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TÍTULO

Mayumy Cyrne Tani1

Resumo: entre 12 e 18 linhas


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Palavras-chave: 1; 2; 3; 4

1
Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Candido Mendes, pela aluna Mayumy Cyrne
Tani, graduada em Direito, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, como requisito para a
obtenção do título de especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal.
BRASIL: A QUARTA MAIOR POPULAÇÃO CARCERÁRIA DO
MUNDO
Mayumy Cyrne Tani
Introdução

A Crise no sistema carcerário brasileiro

Como demonstrado acima, a Constituição brasileira de 1988 é pródiga em


dispositivos que visam a assegurar a proteção da dignidade humana de todos os
indivíduos, presos ou libertos. Além disso, ditos mandamentos constitucionais são
densificados por diversas normas infraconstitucionais (em que pese às críticas
supramencionadas a lei de execução penal) e internacionais. Entretanto, demonstrar-se-
á o gigantesco abismo existente entre o que prescrevem estas normas e a nefasta
realidade carcerária do país.
Não é nova a afirmativa de que as instituições de controle, principalmente a
prisão, configuram modelos totalitários. Na literatura nacional, sustenta-se que,
queiramos ou não, a prisão é uma instituição totalitária, e só pode funcionar como tal,
concluindo ser uma contradição tentar democratizar um sistema totalitário. Nota-se que
a característica mais marcante do cárcere é a tentativa de criação e manutenção de
grupamentos humanos submetidos a regimes de controle total. Logo, tudo concorre para
identificar o regime prisional como um regime totalitário. 2
A experiência na execução penal demonstra uma cruel historiografia: depois de
prolatada a sentença penal condenatória (muitas vezes, antes disso, vide a situação dos

2
THOMPSON apud CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 153.
presos provisórios), o apenado ingressa em ambiente desprovido de garantias. Desse
modo, a decisão judicial condenatória exsurge como declaração de ‘não-cidadania’,
como formalização da condição de apátrida do autor do crime. 3
Nesse sentido, CPI da Câmara dos Deputados sobre o Sistema Carcerário pintou
o seguinte quadro do sistema carcerário brasileiro:

[C]elas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes,


degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo
humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso
sanitário. Em outros estabelecimentos, homens seminus gemendo diante da cela
entupida. Em outros estabelecimentos, redes sobre redes em cima de camas. Mulheres
com suas crianças recém-nascidas espremidas em celas sujas (...) Assim vivem os
presos no Brasil. Assim são os estabelecimentos penais brasileiros na sua grande
maioria. Assim é que as autoridades brasileiras cuidam dos seus presos pobres. E é
assim que as autoridades colocam, todo santo dia, feras humanas jogadas na rua para
conviverem com a sociedade. 4

Ademais, com base nos dados do Infopen – sistema de informações estatísticas


do sistema carcerário brasileiro, criado pelo Departamento Penitenciário Nacional
(Depen) do Ministério da Justiça (MJ) – referentes ao primeiro semestre de 2014, a
população prisional brasileira alcançou o número de 607.731 ‘não-cidadãos’.
A quantidade de presos é consideravelmente superior às aproximadamente 377
mil vagas do sistema penitenciário, totalizando um déficit de 231.062 vagas e uma taxa
de ocupação média dos estabelecimentos de 161%. Em outras palavras, em um espaço
concebido para custodiar 10 pessoas, existem por volta de 16 indivíduos encarcerados.
5

Para uma melhor compreensão deste quadro caótico, é pertinente comparar a


realidade brasileira com a de outros países. Conforme a tabela 1 abaixo, em números
absolutos, o Brasil tem a quarta maior população prisional, ficando atrás apenas dos
Estados Unidos, da China e da Rússia. Já, em termos relativos, a população prisional

3
CARVALHO, Salo de. Ibidem, p. 154.
4
Câmara dos Deputados. Relatório da CPI do Sistema Carcerário, 2009. p. 244. Câmara dos Deputados.
(doc. 6). Disponível também em: <http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/2701> Acesso em:
10/10/2015.
5
Levantamento nacional de informações penitenciárias INFOPEN - Junho de 2014, p. 11. Disponível em:
<http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-
depen-versao-web.pdf,> Acesso em: 10/10/2015.
brasileira também é a quarta maior: somente os Estados Unidos, a Rússia e a Tailândia
têm um contingente prisional mais elevado.

