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8 Cinema impuro: contaminações entre cinema

e vídeo a partir de um olhar sobre a série


História(s) do Cinema, de Jean-Luc Godard1
Gabriela Machado Ramos de Almeida2
Resumo: Este artigo propõe uma apropriação da Abstract: This paper proposes an appropriation of
ideia de “cinema impuro”, de André Bazin, para pensar the idea of “impure cinema”, according to André Bazin,
as contaminações mútuas entre o cinema e o vídeo, to reason about the mutual contaminations between
usando como objeto de análise a série de ensaios cinema and video, using as an object of analysis the
fílmicos produzidos para a televisão História(s) do series of film essays produced for television Histoire(s)
Cinema, de Jean-Luc Godard (1998). À luz também du Cinéma, by Jean-Luc Godard (1998). In light of the
das contribuições de autores como Philippe Dubois contributions by authors such as Philippe Dubois and
e Arlindo Machado, este trabalho busca colocar em Arlindo Machado, this article intends to call in question
questão a forma como Godard incorpora e combina the way how Godard incorporates and assembles
referências das mais diversas expressões artísticas - references from many diverse artistic expressions –
sobretudo a literatura, a pintura e a música, além do mainly literature, painting and music, beyond cinema
próprio cinema – na produção de um pensamento itself – to produce an audiovisual thought, and how
audiovisual, e como as suas colagens poéticas e its poetical and narrative collages are featured in a
narrativas se apresentam num meio de materialidade medium as essentially fluid as video in its materiality.
essencialmente tão fluida quanto o vídeo.

Palavras Chave: cinema; ensaio fílmico; Jean-Luc Keywords: cinema; film essay; Jean-Luc Godard.
Godard.

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No clássico texto Por um cinema impuro – tendência da crítica de considerar de antemão A passagem de uma obra teatral para a
Defesa da adaptação, publicado originalmente a adaptação um “quebra-galho vergonhoso”, tela comum requeria, no plano estético,
em 1952 na coletânea Cinéma, un oeil ouvert mesmo porque se trata de um expediente uma ciência da fidelidade comparável à do
sur le monde, organizada por Georges-Michel comum a toda a história da arte, e ilustra a operador na reprodução fotográfica. Ela é
o termo de um progresso e o início de um
Bovay, e posteriormente no livro Qu’est-ce que sua argumentação com exemplos extraídos da
renascimento. Se o cinema é hoje capaz de
le cinéma?, em 1958, André Bazin questiona se própria história do cinema, como a apropriação
se opor eficazmente ao domínio romanesco
o cinema existiria como arte por si, totalmente do music-hall, do circo e do teatro mambembe, e teatral, é porque, em princípio, ele está
independente das outras artes; se seria capaz que mostram que o cinema sempre foi uma arte bastante seguro de si e é senhor de seus
de sobreviver sem as muletas da literatura e do de certo modo devedora a todas as outras. meios para desaparecer diante do seu
teatro, ou estaria prestes a se tornar uma arte A questão fundamental, para Bazin, objeto. É porque pode, enfim, almejar a
subordinada e dependente. seria a influência recíproca das artes e da fidelidade – não uma fidelidade ilusória de
O contexto e o lugar de fala de Bazin devem adaptação em geral. No caso do cinema, ele decalcomania – pela inteligência íntima de
ser tomados em consideração, uma vez que a seria necessariamente influenciado pelas outras suas próprias estruturas estéticas, condição
prévia e necessária para o respeito das obras
influência da literatura sobre o cinema a partir da artes em função da sua breve história, e tenderia
que ele investe. Longe de a multiplicação
proliferação indiscriminada das adaptações a naturalmente a evoluir a partir dos exemplos
das adaptações de obras literárias muito
que o autor se refere diz respeito ao advento do delas (sobretudo da literatura). Mais evoluído distantes do cinema inquietar o crítico
cinema sonoro e, consequentemente, ao amplo em sua trajetória histórica5, o romance propõe preocupado com a pureza da sétima arte,
emprego de obras literárias e teatrais como ao cinema personagens mais complexos; na elas são, ao contrário, a garantia de seu
suporte – ou muleta mesmo - para os filmes, no relação entre forma e conteúdo, propõe um rigor progresso (Bazin, 1991 p. 98).
