, portanto, que o ponto em discussão deveria
ser o direito de abrir mão de tratamento que visasse prolongamento
artificial da vida em pessoa incapaz de manifestar sua vontade, por estar

154 Medicina e direito: dilemas da modernidade


em estado vegetativo. Assim sendo, o entendimento unânime dos juízes
foi o de que a família de Karen seria judicialmente competente para
tomar todas as decisões que considerasse adequadas e respeitassem os
melhores interesses da paciente. Por outro lado, a decisão do tribunal
deixou claro que os princípios deontológicos da corporação médica não
poderiam representar um peso decisivo quando se estava julgando se
era ou não razoável a recusa de tratamento por parte dos representantes
legais da paciente (VEATCH, 1998).

Curiosamente, no caso de Karen Quinlan, o presidente do


Supremo Tribunal, juiz Richard Hughes – inspirado pela leitura do
artigo de Karen Teel publicado no mesmo ano na Baylor Law Review e
presumindo a existência de um Comitê de Ética do Hospital St. Clair,
onde estava internada a paciente, motivo daquela ação penal –, solicitou
que aquele colegiado que tratava de questões éticas se pronunciasse
sobre o prognóstico da paciente e que assegurasse que ela estaria
definitivamente incapacitada para reassumir qualquer forma de vida
de relação. Todavia, o Comitê não existia oficialmente, o que obrigou
gestores e médicos do hospital a implantá-lo incontinente, para atender
à ordem do juiz. Após ter sido regularmente instalado, o Comitê emitiu
parecer declarando que o estado da paciente era de coma irreversível,
o que confirmava o EVP. Mesmo suspensa a assistência ventilatória,
Karen permaneceu com vida em EVP por mais longos nove anos até
seu falecimento.

Segundo a filósofa Marilena Chauí, vivemos num mundo


dominado pelos avanços da tecnologia e cujo “progresso” sequestra
a identidade das pessoas. Mesmo aqueles que circunstancialmente
podem usufruir dos resultados da fartura trazidos pela ciência e pela
tecnologia tornam-se reféns daquilo que o pensador Otávio Paz
interpretou como a condição de o progresso ter preenchido a história
humana com as maravilhas e os monstros da tecnologia, ao mesmo
tempo que roubava dos indivíduos a essência de suas vidas pessoais,
dando-lhes mais coisas e simultaneamente retirando-lhes a condição de
seres biográficos (CHAUÍ, 2002).

Conselho Federal de Medicina 155


Ramón Sampedro, morador da província de La Coruña, no
Noroeste da Espanha, que sobreviveu tetraplégico por 30 anos,
deixou como legado pessoal inúmeras correspondências dirigidas
às autoridades de seu país e até mesmo ao Tribunal de Direitos
Humanos de Estrasburgo, pleiteando o direito de recorrer ao suicídio
assistido para interromper seu prolongado e insuportável sofrimento
existencial. Toda essa correspondência foi reunida na publicação
Cartas do Inferno, que inspirou o filme Mar Adentro, dirigido por
Alejandro Amenábar, contemplado em 2005 com o Oscar de melhor
filme estrangeiro. Pois bem, uma das cartas mais pungentes de Ramón
era dirigida a Deus, nos seguintes termos:

Querido Deus: em maior ou menor grau,


todas as religiões propõem o sofrimento como
meio de purificação espiritual. Segundo elas, a
verdadeira vida está depois da morte. Para que
somos racionais então? Para nos transformar
em sofredores vocacionais? Para nos convencer
é muito comum se recorrer à exemplaridade do
paciente sofredor. Mas se alguns seres humanos,
para compreender o quanto são afortunados,
necessitam ver outros sofrerem, é porque estão
incapacitados para amar. Não é então nenhuma
vontade suprema que nega à pessoa o legítimo
direito de se libertar do sofrimento, mas sim a
corrupção moral do ser humano que se converte
em um parasita da dor dos demais sempre
que lhe traga algum benefício ou satisfação
pessoal. A maior das corrupções morais do
ser humano é, sem dúvida, ter procurado
justificar o sofrimento como meio de ganhar a
benevolência da vontade do princípio criador da
vida. (SAMPEDRO, 2004, p. 210)

A percepção de que a ciência poderia trazer respostas


satisfatórias para todas as formas de sofrimento humano provou-se
equivocada, o que nos obrigou, desde então, a preservar o espírito
crítico, reconhecendo como inconsequente qualquer postura
obscurantista que pretendesse conter os avanços da tecnociência sob a

156 Medicina e direito: dilemas da modernidade


alegação de que tais passos poderiam impor riscos inaceitáveis para a
espécie humana, mas seria igualmente insensato cultivar um otimismo
acrítico, glorificando todos os avanços da biomedicina. Outrossim,
faz-se imperioso acolher o paciente em sua dimensão psicossocial e
espiritual, pois inúmeros são os dados da literatura que evidenciam
despreparo dos profissionais de saúde para compreender o sofrimento
protagonizado por pessoas portadoras de enfermidades incuráveis e
terminais. Praticar uma medicina que privilegia a manutenção artificial
de variáveis fisiológicas por meio de procedimentos tecnocientíficos
sem considerar os sofrimentos decorrentes de uma agonia prolongada
é seguramente desumano.

Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Medicina da


Universidade de São Paulo (USP), tendo como objetivo estudar a
conduta de 107 médicos intensivistas das 11 UTIs do complexo do
Hospital das Clínicas da USP, mostrou quão distantes estamos de um
atendimento humanizado a pacientes portadores de EVP (FORTE,
2011). Tratamentos invasivos, como ventilação mecânica, uso de
drogas vasoativas e até mesmo hemodiálise em enfermos incuráveis
e com diagnóstico de EVP, foram mantidos por significativa parcela
dos médicos intensivistas entrevistados. Tais práticas, além de
desprovidas de amparo ético, são reconhecidas como procedimentos
desproporcionais pelo CFM. Há que se compreender, todavia, que
tal comportamento dos médicos encontra explicação no temor dos
profissionais de se tornarem passíveis de processos judiciais sob a
alegação de possível omissão de socorro ao suspenderem as medidas
de suporte artificial da vida daqueles pacientes.

Inevitavelmente cada vida humana chega ao seu final. Assegurar


que essa passagem ocorra de forma digna, com cuidados médicos e
buscando o menor sofrimento possível é missão daqueles que assistem
os pacientes terminais. A pergunta central que se impõe aos médicos
é sobre o que ocorreu com o exercício da medicina na sociedade
contemporânea que permitiu transformá-la em prática impessoal
dependente de equipamentos. O modelo cartesiano-flexneriano, matriz
clássica da formação médica, introduziu práticas na atenção à saúde

Conselho Federal de Medicina 157


que resultaram em significativas mudanças no relacionamento médico-
paciente. O extraordinário avanço da tecnologia biomédica aliada
ao uso acrítico de métodos de semiologia armada descaracterizou
a medicina como arte, levando o profissional a se distanciar das
dimensões psicossociais das pessoas enfermas.

Efetivamente, como previra nos anos 1970 André Hellegers,


fundador do Instituto Kennedy de Bioética, nossos problemas em
medicina no alvorecer do século XXI seriam cada vez mais éticos e
menos técnicos (SIQUEIRA, 2008).

A ética médica tradicional concebida pelo modelo hipocrático


é marcada pela assimetria de poder entre médico e paciente. Outorga
ao primeiro a responsabilidade de formular e tomar todas as decisões
diagnósticas e terapêuticas, restando ao paciente apenas a obrigação de
obedecê-las. Assim, até a primeira metade do século XX, qualquer ato
médico era julgado levando em conta apenas a competência técnica do
profissional, subestimando valores e crenças dos enfermos. Somente a
partir da década de 1960 os códigos de ética profissional passaram a
reconhecer o paciente como agente autônomo capaz de opinar e tomar
decisões sobre procedimentos a serem realizados em seu próprio corpo.
O atual ordenamento deontológico médico brasileiro estabelece, no
parágrafo único do artigo 41, a seguinte norma:

Nos casos de doença incurável e terminal, deve


o médico oferecer todos os cuidados paliativos
disponíveis sem empreender ações diagnósticas
ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando
sempre em consideração a vontade expressa do
paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu
representante legal. (CFM, 2010)

No mesmo sentido, o Código de Ética Médica canadense,


atualizado em 2004, ao apresentar as “dez responsabilidades
fundamentais” atribuídas aos médicos, no que tange ao tema da
terminalidade da vida estabelece a necessidade de: “Prover cuidados
apropriados ao seu paciente, mesmo quando a cura não é mais possível,

158 Medicina e direito: dilemas da modernidade


incluindo-se o conforto físico e espiritual, bem como o suporte
psicossocial” (CANADÁ, 2004, p. 3).

Igualmente, a Associação Médica Americana (AMA), em


sua Declaração sobre cuidados no fim da vida, publicada em 2005,
considera que

na fase final da vida […] os pacientes devem


confiar que seus valores pessoais terão
prioridade, seja na comunicação com a família
e seus amigos, no cuidado de necessidades
espirituais, na tarefa de concluir uma questão de
natureza moral ainda pendente ou na escolha do
local de seu passamento. (p. 3)

Essas percepções concordantes dos legisladores dos códigos


deontológicos profissionais resgatam o ensinamento contido no
antigo aforismo, de autoria ainda controversa, de que a medicina
deve ser reconhecida como a arte de “curar às vezes, aliviar muito
frequentemente e confortar sempre”. Portanto, a obsessão por manter
a vida biológica a qualquer custo não mais tem amparo moral. Para
aqueles que ainda defendem a tese de ser a vida um bem sagrado e que
por nenhuma justificativa possam se afastar da determinação de tudo
ser feito enquanto restar mesmo que apenas um “débil sopro de vida”,
recomenda-se a leitura do documento sobre eutanásia publicado em
1980 pela Igreja Católica, que assim se pronunciou sobre a futilidade
terapêutica:

É sempre lícito contentar-se com os meios


normais que a medicina proporciona e renunciar
a certas intervenções médicas inadequadas
a situações reais do doente, porque não
proporcionadas aos resultados que se poderiam
esperar ou ainda porque demasiado gravosas
para ele [paciente] e sua família. Na iminência de
morte inevitável, é lícito em consciência tomar
a decisão de renunciar a tratamentos que dariam
somente prolongamento precário e penoso

Conselho Federal de Medicina 159


da vida […]. (CONGREGAÇÃO PARA A
DOUTRINA DA FÉ, 1980)

O propósito dos cuidados paliativos, como nova especialidade


médica, parte de visão mais abrangente do adoecer e propõe aos
profissionais de saúde um modelo de cuidados holísticos que levem em
conta todas as dimensões que integram a vida do paciente. A compaixão
deve estar presente em todas as ações nessa ordem de cuidados,
e pode ser resumida no termo hospitalidade, cuja raiz latina hospitale
deu origem às palavras hospital, hospitaleira e, no inglês, hospice. Nesse
momento especial da existência do paciente, marcado pela finitude de
sua vida e pela mais profunda expressão da vulnerabilidade humana, o
encontro dos cuidadores com o enfermo impõe que os profissionais
de saúde promovam o acolhimento incondicional como a mais genuína
expressão do amor ao paciente (PESSINI; BERTACHINI, 2009).

Nessa circunstância, especialmente, a pessoa do cuidador


deve assumir um novo significado, qual seja, o de estar preparado
para ouvir atentamente as angústias existenciais dos pacientes que se
fazem presentes no momento de despedida da vida. O objetivo maior,
portanto, é auxiliar o paciente no processo de enfrentar o fim de sua
vida pessoal com o máximo de serenidade possível. Elizabeth Kubler-
Ross, pioneira na abordagem das questões relacionadas à finitude
da vida, publicou em 1969 On death and dying, obra traduzida para o
português em 1981 e que traz na contracapa a seguinte recomendação:

Neste livro, transcrevo simplesmente as


experiências de meus pacientes que me
comunicaram suas agonias, expectativas e
frustrações. É de se esperar que outros se
encorajem a não se afastarem dos doentes
“condenados”, mas a se aproximarem mais
deles para melhor ajudá-los em seus últimos
momentos. (KUBLER-ROSS, 1981, contracapa)

Harding (2000) argumenta que insuportável não é simplesmente


a dor física, mas a falta de sentido que a acompanha e o sofrimento

160 Medicina e direito: dilemas da modernidade


que marca de maneira indelével a finitude da vida. Por outro lado,
a espiritualidade diz respeito à busca do ser humano pelo sentido
e significado transcendental da vida. A religião, por sua vez, é um
conjunto de crenças e ritos próprios de uma comunidade particular
de devotos que busca por um significado imanente da vida perante
os diferentes infortúnios que cercam a existência humana, desde o
nascimento até a morte. O cultivo da espiritualidade pode propiciar a
sensação de bem-estar, conforto e esperança, o que torna necessário
dotar os serviços de saúde públicos e privados de condições adequadas
para ofertar esse tipo de assistência aos pacientes.

Os profissionais que atuam nas UTIs lidam frequentemente


com a terminalidade da vida, entretanto, desconhecem as possíveis
consequências jurídicas da não indicação de procedimentos, como a
ordem de não reanimação, ou, mais grave ainda, a retirada de procedimentos
de suporte artificial da vida. O médico teme pelos riscos de se expor a
possíveis processos civis ou criminais caso registre no prontuário suas
decisões diante de um caso de enfermidade terminal.

5. A eutanásia e a legislação brasileira

Não há no direito brasileiro atual uma norma específica sobre


eutanásia. Tampouco há previsão legislativa sobre distinções entre os
termos eutanásia, distanásia, mistanásia, ortotanásia no tocante a seus
significados, limites e possibilidades de caracterização. Isso se dá pela
definição legal do crime de homicídio (artigo 121 do Código Penal)
ou do crime de auxílio ou indução ao suicídio (artigo 122 do Código
Penal). Há, no entanto, possibilidade também prevista em lei de que
o agente que comete homicídio receba tratamento penal privilegiado,
atenuando-se a pena, pelo relevante valor moral que motivou o agente
(há possibilidade legal de o juiz reduzir a pena de um sexto a um terço).