Tabela 1 – Ranking mundial da população carcerária.

Fonte: DEPEN com dados do ICPS. Disponível em www.prisonstudies.org, acessado em maio de 2015,
p.13.

Como se vê, o Brasil ainda exibe, entre os países comparados, a quinta maior
taxa de presos sem condenação. Do total de pessoas privadas de liberdade,
aproximadamente quatro entre dez (41%), estavam presas sem ainda terem sido
julgadas. Na Índia, no Paquistão e nas Filipinas, mais de 60% da população prisional
encontra-se nessa condição. Em números absolutos, o Brasil tem a quarta maior
população de presos provisórios, com 222.190 pessoas. Enquanto, os Estados Unidos
(480.000) são o país com o maior número de presos sem condenação, seguidos da Índia
(255.000) e da estimativa em relação à China (250.000).6
O gráfico 1 abaixo mostra a variação da taxa de aprisionamento entre 2008 e
2014 dos quatro países com a maior população prisional do mundo. Observando o
gráfico, nota-se que a variação da taxa de aprisionamento brasileira apresenta tendência
contrária aos demais países. Vejamos:

Gráfico 1 - Variação de taxa de aprisionamento.

Fonte: DEPEN, com dados do ICPS, p. 15.

Desde 2008, os Estados Unidos, a China e, principalmente, a Rússia, estão


reduzindo seu ritmo de encarceramento, ao passo que o Brasil vem acelerando o ritmo.
Entre 2008 e 2013, os Estados Unidos reduziram a taxa de pessoas presas de 755 para
698 presos para cada cem mil habitantes, uma redução de 8%. A China, por sua vez,
reduziu, no mesmo período, de 131 para 119 a taxa (-9%). O caso russo é o que mais se
destaca: o país reduziu em, aproximadamente, um quarto (-24%) a taxa de pessoas presas
para cada cem mil habitantes. Mantida essa tendência, pode-se projetar que a população
privada de liberdade do Brasil ultrapassará a da Rússia em 2018. 7
O gráfico 2 abaixo apresenta o número de presos quanto à natureza da prisão e
ao tipo de regime. Observando o gráfico, ratifica-se o demonstrado na figura 2 no que

6
Ibidem, p. 13.
7
Ibidem, p. 15.
tange ao percentual de 41% de presos sem condenação, além da mesma proporção de
pessoas em regime fechado. Apenas 3% das pessoas privadas de liberdade estão em
regime aberto e 15% em semiaberto. Para cada pessoa no regime aberto, há
aproximadamente 14 pessoas no regime fechado; para cada pessoa do regime
semiaberto, há quase três no fechado. 8

Gráfico 2 – Percentual de presos quanto à natureza e o tipo de regime.

Fonte: Infopen, junho/2014, p. 20.

Intimamente relacionado ao problema da superlotação está a questão dos presos


provisórios. No sistema constitucional brasileiro, a prisão antes do trânsito em julgado
da decisão condenatória deve ser medida excepcional, haja vista o princípio de
presunção da inocência (art. 5º, LVII, CF), que impede que as medidas constritivas de
liberdade sejam empregadas como antecipação da pena. Elas só se justificam quando
estiverem presentes os requisitos necessários à tutela cautelar; podendo ser concedidas
apenas por meio de decisões judiciais criteriosamente motivadas, que realizem um
cuidadoso juízo de proporcionalidade, no qual se atribua peso superlativo à liberdade
individual, em razão da relevância deste bem jurídico em nosso sistema constitucional.
9

8
Ibidem, p. 20.
9
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015, pp. 601-603.
Por isso, faz-se necessária a implementação de medidas que contribuam para
reduzir o uso das prisões cautelares, de modo a assegurar os direitos fundamentais dos
acusados e minorar a superlotação das instituições prisionais. Dentre esses métodos,
aponta-se a adoção das audiências de custódia, previstas no Pacto de San José da Costa
Rica e no Pacto dos Direitos Civis e Políticos da ONU, e a imposição de expressa
motivação judicial para a não aplicação a casos concretos de medidas cautelares
alternativas à privação da liberdade.
Em relação ao perfil dos presos quanto à raça, cor ou etnia, 48% das unidades
prisionais informaram ter condições de obter essa informação para todas as pessoas
privadas de liberdade, e 14% informaram ter condições de informar para apenas parte
das pessoas. No total, a informação foi disponibilizada para 274.315 pessoas privadas
de liberdade, cerca de 45% da população prisional.10 Vejamos:
Gráfico 3 – Raça, cor ou etnia dos presos.

