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Sexta-feira | 27 Setembro 2019 | publico.

pt/culturaipsilon
ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 10.749 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

“Fechem os olhos.
Pensem no
pós-capitalismo.
O que vêem?”

Paul Mason, no novo livro


Um Futuro Livre e Radioso - Uma
defesa apaixonada da Humanidade

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Acção Paralela Crónica
António Guerreiro Rui Catalão
Notícias da guerra civil Antes morta do
A N
falência da agência de viagens Thomas Cook imediato deixar umas centenas de milhares de o dia de casamento do meu amigo, à
é um acontecimento da ordem dos desastres pessoas (há notícias que falam de 600 mil, mas há saída da igreja, fui surpreendido por
económicos colossais, como aquele que se outras que avançam números não tão elevados) um casal de adolescentes a discutir
deu com o colapso do Lehman Brothers, em “bloqueadas” nos sítios do mundo onde estavam a num parque de estacionamento. Ela
Setembro de 2008. E utilizo aqui a palavra passar férias. A passagem do estado de turista ao só lhe gritava: “Porque é que me
“colossal”, acenando ao uso que dela faz estado de vítima de uma espécie de guerra civil bates? Eu gosto tanto de ti e tu só me
Kant na sua analítica do sublime, para sugerir que no planetária foi automática. Os turistas ficaram bates.” Ele tentava escapar-se dela, pedia
plano da economia aquilo que atinge uma grandeza imediatamente sujeitos à condição de reféns e para ela o deixar ir; ela puxava-o pela
suprema é visto como o resultado da racionalidade e refugiados, obrigando a operações de repatriamento camisola, punha-se à frente dele; ele a tentar
do cálculo pragmático, mas quando desaba – o que que puseram em acção uma logística marcial. Os libertar-se e ela a insistir. Na minha cabeça,
acontece geralmente sem aviso prévio, para não criar lugares onde os turistas ficaram sitiados não eu perguntava-lhe: se ele te bate, porque é
pânico e para que se dê uma anestesia pelo choque – sofreram nenhumas transformações, não foram que vais atrás dele? O facto de ter acabado de
oferece-se a um espectáculo que tem uma dimensão atingidos por nenhuma catástrofe, mas passaram de sair de um casamento impediu certamente
sublime, se pensarmos que o conceito de sublime, nas um momento para o outro a ser lugares infernais: de de me esquecer do episódio.
suas elaborações modernas, do século XVIII, está tão fácil na ida, tão caros na volta. O que nos obriga a “Ah! morrer de amor, é bem melhor do
ligado a uma ideia de “terror”. pensar: o que pagamos por uma viagem a qualquer que viver a vida sem te ter.” 38 anos depois
Thomas Cook, que nasceu e viveu em Inglaterra parte do mundo não tem que ver com nada que seja de José Cid glorificar, em pleno festival da
entre 1808 e 1892, começou por ser jardineiro e da ordem de uma realidade, por exemplo o tempo de canção, Morrer de amor por ti, a canção
carpinteiro. Mas sonhou bem alto e tornou-se trabalho de terceiros e os gastos materiais agora é outra. Valete fez um rap sobre um
naquilo a que hoje se chamaria um “empreendedor” necessários, mas com valores especulativos e de marido traído que, em vez de morrer,
e criador de uma startup que transformava em ordem simbólica. E, mais uma vez, ganha evidência preferiu matar (em rigor não matou, sonhou
negócio os sonhos de progresso e socialização do esta verificação: o poder, hoje, é logístico. Basta que, que matava, mas esse pormenor agora já
conhecimento e do lazer. Em Julho de 1841, nesse domínio, algo falhe ou seja voluntariamente chega tarde). O tema, BFF, dá maior ênfase
organizou uma viagem colectiva, para os membros bloqueado para que se instaure o caos, senão mesmo ao amigo traidor do que à mulher adúltera,
de uma instituição, entre Loughborough e Leicester. a situação de guerra. mas foi a linguagem que desagradou à nova
Foi uma experiência inaugural (a palavra “turismo” E, de repente, tudo o que era sólido dissolve-se vaga puritana, que não perde uma chance de
surgiu mais ou menos pela mesma altura) que deu no ar. E muito rápida é a passagem de turista a pária promover a fenómeno tudo o que pretende
origem à agência de viagens que, nas suas várias que só pode contar com os deveres do país de origem ver escondido. Ficou particularmente