Mas importa observar que, mesmo nos casos em que o homicídio


possa receber tratamento legal dito privilegiado, não se leva em

Conselho Federal de Medicina 161


conta o consentimento da vítima para descaracterizar a prática como
criminosa, pois o ato em si continua sendo tipificado como crime. No
PLS 236/2012, que pretende promover a reforma do Código Penal
brasileiro, a previsão sobre eutanásia é exposta nos seguintes termos:

Eutanásia: § 3º. Se o autor do crime é cônjuge,


companheiro, ascendente, descendente, irmão
ou pessoa ligada por estreitos laços de afeição
à vítima, e agiu por compaixão, a pedido
desta, imputável e maior de dezoito anos, para
abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em
razão de doença grave e em estado terminal,
devidamente diagnosticados: Pena: reclusão, de
dois a cinco anos.
Exclusão de ilicitude: § 4º. Não constitui
crime deixar de manter a vida de alguém por
meio artificial, se previamente atestada por dois
médicos a morte como iminente e inevitável,
e desde que haja consentimento do paciente
ou, em sua impossibilidade, de cônjuge,
companheiro, ascendente, descendente ou
irmão. (BRASIL, 2012)

Observa-se, portanto, ao menos pela redação atual do PLS,


a tendência de manter criminalizada a eutanásia, exceto quando
o agente deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, ou
seja, dependente de aparelhos, desde que previamente atestada por
dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja
consentimento do paciente ou de parentes.

Além das normas penais aplicáveis a todos os cidadãos, existe


ainda sobre o tema a normativa aplicável somente aos profissionais
de medicina, oriunda do órgão de classe que rege a profissão. É o
que vem contido na Resolução CFM nº 1.805, de 9 de novembro de
2006, que permite ao médico “limitar ou suspender procedimentos e
tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de
enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de
seu representante legal”.

162 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Cumpre assinalar que essa Resolução foi motivo de Ação Civil
Pública que resultou, inicialmente, na suspensão liminar de sua vigência,
em outubro de 2007. Em sua petição inicial, o procurador da República
afirmou que “a ortotanásia não passa de artifício homicida; expediente
desprovido de razões lógicas e violador da Constituição Federal, mero
desejo de dar ao homem, pelo próprio homem, a possibilidade de uma
decisão que nunca lhe pertenceu” (BRASIL, 2007).

Posteriormente, em fevereiro de 2011, o mesmo magistrado


reviu seu entendimento anterior, revogando a liminar e assim
fundamentou sua decisão final: “sobre muito refletir a propósito
do tema, chego à convicção de que a Resolução [Resolução CFM
1.805/2006] que regulamenta a possibilidade de o médico limitar ou
suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do
doente na fase terminal realmente não ofende o ordenamento jurídico”.
Tal revogação permitiu reconhecer a legalidade da Resolução para todo
o país (BRASIL, 2007).

6. Considerações finais

O espantoso crescimento da produção científica em todas as


áreas do conhecimento obrigou a universidade moderna a multiplicar
o número de disciplinas acadêmicas, o que resultou numa progressiva
atomização do conhecimento e no distanciamento entre as diferentes
áreas do saber. Segundo Habermas (1992), o caminho mais adequado
para revitalizar o espírito cooperativo na sociedade somente poderá ser
feito por meio de diálogo inclusivo num ambiente de pluralismo moral
em que se respeite a autonomia de escolha de cada indivíduo como
autêntico membro da comunidade humana de comunicação.

Para alcançar esse objetivo na relação médico-paciente será


necessário introduzir profundas mudanças nos conteúdos ministrados
no curso de medicina, que permitam estimular a realização de
processo deliberativo entre os dois protagonistas e reconhecer como
imprescindível oferecer ao paciente todas as informações referentes aos

Conselho Federal de Medicina 163


procedimentos diagnósticos e terapêuticos eventualmente indicados
para o tratamento de sua enfermidade.

A comunidade atual de docentes dos cursos de medicina é


composta por um conjunto de profissionais dotado de indiscutível
saber científico, com sólidos conhecimentos técnicos, entretanto, pouco
habituada a prática do processo deliberativo, que somente será eficaz
se realizada por meio de diálogo simétrico e respeitoso entre médico e
paciente. O maior obstáculo para alcançar esse desiderato encontra-se
na extrema dificuldade para inserir temas de humanidades na grade
curricular dos cursos de medicina, que tradicionalmente privilegiam os
conteúdos de ordem técnica, em detrimento dos humanistas.

Como resultado desse modelo pedagógico herdado do


racionalismo científico, os estudantes de medicina estão sendo
educados para interpretar a doença como fenômeno estritamente
biológico, subestimando os aspectos psicossociais e espirituais dos
pacientes. Despreparados para avaliar os complexos conflitos morais
presentes no processo da morte e do morrer, os médicos sentem-se
inseguros para tomar decisões relativas à introdução ou retirada de
suportes artificiais de vida nos casos de enfermidades terminais.

Portanto, o enorme desafio que se apresenta aos responsáveis


por formar profissionais de saúde sintonizados com a realidade de
uma sociedade que cultiva o pluralismo moral e a autonomia do ser
humano pode ser formulado por meio do seguinte dilema: manter
o atual modelo pedagógico, tributário do imperativo cartesiano-
flexneriano; ou acolher a proposta socrática-habermasiana de utilizar
metodologias ativas de ensino que possibilitem formar egressos
dotados de novas atitudes de responsabilidade social e que respeitem
valores e crenças dos pacientes! A adoção da primeira alternativa
certamente redundará, como a experiência nos tem demonstrado,
em formar mais do mesmo, ou seja, profissionais reféns do
fundamentalismo tecnocientífico. O caminho para eleger o segundo
modelo já vem sendo trilhado em grande número de escolas médicas
de todo o mundo e busca formar médicos preparados para atender
cada paciente, segundo seus valores pessoais, reconhecendo todos

164 Medicina e direito: dilemas da modernidade


os determinantes da doença daquele indivíduo, em suas dimensões
biológicas, psicológicas, sociais e espirituais, pois só assim será
possível retomar o humanismo no exercício da arte médica, conforme
formulado no século IV a.C. por Hipócrates de Cós, o pai da medicina
(SIQUEIRA, 2010).

Sempre será saudável recordar uma história recente que registrou


o emblemático passamento de uma das personalidades mais marcantes
do século XX, o Papa João Paulo II, que, após longo sofrimento,
escolheu viver os derradeiros momentos de sua vida recolhido em
seus aposentos no Vaticano, de onde podia ouvir as preces da multidão
de pessoas, reunidas na Praça São Pedro. Preferiu, o Sumo Pontífice,
reservar seus últimos dias de vida recebendo o conforto das orações
dos fiéis e não optar pela improvável melhora que lhe fora oferecida
para retornar à UTI da Policlínica Gemelli em Roma, onde seria tratado
por meio de drogas de última geração e sofisticada aparelhagem de
suporte avançado da vida. O último dia de vida de João Paulo II foi
singelamente descrito pelo testemunho de Renato Buzzonetti, médico
pessoal do Papa, da seguinte forma:

Na manhã de sábado, 2 de abril, pelas 07:30 foi


celebrada a missa na presença do Santo Padre
que já começava a revelar indícios, embora
descontínuos, de comprometimento de seu
estado de consciência. Pelas 15:30 da tarde do
mesmo dia, com voz fraquíssima e em língua
polaca, o Santo Padre pediu: Deixem-me partir
para o Senhor! Os médicos se deram conta de
que o fim seria iminente e que qualquer novo
procedimento [esforço terapêutico] seria inútil.
Às 21:37 daquela noite, o Papa exalou seu último
suspiro (BUZZONETTI, 2006, p. 71-72).

O modelo de ensino médico que ainda predomina em nosso


país permanece estruturado de modo a circunscrever as disciplinas
básicas e clínicas em limites rígidos e desconectadas umas das outras.
Em função dessa persistente distorção, o processo educativo torna-
se refém de uma grade curricular que não acolhe saberes reflexivos

Conselho Federal de Medicina 165


e críticos, enquanto a sociedade, ao contrário, pede por profissionais
qualificados para considerar valores e crenças dos pacientes, que se
façam presentes e não se omitam diante de complexos conflitos morais
que invariavelmente emergem quando da terminalidade da vida. Faz-
se imperioso, portanto, resgatar o humanismo da arte médica, que
reside menos na capacidade de colher informações oferecidas por
equipamentos de alta tecnologia e mais na capacidade de ouvir e
decifrar os enigmas e sofrimentos contidos na história de vida de cada
paciente (SIQUEIRA, 2002).

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168 Medicina e direito: dilemas da modernidade


TERMINALIDADE DA VIDA E A JURISPRUDÊNCIA ESTRANGEIRA:
ANÁLISE DE CASO PARADIGMÁTICO ALEMÃO

Cynthia Pereira de Araújo


Mestre e doutora em Teoria do Direito pela
PUC Minas, com doutorado-sanduíche na Universität
Vechta (Alemanha). Advogada da União.

Silvana Bastos Cogo


Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela
Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Professora da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM).

1. Considerações iniciais

A morte e o morrer são muitas vezes percebidos pelas pessoas


como processos distantes das suas vidas e famílias. No entanto, a
morte é uma companheira constante, pois os seres humanos são
eminentemente terminais. Como bem dizia o filósofo Sêneca (2016, p.
60-61), “não é que em toda parte a morte se revela assim tão próxima,
é que ela está assim tão próxima em toda parte”.

O afastamento cotidiano da ideia de morte acaba tornando


dificultoso o processo de sua aceitação como possibilidade real e
presente, notadamente em caso de doenças que ameaçam a vida, seja
por não haver uma comunicação adequada por parte dos profissionais
de saúde com os pacientes e entes que os acompanham, seja pela cultura
medicalizadora, que incute a ideia de constante reversão das doenças.
Nesse contexto, muitas vezes a conversa sobre a terminalidade sequer é
iniciada, frequentemente pelo despreparo da equipe de saúde, formada
em um ambiente de negação da morte, sem avaliação dos complexos
conflitos morais presentes no processo do morrer. Complica ainda mais
esse cenário a forma como a cultura ocidental, em especial a brasileira,

Conselho Federal de Medicina 169


percebe a morte, o que interfere nas decisões relacionadas ao cuidado
em fim de vida, geralmente permeadas de dúvidas e questionamentos
sobre a melhor conduta.

A ideia de atuar com pessoas acometidas por doenças em


progressão e com irreversibilidade de cura suscita reflexões de
conduta, cuidado e planejamento, a fim de atender essas pessoas
de maneira a satisfazer as suas necessidades multidimensionais.
Entretanto, percebem-se e vivenciam-se situações extremamente
conflituosas e dilemáticas quando as ocasiões são permeadas por
assuntos relacionados à terminalidade. Destaca-se, nesse sentido, além
das pessoas em processo ativo de morte, a condição dos doentes em
estado vegetativo, que por vezes acabam morrendo em sofrimento ou
desassistidos, além de privados da chance de se despedirem de seus
entes queridos, experimentando o que se pode chamar de morte não
digna.

É neste contexto que a decisão de descontinuar ou não


iniciar a introdução de um suporte artificial de vida pode suscitar no
profissional de saúde a dúvida sobre se sua atuação implica abandono
do paciente. Soma-se à reflexão de cunho moral a insegurança por
receio de eventual punição legal, além do sentimento de fracasso
decorrente sobretudo dos pedidos insistentes de continuidade ou
intervenção, geralmente pelos familiares, que comumente desejam que
se tentem todos os tratamentos possíveis, na esperança do milagre
de reverter uma situação manifesta de fim de vida. Essa insistência é
frequentemente impulsionada pelo sentimento de culpa dos parentes
próximos do doente, muitas vezes ausentes enquanto ainda havia
expectativa de vida longa (ARAÚJO; COGO, 2018).

Atualmente, embora tenha-se progredido substancialmente na


área da saúde no que tange ao tratamento e cura de doenças antes
consideradas mortais e com alto grau de mortalidade precoce, surge
um embate entre, de um lado, as ideias de manter a todo custo a vida
e, de outro, o direito de morrer dignamente. A ideia de prolongar a
vida acometida por uma doença incurável, em estágio progressivo e

170 Medicina e direito: dilemas da modernidade


avançado, e com piora gradativa e irreversível dos sintomas, utilizando-
se da obstinação terapêutica e propiciando sofrimento humano, parece
contrariar a lógica da vida digna por impedir um processo de fim de
vida digno – já que todo este processo é vida, e não morte (ARAÚJO;
COGO, 2018).

Sob essa perspectiva, a utilização exacerbada de tecnologia


sofisticada e o uso desproporcional de alternativas de tratamento para
pacientes em fase final de vida contribuem para a desumanização da
prestação de cuidados de saúde. A obstinação terapêutica surge como
uma prática comumente empregada nos ambientes hospitalares,
associada à disponibilização abusiva de novas tecnologias médicas
(NUNES, 2012) e à cultura medicalizadora da vida, que impõem
o adiamento da morte sem considerar os malefícios dessa ação
(BUSSINGUER; BARCELLOS, 2013).

A partir das evidências encontrados no estudo de Almeida e


Freitas Melo (2018), verifica-se que a formação do médico perpetua a
prática da obstinação terapêutica em pacientes com doenças avançadas
e em progressão. Os pesquisadores reforçam a importância do processo
de humanização da morte, da efetiva comunicação profissional-
paciente, da corresponsabilidade pelas decisões e da participação da
família.