âmbito da narrativa. e uma sutileza aos quais o cinema não estaria
Bazin considera um bom roteiro original habituado. A contaminação do cinema pela literatura
sempre preferível a uma adaptação, mas para Se o romance a partir do qual um filme não se localizaria somente no âmbito da
ele as boas adaptações desmentem toda a será feito tem uma qualidade muito superior à do adaptação, mas seria de ordem muito mais
crítica rasa e conservadora que reduz a prática cinema, dois usos são possíveis: ou o romance geral e abrangente. Bazin considera que
a um exercício preguiçoso e sem valor; defende vai lastrear o filme, servir de “reservatório de certos episódios de Paisà (Roberto Rossellini,
com afinco a adaptação literária, sem, no ideias e garantia de qualidade”, ou os cineastas 1946) devem muito mais a Ernest Hemingway
entanto, desconsiderar o valor do roteiro original se esforçarão não mais para transpor o romance ou a William Saroyan do que a adaptação de
e reconhecer que existem adaptações boas e à tela, ou simplesmente inspirar-se livremente Por quem os sinos dobram (For whom the bell
ruins; elenca adaptações brilhantes feitas por no romance e adaptá-lo, mas sim buscarão tolls, Sam Wood, 1943) ao seu respectivo “texto
cineastas que ele considera geniais e chega a “traduzir” o romance para o cinema. “Não original”. Seria o caso, portanto, de enxergar
brincar afirmando que o problema da adaptação apedrejemos os fabricantes de imagens que aquilo que os melhores filmes contemporâneos
é justamente não serem todos os cineastas ‘adaptam’ simplificando. A traição deles, como (à circunstância histórica do autor) devem aos
geniais – se fossem, as adaptações seriam dissemos, é relativa e a literatura nada perde romancistas modernos, o que estaria explícito
sempre boas e estaria solucionado o problema3. com isso. Mas são obviamente os segundos que mesmo num filme como Ladrões de Bicicleta
dão esperança ao cinema” (1991, p. 94)6. (Laddri di biciclette, Vittorio De Sicca, 1948), que
Para o autor, o advento do som não fez
não é baseado numa obra literária.
com que o cinema perdesse a sua identidade É como se, para Bazin, a adaptação
como arte em si mesma para se deixar infiltrar guardasse algo de mágico, e o exercício de O cinema seria devedor, portanto, da
por outras artes como a literatura ou o teatro4. produzir uma boa adaptação fosse talvez mais tradição narrativa da literatura e do teatro, mais
E não só isso: o próprio cinema teria passado árduo do que produzir um bom filme baseado do que especificamente da adaptação literária, e
a influenciar a literatura também, num processo em roteiro original. Ele diz: há de se considerar o sentido inverso - o romance

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de contaminação mútua. Bazin questiona a passa também a ser influenciado pelo cinema:
“[...] os novos modos de percepção impostos como suporte para circulação e, em escala como mecanismo relacional entre o cinema, o
pela tela, as maneiras de ver em primeiro plano, crescente, para a produção de filmes ainda próprio vídeo e as demais artes.
ou de estruturar o relato, como a montagem, calcados na gramática narrativa de um cinema Muito antes de se debruçar sobre a
ajudaram o romancista a renovar seus acessórios mais “clássico”, há também o crescimento e monumental realização de História(s) do
técnicos.” (Bazin, 1991, p. 88-89). Para Bazin, amadurecimento de um outro tipo de produção Cinema, Godard já havia realizado uma série
trata-se de uma espécie de convergência estética que é marcada por uma forte inflexão ensaística, de experiências em vídeo, com destaque para
que polariza simultaneamente várias formas de que pensa o cinema a partir da apropriação a sequência de ensaios-fílmicos produzidos
expressão, e por este motivo a contaminação de materiais advindos das mais diversas durante a década de 1970: Ici et ailleurs (1974),
mútua entre as artes não deve ser pensada em manifestações artísticas, como o vídeo, as artes Numéro deux (1975) e Comment ça va (1976).