Fonte: Infopen, junho/2014, p. 50.

Ao analisar o gráfico, a informação que se destaca é a proporção de pessoas


negras presas: dois em cada três presos são negros. Ao passo que a porcentagem de
pessoas negras no sistema prisional é de 67%, na população brasileira em geral, a
proporção é significativamente menor (51%).
Nesse sentido, podemos fazer um paralelo com os referidos dados e o paradigma
etiológico do homem delinquente advogado pela Escola Positiva italiana, que tanto em
relação aos povos colonizados da periferia quanto das massas operárias centrais,
supostamente não permitia duvidar da supremacia branca europeia, muito menos da

10
Levantamento nacional de informações penitenciárias INFOPEN - Junho de 2014. Op. Cit., p. 50.
superioridade das classes dominantes e dos trabalhadores disciplinados sobre as classes
tumultuosas. 11
Nesse sentido, ao realizar estudos de anomalia craniana nos cárceres italianos,
Lombroso encontra no cadáver de Villela indicações de formação biológica primitiva: a
fosseta occipital média. A partir desta constatação, há o desenvolvimento e
popularização, da tese do criminoso nato: “um ser humano primitivo cuja fisiologia,
através de um processo de regressão atávica, assemelhar-se-ia à do selvagem”. Assim,
sob a perspectiva do paradigma etiológico, definir-se-á um ser humano predeterminado
organicamente ao delito. Permite-se, através da antropologia criminal, a possibilidade
de catalogação e identificação de indivíduos ontologicamente perversos, em decorrência
de suas anomalias anatômicas e fisiológicas. 12
Auxiliando na compreensão do fenômeno de exclusão do negro, estereotipado
com “cara de bandido”:

“Gradualmente a concepção positivista da antropologia lombrosiana foi gerando uma


estética da maldade. Esta estética do mal visualizada na inferioridade genética –
degenerações biológicas e psicológicas (geralmente provocada por fome, miséria e
condições higiênicas deploráveis, registre-se) – foi delineando o estereótipo do pobre
bom (física e moralmente) e do pobre mau (feio por natureza, repugnante e
moralmente perverso). Essa gente má, primitiva, inferior e subumana deveria ser feia,
porque o mal e o feio quase sempre se identificam. O discurso dominante permitia,
assim, desqualificar as massas populares organizadas; inferiorizar os colonizados,
pois sua beleza não respondia aos ideais estéticos europeus; e isentar de
responsabilidade as classes industriais de grande parte dos delitos patrimoniais
cometidos.” 13

Constata-se que a questão racial, especificamente no que tange à cultura afro-


brasileira, tornar-se-á o primeiro inimigo da modernidade brasileira, impedindo,
segundo o saber colonizador, o desenvolvimento de uma ‘boa’ civilização – é importante
notar que o direito que coloca o negro dentro da questão judiciária e penal é o positivo.
Somente com o desenvolvimento desta escola é que o negro passou a ser estudado como
objeto concreto da ciência. Fora montado um projeto social que excluía o negro dos
resultados positivos que a sociedade poderia adquirir, pretensão que contrariava o

11
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminologia: Aproximación desde um Margen. Bogotá: Temis, 1988, p.
134.
12
LOMBROSO apud CARVALHO, Salo de. Op. cit., p.58.
13
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Op. Cit., p. 131.
sentido cultural da miscigenação, ou seja, a pluralidade que somente era positiva caso
limpasse e jamais criasse. 14 Veremos mais adiante o desenvolvimento deste tema, sob
o prisma da criminologia crítica que busca romper com a lógica do determinismo
biológico.
O gráfico 4 mostra a distribuição da população prisional brasileira por faixa
etária. Certo é que a maior parte da população prisional é formada por jovens.
Comparando o perfil etário da população prisional com o da população brasileira em
geral, observa-se que a proporção de jovens é maior naquela do que nesta. Ao passo que
56% das penitenciárias são compostas por jovens, essa faixa etária compõe apenas
21,5% da densidade demográfica do país. 15

Gráfico 4 – Faixa etária da população carcerária brasileira.