As decisões sobre tratamentos devem se basear em considerações


a respeito dos direitos e do bem-estar do paciente, avaliando-se
custos e benefícios das intervenções, mediante decisão que deve ser
compartilhada entre o médico e o paciente ou seu responsável legal. Os
estudos mostram consistentemente que a maioria das queixas contra
profissionais de saúde derivam não de erros médicos, mas da falta de
comunicação e da ausência de cuidado que comprometem a dignidade
do paciente (HERREROS; PALACIOS; PACHO, 2012).

Merece menção que a distinção entre a abstenção e a interrupção


de um tratamento é moralmente insustentável, e nenhum dos dois casos
implica abandonar o paciente. A interrupção pode visar a cumprir as

Conselho Federal de Medicina 171


diretrizes do próprio paciente, dentro dos limites de sua autonomia,
e ser acompanhada e seguida de outras formas de cuidado (DUTRA,
2011).

A dignidade da pessoa perpassa as necessidades de cada ser


e envolve a possibilidade de se decidir sobre as próprias vontades e,
naturalmente, que estas sejam respeitadas. Essa perspectiva não difere
no processo de morrer, mas, quando se fala em morte com dignidade
– ou vida com dignidade até a morte – é importante, tanto quanto
possível, que os pacientes tenham claro os seus desejos e as suas
pretensões relacionadas aos tratamentos em fim de vida, e que estes
estejam registrados e/ou sejam de conhecimento de seus responsáveis
ou cuidadores (ARAÚJO; COGO, 2018). A vontade expressa do
paciente quanto às medidas cujo objetivo seja prolongar a vida, ainda
que sem perspectiva de cura e melhora de doenças, pode ser manifestada
por meio de diretivas antecipadas de vontade, especialmente na forma
de um testamento vital, ou mandato duradouro. A observância dos
desejos manifestados repercute na valorização da autonomia de quem
as manifestou, além de promover a morte digna nos casos em que se
facilita o afastamento do uso de recursos artificiais que, mais do que a
vida do paciente, prolongariam o seu processo de morrer, de maneira
por vezes agonizante e angustiante (ARAÚJO; COGO, 2018).

A negação da dignidade e da autonomia, incluindo o tratamento


forçado e a sua institucionalização e a desconsideração da capacidade
individual de tomar decisões, corresponde a uma atenção inadequada
na prestação dos serviços de saúde, a qual, associada aos altos níveis de
violência, pobreza e exclusão social, contribui para resultados nefastos
sobre a saúde mental e física dos indivíduos e das famílias envolvidas
no processo (OLIVEIRA et al., 2018). Acrescente-se que a oposição à
obstinação terapêutica, muitas vezes referenciada como a não iniciação
ou retirada de suporte vital, é meramente a ponta de um iceberg,
geralmente invisível para os especialistas em ética médica e demais
profissionais da saúde.

172 Medicina e direito: dilemas da modernidade


A partir dessas considerações, e partindo do pressuposto de que
a vontade manifestada previamente pelo paciente deve ser respeitada,
desde que em conformidade com os preceitos bioéticos, e de que esse
respeito contribui para a concretização do processo de morte digna, a
descontinuidade de tratamentos reconhecidamente fúteis pode e deve
ser considerada. Sua consideração à luz do respeito à autonomia e à
dignidade humana constitui o cerne do que propomos a seguir.

2. Caso paradigmático alemão

Em outubro de 2002, a senhora alemã Erika Küllmer foi


acometida por um acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico
e permaneceu em estado vegetativo persistente por cinco anos
(DEUTSCHLAND, [2010]). Em outras palavras, a paciente vivia
em condições extremas de manutenção de vida, sem perspectivas
de tratamentos modificadores de seu quadro de saúde. Em 2006, o
membro superior esquerdo de Küllmer foi amputado em virtude de
uma fratura e, em dezembro de 2007, ela pesava 40 quilos, com 1,59 m.

Em 20 de dezembro de 2007, o advogado alemão especializado


em direito médico Wolfgang Putz, consoante informações prestadas
pelos filhos da senhora Küllmer, orientou que fosse retirada a
alimentação artificial que a mantinha viva, o que foi feito por sua filha.
Ao verificarem o ocorrido, os profissionais de saúde responsáveis
retomaram a introdução da sonda para alimentação, por não haver
concordância do hospital com a interrupção. Quinze dias após a
remoção e a recolocação do tubo, a paciente veio a óbito em virtude de
complicações cardíacas.

As decisões que embasaram o advogado Putz e os filhos na


decisão de retirada do tubo de alimentação da paciente foram norteadas
pelas vontades previamente manifestadas verbalmente por ela, em
setembro de 2002, por ocasião também de um AVC hemorrágico, que
acometera seu marido. Erika Küllmer teria então dito aos filhos que
não gostaria de medidas que prolongassem artificialmente sua vida,

Conselho Federal de Medicina 173


tais como mangueiras de alimentação ou hidratação artificial, caso algo
semelhante lhe acontecesse (DEUTSCHLAND, [2010]), salvo se tais
medidas pudessem ajudar a retomar uma qualidade de vida próxima
a anterior ao acidente. Küllmer não redigiu qualquer documento de
manifestação dessa vontade, nem havia, àquele momento, legislação
que amparasse esse tipo de documento.

Em razão da orientação aos filhos de Küllmer como especialista


em direito dos pacientes, o advogado Putz foi acusado como coautor
de tentativa de homicídio, tendo sido condenado pelo Tribunal alemão
em primeira instância a nove meses de prisão, pena condicionalmente
suspensa.1 Putz recorreu da decisão e, em 2010, o tribunal alemão em
segunda instância (tribunal recursal) considerou insuficiente a análise
dos elementos jurídicos presentes no processo, absolvendo o réu
(DEUTSCHLAND, [2010]). Essa decisão é considerada paradigmática
na jurisprudência alemã.

2.1 Análise do caso Putz

Poucas decisões são tão importantes como as de não iniciar ou


interromper um procedimento médico que sustentaria a vida de um
paciente. Em alguns casos, porém, é injustificável que os responsáveis
ou os profissionais resolvam iniciar ou dar continuidade à terapia
cientes de que ela produzirá mais dor e sofrimento para um paciente
debilitado ou incapaz (ESQUIVA; SAMPAIO; SILVA, 2014).

A limitação do esforço terapêutico (LET) direciona as condutas,


ativa ou passivamente, restringindo tratamentos nos casos de morte
inevitável de pacientes em razão de doença incurável em estágio
progressivo e avançado, e buscando se distanciar da obstinação
terapêutica (MORITZ et al., 2011). Mas isso pressupõe um modelo
de qualidade de vida que se entende benéfico para o paciente
especificamente considerado, em razão da intervenção ou falta da

1
A filha que havia retirado o tubo de alimentação foi absolvida.

174 Medicina e direito: dilemas da modernidade


terapia. Deste modo, deve-se considerar, dentro das possibilidades
fáticas, os valores e significados da vida para o paciente em questão,
não se podendo admitir a descontinuidade de tratamentos por conta
de redução de custos ou de dificuldades para família ou cuidadores.
Portanto, as decisões que envolvem a LET são individualizadas, devendo
se considerar não apenas os critérios técnicos, mas especialmente a
preservação da autonomia do paciente, diretamente ou por meio do
seu responsável legal ou família.

Em relação ao chamado caso Putz, a condenação em primeira


instância decorreu do entendimento de que o cancelamento do
abastecimento de alimentação artificial representava uma conduta ativa,
a atrair a responsabilidade por tentativa de homicídio, por critérios
apenas relacionados à ação (externos). O tribunal em segunda instância,
por sua vez, considerou que os critérios utilizados para a condenação
eram insuficientes. Assim, ratificou-se a vedação legal à eutanásia ativa,
entendimento que sempre prevaleceu na jurisprudência alemã, mas
reconheceu-se que eram necessários critérios adicionais para verificar
o significado da interrupção de alimentação artificial. Nesse contexto,
priorizou-se a discussão sobre o valor jurídico da vontade da paciente
de não se submeter a medidas que prolongassem artificialmente a sua
vida – as quais já se estendiam há cinco anos.

Registre-se que, no contexto do princípio da não-maleficência,


que determina a obrigação de não prejudicar e de não impor riscos ou
dano intencionalmente, a recusa (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002)
à ressuscitação cardiopulmonar (RCP) por exemplo, é considerada
apropriada aos pacientes com doenças progressivas e avançadas, com
perda irreversível de consciência ou probabilidade de parada cardíaca
ou respiratória que não possa ser tratada, sem que se cogite da prática
ilícita de eutanásia (MORITZ; ROSSINI; DEICAS, 2012).

Nesse contexto, é injustificável que se considere as decisões sobre


RCP como diferentes das decisões sobre outras tecnologias de suporte
de vida, tais como a de nutrição ou hidratação artificial, que remetem
não a eventual benefício ao paciente, mas a um significado simbólico:

Conselho Federal de Medicina 175


os profissionais da saúde geralmente consideram devastador deixar
alguém sem alimentação ou água, pois seu fornecimento representa
a essência do cuidado e da compaixão.

Realmente, segundo Schneiderman e Jecker (2011, p. 98), “a


preocupação usual daqueles que querem distinguir entre a alimentação
artificial e outras formas de tratamento médico é de que não se deve
admitir que pacientes ‘morram de fome’” ou, em caso de hidratação
artificial, “de sede”. No entanto, segundo os autores, a experiência
clínica demonstra que forçar a nutrição ou a hidratação artificial a
pacientes com doenças terminais pode aumentar seu sofrimento no
lugar de diminuí-lo. Ademais, “sede e fome podem ser aliviados com
boa prática médica e cuidado humano, incluindo medicamentos para
dor e sedativos” (SCHNEIDERMAN; JECKER, 2011, p. 132).

Os pacientes em estado crítico apresentam hipermetabolismo,


acarretando rápido estado de desnutrição. O suporte nutricional, para
uma parcela da comunidade científica, beneficiaria o paciente, por
diminuir a resposta catabólica, ampliando o sistema imunológico e,
assim, contribuindo para o melhor desempenho funcional do sistema
digestório, reduzindo complicações decorrentes da imobilização. Por
outro lado, uma parte crescente do meio científico, notadamente
paliativistas, questiona os reais benefícios do suporte nutricional nesses
pacientes. Esses profissionais da saúde advogam que o desconforto
e as complicações oriundas da terapia nutricional superam os seus
benefícios (REIRIZ, 2008). Realmente, existem estudos que indicam
que pacientes sem hidratação artificial morrem mais confortavelmente
que pacientes que receberam hidratação artificial; as desvantagens
de seu início ou manutenção superariam, pois, as vantagens de sua
efetivação, não se podendo privar-lhes da recusa a esses tratamentos
(MORITZ; ROSSINI; DEICAS, 2012).

Por não haver evidências científicas definitivas para a decisão de


alimentar ou não o paciente e por existir influência cultural importante
no que tange à alimentação e à hidratação, a decisão de nutrir até a
morte o paciente deve ser multiprofissional e ter o consentimento

176 Medicina e direito: dilemas da modernidade


por escrito do responsável legal ou da família se o paciente não
tiver condições de decidir (REIRIZ, 2008). É necessário, ainda, que
todos os envolvidos compreendam os eventuais riscos e benefícios
do procedimento, ponderando o conforto, o risco de aspiração, a
prevenção de lesões por pressão e a eventual sobrevida pelo uso da
nutrição artificial (MOTA, 1999). Em contrapartida, caso o paciente
opte por não receber nutrição e hidratação, sua decisão deve ser
respeitada e acatada pelos profissionais da saúde e por seus familiares,
preservando-se a autonomia do paciente com respeito aos princípios
da não maleficência e da beneficência (REIRIZ, 2008).

O respeito à autonomia foi o aspecto central da decisão de


absolvição do advogado Putz pelo tribunal alemão em segunda
instância. Reconhecendo o valor jurídico da manifestação de
vontade da paciente, mesmo que não documentada, prevaleceu o
“direito de autodeterminação”, previsto no artigo 2º da Constituição
alemã (Grundgesetz),2 que garante a inviolabilidade dos direitos da
personalidade, inclusive a autonomia (ARAÚJO; COGO, 2018).

É comum que os profissionais e membros da família julguem que


a decisão de interromper tratamentos é mais importante e mais grave
do que a decisão de não iniciá-los. Tem-se a ideia de que a primeira
conduta os torna responsáveis e culpados pela morte do paciente,
enquanto não seriam responsáveis ao não dar início ao tratamento.
Por outro lado, os pacientes ou seus responsáveis legais, muitas vezes,
ficam menos estressados e sentem-se com mais controle se uma
decisão pelo tratamento puder ser revertida ou modificada depois de
seu início (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).

Em pesquisa sobre a retirada da alimentação e hidratação


realizada no Reino Unido por Kitzinger e Kitzinger (2015), famílias
de parentes em estado vegetativo ou minimamente consciente (MCS)

2
“Artigo 2º (Liberdades pessoais): (1) Toda pessoa tem o direito de livre desenvolvimento de sua personalidade
desde que não viole os direitos de outros ou viole a ordem constitucional ou a lei moral. (2) Toda pessoa
tem o direito à vida e à integridade física. A liberdade da pessoa é inviolável. Estes direitos podem sofrer
interferência apenas nos termos da lei” (tradução nossa).

Conselho Federal de Medicina 177


mostraram não estar dispostas a considerar a retirada da alimentação
e hidratação, mesmo quando convencidas de que a pessoa preferiria
estar morta. Mesmo aqueles que tinham parentes apenas minimamente
conscientes geralmente acreditavam que a adoção de tratamentos
provavelmente não teria sucesso.