metamorfoses, teve uma vida longa de 178 anos. de proteger os seus cidadãos, onde quer que eles arreliada com os versos “Puta, cona largada,
Nasceu com a condição de pioneira absoluta, cresceu estejam em perigo, se não puder pagar por uma noite pura insana encharcada de moralismo
como um emblema universal e morreu quando as no hotel o que lhe custou a totalidade da viagem, e sempre armada em puritana.”
circunstâncias da indústria turística, aparentemente, pelo regresso a casa a soma que daria para fazer O tema da traição é recorrente em Valete.
pareciam assegurar-lhe uma posteridade sem fim à férias no ano seguinte. A economia dos bens O vídeo de Colete amarelo, que lançou no
vista. Quando já estava bem implantada, no final do simbólicos (como é, no seu modo de existência início do Verão, com mais de dois milhões de
século XIX, a agência baptizada com o nome do seu actual, a economia do turismo) funciona desta visionamentos no youtube, já contava um
fundador teve que lidar com uma singular maneira: para que umas coisas sejam muito baratas, episódio semelhante: “Fico fodido quando
contestação que importa hoje ser lembrada para dar é preciso que outra sejam muito caras; e para que penso no mano Rodrigo que apanhou a
uma perspectiva histórica a fenómenos actuais da seja muito fácil ir é preciso que, em certas dama dele na cama com o melhor amigo,
mesma natureza, mas com novas motivações: a circunstâncias, seja muito difícil voltar. O que dantes cortou o gajo bem feito, três cortes no peito,
viagem turística que Thomas Cook promoveu, para fazíamos com toda a tranquilidade, quando cobiçar a dama dum tropa é o máximo
uma burguesia endinheirada, foi objecto de um viajávamos, começa a exigir gestos temerários. Um desrespeito.”
enorme desprezo aristocrático, era vista como o aeroporto é hoje o lugar de todos os perigos: ele É bem provável que BFF (sigla de “best
triunfo da vulgaridade. fornece a imagem abreviada e condensada de uma friends forever”) não tivesse despertado tanta
O colapso que se deu agora teve como efeito guerra civil planetária em curso. acrimónia se, na mesma semana em que
despertou a polémica, não tivesse sido
noticiada a morte de Gabriela Monteiro, uma
Livro de recitações funcionária do Theatro Circo, de Braga, que
foi assassinada pelo ex-marido. Cabe aos
“Estranho povo este, que não olha para as eleições como se de um circo se tratasse” tribunais julgar os crimes, mas em tempos
Luís Aguiar-Conraria, in PÚBLICO, 24/09/2019 de moderação, de paz entre nações, o escape
para a guerra refugiou-se na vida privada.
Com esta frase irónica, o professor de economia da irresponsabilidade. Uma pesquisa mais funda e Ora as canções, ao contrário do que diz a
Universidade do Minho e colunista deste jornal alargada talvez mostrasse que este equívoco está canção, não sopram do vento, sopram antes
terminava um artigo onde mostrava que há sinais generalizado e as elites responsáveis por um da vida das pessoas.
claros de que o modo como a campanha eleitoral e “editorialismo” que tudo faz para satisfazer o cliente Amantes que se vingam, por terem sido
os debates entre os partido são tratados pelos afinal satisfaz menos clientes do que supõe e aliena abandonados ou traídos, é um tema comum
jornalistas, em que o pressuposto é que o povo fútil grande parte da clientela que, à partida, estaria na música popular porque é um tema
e ignaro quer é espectáculo de diversão, não segura. Quando as “elites” já nem sequer estão ao comum na vida das pessoas. John Lee
corresponde à verdade e é afinal esse jornalismo que nível das massas porque estão baixo, então algo Hooker até tem uma canção, I’m gonna kill
oferece o espectáculo pindérico da sua ignorância e está errado nisto tudo e precisa de ser repensado. that woman, mais tarde recuperada por Nick
Cave, sobre um homem que quer matar a
mulher só por ela passar as noites fora de
FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS casa. E Lead Belly, o homem que maior
DESIGNER ANA CARVALHO E SOFIA ESPADINHA MARTINS FOTO DA CAPA JENNY MATTHEWS/IN PICTURES VIA GETTY IMAGES E-MAIL IPSILON@PUBLICO.PT influência teve na cultura pop-rock tal como
ainda a reconhecemos, foi preso em 1918,
depois de ter morto um familiar seu, durante