termos de concorrência ou substituição, mas de visuais, a pintura, a música e a própria literatura. Se o trânsito de Godard entre o vídeo e o cinema
adjunção. A obra apontada como objeto de análise pareceu sempre tão natural, é possível que
A perspectiva do autor em defesa de um é a série História(s) do Cinema (Histoire(s) du seja por que ele não coloca os dois meios em
cinema impuro que entra em confluência com Cinéma, Jean-Luc Godard), conjunto de oito oposição, não transforma as diferenças entre
as outras artes justamente por ser “senhor dos ensaios fílmicos produzidos em vídeo durante eles numa questão, num problema7. De certa
seus meios” e dotado da “inteligência íntima os anos de 1988 e 1998 sob encomenda da maneira, o diálogo do cinema com o vídeo na
de suas próprias estruturas estéticas” é o que emissora de televisão francesa Canal+. À obra de cineastas como Godard dá continuidade
mais interessa a este trabalho. É o que, a nosso maneira de Bazin, a busca aqui não se dá no “a um conjunto de atitudes conceituais, técnicas
ver, permite trazer à baila uma contribuição intuito de localizar especificidades na linguagem e estéticas que remontam às experiências não-
que, num primeiro olhar, pode parecer datada do cinema ou do vídeo com o intuito de narrativas ou não-figurativas de René Clair e
para discutir uma questão tão essencialmente diferenciá-los ou colocá-los em oposição, mas Dziga Vertov no início do século” (Machado,
contemporânea quanto as implicações estéticas sim de pensar cinema e vídeo em uma relação 1997, p. 212).8
dos cruzamentos entre o cinema e o vídeo, mas de complementariedade (como, aliás, parece ter A prática de colagens de Godard é
que de fato é representativa de uma preocupação se dado desde sempre esta relação na própria definida por Philippe Dubois como um processo
que parece inquietar constantemente críticos trajetória de Godard como cineasta). de análise, decomposição e recomposição que
e pesquisadores: a possibilidade de existência Arlindo Machado (1997, p. 204) nota ao longo da trajetória do cineasta vai se tornando
de um “cinema puro” e as reações antagônicas que Godard e Antonioni, justamente os dois maciça e sistemática. Nos anos de 1970, se
que este conceito levanta, num momento de uma cineastas que levaram mais longe o diálogo manifestou por meio da série de ensaios fílmicos
certa “crise” da imagem e da valorização de um entre o cinema e os meios eletrônicos, foram já mencionada e continuou com os video-
cinema impuro que canibaliza todas as demais os que fugiram de definições reducionistas a roteiros Six fois deux (1976) e France/tour/
artes e cujo valor se localiza justamente na forma respeito do fim do cinema em suas respostas à détour/deux/enfants (1978), nos quais Godard
como processa metalinguisticamente inúmeras apocalíptica questão de Win Wenders no filme desenvolveria figuras de escrita videográfica
referências, enquanto simultaneamente pensa o Quarto 666 (Room 666, 1982). Para Machado, (as sobreimpressões, a câmera lenta e a música
próprio fazer-cinema. a verdadeira questão seria a possibilidade de na imagem etc) às quais voltaria posteriormente
Se à época em que Bazin se ocupou do reinvenção do cinema a partir da incorporação em novos video-roteiros, como Scenario du film
tema o cinema se via às voltas com a influência dos meios eletrônicos – exatamente o que passion (1982) e também em outras filmes. As
da literatura e a multiplicação das adaptações, a Godard e Antonioni alcançaram com as obras experiências foram tomando corpo de forma
questão hoje diz respeito em parte às fronteiras híbridas que passaram a produzir incorporando cada vez mais radical, culminando com obras
cada vez mais borradas entre cinema e vídeo, o uso criativo e autoral do vídeo não como mero audiovisuais que provavelmente chegam o
sobretudo com o uso em larga escala do vídeo suporte de registro, mas como escritura, como seu ápice com História(s) do Cinema, e em