Fonte: Infopen, junho/2014, p.48.

Vale ressaltar que as informações contidas no gráfico acima, não incluem o


estado de São Paulo, por não ter respondido ao levantamento. 16
No que tange à escolaridade das pessoas privadas de liberdade, 48% das unidades
afirmaram ter condições de obter essas informações em seus registros para todas as

14
SILVA, Mozart Linhares da apud CARVALHO, Salo de. Op. Cit., p. 65.
15
Levantamento nacional de informações penitenciárias INFOPEN - Junho de 2014. Op. cit., p. 48.
16
Idem.
pessoas custodiadas e 20% para parte das pessoas. A escolaridade foi informada para
241.318 pessoas, o que corresponde a cerca de 40% do total da população prisional. 17

Gráfico 5 - Percentuais dos níveis de escolaridades dos presos.

Fonte: Infopen, junho/2014, p. 57.

O grau de escolaridade da população prisional brasileira é extremamente baixo.


Como evidencia o gráfico 5 acima, aproximadamente oito em cada dez pessoas presas
estudaram, no máximo, até o ensino fundamental, enquanto a média nacional de pessoas
que não frequentaram o ensino fundamental ou o têm incompleto é de 50%. Ao passo
que na população brasileira cerca de 32% da população completou o ensino médio,
apenas 8% da população prisional o concluiu. 18
Segundo a Lei de Execução Penal, é dever do Estado fornecer à pessoa privada
de liberdade assistência educacional, com o objetivo de prevenir o crime e orientar o
retorno à convivência em sociedade. A lei prevê, nos termos do art. 17, que assistência
educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional da pessoa
privada de liberdade, devendo o ensino fundamental ser obrigatório.
Entretanto, apenas uma em cada dez pessoas privadas de liberdade realiza
atividade educacional no país. 19
Vejamos que as renovadas formas de exclusão são caracterizadas pela perda do
status de cidadão por algumas pessoas, em razão das restrições econômicas e sociais,
como o não acesso à educação supramencionado. “Certas pessoas simplesmente não
servem: a economia pode crescer sem a sua contribuição; de qualquer modo que se lhes

17
Ibidem, p. 57.
18
Ibidem, p. 58.
19
Ibidem, p. 45.
considere, para o resto da sociedade tais pessoas não representam um benefício, mas um
custo”. 20
Ao descartar a pessoa como valor, vista como supérflua nesta nova ordem
projeta-se a necessidade de maximização dos aparatos de controle penal. Como
alternativa ao Estado providência, portanto, temos o ‘Estado penitência”, configurando
uma máxima que parece ser a palavra de ordem na atualidade: “Estado social mínimo,
Estado penal máximo”. Isto porque, deve ser reservado aos ‘inconvenientes’ algum lugar
– nas atuais circunstâncias, o confinamento é antes uma alternativa ao emprego, uma
maneira de utilizar e neutralizar uma parcela relevante da população que não é necessária
à produção e para a qual não há trabalho ao qual se reintegrar. 21
Em relação à distribuição de crimes tentados/consumados entre os registros das
pessoas privadas de liberdade, cumpre observarmos o gráfico 6:

Gráfico 6 – Percentuais dos tipos de crimes.

Fonte: Infopen, junho/2014, p. 69.

Nota-se que quatro entre cada dez registros correspondem a crimes contra o
patrimônio. Cerca de um em cada dez corresponde ao crime de furto. Note-se que o
tráfico de entorpecentes é o tipo penal de maior incidência, correspondendo a 27% dos