4 12 18 27
Paul Mason Bong Joon-ho Tiago Miles e uma disputa por uma mulher.
e os impulsos Filma a luta Hespanha Coltrane O imenso repertório de Lead Belly, que
totalitários que de classes olha para Gravações incluía dezenas de canções sobre crimes
nos rodeiam na Coreia as estrelas inéditas passionais, inspirou, entre a gente que
importa na música popular, Elvis Presley,
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O que me passa pela cabeça
Recém-chegado a Nova Iorque para viver uma
marriage story, mergulho num filme em que o casal
abandona o sítio de onde vem (Hong Kong) para viver,
longe de todos (em Buenos Aires), a recta final de
uma história de amor que tenta sobreviver à violência
do seu fim. Em Happy Together (1997), de Wong
Kar-wai, Leslie Cheung fica preso à cama, vítima do

do que com outro abismo para onde se atirou, enquanto espera que
Tony Leung trate dele como trataria da pessoa que
antes era: alguém que inspirou um amor
incondicional e que apagou qualquer hipótese de
vida com outro corpo. O tempo e a dor levam a que
Leung mergulhe, contudo, naquilo que temia: a
Bob Dylan, Rolling Stones, Tom Waits, Elvis junto dos jovens deve-se em muito ao uso de inevitável fuga, de um apartamento numa cidade que
Costello, Nick Cave, Kurt Cobain, Jack White vernáculo, da linguagem comum, para desconhece, daquele por quem se apaixonou e,
(todos eles artistas brancos milionários, ao ilustrar histórias comuns. Mas a violência também, o vazio por perder um amor que deixou
contrário de Lead Belly, que gravou boa verbal é também um substituto da violência transformar-se numa ameaça à sua sobrevivência.
parte das suas canções na prisão). física.
As canções sobre homens que matam ou O rap tem em comum com o fado o uso da Na Nova Iorque de 2019, fala-se de sobrevivência em
agridem as mulheres são tantas que desgarrada como forma de agressão para todo o lado, embora não transpareça numa cidade
inventariar as mais populares já seria um evitar a porrada. Tal como cantava Blarmino, que sobe, rumo ao céu, na construção dos novos
exercício fastidioso. Optemos por um caso outro letrista português menos notório: edifícios que rodeiam aqueles que são fotografados.
bizarro: o de uma mulher que é agredida “Paus e pedras moem-me os ossos, mas as Ezra Koenig canta“2021, will you think about me? / I
pelo namorado, mas que fala do assunto com palavras voam com o tempo.” could wait a year but I couldn’t wait three” e ecoa a
carinho. A canção foi escrita por Carole King Tal como os penteados, as canções não conformada ansiedade que sentimos em relação ao
e o seu marido Gerry Goffin (uma das mais servem para melhorar o mundo. Se tivessem nosso estado: o pânico com a possibilidade de viver
prestigiadas duplas de escritores de canções esse poder, não haveria memória de um tiro (ou morrer) com a administração que o país elegeu ou
nos anos 60). He hit me (and it felt like a kiss) a ser disparado ou de uma bofetada a ser em vermos a nossa história fugir das nossas mãos
foi cantada originalmente em 1963 pelas dada desde os anos 60, que foi a década do enquanto descarregamos actualizações de telefones
Crystals e produzida por Phil Spector, que amor, do flower power e dos rapazes com e ecrãs que aprendem a conhecer-nos cada vez
em 2009 foi condenado a 19 anos de prisão franja. melhor e artificialmente. “Things have never been
pela morte de Lana Clarkson. O mesmo autor de versos como “give peace stranger / things are gonna stay strange”, canta Ezra,
A canção surgiu de uma conversa entre a chance” ou “all you need is love”, John no mesmo álbum, consciente de que somos nós a
Carole King e a sua baby sitter, Little Eva. Era Lennon, cantava o seguinte em 1965, no criar os nossos pesadelos.
habitual ela aparecer ao trabalho com tema Run for your life: “Prefiro ver-te morta,
nódoas negras, das surras que levava do miúda, do que a andar com outro.” E mais Milhares juntam-se em Washington Square Park para
namorado. Carole perguntou-lhe porque é tarde, numa canção sobre o ciúme, cantava ouvir Elizabeth Warren falar desses próximos anos.
que suportava esse tratamento e a resposta ainda: “Não te quis magoar, desculpa se te fiz Warren fala da nossa sobrevivência, enquanto grupo,
de Little Eva foi que ele só lhe batia por chorar.” Entre marido e mulher, “happiness depois de voluntários ditarem as hashtags indicadas
gostar tanto
anto dela. is a warm gun.” Depois disso, a despropósito, para partilhar fotografias nos no
nossos perfis virtuais. O
Carole e King sempre manteve que a sua levou um tiro. “O karma vai-te apanhar”, que nos une num tempo que nos no recusamos a
baby-sitter
terr lhe disse literalmente “foi como cantou ele também. aceitar? Leung sobreviveria de a auscultadores postos,