de alta definição (HD). Ainda que o cinema linguagem e estética próprias e passíveis de que, renunciando quase que completamente
industrial se valha do vídeo fundamentalmente serem incorporadas pelo cinema, e também à representação, para Godard “já não havia
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diegese, narrativa com personagens, universo de existência do cineasta. Eis por que Godard e também como ambiente de desconstrução,
ficcional, representação e nem mesmo cinema – vive cotidianamente com o vídeo, como se contaminação e compartilhamento; circunscreve
mas apenas a letra de tudo isso: era a política este fosse sua própria respiração (Dubois, por meio das centenas de citações e referências
radical da tábula rasa” (Dubois, 2004, 278). 2004, p. 282-283). oferecidas por Godard, várias manifestações
O vídeo aparece não como uma “evolução” artísticas, sobretudo a pintura, a música, a
Esta noção do vídeo como “estado” à
na produção de Godard, mas como mais um literatura e o próprio cinema.
qual se refere Philippe Dubois diz respeito à
meio expressivo incorporado ao repertório de ideia amplamente disseminada do vídeo como [...] no calor da hora, ele experimenta o
materiais sensíveis que estão à sua disposição processo, não como produto, como imagem pensamento visual instantâneo, o olhar
e dos quais ele lança mão na realização dos que não pode ser desvinculada do dispositivo reflexivo, a escrita pela imagem; ele manipula,
seus filmes(?). História(s) do Cinema é uma para/por meio do qual foi concebida – e aí inscreve, escruta, combina, recomeça,
obra idiossincrática por natureza: uma história reside a característica ensaística de boa parte apaga, acrescenta, rumina, precisa, desloca.
do cinema absolutamente personalística e Tudo sem fio. Extraordinária impressão de
da produção audiovisual contemporânea que
autoral, contada por meio do vídeo e produzida assistir como que “ao vivo”, pelas e nas
busca inscrever nas próprias obras reflexões
para veiculação na televisão. Uma videoescrita, imagens, aos movimentos mesmos de um
sobre a sua produção ou sobre o momento do pensamento em ação. O grande lance é
talvez, em lugar de uma cinescrita; o vídeo que cinema e do vídeo. sempre o do ‘direto’: eu vejo ao mesmo
reflete e inscreve o cinema: “uma videoescrita
Enquanto nas narrativas cinematográficas tempo em que faço. Em vídeo (e, segundo
que incorpora o texto, a pintura, a música, a Godard, só em vídeo), ver é pensar e pensar
mais tradicionais é apresentado ao apreciador
história, a filosofia e o cinema inteiro [...] algo que é ver (Dubois, 2004, p. 282).
um filme fechado, uma história com começo, meio
se abre diante de nós e é da ordem do abismo”
e fim a ser apreciada a partir do seu conteúdo e
(Dubois, 2004, p. 284). Godard leva sua experiência a tal extremo
forma, de um dado agenciamento dos materiais
Não por acaso, a máquina de escrever fílmicos como o objetivo de alcançar efeitos pré- e nela se faz presente de tal modo (não apenas
aparece como metáfora do instrumento do qual determinados10, nas obras de caráter ensaístico como instância autoral, mas também fisicamente)
Godard se vale para contar a(s) história(s) do o apreciador é convidado a participar de outro que História(s) do Cinema acaba aproximando-
cinema, sinalizando que para uma escrita desta jogo: é cúmplice do realizador num processo se da performance. Segundo Alain Badiou – e
natureza não mais é a câmera a sua ferramenta em que ele mesmo (o realizador) não parece Philippe Dubois é partidário desta premissa –
elementar e indispensável9. tão preocupado com os efeitos, em que oferece a relação entre Godard e a sua matéria prima
questões muito mais do que respostas, um jogo produtiva é intensa de tal modo que parece
O fundamental para Godard não é ter
aberto à real possibilidade de ganhar ou perder. impossível dissociá-los: a concepção da imagem
feito um filme (ou preparar um) no sentido
em Godard guardaria algo de espiritual.