20
DAHRENDORF apud CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 216.
21
CARVALHO, Salo de. Ibidem, p. 215.
crimes informados. Em seguida, o roubo com 21%; já o homicídio corresponde a 14%
dos registros e o latrocínio a apenas 3%. 22
Em suma, da análise dos dados estatísticos apontados pelo Departamento
Penitenciário Nacional, podemos traçar um perfil da população carcerária: negra, pobre,
jovem e de baixa escolaridade, autores de delitos patrimoniais ou de tráfico de drogas.
Para além da influência imposta pela concepção etiológica de Lombroso já introduzida,
isso se deve ao que o paradigma de defesa social (labelling approach) 23 denomina como
seletividade do poder punitivo, no âmbito da criminalização primária e secundária, que
perpetua um processo de etiquetamento/rotulação social de certos indivíduos.
Nesse liame, no que tange à criminalização primária, sucede que o Estado
escolhe aquelas condutas que a seu ver são importantes e devem ser proibidas e passíveis
de punição. Em outras palavras, em um primeiro olhar, poder-se-ia afirmar que a lei
penal vincularia todas as pessoas na medida em que ao prever de maneira abstrata a
proibição de determinada conduta, qualquer pessoa que violasse a lei seria em tese por
ela punida o que conferiria neutralidade à norma penal incriminadora. Todavia, não é
bem isso o que ocorre.
Isto porque, enquanto a elaboração de leis penais é uma declaração que, em geral,
se refere a condutas e atos, a criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre
as pessoas concretas. No momento em que as agências policiais detectam uma pessoa
que supostamente tenha praticado certo ato criminalizado primariamente, a investigam,
em alguns casos privam-na de sua liberdade de ir e vir e submetem-na à agência judicial,
que legitima tal iniciativa; admitindo um processo. Em virtude da limitada capacidade
operacional das agências executivas, é consectário lógico que a criminalização
secundária se torna exceção, enquanto que a impunidade vira a regra. 24
Tendo em vista a impossibilidade operacional de se concretizar todo o projeto de
criminalização primária, alternativa outra não restará às agências de controle senão a de
operar em grande nível de seletividade, tanto no que concerne à proteção de potenciais
vítimas, quanto no que diz respeito à criminalização dos agentes. Enfim, em razão desta
imposição seletiva, o Estado acabará optando pela persecução daqueles crimes mais

22
Levantamento nacional de informações penitenciárias INFOPEN - Junho de 2014. Op. cit., p. 69.
23
“A partir da escola do labelling approach ocorre uma correção do conceito de criminalidade, pois o que
há são processos de criminalização. Assim, a criminalidade seria uma realidade social atribuída”. IN:
BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de janeiro: Revan, 2011, p.77.
24
ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.
43.
fáceis de investigar, ante a seus erros operacionais ou facilidades jurídicas; ou optará na
criminalização daqueles grupos sociais mais vulneráveis. 25
Sendo assim, criminalizar consiste na seleção penalizante a que uma parcela da
população é submetida ao poder punitivo. Dado que:

Todas as sociedades contemporâneas que institucionalizaram ou formalizaram o


poder (estado) selecionam um reduzido número de pessoas que submetem à sua
coação com o fim de impor-lhes uma pena. Esta seleção penalizante se
chama criminalização e não se leva a cabo por acaso, mas como resultado da gestão
de um conjunto de agências que formam o chamado sistema penal. 26

Ademais, a teoria da rotulação social ou da reação social, de viés sociológico,


surge nos anos 60 com o abandono do paradigma etiológico-determinista da
criminologia, a qual se centrava, na sua quase totalidade, na análise apenas da figura da
pessoa do infrator, passando a valer-se das relações conflitivas existentes dentro da
sociedade. 27
A decorrência lógica da criminalização de condutas e da persecução penal não é
outra senão o surgimento de um processo estigmatizante para o condenado, haja vista as
cerimônias degradantes que se submetem os envolvidos com um processo criminal, em
que ao serem condenados são despojados de suas identidades. Em sendo assim, pode-se
falar que a pena atua como geradora de desigualdades, ao criar uma reação por parte da
família, amigos, conhecidos que criam expectativas por comportamentos tidos como
criminosos, perpetuando um processo de marginalização, rotulação e estigmatização.28
Vale ressaltar ainda, nesse processo de rotulação, a conceituação dos chamados
outsiders, termo que designa as pessoas que são consideradas desviantes por outras,
situando-se por isso fora do círculo dos membros considerados “normais”. Vejamos:

Regras sociais são criações de grupos sociais específicos. As sociedades modernas


não constituem organizações simples em que todos concordam quanto ao que são as
regras e como elas devem ser aplicadas em situações específicas. São, ao contrário,

25
Ibidem, pp. 44-46.
26
Ibidem, p. 43.
27
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
28
Idem.
altamente diferenciadas ao longo de linhas de classe social, linhas étnicas, linhas
29
ocupacionais e linhas culturais.