Essa realidade demonstra que mesmo as pessoas mais próximas


muitas vezes não conseguem respeitar a autonomia do paciente,
o que exalta a importância das diretivas antecipadas de vontade
(DAV), nomeadamente sob a forma de testamento vital. Esses
institutos têm especial importância no contexto do fim da vida,
notadamente nos casos em que os pacientes perdem a possibilidade
de se manifestar, e as decisões sobre tratamentos e sua interrupção
devem considerar a vontade manifestada pelo doente enquanto se
encontrava em plena capacidade de deliberação.

Estudos sugerem que as DAV ajudam os cuidadores a fazer


escolhas que melhor reflitam os verdadeiros desejos dos indivíduos,
na medida das possibilidades fáticas. Assim, os pacientes não ficam
dependentes das vontades de seus familiares e dos profissionais
que os assistem, inclusive no que se refere aos procedimentos
sustentadores de vida (ESQUÍVEL; SAMPAIO; SILVA, 2014).

Conforme Dadalto, o testamento vital é um documento de


manifestação de vontades pelo qual uma pessoa capaz manifesta
seus desejos sobre suspensão de tratamentos, a ser utilizado quando
o outorgante estiver em estado terminal, em estado vegetativo ou
com uma doença crônica incurável, impossibilitada de manifestar
livre e conscientemente sua vontade (DADALTO, 2015, p. 97). Para a
autora, o objeto de recusa manifestado no âmbito do testamento vital
é a chamada “suspensão de esforço terapêutico” (SET), ou seja, dos
tratamentos extraordinários que visam somente prolongar a vida e não
alteram a situação de terminalidade (DADALTO, 2015, p. 98-99). O
respeito ao testamento vital é o respeito ao ser humano autônomo, cuja
vontade prévia foi naquele instrumentalizada.

178 Medicina e direito: dilemas da modernidade


É importante registrar que em 2009 a Alemanha aprovou sua
primeira lei sobre o testamento vital, a qual, em síntese, reconhece
a validade do instrumento, facultativo, além de prever de que modo
devem agir os responsáveis em caso de inexistência de testamento vital.
Quando do julgamento em segunda instância do advogado Wolfgang
Putz por tentativa de homicídio, já estava em vigor essa lei, que
promoveu alterações no Código Civil (BGB) por vezes mencionadas
na decisão judicial, inclusive para esclarecer que a lei nova beneficiaria
o acusado, ainda que promulgada em momento posterior ao suposto
crime. No entanto, pela fundamentação da decisão em uma leitura
sistemática, é possível entender que o arcabouço constitucional já teria
sido suficiente para a absolvição, razão pela qual a decisão em questão
é considerada paradigmática no contexto jurídico alemão (ARAÚJO;
COGO, 2018).

O autor do projeto que se converteu na referida lei alemã, o


parlamentar social-democrata Joachim Stünker, defendeu que o direito
de autodeterminação garantido na constituição alemã vale também
na fase final da vida. O assunto vinha sendo amplamente debatido
no país, tendo sido destaque a postura da então ministra da Justiça,
Brigitte Zypries, ao defender que “cada pessoa possa dispor de um
documento em que assegure o que quer que aconteça no momento em
que […] não tiver mais capacidade de decisão” (MINISTRA…, 2006).

Consoante Igl e Welti (2017, p. 563), em caso de eutanásia passiva,


o efetivo consentimento do paciente pode ser obtido de três formas:
imediatamente antes do ato, explícita ou implicitamente, mas de modo
concludente; a partir de um documento formal (nos termos da referida
lei); ou, como no caso sob análise, a partir da presunção da vontade
por não ser mais possível obter uma manifestação atual de efetivo
consentimento (coma irreversível). A aceitação do consentimento
presumido exige o conhecimento e a concordância do responsável
legal do paciente, mesmo porque trata-se, geralmente, da forma como
é obtida a vontade anteriormente expressada pelo doente. Lembre-se

Conselho Federal de Medicina 179


que, no caso Putz, a vontade da paciente havia sido informada pelos
próprios filhos.

Merece menção que, segundo Schneiderman e Jecker, mesmo


nos Estados Unidos – um dos campões em litígios médicos –, “nunca
houve condenação criminal de um médico por interromper tratamentos
que [artificialmente] mantêm a vida” (SCHNEIDERMAN; JECKER,
2011, p. 95). Isso porque a posição que os tribunais adotam é de
que a remoção de tratamentos que apenas mantêm artificialmente a
vida, quando inapropriados ou não desejados, “apenas permite que a
natureza siga o seu rumo, e que a doença do paciente, e não a remoção
do tratamento, causa a morte” (SCHNEIDERMAN; JECKER, 2011,
p. 97).

É comum o receio de abandono do paciente no fim do curso


da doença, o qual pode e deve ser afastado a partir da disseminação da
cultura dos cuidados paliativos, que, conforme a Organização Mundial
da Saúde (OMS) (2018), constitui uma abordagem que melhora a
qualidade de vida dos pacientes e suas famílias, prevenindo e aliviando
o sofrimento através de identificação precoce, avaliação correta,
tratamento da dor física e cuidado psicossocial e espiritual. Assim,
a ideia de promover o cuidado, quando não há mais possibilidades de
cura, especialmente quando a morte se mostra iminente, configura-se
como o cerne da filosofia dos cuidados paliativos.

Segundo dados da OMS (2018), a cada ano, estima-se que 40


milhões de pessoas necessitam de cuidados paliativos. E embora em
todo o mundo tenham crescido significativamente as instituições que
aderem ao movimento paliativista, apenas cerca de 14% das pessoas
que precisam de cuidados paliativos efetivamente os recebem.

Murray et al. (2017) citam estudos que demonstram que os


cuidados paliativos, especializados integrados, comparados a cuidados-
padrão, aumentaram a qualidade de vida e, para algumas pessoas, a
própria longevidade. Afirmou-se que

180 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Outros ensaios recentes e uma revisão sistemática
relatam que a prestação sistemática precoce de
cuidados paliativos por muitos clínicos, não
apenas por especialistas em cuidados paliativos,
pode melhorar a qualidade de vida de pessoas
com câncer e outras condições avançadas
limitantes da vida. Também pode ajudar a
evitar intervenções onerosas de baixo benefício.
Estudos com idosos na Austrália e pessoas
com doenças crônicas no Canadá demostraram
reduções significativas de internações
hospitalares. Os pacientes demonstraram ter
necessidades de cuidados paliativos desde o
diagnóstico. Embora os estudos não expliquem
quais aspectos dos cuidados paliativos são os
mais importantes, ajudar as pessoas a fazer
escolhas alinhadas com suas prioridades parece
ser a chave. (MURRAY et al., 2017, p. 2,
tradução nossa)

Registre-se que os cuidados paliativos vêm se comprovando


uma alternativa também de menor custo em relação aos cuidados
prestados habitualmente – embora não de forma mais efetiva.
Apesar dos custos significativos, economiza-se em hospitalizações
desnecessárias, que são muito mais dispendiosas. Os tratamentos
e intervenções fúteis na última fase da vida são de modo geral
reduzidos, o que torna os cuidados paliativos desejáveis também em
termos econômicos.

Na Alemanha, nos anos 1980, foram criadas as primeiras


unidades de cuidados paliativos.3 Houve acréscimo de serviços nessa
3
Conforme a normatização alemã, “1 Atendimento Paliativo é o tratamento e/ou cuidado de doentes muitos
graves, principalmente quando o objetivo de uma cura não é (mais) realizável. Em princípio, tratamento
paliativo faz parte do tratamento médico, que de acordo com o § 27 parágrafo 1 pag. 1, SGB V, existe
para aliviar os sintomas da doença. De acordo com o § 1 parágrafo 2 da MBO dos médicos aliviar o
sofrimento e dar assistência a doentes terminais pertencem às tarefas dos médicos. No entanto, é evidente
que a orientação específica e a institucionalização tardia da medicina paliativa e do apoio de cuidados e
atendimento social dos doentes graves e terminais indicam o atendimento paliativo como um setor separado
do sistema de saúde. Atuantes nesta área são, além de médicos, serviços paliativos e hospices. 2 Segurados
com uma doença não curável, progressiva e avançada, com uma expectativa de vida limitada, que requerem
um cuidado particularmente complexo, têm direito a cuidados paliativos especializados ambulatoriais (§ §

Conselho Federal de Medicina 181


perspectiva, com a criação de duas leis introduzidas em 2009 que
obrigaram a formação em cuidados paliativos para os estudantes de
medicina e garantiram o direito dos doentes de usufruir cuidados
paliativos no domicílio, com despesas integralmente cobertas por
instituições de seguros de saúde privada e pelo Estado (EUROPEAN
ASSOCIATION FOR PALLIATIVE CARE, 2013). Em 2015, o
Parlamento alemão aprovou novas regras para o maior avanço da
prestação dos serviços de cuidados paliativos no país, notadamente
para o seu melhor financiamento. A Alemanha, segundo estudo
publicado pelo The Economist em 2015, ocupa o sétimo lugar, entre
80 países pesquisados, em termos de “qualidade de morte” (THE
ECONOMIST, 2015).

O Brasil e outros países em desenvolvimento, por sua vez,


enfrentam muitos desafios relacionados à pouca oferta de serviços
especializados e grande demanda da população por cuidados de fim da
vida. O Brasil ocupa apenas a 42ª posição no referido estudo referente
à qualidade de morte.

É possível concluir que os cuidados paliativos no país não estão


sendo prestados de forma adequada para a maioria dos pacientes, sendo
muitas vezes restritos a iniciativas pontuais e isoladas (ARAÚJO, 2019),
concentradas em áreas urbanas e sem formação de redes (SILVA,
2015, p. 370). Conforme Bushatsky et al., “a assistência paliativa
no Brasil surgiu por iniciativa de alguns profissionais do Instituto
Nacional do Câncer, preocupados com o abandono institucional dos
pacientes fora de possibilidade terapêutica e o aumento das demandas
de atendimento” (2012, p. 405).

De acordo com dados mencionados pela Academia Nacional


de Cuidados Paliativos (ANCP) (2019), atualmente o Brasil conta
com aproximadamente 157 serviços; no entanto, muitos deles ainda

37b, 132d SGB v). Os requisitos destes serviços e os conteúdos são especificados em uma diretriz do G-BA
(§ 37b parágrafo 3 SGB v). Este direito se aplica também a instalações de enfermagem estacionárias/a
instalações de cuidados (§ 37b parágrafo 2 SGB V), que também podem ser parceiros contratuais dos
seguros de saúde de acordo com o § 132d SGB V” (IGL; WELTI, 2007, p. 302-303, tradução nossa).

182 Medicina e direito: dilemas da modernidade


necessitam ser aperfeiçoados a fim de garantir a eficácia e a qualidade
dos cuidados paliativos. Conforme menciona a ANCP, ainda imperam
no Brasil um enorme desconhecimento e preconceito quanto aos
cuidados paliativos, principalmente entre os médicos, profissionais de
saúde, gestores hospitalares e operadores do direito.

Realmente, muitos ainda têm grande dificuldade de compreender


que a filosofia de cuidados paliativos em nada se confunde com a
eutanásia, notadamente a eutanásia ativa. Os cuidados paliativos focam
no melhor cuidado imediato do doente, sem qualquer pretensão de
interferir na aceleração do óbito. Na verdade, conforme anteriormente
indicado, há estudos que demonstram que a integração precoce de
cuidados paliativos pode, inclusive, prolongar a vida.

Conforme a OMS (2018), a falta de treinamento e conscientização


sobre os cuidados paliativos entre profissionais de saúde é uma
barreira importante para melhorar o acesso e o reconhecimento de
que os cuidados paliativos são uma necessidade de saúde pública e
humanizada. Em 2014, a Organização Mundial da Saúde e a Aliança
Mundial de Cuidados Paliativos (Worldwide Palliative Care Aliance)
publicaram o Atlas global de cuidados paliativos no fim da vida, em que
se reconheceu o acesso aos cuidados paliativos, incluído o acesso ao
alívio da dor, como um direito humano. Dentre as recomendações
específicas para governos incluídas no atlas, estão: desenvolver um
orçamento abrangente para aumentar o acesso aos serviços de cuidados
paliativos para todos que precisam, integrando-os aos sistemas de
saúde e da comunidade; garantir que os cuidados paliativos sejam
integrados em políticas nacionais específicas e apropriadas; adotar
medidas para superar as barreiras de acesso a medicamentos essenciais,
especialmente analgésicos opioides orais, para pessoas com doenças
terminais; monitorar o desenvolvimento dos cuidados paliativos em
âmbito nacional; e integrar a educação sobre cuidados paliativos na
grade curricular obrigatória (WORLDWIDE PALLIATIVE CARE
ALLIANCE, 2014).

A temática vem ganhando cada vez mais espaço em todo o


mundo, sendo a Alemanha uma importante referência no assunto, seja

Conselho Federal de Medicina 183


pela forma como percebe a limitação terapêutica, seja pela atenção
institucional à importância dos cuidados paliativos. No Brasil, por
sua vez, o assunto ainda é incipiente, a despeito de alguns avanços
normativos nos últimos anos. Vale lembrar que, desde 2006, foi
reconhecida oficialmente no país a legalidade da ortotanásia – que
pode ser definida como morte no tempo certo, sem abreviações ou
adiamentos artificiais –, a partir da Resolução do Conselho Federal de
Medicina nº 1.805, a qual foi, inclusive, objeto de discussão judicial,
tendo sido por fim reconhecida a sua constitucionalidade nos autos da
Ação Civil Pública nº 2007.34.00.014809-3.

3. Considerações finais

Os conflitos e dilemas enfrentados nos ambientes de assistência


à saúde passam por vezes desapercebidos, embora sempre permeados
por dúvidas sobre a aplicabilidade e licitude da interrupção de
medidas excepcionais para pacientes com doenças que ameaçam
a vida. A insistência nesses tratamentos é motivo de sofrimento
desproporcional, não apenas para pacientes e familiares, mas para os
próprios profissionais da saúde, seja por acreditarem, equivocadamente,
que determinado tratamento é indispensável, ou por temerem que a
limitação terapêutica configure abandono do cuidado ao paciente.