tradicional, com habituais etapas separadas A impressão de realidade do cinema seria
e sucessivas. O fundamental é estar sempre substituída por uma vertigem, a imagem em si As imagens de História(s) do Cinema estão
fazendo um, esteja ele ou não em filmagem oferecida como experiência. Trataria-se, assim, situadas sempre entre o “horror incomensurável”
ou montagem. Fazer um filme, para Godard,
de uma lógica mais visual do que narrativa, mais e a “fatal beleza”, entre a “necessidade de
é algo extensivo e total, é ser e viver, é estar redenção” e o olhar do seu historiador – um
um modo de pensar do que uma possibilidade
sempre conectado às imagens, é ver e pensar arqueólogo virtuoso e triste, segundo Alain
ao mesmo tempo. ‘Escrever’ é tudo isso: de narrar (Machado, 2004)11. O vídeo seria,
por excelência, o locus da inquietação de um Badiou (2005, p. 280) –, ao mesmo tempo
conceber e receber. Assim utilizado, o vídeo fascinado, melancólico e um tanto descrente. No
se torna uma extensão da própria concepção cineasta como Godard, que produz por meio
do vídeo um metadiscurso sobre o cinema. episódio 1A, Godard diz:
da escrita. Ver, Pensar, Escrever não mais se
distinguem, e tudo passa pelo vídeo. Eis que Mais do que uma obra fechada, História(s) do Se uma imagem, olhada à parte, exprime
o vídeo como estado (um ‘estado da matéria’, Cinema se apresenta como fluxo de ideias – por claramente algo, se comporta uma
um ‘estado do pensamento’, um ‘estado do isso o seu caráter de pensamento ao vivo. Este interpretação, não se transformará pelo
ser’) corresponde tão bem ao modo mesmo mesmo vídeo opera como mecanismo relacional
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contato com outras imagens. As imagens é indício de uma outra imagem e a montagem das diferenças ontológicas entre a imagem
não terão nenhum poder sobre ela e ela não age muito mais para produzir o choque, a cinematográfica e a imagem videográfica, Godard
terá qualquer poder sobre as outras imagens. ruptura, do que para construir uma disposição desde cedo se valeu do vídeo para pensar não as
Nem ação nem reação (Godard, 1998, filme). harmônica de imagens e sons no filme. Alain implicações técnicas das limitações da imagem
Badiou também considera que a classificação em vídeo para a representação realista em
O trecho se mostra bastante representativo
de “filme de montagem” fica aquém da amplidão oposição ao cinema (tão devedor da fotografia
do modo como Godard pensa a montagem,
de História(s) do Cinema: neste sentido), mas sim para pensar as questões
assunto que é trazido de forma mais direta e
que dizem respeito especificamente ao vídeo
incisiva em alguns outros momentos ao longo da [...] (o filme) é um exercício de montagem
como meio expressivo autônomo que conquistou
série (como nos episódios 2A e 3B, quando a ela extraordinário, mas a sobreimpressão é
ali tão importante quanto a montagem também a sua independência em relação às
se refere como “Minha bela inquietação”). Ainda
propriamente dita, ou seja, a simultaneidade outras artes, mesmo mantendo com elas uma
que muitos cineastas mencionem a montagem
é tão importante quanto a sucessão e há relação tão próxima e tantas vezes indissociável.
como o que há de mais específico na linguagem
uma relação vertical tão complexa quanto a
cinematográfica, decerto diferem em suas
relação horizontal. É o que Godard quer nos
posições a respeito dela.