Diante disso, encontra-se sedimentada a ideia, de que um grupo social impõe


sobre outros as regras de conduta que julgam ser moralmente corretas. Estes grupos
submetidos, por sua vez, agem de forma naturalística, transgredindo as regras a que
foram submetidos, sendo então rotuladas desviantes.
Porém, evidencia-se uma lacuna corriqueira, a de pessoas que são rotuladas
desviantes sem sequer ter cometido qualquer condutam ilícita. Como o desvio é, entre
outras coisas, uma consequência das reações de outros ao ato de uma pessoa, os
estudiosos do desvio não podem supor que essas pessoas rotuladas cometeram realmente
um ato desviante ou infringiram alguma regra, porque o processo de rotulação pode não
ser infalível. Em outras palavras, algumas pessoas podem ser rotuladas de desviantes
sem ter de fato infringido uma regra. 30

Quando se institucionaliza o fenômeno citado por Becker, ele se encaixa


perfeitamente ao conceito de criminalização. Desse modo, observamos que
os desviantes são aqueles que se enquadram na parcela da população selecionada a se
submeter à coação estatal.
Certo é que ao nos referimos à seletividade, observamos ser comum que as
agências se utilizem de estereótipos físicos e sociais, a fim de tentar delimitar um
prognóstico de periculosidade, com o fito de emanar um parecer preconceituoso sobre o
indivíduo pelo qual o poder do Estado vai atuar. Nesse sentido:

O estereótipo acaba sendo o principal critério seletivo da criminalização secundária;


daí a existência de certas uniformidades da população penitenciária associadas à
desvalores estéticos (pessoas feias), que o biologismo criminológico considerou
causas do delito quando, na realidade, eram causas da criminalização, embora possam
vir a tornarem-se causas do delito quando a pessoa acaba assumindo o papel vinculado
ao estereótipo (é o chamado efeito reprodutor da criminalização ou desvio
secundário). 31

29
BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudo de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2008, p. 27.
30
Ibidem, p. 22.
31
ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo. Op. cit., p. 46.
Apesar das teorias sobre o homem patológico serem negadas nas formulações
doutrinárias, que após a reação científica dos anos sessenta, incitaram o movimento da
criminologia crítica; o modelo etiológico reformulará seus postulados com o movimento
da Defesa Social. Isto porque, embora o discurso criminológico crítico tenha deslocado
e desmascarado as teses da Escola Positiva, a mudança na concepção do crime não foi
alterada. É que mesmo a resposta da criminologia crítica ao fenômeno do delito, negando
o determinismo biológico, não deixou de incorrer em um determinismo
socioeconômico.32

2.2.1. OS ALTOS ÍNDICES DE REINCIDÊNCIA CRIMINAL E A


FALÁCIA DA RESSOCIALIZAÇÃO

Ainda no que tange aos fatores que representam a crise do sistema carcerário
brasileiro, salientamos neste tópico, sem a pretensão de esgotar o tema, a questão da
reincidência criminal, em detrimento da declarada função ressocializadora da pena de
prisão.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) celebrou acordo de cooperação técnica
com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) para que fosse realizada uma
pesquisa sobre reincidência criminal no Brasil. O termo previu uma pesquisa capaz de
apresentar um panorama da reincidência criminal com base em dados coletados em
alguns estados do país.33
Um desafio colocado pela referida pesquisa consistiu em explicitar o conceito de
reincidência a ser trabalhado. O termo reincidência criminal é geralmente utilizado de
forma indiscriminada, às vezes até para descrever fenômenos bastante distintos.
Apontando, muitas vezes, para o fenômeno mais amplo da reiteração em atos criminosos
e da construção de carreiras no mundo do crime. 34
A pesquisa ocupa-se, portanto, da reincidência em sua concepção estritamente
legal, aplicável apenas aos casos em que há condenações de um indivíduo em diferentes
ações penais, ocasionadas por fatos diversos, desde que a diferença entre o cumprimento
de uma pena e a determinação de uma nova sentença seja inferior a cinco anos. Em

32
CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 74.
33
Reincidência criminal no Brasil, Relatório de pesquisa 2015. IPEA, p. 9
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/07/9273eaea20159abdadb8bb43a3530f49.
pdf> Acesso em: 15/10/2015.
34
Idem.
outras palavras, a reincidência legal refere-se ao parâmetro de que ninguém pode ser
considerado culpado de nenhum delito, a não ser que tenha sido processado
criminalmente e, após o julgamento, seja sentenciada a culpa, devidamente comprovada.
35