um beijo”,
o”, depois de admitir que o numa carruagem rápida de metr metropolitano rumo a
namorado do lhe batera. Mas a expressão “it felt outra estação, ouvindo os Turtles
Turtle cantar “Imagine
like a kiss”
ss” teve origem numa peça do how the world could be, so very ffine / So happy
dramaturgo
urgo húngaro Ferenc Molnár: Liliom together”, sorrindo com a paz quequ sentia por se
tornou-se se tão célebre que foi três vezes aceitar a si mesmo e um passado auto-destrutivo. A
adaptada da ao cinema, e sempre por equipa de Warren pede para falafalarmos com a pessoa
realizadores
ores de gabarito, Michael Curtiz, ao lado para lhe perguntarmos a sua história. “I came
Frank Borzage
orzage e Fritz Lang. here for equal rights”, diz-me um rapaz que veio, há
Lilliom
m é um empregado de feira popular alguns anos, da Venezuela. “Ho“How about you?” “I
que leva a uma vida de miséria com a sua came here for love.” O seu sorriso
sorri é interrompido
namorada da e Julie torna-se o alvo das suas pelo microfone de Warren como um corte que
frustrações
ões e agressividade. Liliom fica doido encerra um filme e nos diz que n nos cabe viver com o
de felicidade
dade quando descobre que Julie está que fizemos e recebemos dele.
grávida e decide participar num assalto para
garantir a subsistência da sua família. O Subo as ruas debaixo do céu nocnocturno e cinzento que
assalto corre mal e Liliom suicida-se com um as luzes nova-iorquinas não deixam
deix dormir. Dentro da
punhal, para evitar ser apanhado pela perguntam-me: como está a ser
minha story, perguntam-m
polícia. O seu anjo da guarda (interpretado Nova Iorque? “I can’t see me loving nobody
pelo poeta
eta surrealista Antonin Artaud, na but you / For all my life…”
versão de Fritz Lang) intercede por ele no
tribunal que decorre no Purgatório e Liliom Por Francisco Valente
Po
é devolvido
vido à Terra para uma segunda
oportunidade.
nidade.
De regresso
gresso ao mundo dos vivos, Liliom
traz do céu uma estrela para oferecer à filha,
uma típicaica criança de rua que o recebe com
desconfiança.
fiança. Desesperado com a sua recusa
em aceitartar o presente, Liliom esbofeteia a
filha. A rapariga regressa a casa e conta à
mãe que e a bofetada daquele desconhecido
não lhe doeu. A mãe diz-lhe que a entende, o
mesmo se passou com ela, também ela foi
agredida a (pelo marido) sem lhe doer.
“Este é o nosso mundo nu e cru, se o Adão
soubesse e no que isto iria dar, só teria fodido a
Eva no cu”, são os versos de Valete num dos
seus temas
mas mais antigos. “As chicas querem
sempre algo em troca para poder abrir as
pernas, mas a única cena que os manos têm
para oferecer
erecer é esperma”, diz ainda Valete
em Subúrbios,
úrbios, tema de 2007. Será misógino?
É. Será vulgar? Também. A eficácia do rap
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Paul Mason
“Não podemos
deixar que o futuro
nos seja negado”
M
É uma reÅexões tão impiedosa quanto arcou encontro para um
pequeno café italiano, no
bal e de ascensão do irracionalismo,
Mason medita sobre a desumanização
esperançosa o novo livro de Paul Mason: Soho, coração de Lon-
dres, e fez questão de o
que transforma os cidadãos em clien-
tes, reduzidos à sua funcionalidade
Um Futuro Livre e Radioso – Uma defesa justificar. “Estou farto de económica, ao mesmo tempo que
lugares onde somos trata- alerta tanto para o risco de a humani-
apaixonada da humanidade. É uma obra dos como máquinas por pessoas que dade ser suplantada pela inteligência
sobre o nosso tempo, quando o medo parecem máquinas. Este, ao menos,
é um sítio humanizado, onde pessoas
artificial como para o potencial que
ela pode representar.
e ressentimento são usados para manter comunicam como pessoas.” Vive-se um tempo em que grandes
Paul Mason, 59 anos, formado em companhias e governos se tornaram
hierarquias e a desumanização transforma os Música e Política, foi jornalista, editor especialistas em exercer domínio so-
cidadãos em clientes. Conversa marcada num de Economia e professor universitá-
rio, sendo hoje um dos intelectuais
bre os cidadãos. Sabem o que anda-
mos a fazer. Em que pensamos. São
café italiano, no Soho londrino. “Estou farto de públicos e comentador político mais
conhecidos em Inglaterra, e uma das
capazes de prever as nossas acções.
E influenciar o nosso comporta-
lugares onde somos tratados como máquinas vozes internacionais mais críticas do mento. E no futuro próximo, diz Paul
sistema capitalista neoliberal. Tem Mason, poderá ser bem pior. A esco-
por pessoas que parecem máquinas” um novo livro, Um Futuro Livre e Ra- lha é entre algo que reproduz as con-
dioso – Uma defesa apaixonada da dicionantes actuais, com a sujeição
humanidade (2019, Edi. Objectiva), dos cidadãos às forças do mercado,