Nesse contexto, ganha relevância o respeito à autonomia do


paciente, à qualidade de vida e à dignidade humana. Ao se priorizar
medidas que procuram estender a vida, sem que se coloque em primeiro
plano a qualidade desta vida e o respeito à autonomia do indivíduo,
perde-se o escopo dos aspectos mais humanos do exercício das
profissões de saúde. Descuida-se da importância de aliviar sintomas,
diminuir a dor e preservar a dignidade, dirigindo-se a preocupação
apenas ao enfrentamento da doença. Essa postura desumaniza o
doente, que vê o seu sofrimento e a sua vida relativizados em prol de
um suposto “bem maior”: o prolongamento da existência (ARAÚJO,
2019).

184 Medicina e direito: dilemas da modernidade


O caso Putz, paradigmático no contexto jurídico da Alemanha,
é também uma boa referência para o enfrentamento das questões que
permeiam a limitação terapêutica em casos de pacientes críticos ou
com doenças progressivas, avançadas e incuráveis, especialmente em
razão da reconhecida qualidade de fim de vida no país.

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188 Medicina e direito: dilemas da modernidade


CIRURGIA PLÁSTICA EM RESPEITO AO PACIENTE E AO ATO
MÉDICO

Níveo Steffen
Presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.
Preceptor do Serviço de Cirurgia Plástica da Santa Casa
de Porto Alegre e da Universidade Federal de Ciências
da Saúde de Porto Alegre.

Ao receber o convite para participar deste congresso de direito


médico, pensei incialmente que a cirurgia plástica é uma especialidade
médica que tem diversos objetivos, cada um deles não menos importante
que os demais. Entretanto, o exercício profissional, a meu ver, não
pode concorrer com a discordância, como atualmente se pratica. A
sociedade atual é bem mais complexa, e a busca por novos caminhos
profissionais chegou a ponto de provocar que instituições de idêntica
atividade profissional passassem a nos agredir diuturnamente. Por
essa razão, ainda quando em campanha para assumir a presidência da
Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), instituí como pilares
inarredáveis a ciência, o conhecimento e a defesa dessa especialidade.

Já no meu mandato, no tocante à defesa da especialidade, nós


temos falado com muita ênfase, em primeiro lugar, na segurança do
paciente e no exercício dos atos privativos conforme delega a Lei do
Ato Médico. Não à toa, a SBCP fundou um patrimônio atual no que
diz respeito à defesa da cirurgia plástica, funcionando como um marco
até mesmo para outras especialidades médicas. Temos trabalhado
duramente contra a invasão de nossa área por médicos sem o título de
especialista, assim como contra a desenfreada invasão por não médicos
– mais especificamente, por todas as demais categorias profissionais
da área da saúde, sejam odontólogos, biomédicos, enfermeiros,
farmacêuticos, entre outros –, o que culmina em um cenário catastrófico
para os pacientes e para toda a cadeia de saúde pública e privada.

Dizemos isso com a propriedade de encontrarmos tal cenário


em nosso campo de trabalho, em nossos consultórios, onde nos

Conselho Federal de Medicina 189


deparamos com intercorrências e sequelas cuja causa é o exercício
da atividade privativa do médico por quem não dispõe da formação
necessária. Registramos aqui nossa tristeza ao divulgar que os casos de
óbito por essa causa são uma realidade por conta do atual cenário em
todo o País.

Temos nos alicerçado juridicamente na Constituição Federal, na


Lei do Ato Médico, no Decreto Federal nº 8.516/2015, entre outros
esteios legais. Porém, há de se frisar que esta atribuição é limitada
para o exercício da SBCP, que não goza de atribuição específica ou
capilaridade para agir com poder de polícia administrativo. Por tal
razão, temos incessantemente levado aos órgãos legais maciças
mobilizações nacionais, seja perante os 27 Ministérios Públicos do País
ou os 27 Conselhos Regionais de Medicina, reunindo proeminente
material sobre o exercício da medicina por não médicos, o que deve ser
duramente combatido.

Não menos importante, a SBCP tem feito um trabalho exemplar


no âmbito legislativo, participando de frentes parlamentares idealizadas
por instituições ligadas à medicina e capitaneadas por médicos. Neste
ano, entregou a membros do Congresso Nacional, atendendo a
pedidos, dossiês com dados e casos de intercorrências e óbitos cuja
responsabilidade repousa na atividade de não médicos.

Nesse mesmo campo, e de acordo com o exercício do ato médico,


a SBCP tem divulgado que os procedimentos da cirurgia plástica
devem ser realizados pelo cirurgião plástico, mesmo considerando que
a Lei nº 3.268/1957 persiste na ideia do generalismo – muito embora
tenhamos requerido, ao longo de nossas gestões, principalmente ao
Conselho Federal de Medicina (CFM), que haja uma evolução na
interpretação dessa lei, já que, do ponto de vista jurídico, a maioria das
leis atualmente vigentes no País e que datam do mesmo período foram
objeto de adaptações e alterações, para melhor abrigar as mudanças a
que a sociedade se submete.

Nesse sentido, e pensando de forma legalista, a SBCP se


posiciona nesta gestão a respeito da indevassável necessidade de haver

190 Medicina e direito: dilemas da modernidade


uma reflexão do CFM e de todas as instituições envolvidas, bem como
com a participação maiúscula de todas as especialidades reconhecidas
pela Comissão Mista de Especialidades (CME), para que a lei de 1957
seja atualizada, garantindo, assim, que possamos exercer a especialidade
da cirurgia plástica, que é reconhecida pelo próprio CFM, em sua
plenitude.

Sempre somos questionados sobre por que os procedimentos da


especialidade de cirurgia plástica devem ser exercidos pelos cirurgiões
plásticos. Inicialmente, por respeito à regra estabelecida pela própria
CME e ao que ela representa. Nela estão todas as especialidades
reconhecidas pelo CFM, pela SBCP e pela Comissão Nacional de
Residência Médica (CNRM), em que há de se considerar que, dentro
da matriz de competências apresentada pela SBCP à CNRM, esta
estabelece que, para ser cirurgião plástico, não obstante os seis anos de
graduação no curso de medicina, são necessários dois anos adicionais
de residência médica em cirurgia geral e três anos de residência médica
em nossa especialidade, totalizando 11 anos de estudos dentro dessa
especialidade.

Nesse contexto, buscamos, durante a apresentação no


congresso, explicitar um cenário concreto, marcado pela desfaçatez
com a medicina, pelo exercício ilegal e pela irresponsabilidade com o
paciente. Precisamos estudar casos reais para que o Poder Judiciário se
convença de que nossa bravata não se relaciona, sob qualquer aspecto,
com temas de mercado. Temos cobrado duramente das autoridades,
tanto administrativas como legais, o posicionamento contra o exercício
das atividades privativas da medicina por não médicos, sendo este
nosso pior cenário, atualmente.

É inaceitável, para não dizer criminoso, ver outros conselhos


profissionais legislando em causa própria e editando resoluções
que dão abertura e guarida para que outros profissionais da área da
saúde possam atuar como médicos. É o que temos visto em diversas
resoluções, com especial enfoque na atividade estética, com o intuito
de que profissionais da área da saúde possam realizar procedimentos

Conselho Federal de Medicina 191


invasivos, de preenchimento, de lipoaspiração, cirurgias, entre outras
atividades privativas.

O que nos causa uma espécie de preocupação é o laconismo


do comportamento do Poder Judiciário, ao considerarmos que a mens
legis é clara hodiernamente, e não somente isso. Em todos os casos
levados ao Poder Judiciário, apresentamos questões técnicas sobre
as grades curriculares do curso de medicina, em comparação com os
demais cursos de outras profissões da área da saúde – não para nos
colocarmos como maiores ou menores que outros profissionais, mas
para dar esteio aos magistrados que recebem as causas a respeito das
especificidades de cada curso de graduação, do enfoque técnico e da
carga horária de cada um deles.

A inferência é clara no que tange à grade e à formação. São


exigidos no mínimo seis anos de dedicação integral ao curso, com
especialização em matérias levadas à exaustão na aprendizagem, e
com notada preparação para acolher o paciente que venha a sofrer
intercorrências e complicações de qualquer procedimento médico.

Neste aspecto, chamamos a atenção para dois pontos, sendo


o primeiro deles que drogas e aparelhos, em sua maioria, só podem
ser adquiridos e operacionalizados por médicos, o que por si só
coloca o profissional não médico em situação de desvantagem para
um atendimento em caráter de emergência. O segundo ponto é que
o médico é médico e, por isso, notadamente tem conhecimento para
realizar todo tipo de diagnóstico, por meio de adequada anamnese.
Ou seja, em diversas situações, o profissional poderá aquiescer e
conduzir situações nas quais o motivo da consulta se torna secundário,
considerando que ele pode identificar um problema primário que deva
ser acurado com urgência maior, o que nunca poderá ser feito pelo
não médico, seja por incapacidade em sua formação, seja por ser o
diagnóstico um ato médico e privativo, nos termos da lei.

Entendo, como presidente da SBCP, e por se tratar de um artigo


que faz parte do compêndio advindo do Congresso Brasileiro de

192 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Direito Médico do CFM, ser necessário repisar a importante e inédita
decisão judicial que obtivemos em ação promovida pela SBCP contra o
Conselho Federal de Odontologia (CFO). Não obstante o deferimento
de decisão judicial em primeiro grau de jurisdição, achei por bem
compartilhar a decisão de segundo grau, qual seja, a do Tribunal
Regional Federal da 5ª Região, que, de forma pedagógica, manteve a
suspensão da Resolução nº 176/2016 do CFO. Vejamos:

(V.G.)
É o relatório.
Não merece reproche a decisão vergastada.
Em suas razões de agravo, reitera o Conselho
de Odontologia que a Resolução nº  176/2016
não extrapolou a área de atuação do cirurgião-
dentista, porque, no sentir do agravante, o citado
ato normativo estaria em consonância com a
Lei Federal nº  4.324/64 e com a Lei Federal
nº 5.081/66.
Esse, entretanto, não é o entendimento que
deve prevalecer.
A Lei nº  4.324/64, em seu art. 2º, estabelece
apenas que “o Conselho Federal e os Conselhos de
odontologia ora instituídos constituem em seu conjunto
uma autarquia, sendo cada um deles dotado de
personalidade jurídica de direito público, com autonomia
administrativa e financeira e têm por finalidade a
supervisão da ética profissional em toda a República,
cabendo-lhes zelar e trabalhar pelo prestígio e bom
conceito da profissão e dos que a exercem legalmente”.
Por sua vez, a Lei Complementar nº  5.081/66
estabelece os limites da odontologia, delimitando
no art. 6º as atribuições do cirurgião-dentista,
conforme se observa a seguir:
“Art. 6º. Compete ao cirurgião-dentista:
I – praticar todos os atos pertinentes a Odontologia,
decorrentes de conhecimentos adquiridos em curso regular
ou em cursos de pós-graduação;
II – prescrever ou aplicar especialidades farmacêuticas de
uso interno e externo, indicadas em Odontologia;

Conselho Federal de Medicina 193


III – atestar, no setor de sua atividade profissional,
estados mórbidos e outros, inclusive, para justificação de
faltas ao emprego. (Redação dada pela lei nº 6.215, de
1975);
IV – proceder à perícia odontolegal em foro civil,
criminal, trabalhista em sede administrativa;
V – aplicar anestesia local e truncular;
VI – empregar a analgesia e a hipnose, desde que
comprovadamente habilitado, quando constituírem meios
eficazes para o tratamento;
VII – manter, anexo ao consultório, laboratório de
prótese, aparelhagem e instalação adequadas para
pesquisas e análises clínicas, relacionadas de sua
especialidade, bem como aparelhos de Raios X, para
diagnósticos, e aparelhagem de fisioterapia;
VIII – prescrever e aplicar medicação de urgência no
caso de acidentes graves que comprometem a vida e a
saúde do paciente;
IX – utilizar o exercício da função de perito-odontólogo,
em casos de necropsia, as vias de acesso do pescoço e da
cabeça.”
Infere-se da legislação transcrita que, à época
da edição de tais atos normativos, não fora feita
qualquer menção ao uso de tratamento estético
pelos profissionais dentistas. Após as citadas
leis, foram editadas as Resoluções 112/2011,
145 e 146/2014 do próprio Conselho Federal
de Odontologia, que vedavam expressamente
o uso do ácido hialurônico em procedimentos
odontológicos pelos profissionais dentistas para
fins puramente estéticos.
A Resolução CFO – 112/2001, em seu art. 1º,
proibiu expressamente o “uso do ácido hialurônico
em procedimentos odontológicos até que se tenha melhores
comprovações científicas e reconhecimento da sua
utilização na área odontológica”. O art. 2º, por sua
vez, proibiu o uso da toxina botulínica para fins
exclusivamente estéticos, permitindo, porém,
para fins terapêuticos dos procedimentos
odontológicos.