dizer sobre a imagem: uma imagem pode
Em certos casos - Godard incluído, estabelecer associações horizontais, pode Referências
certamente - a montagem é pensada num dizer algo na sucessão, mas tem também BADIOU, Alain. Sobre Histoire(s) du Cinéma
sentido mais amplo do que como apenas a uma profundidade, uma profundidade que de Jean-Luc Godard. In: YOEL, Geraro (Org.).
etapa de ordenação de planos que procede à não é da montagem, mas sim que supõe um Pensar el cine 2: Cuerpos, Temporalidad y
filmagem. E no caso de História(s) do Cinema, a outro tipo de complexidade (Badiou, 2005, p. Nuevas Tecnologias. Buenos Aires: Ediciones
montagem deve necessariamente ser pensada 273). Manantial, 2005, p. 263-274.
a partir do uso do vídeo como suporte para a
A história do cinema que Godard busca
materialidade da obra, ainda que aparentemente
contar não é nada explícita, se conta nas BADIOU, Alain. El Plus-de-Ver. In: YOEL,
tão fluido e que isto pareça a priori um contra-
referências, no subtexto, nas entrelinhas, Geraro (Org.). Pensar el cine 2: Cuerpos,
senso. O poético na série se originaria, entre
nas associações, numa espécie de fluxo de Temporalidad y Nuevas Tecnologias. Buenos
outros fatores, “dos saltos, lacunas, hiatos,
consciência que foi transposto à montagem Aires: Ediciones Manantial, 2005, p. 275-281.
borramentos, elipses, pela velocidade dos
do filme e para o qual não importam possíveis
encadeamentos descontínuos ou violentamente
relações causais entre as imagens e muito BAZIN, André. Por um cinema impuro – Defesa
contraídos” (Yshagpour, 2005, p. 299) – ou seja,
menos uma ordem temporal que se estabeleça da adaptação. In: O Cinema: ensaios. São
da apropriação de uma estética que é típida do
entre elas, mas sim o fluxo da composição total. Paulo: Ed. Braziliense, 1991
vídeo.
Esta sensação de fluxo confere a
Yshaghpour recusa uma definição
História(s) do Cinema um caráter de obra ao
bastante comum de que História(s) do Cinema DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard.
mesmo tempo aberta e sólida, fragmentada e
seria um “filme de montagem”, pois Godard São Paulo: Cosac Naify, 2004.
una, o que certamente se deve ao uso do vídeo
operaria não apenas na produção de conjunções,
como meio expressivo para a sua composição
mas, principalmente, de “disjunções, brechas,
e à forma como Godard manipula o vídeo com ISHAGHPOUR, Youssef. J.-L.G., Cineasta de
intervalos, contradição e desequilíbrio ali onde,
rigor, apesar da liberdade expressiva que fica la Vida Moderna – Lo poético en lo histórico.
aparentemente, há uma simples unidade.”
explícita. In: YOEL, Geraro (Org.). Pensar el cine 2:
(Yshagpour, 2005, p. 299). A montagem seria,
História(s) do Cinema seria, a seu modo, Cuerpos, Temporalidad y Nuevas Tecnologias.
então, separação, e não junção. Em História(s) do
um exemplar da discussão atualizada sobre Buenos Aires: Ediciones Manantial, 2005, p. 283-
Cinema, toda imagem, antes de qualquer coisa,
o “cinema impuro” segundo Bazin. Ciente 302.