Vítor Belanciano, que sucede ao sucesso que constituiu


a sua anterior obra, Pós-Capitalismo
– guia para o nosso futuro, de 2016.
sujeição alicerçada pelas máquinas,
ou a possibilidade de projectar um
outro horizonte mais promissor do

em Londres Paul Mason, 59 anos, é um dos


Em ambos os casos, mais do que
um formulário enunciador de futuros
possíveis, estamos perante reflexões
que o actual.
Em fundo, como contexto, um sis-
tema de mercado livre que se tem
intelectuais mais conhecidos tão impiedosas, quanto esperanço- vindo a desagregar desde a crise de
em Inglaterra, e uma das vozes sas, sobre o nosso tempo. Numa era 2008, com impacto nas desigualda-
mais críticas do sistema de estagnação económica, de grandes des, nos conflitos sociais ou na repre-
capitalista neoliberal desigualdades, de fragmentação glo- sentação democrática. De um e

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“A direita ultraliberal
está apavorada
e tem razões para tal.
O modelo económico
que abraçara já não
consegue manter
a sociedade unida
e procura
desesperadamente
garantir que as
hierarquias não
ANTONIO OLMOS

se dissipem”
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e lado, Paul identifica quem acena elites, ou as pessoas comuns que as foi óbvio que 2008 foi um momento
politicamente e economicamente sustêm, expressam é o desejo de res- de viragem para o neoliberalismo. É
com o medo, com o ressentimento, taurar uma ordem que consideram a como se tivessem percebido que a sua
forma de manter privilégios e hierar- natural. São impulsos totalitários a permanência hierárquica se estava a
quias. De outro quem, num tempo que é preciso resistir. jogar naquele momento e, perante
liminar, de transição, tente pensar O que os assusta é haver quem esse quadro, foi engendrando ainda
novos actos emancipatórios, apesar diga que aquilo em que o neoliberalismo mas na sua forma
dos obstáculos pelo caminho. acreditaram durante toda uma nacionalista: um neoliberalismo ain-
A globalização revela desequilí- vida é capaz de já não fazer da desregulado, com a lógica agressi-
brios, os sistemas financeiros ficam sentido? va de mercado presente em todas as
fora de controlo, a tecnologia pro- É claramente isso! Essa direita ultra- esferas da nossa vida quotidiana, mas
mete, mas também ameaça, o que aí liberal está apavorada e tem razões tudo isso aplicado a um nível local e
virá, o clima transforma-se, o mundo para tal. O modelo económico que não global, suportado por argumen-
torna-se num lugar cada vez mais abraçara já não consegue manter a tos nacionalistas. O acordo comercial
musculado, desordenado, instável e sociedade unida e procura desespe- de Trump com a China é um bom
desigual. Mas também prometedor, radamente garantir que as hierar- exemplo, o mesmo acontecendo com
segundo ele. quias não se dissipem. O que os irri- o Brexit na Grã-Bretanha, com a elite
“É preciso, sem renunciar ao pas- ta é haver quem diga que é necessá- neoliberal a desejar a ruptura com a
sado, não ficar preso a ele, indo mais rio transcender o neoliberalismo, Europa para impor uma lógica neoli-
além do que tentar preservar aquilo essa versão do capitalismo que domi- beral mais veloz, robusta e nacional.
que tem sido posto em causa, algo nou nas últimas décadas. É haver No livro vai mais longe,
que nos abra novas perspectivas neste pessoas que estão ao lado da comu- afirmando que esse estado de
mundo onde estamos atolados”. nidade LGBT, dos negros ou dos desordem, ou de suspensão das
direitos das mulheres. É haver quem certezas, é algo ambicionado
Diz que atravessamos um diga que para enfrentarmos as ques- por alguma dessa elite
período de grandes incertezas, tões ambientais são necessárias financeira que acaba por
depois da crise de 2008, com o mudanças a sério. Marx para eles é subjugar a política.
sistema de mercado livre a isso. O que os une é o seu desdém Basta analisarmos quem são as gran-
implodir, daí resultando um por direitos humanos universais, o des empresas que apoiam Trump.
conflito onde, de um lado, há medo da liberdade, o negacionismo Claro que há empresas que finan-
uma elite neoliberal qie não ambiental e a adoração por líderes ciam quer democratas quer Trump,
quer perder privilégios e do autoritários que estão a fragmentar e isso é normal. Mas Trump repre-
outro uma esquerda que não a ordem mundial. sentou também a tomada de poder
consegue dar respostas aos O meu ponto é que não é tarde para por uma facção da elite de negócios,
desafios. No meio, os cidadãos conter o caos, detendo a tentativa de bem instalada no mundo das empre-
confusos, reduzidos à impor novas hierarquias baseadas na sas privadas isentas do escrutínio do
funcionalidade económica. raça, género ou nacionalidade, nem mercado accionista. Detêm negócios
Lendo o seu livro fica-se com a para recusar o controle das máqui- privados e interessa-lhes a desregu-