194 Medicina e direito: dilemas da modernidade


As Resoluções nº  145/2014 e nº  146/2014,
ambas do CFO, previram o uso do ácido
hialurônico apenas para os procedimentos
exclusivamente odontológicos, vendando-o, de
outra sorte, para outros fins.
Em sentido contrário às Resoluções pretéritas,
que não autorizavam o uso da toxina botulínica
para fins puramente estéticos, o CFO editou
a de nº  176/2016, desta feita, autorizando a
realização de procedimentos não cirúrgicos, de
finalidade não estética de harmonização facial
em sua amplitude, incluindo-se o terço superior
da face, o que, em termos leigos, compreende a
testa do paciente.
A Resolução impugnada, portanto, permitiu
a realização de procedimentos em toda a face,
compreendendo regiões além do aparelho
mastigatório, e com finalidade exclusivamente
estética.
Fora autorizado, com isso, procedimento que,
além de contrário às regulamentações pretéritas
do próprio Conselho, foram de encontro à
Resolução 63/2005 do CFO, que veda, em seu
art. 43, o uso da via cervical infra-hioidea, por
fugir da área de atuação dos odontologistas,
contrariando, outrossim, o disposto no art.  4º,
III, da Lei do Ato Médico (Lei nº 12.842/2013),
que prevê como atividades privativas do
médico a “indicação da execução e execução de
procedimentos invasivos, sejam diagnósticos,
terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos
vasculares e profundos, as biópsias e as
endoscopias”.
Com base nessa ordem de ideias, percebe-se
a fragilidade dos argumentos levantados pelo
CFO, no sentido de que a permissão contida
na Resolução nº  176/2016, quanto ao uso da
toxina botulínica, decorre do fato de que a
finalidade terapêutica não exclui a utilização
para fins estéticos.

Conselho Federal de Medicina 195


É verdade que a finalidade terapêutica não exclui
a utilização para fins estéticos, contudo, o ponto
fulcral para o deslinde da questão posta em
Juízo é a amplitude da atuação dos cirurgiões-
dentistas, quer para fins exclusivamente
terapêuticos, quer para fins estéticos. Essa é
a questão a ser levada em conta. Como visto,
não encontra amparo legal para a atuação
do cirurgião-dentista em procedimentos que
vão além dos procedimentos relacionados ao
aparelho mastigatório, de modo que, qualquer
permissão que abranja área para além desses
limites está em manifesta contrariedade à
legislação aplicável à espécie, sendo, portanto,
contra legem.
Mostra-se, de igual modo, desprovido de
fundamentação o argumento do agravante
de que os cirurgiões-dentistas não estariam
sujeitos ao Ato Médico, porque possuiriam
regulamentação própria estabelecida pela Lei
nº 5.081/66.
Mais uma vez as premissas utilizadas pelo
agravante para justificar a norma contida
na Resolução nº  176/2016, que autorizou
a utilização do ácido hialurônico em
procedimentos estéticos que abrangem área além
do aparelho mastigatório, estão equivocadas.
É fato que os cirurgiões-dentistas possuem
regulamentação própria, no caso a Lei nº  5.
081/66. Isso não quer dizer, contudo, que o
disposto no art. 4º da Lei nº 12.842/2013 (Lei
do Ato Médico) não se aplica àquela categoria.
Pelo contrário, o art.  4º, III, como dito, prevê
que são atividades privativas do médico, dentre
outras, “a indicação da execução e a execução
de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos,
terapêuticos ou estéticos, incluindo os
acessos vasculares profundos, as biópsias e as
endoscopias”.
O caso é, portanto, de se fazer uma análise
sistemática das leis aplicáveis à espécie. Tem-se
de um lado a legislação aplicável aos cirurgiões-

196 Medicina e direito: dilemas da modernidade


dentistas que, como visto, só possuem
permissão de atuar dentro dos limites fixados
para a atuação do odontologista, o que por certo
não compreende procedimentos invasivos que
perpassem o aparelho mastigatório, e de outro, a
Lei do Ato Médico, que especifica as atividades
privativas do médico.
A esse respeito, revela-se pertinente chamar
atenção para a audiência realizada no primeiro
grau, que, dentre outros aspectos relevantes
apontados pela Magistrada, destacou-se que
restou evidenciado que o profissional médico
não está habilitado nem autorizado a executar
injeção botulínica ou de preenchimento facial
meramente em decorrência da graduação em
medicina, sendo exigível residência médica na
área de dermatologia ou de cirurgia plástica para
credenciá-lo legalmente a tal aplicação.
Ou seja, além da formação em medicina, faz-
se necessária a residência médica nas áreas de
dermatologia e cirurgia plástica para credenciar o
profissional médico a aplicar a toxina botulínica,
de modo que os profissionais odontologistas
não se encontram amparados por previsão legal
legítima que os autorize a tal procedimento.
Por tudo o que foi exposto, irretocável a decisão
de primeiro grau, que reconhecera o perigo
da demora, a justificar o deferimento imediato
do pedido para determinar a suspensão da
autorização contida na Resolução nº 176/2016,
uma vez que “a regulamentação infralegal impugnada,
ao possibilitar aos profissionais de Odontologia, cuja
formação não visa à realização de atos médicos, o exercício
de atos privativos dessa categoria profissional, põe em
rico a saúde da população, sujeita a sofrer danos físicos/
estéticos. Assim, considerando que o exercício dessas
atividades tangencia as funções previstas privativamente
a profissionais da medicina, e considerando-se o risco
comprovado de danos à saúde dos inúmeros pacientes
que porventura possam a vir ser afetados, a concessão

Conselho Federal de Medicina 197


da tutela pleiteada se mostra imperiosa”. (BRASIL,
2018)

Após as considerações sobre o panorama administrativo e


jurídico atual, avancemos para um caso concreto, no qual pudemos
expor um evento relacionado à utilização do polimetilmetacrilato,
conhecido como PMMA. Na verdade, o PMMA é um polímero, ou
seja, uma substância química, que foi produzida em 1902 por um
alemão e patenteada em 1928 pelos norte-americanos. E qual o motivo
da busca por esse produto? O PMMA era uma substância utilizada à
época, principalmente pós-Segunda Guerra Mundial, por se tratar de
um produto altamente resistente, transparente, incolor e que possui
uma biocompatibilidade com o organismo humano. Quando falamos
em biocompatibilidade, revela-se uma interpretação equivocada que
seguiu sendo aplicada hoje na utilização do PMMA.

O PMMA consiste em um produto sintético muito efetivo para


aquilo a que foi destinado. Na história do PMMA, observamos seu
primeiro uso na área da saúde em 1936, em uma prótese dentária,
precisamente porque esse produto tinha as características de
biocompatibilidade, transparência e alta resistência. Com base nessa
utilização das próteses dentárias, a neurocirurgia também utilizou o
PMMA dessa forma no pós-guerra, novamente por ser um material
extremamente resistente e ter biocompatibilidade. Nesse sentido,
notamos uma evolução com relação à utilização desse material para
os propósitos que lhe foram designados. Contudo, já naquela época,
quando o PMMA foi colocado no mercado, tendo essas características,
houve distorção de sua utilização: na história há diversas citações
descrevendo que os fisiculturistas utilizaram essa substância de maneira
imprópria, para dar contorno à sua musculatura, inadequadamente.

Atualmente, observamos que esse produto ainda tem


características sedutoras do ponto de vista mercadológico. O PMMA,
além de todas as vantagens já mencionadas, é comercializado com
preços extremamente acessíveis, colocando a comunidade médica
diante de vários elementos que favorecem a promiscuidade da
indicação desse produto com finalidade estética.

198 Medicina e direito: dilemas da modernidade


Ainda com relação ao PMMA, a SBCP quer trazer ao
conhecimento de todos que se trata de um produto que, na área da
estética, passou a ser utilizado em meados de 1994, sendo autorizado
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em que pese
os estudos demonstrarem que o polimetilmetacrilato é definitivo –
ou seja, uma vez colocado no organismo, é absorvido e não pode ser
eliminado ou fagocitado, sendo essa característica usada como apelo
para sua venda. Hoje, esse é o cerne da questão, uma vez que o PMMA
sempre provoca no organismo uma reação de corpo estranho, não se
podendo prever o momento ou a intensidade com que irá ocorrer.

Outro aspecto diz respeito à quantidade permitida pela Anvisa,


que se mostra vaga, pois não está de acordo com aquilo que nós, da
SBCO, como sociedade constituída, podemos afirmar ser seguro do
ponto de vista científico. Ressaltamos também, em contrapartida, o
fato de a Anvisa ter liberado este produto para outros fins que não
essencialmente estéticos, a exemplo do uso por pacientes com HIV,
que utilizam o PMMA no tratamento de atrofia da gordura da face,
condição que pode notadamente estigmatizar o paciente. Eis uma das
razões para sua liberação.

Notemos que, há tempos (desde 2003), a SBCP vem reiterando


seu posicionamento de restrição ao emprego do PMMA em tratamentos
médicos de sua especialidade, principalmente com a utilização do
PMMA em áreas profundas, como para aumento da região glútea – o
que é um absurdo.

Finalmente, queremos deixar a mensagem de que nossa


preocupação não é apenas voltada para os não médicos. É preciso
destacar que, além de todo o arquétipo do Projeto Nacional de Defesa
da Especialidade desenvolvido pela SBCP, não menos importante é
o trabalho que temos desempenhado por meio do Departamento de
Defesa Profissional (Depro), órgão correcional de nossa sociedade que
fiscaliza o cumprimento das normas por nossos associados.

O Depro é um órgão da SBCP que tem o propósito de tratar


da relação ética e das condições de seus sócios quanto à defesa da

Conselho Federal de Medicina 199


especialidade, sendo composto por um diretor, com vigência de
mandato de dois anos, eleito pela diretoria executiva nacional da SBCP
em conselho deliberativo, que também escolhe os cinco membros
das comissões técnicas. Sendo assim, ao término de mandato de um
diretor, este poderá ser reconduzido a uma das comissões. Destarte,
o Depro conta com uma comissão técnica composta por membros
titulares, conforme previsto no regimento interno.

Frise-se que o Depro tem como obrigação analisar todas as


denúncias formalizadas, ou de que possuir conhecimento, de infrações
cometidas contra o regimento interno ou contra o Código de Ética
Médica. Todavia, toda análise tramitará em sigilo para garantir o
amplo direito a defesa e contraditório. O Depro possui a função de
esclarecer eventuais dúvidas, o que possui grande requisição por parte
de membros e não membros, como pacientes, que o procuram para
saber de condutas éticas ou para fazer denúncias.

Entretanto, o Depro tem o dever de repassar, aos órgãos


devidamente qualificados, denúncias contra não membros quanto a
invasão de especialidade e referentes à não competência para atuação
médica. É o que temos feito nos casos relacionados a médicos que não
possuem título de especialista, o que demonstra de forma arrebatadora
nosso compromisso com nosso patrimônio maior, que são os pacientes,
e nossas contribuições para alavancar as boas práticas da medicina e da
ética.

Este tema é abrangente, configurando um assunto extremamente


espinhoso para todos os envolvidos, mas de extrema importância para
os pacientes, para a saúde pública e privada. Cabe ainda destacar que
devemos sempre explicitar o número de complicações que ocorrem,
das quais a SBCP precisa sempre se defender proativamente, posto que
a sociedade não tem conhecimento de que a maior fatia dos insucessos
parte dos médicos sem título de especialista e de não médicos. O
bom profissional, que zela pelo exercício da medicina, valoriza o
título de especialista e é ético, está pagando uma conta que não é sua.
Existe um trabalho do Conselho Regional de Medicina de São Paulo

200 Medicina e direito: dilemas da modernidade


demonstrando que quase 100% das demandas com relação a cirurgia
plástica são causadas por não especialistas. Isso não quer dizer que
nós, médicos, não somos passíveis de problemas; nem que um bom
profissional, que faça algum tipo de intervenção, não possa ter um
problema ou um caso que fuja ao seu controle.

O que a SBCP quer, enfim, é apresentar à sociedade nossas


angústias com relação ao fato de a maioria dos procedimentos
problemáticos não serem realizados por cirurgião plástico, sendo esta
uma reflexão que deve ser abrigada por todas as camadas envolvidas
nesta questão. Eis que, como presidente desta gestão, encerro este
artigo enfatizando que não baixaremos a guarda quando o assunto for
crescimento científico, defesa da especialidade, modernização de nossa
instituição e cuidado proeminente com a segurança dos pacientes.
Nossas portas estão abertas. Juntos seremos sempre mais fortes.

Referência

BRASIL. Tribunal Regional Federal (5ª Região). Processo nº. 0800083-


74.2018.4.05.0000. Agravo de instrumento. Agravante: Conselho Federal de
Odontologia. Advogado: Juan Reguengo Rodrigues. Agravado: Sociedade
Brasileira de Cirurgia Plástica e outros. Advogado: Carlos Vitor Paulo e outro.
Relator: Desembargador Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima. Recife, 11
jan. 2018. Disponível em: https://bit.ly/2GewiDc. Acesso em: 15 jul. 2019.

Conselho Federal de Medicina 201


O PRESENTE E O FUTURO NA SAÚDE SUPLEMENTAR

Paulo Montenegro
Médico e advogado. Diretor administrativo da OAB,
Seção Distrito Federal. Consultor independente em
gestão de saúde e direito médico.

1. O presente na saúde suplementar

O presente da saúde suplementar é simplesmente o caos, a


falência do sistema em sua integralidade; falência não só financeira,
mas em todos os aspectos que essa palavra pode abranger: financeiro,
moral, comercial, administrativo. Por quê? Exemplifico: a Constituição
Federal, em seu artigo 196, assegura que a saúde é um direito de todos,
um dever do Estado, que deve garantir acesso universal e igualitário à
população.

Isso se chama “integralidade da assistência à saúde”, e é função


constitucional do Estado garanti-la, não devendo, a priori, delegar a
outros esta função. Entretanto, o artigo 197 da mesma carta permite
a ele que assim o faça, mas nos termos da lei, porque a saúde é de
relevância pública e tem que ser regida pela legislação. Então, é com
base nessa regência que, com a Lei nº 9.656/1998, é criado o sistema
de saúde suplementar no Brasil.