Ainda são escassos no Brasil os trabalhos sobre reincidência criminal, o que


colabora para que, na ausência de dados precisos, imprensa e gestores públicos
repercutam com certa frequência informações como a de que a taxa de reincidência no
Brasil é de 70%. Mas, tal percentual como veremos na sequência deste texto, se refere a
um conceito amplo e não restrito aos presos condenados. 36
Verifica-se, na tabela 2 abaixo, que as taxas de reincidência calculadas pelos
estudos brasileiros variam muito em função do conceito de reincidência trabalhado. Os
números, contudo, são sempre altos (as menores estimativas ficam em torno dos 30%).
Esse grave problema tem levado o poder público e a sociedade a refletirem sobre a atual
política de execução penal, fazendo emergir o reconhecimento da necessidade de
repensar essa política, que, na prática, privilegia o encarceramento maciço, a construção
de novos presídios e a criação de mais vagas em detrimento de outras políticas. 37

Tabela 2 – Quadro representativo das taxas de reincidência.

35
Idem.
36
Ibidem, p. 11.
37
Ibidem, p. 12.
Fonte: Pesquisa Ipea/CNJ, 2015, p.12.

Os ataques mais severos à falácia da ressocialização advêm dos adeptos da


criminologia crítica, que censuram a ressocialização por implicar a violação do livre-
arbítrio e da autonomia do sujeito, uma vez que a ideia de “tratamento” do indivíduo
pressupõe que se deva anular a sua personalidade, seus valores e ideologias para adequá-
lo aos valores sociais tidos como legítimos. Haveria ainda um paradoxo: como esperar
que indivíduos desviantes se adequem às regras sociais segregando-os completamente
da sociedade e inserindo-os em um microcosmo prisional com suas próprias regras e
cultura? 38
Ora, a prisão esteve desde sua origem, ligada a um projeto de transformação dos
indivíduos. O modelo de ressocialização, fundado na ideologia do tratamento, marca os
problemas da pedagogia disciplinar e impõe parâmetros de conduta e pensamento que
pertencem a outras classes sociais com interesses diversos, obtendo como consequência
a perda de identidade dos apenados e a consolidação de sua posição marginal. 39
Além disso, considerar a pena como instrumento curativo ou reeducativo,
presumindo ser o delito uma patologia, pressupõe a aproximação dos conceitos de
natureza e/ou moral com o direito. As concepções penalógicas nas quais há simetria

38
BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit., p. 125.
39
ZAFFARONI apud CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 181.
entre direito e natureza e direito e moral (teorias da emenda) são as mais antiliberais e
antigarantistas teorias já concebidas, justificando modelos maximalistas. 40
Quanto aos rumos que deveriam ser dados à prisão, considerando a não realização
do projeto ressocializador, podem ser apontadas duas grandes posições: a realista e a
idealista.
Os adeptos da primeira posição, partindo da premissa de que a prisão não é capaz
de se constituir em espaço de ressocialização, defendem que o máximo que ela pode fazer
é neutralizar o delinquente, como apontado acima. Em decorrência, alinham-se ao
discurso oficial da prisão como prevenção especial negativa (neutralização do
delinquente). 41.
De outro lado, estão os que se inserem na segunda posição, que permanecem na
defesa da prisão como espaço de prevenção especial positiva (ressocialização). Em que
pese à admissão de seu fracasso para este fim, advogam que é preciso manter a ideia da
ressocialização, visto que seu abandono acabaria reforçando o caráter exclusivamente
punitivo da pena, dando à prisão a única função de excluir da sociedade aqueles que são
considerados delinquentes. 42
Para o referido posicionamento mais realista, qualquer reforma que se possa fazer
no campo penitenciário não terá maiores vantagens, visto que, mantendo-se a mesma
estrutura do sistema capitalista, a prisão manterá sua função repressiva e estigmatizadora.
43

Dado que os objetivos orientadores do sistema capitalista, sobretudo a acumulação


de riqueza, exigem a manutenção de um setor marginalizado da sociedade; “pode-se
afirmar que a lógica do capitalismo é incompatível com o objetivo ressocializador. Sem
a transformação da sociedade capitalista, não há como encarar o problema da reabilitação
do delinquente.”44
Entretanto, há ainda quem defenda que nenhuma dessas duas construções é
aceitável. Isto porque, a prisão, do modo como se apresenta, é de fato incapaz de
promover a ressocialização, ao contrário, o que ela tem produzido realmente são
obstáculos ao alcance deste objetivo. Mas, em que pese esse reconhecimento, sustenta-se