ideia de que a elite autoritária nas, via inteligência artificial. O que lação maciça e as guerras comerciais
tem uma estratégia de há a fazer é colocar a nova tecnologia em prol de indústrias nacionais.
dominação, mas nem tudo está das máquinas inteligentes sob con- Quanto mais caos existir no mercado
perdido na defesa das trolo humano, programando-as para financeiro melhor. Não desejam
liberdades. realizar valores humanos. De contrá- capitalismo estatal, mas capitalismo
É um bom resumo. Decorre neste rio, o risco é esses valores serem sem Estado. A selva. O que parte des-
momento um conflito, que tem sido concebidos por Putin, Trump ou Xi sa elite percebeu foi que para esse
classificado como guerra cultural, Jinping. É preciso resistir às empre- novo modelo de negócio funcionar
embora o seu espectro seja muito sas e políticos que tentam engendrar precisava que as regras globais mul-
mais vasto. Temos um sistema econó- novas formas de controle tecnológi- tilaterais se fragmentassem. Depois
mico doente, que precisa de ser
repensado, ao mesmo tempo que é
necessária nova ordem multilateral
co.
Até 2008 acreditar-se-ia que a
democracia liberal e o
de 2008 mandaram a democracia às
urtigas. “Este sistema não funciona,
portanto vamos despedaçá-lo”. E o
“Se perguntar a alguém se é capa
que estabilize a globalização. Não
diria de forma tão clara que essa direi-
ta neoliberal e nacionalista está na
neoliberalismo eram quase
estados de perfeição. Depois,
afirma, entrou-se numa espiral,
que fez Trump? Estigmatizou os
meios de comunicação com notícias
falsas. Tornou a diplomacia e a polí-
máquina, ele dirá que não. Mas na
dianteira. Mas concordo que tem uma
estratégia e que, implicitamente, toda
a gente à direita parece percebê-la, o
uma crise económica que se
transformou também num
ataque à democracia.
tica doméstica imprevisíveis. E abriu
espaço para que os autoritários da
direita liberal se aliassem a empresas
nossas vidas nas mãos do merca
que é uma vantagem.
Vou dar um exemplo que aconteceu
comigo, aqui, em Londres. Deparei-
me com fascistas ligados às claques
Sim. Escrevi este livro porque perce-
bi que havia ligações entre o colapso
económico de 2008, a cada vez maior
decomposição da democracia, e algo
tecnológicas como a Cambridge
Analytica, que desejam que um largo
número de pessoas se tornem obe-
dientes. É um ataque global ao pen-
mercados. E nós, cidadãos, torná
de futebol, que me rodearam. Vira- que está para vir, ou que já está aqui, samento, à ciência, à lógica e à defi-
ram-se para mim e disseram de forma mas ainda não é bem entendido na nição de políticas com sustentação.
ameaçadora: “Investigámos-te! Sabe- totalidade, e que é a ameaça de con- E é uma forma de neoliberalismo
mos muito bem quem és! És um mar- trolo através da inteligência artificial. nacional. Sim, absolutamente. Trump declarou produto da crise da 2008, quando os
xista!” Reproduzem esses chavões Queria escrever sobre a perda de Defendeu que a eleição de guerra ao sistema global assente em bancos centrais seguraram o neolibe-
porque todos os sabem decifrar. Estão humanidade nas nossas vidas e o ris- Trump se deveu menos às regras e normas comuns. Estilhaçou ralismo, fomentando a desigualdade
na rua e nas redes sociais, apostam co de perdermos uma certa clareza condições económicas de quem a estrutura do poder global. Legiti- em todo o lado. Hoje o neoliberalismo
na criação de bolhas de informação, de ideias deitando para trás centenas o elegeu e mais a um sentimento mou a violência da extrema-direita. na sua forma mais extrema está con-
na censura e na enxurrada de notícias de anos de existência baseados na de perda hierárquico, da qual Criou uma narrativa racista, misógina trolado a favor de monopolistas e
falsas. Todos os que se opõem ao racionalidade. Para mim, Trump, resultaram manifestações de e nacionalista, criou uma corrente especuladores, sendo viciado para
mundo neoliberal, que até há alguns Bolsonaro ou [Matteo] Salvini são a zanga assentes no racismo ou populista que se eleva acima da lógica proteger a riqueza daqueles que já a
anos era garante de um mundo prós- expressão de um problema mais pro- misoginia. Ainda continua a e da verdade – e nisso a esquerda que possuem, reproduzindo a desigual-
pero e pacífico e que agora soçobra, fundo, que reside nessa quebra de pensar que com a eleição de abraçou o pós-modernismo nas déca- dade. Trump abriu todas essas portas.
são vistos como inimigos. Mas quan- confiança dos cidadãos em relação à Trump o mundo mudou e ainda das anteriores tem alguma responsa- Curiosamente todos estes líderes são,
do se gritam essas coisas é preciso ler democracia e à política, encorajada não sabemos muito bem o que bilidade, porque tudo passou a ser numa primeira fase, desacreditados.
nas entrelinhas. O que no fundo essas por núcleos dessas elites para quem fazer com isso? relativo. Mas claro que ele é também É tempo de os levarmos a sério. Eles