Essa lei durou 24 horas, porque não houve entendimento entre


deputados, senadores e Executivo; seguiram-se 44 medidas provisórias
regendo o assunto. Portanto, estamos em um sistema em que uma lei
tem vigência de 24 horas por conta da falta de acordo do Legislativo,
seguida de 44 medidas provisórias que regem todo esse mercado.
Em seguida, a Lei nº 9.961/2000 cria a Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), que é reguladora do sistema. Só que a lei confere
à agência o poder de legislar, de fiscalizar, de julgar, de punir e de julgar
o recurso do julgamento que ela própria fez.

Conselho Federal de Medicina 203


Hoje, estamos dentro de uma realidade em que a taxa de
crescimento dos beneficiários dos planos de saúde é negativa
(Figura 1), principalmente pela crise financeira que assola o país, com
empresas fechando ou deixando de assistir seus colaboradores no
que tange aos benefícios, seja pelos seguidos aumentos com base na
sinistralidade, que interrompem contratos anualmente, seja pelos preços
inacessíveis às pessoas físicas de maior faixa etária, dentre outros
motivos. Ou seja, essa cobertura cai direta e proporcionalmente com
o nível de emprego e o PIB do país. Isso implica, diretamente, em
sobrecarga de atendimento sobre o Sistema Único de Saúde (SUS).

Figura 1. Taxa de crescimento dos beneficiários de planos de saúde (em %)

Relação de crescimento do setor com relação à evolução da taxa de emprego e PIB


Bene ciários Emprego PIB
7,7

-3,80

dez06/dez05 dez08/dez07 dez10/dez09 dez12/dez11 dez15/dez

Fonte: Folha de S. Paulo (com base em dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar e Federação
Nacional de Saúde Suplementar).

As operadoras de planos privados de saúde também vêm


retraindo. Cinquenta por cento delas já fecharam desde a criação da
ANS, o que significa estreitamento de opções comerciais para os
usuários.

Corroborando esse contexto, a ANS editou em 2017 a Resolução


nº 431, que é a resolução “Capitão Nascimento”. Ela determina a

204 Medicina e direito: dilemas da modernidade


saída voluntária e ordenada ou a transferência do controle para as
operadoras de maior robustez no mercado, implicando diretamente em
maior concentração de mercado. Em termos populares, a resolução
diz: “Quem tem menos de vinte mil vidas pede para sair, antes que eu
feche”. Esse é o mercado de saúde regulado pelas leis desse país.

Mas nossa afirmação inicial foi a de que o mercado está falido


e que o caos é geral, e não só da agência. Nós – médicos, hospitais e
prestadores de serviços de saúde em geral – também temos a nossa
parcela de culpa, e aqui eu faço e clamo que façamos um mea culpa.

2. O hospital

O ator hospital hoje é remunerado pela doença, pelo insucesso


do tratamento. Quanto mais o paciente ficar dentro de uma UTI, mais
se ganha; quanto mais tecnologia é colocada nesse paciente, mais se
ganha. Discutimos o tema eutanásia, regulamentado e até regulado
pelo Código Penal, mas não há regulação da distanásia no país, com
exceção de uma tímida menção no Código de Ética Médica.

A distanásia é o que faz ganhar dinheiro, o que remunera. Se


o hospital, por exemplo, padronizar a mudança de um fabricante de
bomba de infusão, trocando o fabricante A pelo fabricante B, que são
de igual qualidade, mas com um aumento de 20 reais no preço de um
para o outro, ganha-se 120 mil reais a mais por ano dentro da UTI. E
é assim que é o sistema; então, perpetua-se o sofrimento do paciente e
das famílias em prol do lucro.

3. O médico

O ator médico também tem sua parcela de culpa (e de vítima). Não


estou falando do comportamento de todos, mas do comportamento de
uma grande parcela de profissionais que é suficiente para causar impacto

Conselho Federal de Medicina 205


no mercado de saúde suplementar. O médico é mal remunerado – por
incrível que pareça, ainda há operadora de plano privado de saúde que
usa o referencial remuneratório Tabela AMB 1992.

Por essas e outras os médicos começam a entrar no jogo de


“maquiagem” das suas receitas e de combinar códigos, pedindo,
por exemplo, cobertura de custos para realizar apendicectomia e
laparotomia exploradora, porque o somatório dos valores desses
códigos é a remuneração final que ele julga justa pela apendicectomia.
E esse é o dia a dia dentro do nosso mercado.

O médico que está com o paciente no pronto-socorro, que


não tem vaga no seu hospital, incentiva os familiares a comparecer
à Defensoria Pública ou a contratar um advogado para entrar com
uma liminar na Justiça pedindo vaga na UTI. É o médico também
incentivando a judicialização da saúde.

A Defensoria Pública recebe o pedido do familiar de vaga na


UTI, lê e diz: “Você tem que voltar ao médico e dizer que se ele não
colocar a expressão ‘há risco de vida’ o juiz não defere a liminar”.
Então é a Defensoria que está determinando a gravidade dos casos,
e não uma avaliação técnica do médico. Nós, advogados, ensinamos
o familiar a voltar ao médico que fez o relatório e dizer: “Doutor,
acrescenta aí que tem risco de vida porque senão a liminar não sai”. E
o colega médico anota “risco de vida” porque quer que aquele paciente
seja transferido o mais rapidamente possível.

E quem é o destinatário da liminar? É o seu colega que está de


plantão na UTI, onde chega o oficial de Justiça e aponta: “Liminar!
O juiz mandou o senhor internar o paciente que está lá no pronto-
socorro do outro hospital”. Por conta do colega, agora o tiro vem para
o pé. E aí o plantonista diz: “Bom, senhor oficial de Justiça, eu tenho
10 leitos, os 10 estão ocupados. O senhor leva a lista dos dez pacientes
para o juiz e pede para ele escolher qual dos dez eu tenho que tirar para
poder cumprir a liminar”. Esse ciclo está acontecendo todos os dias
no Brasil.

206 Medicina e direito: dilemas da modernidade


O artigo 35 do Código de Ética Médica diz que é vedado ao
médico exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico,
complicar a terapêutica, exceder-se no número de visitas, consultas ou
quaisquer outros procedimentos.

Há poucos dias eu presenciei uma médica, pediatra, atendendo


uma criança com uma pneumonia grave. E ela afirmou: “Bom, eu
vou colocar no SUS Fácil” – sistema de referência e contrarreferência
do SUS, que permite a transferência dos pacientes – “Só que vou
informar que essa criança já teve derrame pleural, porque aí acelera a
transferência”. Interpelei: “Mas, doutora, tem derrame pleural nessa
radiografia?”. Ela respondeu: “Não tem não, mas ela vai fazer”. Então,
o médico exagera porque sabe que o sistema está falido.

4. Relação contratual entre médico credenciado e


operadora de planos de saúde

Apresento outra questão ao leitor: a Lei nº 13.003/2014 é lei,


não é resolução normativa da ANS. E quem foi que a cumpriu até
a presente data? A lei determina que todos os médicos credenciados
devem se sentar com as operadoras de saúde, individualmente, e
assinar um contrato de prestação de serviço. Quem foi que se sentou
com as operadoras de saúde e assinou um contrato dizendo como é
o processo de solicitação, como é o processo de liberação, e se vai ou
não cumprir o rol da ANS nos procedimentos? Se vai pedir ou não
procedimento experimental, como se dá a glosa, como não se dá…
Ou na hora de assinar todo mundo só se preocupou com o reajuste?
Portanto, o comportamento do profissional de saúde, no que tange às
peculiaridades administrativas, ainda está longe do ideal e, assim, não
contribui com a melhoria do sistema de saúde como um todo.

5. Serviços auxiliares de diagnóstico e tratamento

Temos 10 aparelhos de tomografia computadorizada no Setor


Hospitalar Sul de Brasília. Quem não é do Distrito Federal raciocine

Conselho Federal de Medicina 207


da seguinte forma: há 10 aparelhos de tomografia computadorizada
em quatro quadras vizinhas. Como se sustentam 10 aparelhos de
tomografia em quatro quadras? Não há demanda para tal em nenhum
país do mundo. Então, temos que fazer uma mágica, temos que criar
uma demanda desnecessária.

Certa vez, um médico começou a solicitar uma série de exames,


e eu, estranhando aquilo, telefonei para ele e disse: “Doutor, o senhor
está pedindo 100% de ecocardiograma nas suas consultas. A Sociedade
Brasileira de Cardiologia preconiza 12% de incidência de eco para as
consultas”. Sua resposta: “Montenegro, como tu queres que eu pague
meu aparelho, rapaz?”.

6. As operadoras de planos de saúde

As operadoras não são santas e também cumprem o seu mal


papel, negando procedimentos devidos, estabelecendo aumentos sem
cálculos atuariais e contratando auditores médicos que extrapolam
diariamente seus papéis e suas funções. O artigo 97 do Código de Ética
Médica diz que é vedado ao médico, quando na função de auditor ou
perito, autorizar, vetar ou modificar procedimentos propedêuticos ou
terapêuticos instituídos.

Analisei um acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo em


que o paciente pedia a liberação de fixadores de coluna. O auditor
da seguradora negou, dizendo que era uma substituição, e que o local
da cirurgia estava infectado. Ora, como médico, eu acho que não se
deve colocar material inerte em sítio de infecção, mas isso é conduta
terapêutica; quem tem que resolver isso é o médico assistente. O que eu
tenho que verificar como auditor é se há ou não previsão de cobertura
para o que está sendo solicitado. Não devo liberar ou negar, pois quem
tem essa função é a operadora de saúde. Mas o que vemos no dia a dia
são colegas intervindo na conduta de outros colegas, mesmo que de
forma errada, intervindo e extrapolando poderes.

208 Medicina e direito: dilemas da modernidade


7. Educação para utilizar o sistema de saúde: o usuário

Não há educação no Brasil, portanto, não há educação para usar


o sistema de saúde. Nós não sabemos utilizar nem o sistema único nem
o sistema suplementar. O Hospital de Base, um hospital de altíssima
complexidade aqui no Distrito Federal, tem há cinco dias, na porta de
emergência, uma série de pacientes com tosse, aguardando consulta.
Isso é falta de educação, e acontece porque não temos o Programa
Saúde da Família e as Unidades de Pronto Atendimento funcionando.
Então, atuemos para corrigir o sistema como um todo, sem se acomodar
com a utilização indevida do sistema de saúde.

8. A judicialização da saúde

Sexto ator do caos: o Judiciário. Primeiro, a Justiça, que não


deveria ser um ator rotineiro, passou a ser. Segundo: os juízes estão
julgando ao arrepio da lei, desconsiderando qualquer substrato técnico,
qualquer amparo técnico e, algumas vezes, também jurídico. Ora, não
sou nenhum sábio, mas aprendi em hermenêutica jurídica que uma lei
especial prevalece sobre uma lei geral, e esta é de aplicação subsidiária
à lei especial. Quando as ações chegam nas mãos dos juízes, quando
se faz uma defesa citando a Lei nº 9.656/1998, já ouvi diversas vezes:
“Não quero saber de Lei nº 9.656, vou julgar à luz do Código de
Defesa do Consumidor”. E julga-se à luz do Código de Defesa do
Consumidor o pedido de um beneficiário de uma autogestão que é
o dono da autogestão. A defesa do consumidor se aplica ao dono da
empresa?

Na Universidade de Coimbra, que tive a oportunidade de


frequentar como aluno, ao discutir esse tema, não consegui explicar
aos professores por que os juízes do Brasil julgam por sobre a lei
especial, obrigando operadoras de saúde a custearem procedimentos
não inclusos no rol de cobertura obrigatória de autoria da agência
reguladora, a ANS.

Conselho Federal de Medicina 209


O Conselho Nacional de Justiça já fez há alguns anos uma
recomendação para que os tribunais de Justiça montem equipes
técnicas para assessorar os juízes e desembargadores nas suas decisões
ligadas aos processos de saúde. Aqui no Distrito Federal, na palestra
que nos antecedeu, o então promotor de Justiça, hoje desembargador
Diaulas Costa Ribeiro, disse: “nossa promotoria teve sucesso porque
eu me cerquei de bons assessores técnicos”. E isso foi o moderador dos
excessos ou das faltas que o promotor teria cometido se não tivesse se
cercado de assessores tecnicamente qualificados.

Nessa vertente, acho uma temeridade um juiz decidir,


solitariamente, sem assessoria técnica de profissional de saúde, se
determinado paciente autor de pedido liminar de internação em UTI
deve ou não ser contemplado com a vaga, em detrimento de outros
pacientes que foram hierarquizados tecnicamente e alinhados em uma
lista de prioridades de internação. A alegação de que o juiz tem que se
ater apenas ao pedido do impetrante, não observando a conjuntura do
sistema de saúde como um todo, é uma forma cômoda de resolver uma
questão complexa, de impor uma decisão que, muitas vezes, leva a uma
situação de injustiça.

Um exemplo concreto nessa seara deu-se em Brasília: a


Defensoria Pública entrou com um pedido liminar de internação de
paciente em leito de UTI, contra o posicionamento da Central de
Leitos da Secretaria de Saúde do Governo do Distrito Federal, à época
formada por uma boa equipe técnica que triava e priorizava os casos
com base em critérios científicos. A liminar foi deferida, determinando
que o requerente fosse internado no primeiro leito de UTI que surgisse
na rede pública. E assim foi cumprida.

O paciente foi transferido para o Hospital de Ceilândia (região


administrativa do DF, popularmente conhecida como “Cidade-
Satélite”), onde faleceu 24 horas após a admissão. A análise técnica
do caso apontava hemorragia intracraniana e necessidade de drenagem
neurocirúrgica; por isso a Central de Leitos o mantinha na fila de
internação do Hospital de Base, única unidade pública a fazer esse tipo

210 Medicina e direito: dilemas da modernidade


de cirurgia no DF. Porém, a análise técnica foi conduzida de maneira
simplória, como se se tratasse de mais um caso de carência de leitos
de UTI, impondo ao paciente a teoria de perda de uma chance. No hospital
da Ceilândia nada pôde ser feito para atender ao paciente em suas
necessidades curativas, mas tão somente paliativas.