40
CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 139.
41
BARATTA, Alessandro. Ressocialização ou controle social: uma abordagem crítica da “reintegração
social” do sentenciado. 1990, pp. 1-2. Disponível em:
<http://www.juareztavares.com/textos/baratta_ressocializacao.pdf> Acesso em: 16/10/2015
42
Idem.
43
PEARCE, Franck apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 136.
44
SANTOS, Barbero apud Idem.
que o objetivo não deve ser abandonado, e sim reconstruído, propondo a substituição dos
termos ressocialização e tratamento pelo de reintegração social (numa posição mais
otimista do que a dos realistas).45
Nesse sentido, a ressocialização e o tratamento denotam uma postura passiva do
detento e ativa das instituições: “são heranças anacrônicas da velha criminologia
positivista que tinha o condenado como um indivíduo anormal e inferior que precisava
ser (re)adaptado à sociedade, considerando acriticamente esta como ‘boa’ e aquele como
‘mau’”. Em oposição, o termo reintegração social pressupõe a igualdade entre as partes
envolvidas no processo, pois requer a “abertura de um processo de comunicação e
interação entre a prisão e a sociedade, no qual os cidadãos reclusos se reconheçam na
sociedade e esta, por sua vez, se reconheça na prisão”. 46
Em outras palavras, a reintegração social engloba a transformação da sociedade
que deve reassumir sua responsabilidade nos problemas e conflitos segregados na prisão.
Tendo por base a composição demográfica da população carcerária, podemos verificar
que a maioria dos presos procede de grupos sociais já marginalizados, excluídos da
sociedade em razão dos mecanismos de mercado que regulam o mundo do trabalho.
Portanto, antes de tudo, trata-se de corrigir as condições de exclusão social, para que
conduzir esses setores a uma vida pós-penitenciária não signifique apenas, como quase
sempre acontece, o regresso à reincidência criminal. 47
No que se relacionam as condições de cárcere, tanto sob o prisma da integração
social como do criminoso, “a melhor prisão é, sem dúvida, a que não existe”, uma vez
que não há nenhuma prisão boa o suficiente para atingir a reintegração. No entanto,
existem algumas piores do que outras e, dessa maneira, qualquer ação, ainda que seja
para guardar o preso, deve ser encarada com seriedade, de modo a fazer com que a vida
no cárcere seja menos dolorosa e prejudicial ao condenado. 48
Ressalta-se que não se trata da defesa de um reformismo tecnocrático, com a
finalidade de legitimar através de quaisquer melhoras o sistema prisional, mas de adotar
uma política de reintegração social, sem descuidar que todo reformismo possui seus
limites para não incorporar à instituição carcerária, com o objetivo imediato não apenas

45
BARATTA, Alessandro. Op. cit., p. 2.
46
Ibidem, p. 3.
47
Idem.
48
Ibidem, p. 2.
de uma “prisão melhor”, mas, sobretudo, de “menos cárcere”. “Reintegração, não “por
meio da” prisão, mas “ainda que” de sua existência”. 49
A crise no sistema carcerário brasileiro pode ser entendida como uma tragédia
anunciada, a ausência de condições mínimas de garantia da dignidade aos presos e a
superlotação, como aspectos desta catástrofe, já podiam ser verificavas desde o período
colonial. Ao rasgarmos o véu da aparência das funções declaradas pela ideologia jurídica
oficial, analisando criticamente a história do poder punitivo, fica evidente que a prisão
não foi idealizada para que funcionasse de modo a respeitar os direitos fundamentais dos
definidos como criminosos, tampouco a integrá-los dentro da sociedade.
O perfil da população prisional brasileira, em sua maioria negra, jovem, pobre
jovem e de baixa escolaridade, autores de delitos patrimoniais ou de tráfico de drogas,
denota a seletividade do poder punitivo. O estereótipo é o principal critério seletivo da
criminalização secundária, daí a existência de certas uniformidades associadas. A
criminalização, portanto, não pode ser considerada como um processo natural. Trata-se
de uma decisão eminentemente política.

49
Ibidem, pp. 2-3.

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