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MATTHEW CHATTLE / BARCROFT MEDIA / BARCROFT MEDIA VIA GETTY IMAGES
mos, tudo vai correr bem. De um dia
para o outro tudo se voltou do avesso.
Trabalha-se – quem tem trabalho – no
duro e não se sobe no elevador social.
Pior. São as pessoas que não jogam
segundo as regras que vencem. Para
as pessoas que durante 30 ou 40 anos
acreditaram no mercado e na compe-
tição, como uma religião, é difícil de
aceitar este momento. Por outro lado,
há quem abrace este momento dis-
ruptivo porque acredita que pode
retirar algo dele. É como num motim.
Ninguém quer partir o vidro da mon-
tra, mas quando acontece toda a gen-
te pilha. É essa mentalidade que vin-
ga, especialmente nas mentes mais
conversadoras. A inexistência de
esperança num futuro melhor impe-
ra. E a esquerda tem de se recolocar
e acreditar no futuro.
Mas de alguma forma, à direita
ou esquerda, as respostas têm
sido nostálgicas, como se todos
quisessem regressar a um
tempo que já foi. Bernie Sanders
senador democrata
norte-americano] ou Jeremy
Corbyn [líder do Partido
Trabalhista britânico], por
exemplo, reagem mas não têm
propriamente ideias novas.
O problema é esse. O pós-2008 é
caracterizado por termos ficado
reféns de uma batalha entre três ele-
mentos nostálgicos.
Existe a nostalgia da direita por uma
sociedade branca, sexista, patriótica
e hierarquizada. Por vezes achamos
que isso só acontece nos EUA, mas na
Europa é preciso não esquecer o colo-
nialismo que, só agora, estamos a
conseguir confrontar, e onde a assun-
ção de que as pessoas brancas são
superiores é muito forte.
Temos também a nostalgia da esquer-
da tradicional, como Corbyn ou San-
ders, por um Estado socialista.