9. O futuro

Mas uma palestra como esta pede também uma visão de futuro.
E eu vejo que o futuro é investir em ações de educação do usuário e
no serviço de saúde, pois acima da saúde está a educação, e essa é a
salvação. Exemplos já existem, como o da Associação Europeia para a
Literacia e Promoção da Saúde.

Já existem programas de internet trabalhando com esse tema,


como o Eu Saúde, que tem por objetivo maior, mas não único, fornecer
a seus visitantes conhecimentos sobre diversos temas e situações de
saúde e doença pelas quais todos passamos ao longo de nossas vidas,
promovendo trocas de experiências entre grupos de pessoas acometidas
por situações patológicas semelhantes e a discussão de temas com
profissionais, possibilitando a aprendizagem e o ensino com pacientes
e com orientadores de saúde, simultaneamente.

Já existe um programa de acompanhamento multidisciplinar,


de educação e de transferência de informação para as mães chamado
Mães de Portugal. E já existiu um programa em Minas Gerais, fechado
por critérios políticos, chamado Mães de Minas, que assistiu 200 mil
mães e teve impacto na redução da mortalidade perinatal. Os dados
da Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais apontaram para
uma redução de quase 20% no índice de complicações neonatais,
mortalidade materna e neonatal quando da atividade desse programa.

O futuro é quebrarmos esse sistema atual perverso, de


remuneração totalmente equivocada para todos os atores, tendo a
coragem de sentar para discutir não apenas o reajuste de tabela, como

Conselho Federal de Medicina 211


todo ano é feito. Acabemos com isso e vamos dizer qual é o novo
modelo, qual é a nova ideia para nós todos sobrevivermos.

Não há como aceitarmos, nos dias de hoje, um sistema onde


somente um ator corre o risco financeiro de todo o sistema. Não
podemos conceber a perpetuação de um modelo assistencial montado
em cima da doença e remunerado pela ineficiência na atenção primária,
privilegiando a alta complexidade, consumidora da maior parte dos
recursos financeiros. Não podemos aceitar a eternização de um sistema
que humilha os profissionais de saúde com remunerações miseráveis,
corrompendo-os.

O futuro pode ser empreendido olhando-se para o passado,


fortalecendo-se um sistema de saúde que priorize a atenção primária,
a assistência holística, o cuidado com a saúde nos moldes definidos
pela OMS. O futuro deve passar pelo cuidado com o homem integral, ser
físico, fisiológico, psíquico e social, histórico, econômico, científico e
religioso.

Por que não nos basearmos no exemplo holandês, onde há


a construção de uma série histórica de incidência de atendimentos
hospitalares, e os contratantes transferem às unidades um orçamento
mensal para os próximos dois anos parcelados em 24 meses? E aí há
previsão de desembolso do contratante, há previsão de recebimento do
contratado e há prestação de serviço de boa qualidade, sem prejuízo de
justa remuneração.

O futuro, que já é presente, também passa pela parceria


público-privada. Eu não poderia me furtar de citar o exemplo de uma
multinacional brasileira, que contratou uma operadora de saúde, uma
seguradora, para prestar assistência aos seus funcionários. Depois,
quando foi negociar a sinistralidade viu que não havia sinistralidade.
Por quê?

Porque o sistema público daquela cidade acolhia muito bem os


operários e seus familiares. A Saúde da Família funcionava tanto quanto

212 Medicina e direito: dilemas da modernidade


o hospital municipal. Essa empresa destinou, então, o dinheiro que
seria aplicado no reajuste do plano de saúde para a reforma do pronto-
socorro municipal. E todos ficaram felizes; os funcionários foram mais
bem atendidos, a operadora manteve seu contrato, a empresa garantiu
a qualidade, e o sistema público restou beneficiado por ter cumprido
bem o seu papel.

Por fim, depois desse exemplo, menciono ainda o deslocamento


do foco da doença para a saúde: essa é uma grande saída. Há uma
clínica, em Belo Horizonte, que acompanha 2.500 pacientes idosos,
todos com mais de 60 anos. Fizemos um estudo com 750 idosos que
foram acompanhados por dois anos (a operadora pagava à clínica
pela assistência com valores mensais fixos). Ao final desse intervalo
temporal, houve uma economia de 2,6 milhões por ano para a
operadora de saúde, além de aumento da satisfação do paciente, que
passou a ter uma assistência multidisciplinar e a conviver na clínica,
inclusive socialmente. E a clínica e seus profissionais foram justa e
corretamente remunerados, permitindo, inclusive, seu crescimento.
Esse é um modelo novo, que talvez seja uma das saídas para o futuro.

O futuro, já ensaiado em alguns lugares, está no consorciamento


de forças públicas para rateio dos altos custos dos serviços médicos
assistenciais. O modelo de consórcios intermunicipais de saúde, que
grassa em Minas Gerais, pode ser uma excelente alternativa para os
próximos anos, caso passe por alguns ajustes.

Não é viável para um município de 10 mil habitantes custear


cirurgia oftalmológica, facectomia (catarata) por exemplo, de
forma solitária. A demanda baseada na epidemiologia e o custo do
investimento não o permitem. Porém, se 10 municípios vizinhos, de
10 mil habitantes, se consorciam e rateiam os custos do investimento
na mesma área de atuação (oftalmologia), elegendo um único local de
atendimento que se aproxime de todos, a relação entre demanda e custo
se modifica, tornando-se benéfica para todos: para os pacientes, que se
deslocarão muito menos do que indo para a capital do estado; para as
prefeituras, que investirão um décimo do que investiriam no sistema

Conselho Federal de Medicina 213


tradicional; e para os profissionais de saúde, que terão um grande e
novo mercado lhes aguardando.

Da mesma forma, amadurece a cada dia, e se mostra altamente


eficaz, o sistema de parceria público-privada no setor de saúde, já
regulamentado pela Lei nº 9.637/1998, conhecida como Lei das
Organizações Sociais de Saúde, já com forte implementação em São
Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Distrito Federal e região Sul. Esse
sistema também precisa de melhorias, também precisa separar o joio
do trigo, mas em sua concepção, e em muitos casos concretos, ele
tem se mostrado altamente eficiente, com aumento de produtividade
de serviços assistenciais, melhoria na qualidade do atendimento e na
satisfação do cliente e diminuição significativa dos valores necessários
para seu financiamento.

O futuro está na incorporação da tecnologia pela saúde, não nos


moldes tradicionais, como vem sendo feito nos últimos 100 anos, com
agregação de custo sobre custo, mas no sentido de ampliar o alcance do
atendimento, permitindo acesso ao cuidado àqueles que se encontram
longe dos grandes centros urbanos. Estou me referindo à telemedicina
e ferramentas congêneres (vídeos educativos e informações de saúde
disseminados pelas redes sociais e aplicativos de mensagem como
WhatsApp) que permitem a resolução de certos problemas sem
necessidade de se buscar um nível secundário ou terciário do sistema
de saúde. Nesses casos, a tecnologia será aliada da racionalização de
custos, e não responsável pelo seu incremento.

O futuro está na desacomodação das administradoras de saúde,


que ganham milhões de reais fazendo as vezes de meras corretoras
de planos ou seguros de saúde. O que temos visto nesse mercado é a
migração anual de carteiras de usuários, de operadora para operadora,
quando lhes são apresentados os reajustes com base na sinistralidade.
É chegada a hora de a administradora chamar para si parte da
responsabilidade de cuidar de sua carteira de clientes, não apenas
oferecendo contratos de determinadas empresas de medicina de grupo
ou seguradoras, mas cuidando de maneira ampla, fornecendo soluções

214 Medicina e direito: dilemas da modernidade


e orientações de saúde concretas, que interfiram na alta utilização que
impacta os custos assistenciais das operadoras e é transmitida, mas nem
sempre assimilada, aos clientes. Pois diante de tais aumentos anuais, só
lhes sobra uma alternativa: trocar de operadora.

Um bom projeto de atenção primária de saúde, envolvendo


equipes multidisciplinares, faria uma revolução na qualidade assistencial
da carteira de usuários dessas administradoras e, por conseguinte, nas
taxas de utilização das redes credenciadas e referenciadas das operadoras
de planos de saúde, controlando custos e evitando a necessidade de
reajustes astronômicos. O que se veria seria uma clientela mais bem
assistida, uma operadora com custos mais otimizados e administradoras
com clientes satisfeitos e fidelizados.

Portanto, parti do passado para entender o presente e tentar


encontrar uma saída para o futuro. Os temas aqui abordados incitam
uma discussão que deve ser extensa e profunda, não restrita apenas
a médicos ou operadoras, envolvendo todos os atores do sistema de
saúde.

Conselho Federal de Medicina 215


ANEXO
VIII CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO MÉDICO

Data: 30 e 31 de agosto de 2018


Local: Centro Internacional de Convenções do Brasil (CICB) – Brasília (DF)

DIA 30/08/2018

9h Abertura
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – Presidente do CFM
Mauro Luiz de Britto Ribeiro – Coordenador da Comissão de Direito
Médico
9h15 CONFERÊNCIA: A rejeição dos quatro projetos que legalizavam
a eutanásia em Portugal: o debate terminou ou apenas começou?
Presidente: Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – Presidente do CFM
Moderadora: Sandra Krieger Gonçalves – advogada, conselheira federal
da OAB e membro da Comissão de Direito Médico do CFM
Conferencista: Germano Marques da Silva – catedrático da Universidade
Católica Portuguesa (Lisboa) e advogado
10h00 Debates
10h40 PAINEL: A morte encefálica e o transplante de órgãos após o
Decreto nº 9.175/2018 e a Resolução CFM nº 2.173/2017.
Moderador: Armando Otávio Vilar de Araújo – membro da Comissão de
Direito Médico e professor da Universidade Potiguar
Expositores:
Hideraldo Luis Souza Cabeça – conselheiro federal e coordenador da
Câmara Técnica de Morte Encefálica do CFM
Rosana Reis Nothen – ex-coordenadora-geral do Sistema Nacional de
Transplantes do Ministério da Saúde
11h20 Debates
14h00 CONFERÊNCIA: A responsabilidade civil do médico: novos
desafios.
Presidente: Antônio Carlos Roselli – advogado e membro da Comissão
de Direito Médico
Moderador: João Costa Neto – advogado e professor da Universidade de
Brasília (UnB)
Conferencista: Nelson Nery Júnior – advogado e professor da PUC-SP
14h40 Debates

Conselho Federal de Medicina 219


15h10 PAINEL: Reprodução humana medicamente assistida e as novas
relações de família dela decorrentes.
Presidente: José Hiran da Silva Gallo – coordenador da Câmara Técnica
de Reprodução Assistida do CFM
Moderador: Guilherme Tadeu de Medeiros Moura – membro da
Comissão de Direito Médico do CFM
Expositores:
Cláudia Navarro – membro da Câmara Técnica de Reprodução Assistida
do CFM
Hitomi Miura Nakagawa – membro da Câmara Técnica de Reprodução
Assistida do CFM
Paulo Gallo de Sá – Vice-presidente da Associação Brasileira de Reprodução
Humana
16h10 Debates
16h40 Encerramento

DIA 31/08/2018

9h CONFERÊNCIA: A legalização da eutanásia na Colômbia.


Presidente: José Alejandro Bullón Silva – assessor jurídico do CFM e
membro da Comissão de Direito Médico do CFM
Moderadora: Débora Diniz – Universidade de Brasília (UnB)
Conferencista: Luz Adriana González Correa – advogada e professora
universitária (Colômbia)
9h45 Debates
10h25 PAINEL: A terminalidade da vida e a jurisprudência estrangeira:
olhares múltiplos.
Moderador: Carlos Vital Tavares Corrêa Lima – Presidente do CFM
Expositores:
Luciana Dadalto – advogada, doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade
de Medicina da UFMG
Diaulas Costa Ribeiro – desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e Territórios (TJDFT) e membro da Comissão de Direito Médico
Heloisa Helena Barboza – professora titular da Faculdade de Direito da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
José Eduardo de Siqueira – professor titular da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUC-PR)
Kelle Lobato Moreira – Advogada, Universidade Católica de Brasília (UCB)
Silvana Bastos Cogo – Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

220 Medicina e direito: dilemas da modernidade


11h45 Debates
14h CONFERÊNCIA: A responsabilidade penal do médico: velhos
problemas, novos desafios.
Presidente: Rosylane Nascimento das Mercês Rocha – conselheira federal
do CFM
Moderador: Jeancarlo Fernandes Cavalcante – conselheiro federal do
CFM
Expositores:
Diaulas Costa Ribeiro – desembargador do TJDFT e membro da Comissão
de Direito Médico
Níveo Steffen – presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica
14h40 Debates
15h10 PAINEL: Saúde Suplementar: qual presente e qual futuro para
pacientes e médicos?
Moderador: Luiz Henrique Prescendo – membro da Comissão de Direito
Médico do CFM
Expositores:
Fabiana Ada Rigon Richter – R3 Consultoria e Treinamento
Paulo de Sousa Montenegro – médico e advogado
Salomão Rodrigues Filho – conselheiro do CFM e coordenador da
Comissão de Saúde Suplementar do CFM
16h10 Debates
17h Encerramento

Conselho Federal de Medicina 221


Gráfica e Editora
Pólo JK - Trecho 01 Conjunto 03 Lote 06 - Parte
Santa Maria – Brasília – DF - CEP: 72.549-515
Tel.: 61 3552-4111 - quality@qualityeditora.com.br

Impresso no papel Offset 90 gr/m² (miolo)


Papel Supremo 250 gr/m² (capa)
Composto Myriad Pro 11 (texto)
Brasília-DF
ISBN 978-85-87077-70-7

9 788587 077707

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