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MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós- para além do qual a musa da sétima arte, mesmo tempo em que o vídeo se torna o suporte
cinemas. São Paulo: Papirus, 2002. descobrindo a sua nudez, teria começado a se através do qual Godard passará a incorporar
cobrir com trapos furados. O cinema não escapou simultaneamente texto, pintura, música, história,
à lei comum: ele sofreu a seu modo, que era o filosofia e o próprio cinema, como nos diz Dubois,
único possível dentro de sua conjectura técnica já em seus filmes realizados durante a década
Notas e sociológica”. (ibidem, p. 87) de 1960 os enunciados escritos aparecem e
1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação são relevantes, narrativa e plasticamente. A
em Comunicação e Informação da UFRGS. título de exemplo é possível citar os cartões
Email: gabriela.mralmeida@gmail.com. 5 Num outro momento, Bazin diz que o cinema
estaria pelo menos 50 anos “atrasado” em postais de Tempo de Guerra (1963); os
relação ao romance. manuscritos do personagem protagonista,
2 O trabalho será apresentado no Seminário Pierrot, em O Demônio das Onze Horas (1965),
Imagem da Cultura/Culturas da Imagem, que e os escritos no quadro negro e nas paredes
acontecerá em agosto de 2011 em São Paulo. 6 Para Bazin, os obstáculos a serem superados em A chinesa (1967). Neste mesmo livro que
no caso da adaptação residiriam mais na serviu como uma das referências para este
vulgarização deste expediente do que no âmbito trabalho, Cinema, Vídeo, Godard (2004), Dubois
3 Como exemplo de boa adaptação, Bazin estético. apresenta um levantamento abrangente do uso
cita o filme Diário de um padre (Le journal d’un
das palavras no enunciado fílmico na obra de
curé de campagne, França, 1951), de Robert
7 Neste sentido, Dubois diz que “O universo Godard no capítulo “Jean-Luc Godard e a parte
Bresson, adaptação do romance de Georges
de Godard constitui menos uma sucessão de maldita da escrita”.
Barnanos. Bresson procurou uma identidade
com a obra original e buscou seguir o livro períodos espalhados por rupturas radicais do que
página por página – tendo em mente, segundo um bloco singularmente sólido e profundamente 10 Que vão operar com maior ou menor sucesso
Bazin, que a obra original era dotada de uma coerente, espécie de matéria geral flutuante, a depender de inúmeras variáveis, como o
transcendência que ele já reconhecia e, de cujos estados não passam de ângulos de visão repertório, a enciclopédia e as disposições
certo modo, jamais alcançaria. Nos domínios da diferentes e sempre articulados em torno das anímicas da instância de fruição, mas que de
linguagem e do estilo, a criação cinematográfica mesmas lancinantes questões.” (2004, p. 261). um modo geral a instância de produção busca
seria proporcional à fidelidade. Para Bazin, tanto Ou seja, mais do que por momentos estanques, a instituir de antemão.
a tradução literal não vale nada, quanto a livre obra de Godard é marcada por certa coerência e
demais parece também condenável. Na opinião uma espécie de fidelidade a determinados temas
e questionamentos que, em maior ou menor 11 A citação refere-se ao texto de apresentação
do autor, a adaptação boa é a que respeita do livro de Philippe Duboois, em que Arlindo
o texto e o espírito da obra original, não a que escala, se apresentam sempre recorrentes em
seus filmes. Machado diz ainda: “O pensador de agora já não
busca somente reproduzi-la. A adaptação de se senta mais à sua escrivaninha, diante de seus
Bresson de Diário de um Padre é considerada livros, para dar forma a seu pensamento, mas
exemplar pois seria um caso em que a fidelidade 8 Ou seja, é muito mais natural a incorporação do constrói suas idéias manejando instrumentos
é alcançada por um respeito sempre criador vídeo por cineastas associados às vanguardas novos – a câmera, a ilha de edição, o computador
(1991, p. 96). do que àqueles mais ligados à tradição -, invocando ainda outros suportes de
cinematográfica griffithiana. pensamento: sua coleção de fotos, filmes, vídeos,
4 A este respeito, Bazin diz: “Vemos, portanto, discos – sua midioteca, enfim. Essa espécie de
que a pretensa pureza original dos primitivos do 9 A enunciação escrita nos filmes de Godard é “cena inaugural” do pensamento audiovisual
cinema não resiste muito à atenção. O cinema bem anterior a História(s) do Cinema e mesmo contemporâneo reaparece novamente em
falado não marca o limiar de um paraíso perdido às obras anteriores realizadas em vídeo. Ao História(s) do Cinema [...]” (p. 19).

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