paz de deixar as decisões da sua vida nas mãos de uma E o terceiro segmento nostálgico é o
de [Tony] Blair, a terceira via. Essa
ideia de que o neoliberalismo costu-

nas últimas décadas deixamos decisões importantes das mava funcionar, por isso, tem de fun-
cionar. O que temos a fazer é voltar a
2002 e tudo ficará bem. 9 em 10 pes-

cado. O que os governos podem ou não fazer é limitado pelos soas que trabalham na BBC acreditam
nisto. Ora, se existe algo que a Histó-
ria nos ensina é que quando as coisas

námo-nos agentes dessa lógica” entram num circuito em que nada


funciona, não se consegue regressar
à origem. A elite tecnocrática não
consegue lidar com esse facto.
É crítico do primeiro-ministro
britânico Boris Johnson.
Participou inclusive em
Um Futuro Livre e Radioso – sabem que não se consegue manter que tem sido, mais ou menos, um as regras do sistema são as direitas manifestações públicas
Uma defesa apaixonada da um sistema, uma ideologia, segurada governo social-democrata, também ultraliberais e nacionalistas. recentes, mas também tem
humanidade sucede a por pontas. está refém das restrições e das políti- É preciso fazer várias coisas de uma reprovado as hesitações de
Pós-Capitalismo – guia para o O problema é que a esquerda, cas neoliberais do euro. Não tenho só vez: manter intacta a ordem mun- Corbyn em relação ao Brexit.
nosso futuro. Em ambos os mais tradicional ou dúvidas que seria óptimo reconstruir dial e ao mesmo tempo mudar as Tem a ver com essa tal ausência
casos estamos perante progressista, também não tem Portugal com comboios sustentáveis, regras. de visão futura?
reflexões tão impiedosas, sido capaz de proporcionar habitação para os mais jovens e para E é preciso também falar com as pes- A esquerda tem muitos problemas.
quanto esperançosas, sobre o respostas convincentes. os mais esquecidos do sistema e um soas olhos-nos-olhos e dizer-lhes a As pessoas que rodeiam Corbyn são
nosso tempo Sim. O Syriza [na Grécia] tentou. O plano de saúde e educação eficaz e verdade. Há dez ou quinze anos vivía- os clássicos sobreviventes do socialis-
Podemos [em Espanha] também. A justo. Mas não é fácil consegui-lo por- mos na ilusão de tudo parecia estar mo e do trotskismo do século XX. O
coligação de esquerda em Portugal que é um governo que cumpre com bem. Havia horizonte. Pensávamos: primeiro problema da nostalgia por
também. Mas mesmo o governo por- as regras neoliberais da Europa. O se cumprirmos com as regras do mer- essa velha esquerda estalinista é que
tuguês que vai ser agora reeleito, e paradoxo é esse. Quem está a sabotar cado, trabalharmos no duro, estudar- continua a dizer: “Não vamos e

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PETER SUMMERS/GETTY IMAGES
“O meu ponto é qu
o caos, detendo a
hierarquias basea
Um Futuro
Livre e
Radioso
nacionalidade, ne
Paul Mason
(Trad. Manuel
Marques)
das máquinas, via
Objectiva

mmmmm

e deixar a classe trabalhadora para a automação. E também em relação Estado. Quer dizer, as plataformas desencadear a expansão da liberdade vêem?” E elas assustam-se, ficam
trás.” Deixaram de perceber que as às mudanças climatéricas que pode- das redes sociais estão a antecipar os humana. paralisadas. Porque é algo que não
novas classes trabalhadoras estão por mos vencer se conseguirmos refor- nossos comportamentos e a influen- Como já afirmou, o facto de estamos habituados a pensar.
todo o lado: podem ser os emprega- mar o capitalismo. O problema é que ciá-los. Não podemos programar evocar no seu livro Marx, fá-lo Eu fecho os olhos e vejo coisas bási-
dos deste bar ou os trabalhadores de nenhum político o diz de forma clara, máquinas inteligentes para reprodu- ser um alvo fácil de críticas. cas em abundância como alimenta-
tantas outras actividades contempo- ficando-se pela retórica do ambiente zir a escassez e as desigualdades da Para as novas gerações talvez ção, energia, transporte, habitação,
râneas. Mais: os clássicos operários ser uma responsabilidade de todos. sociedade moderna. Já agora, se não não, mas a queda do comunismo saúde e educação, fornecidas fora do
fabris ingleses são hoje na sua maioria E esta crítica tem de ir também para se importam, era usá-las para abolir é algo que ainda está presente mercado, mediante colaboração
polacos. A luta de classes no capita- esquerda tradicional. a escassez e a desigualdade. na memória colectiva. É possível directa mutua. Vejo riqueza a ser
lismo moderno existe em várias are- Preocupa-o que a tecnologia, a Essa exigência de maior imaginar o pós-capitalismo com extraída por gigantes tecnológicos
nas, não apenas na fábrica. A maior robótica e a inteligência transparência parece praticável. outro tipo de referências? em aliança com o Estado.
parte nem conhece os patrões. As artificial possam ser usadas Mas, no livro, defende uma ética Claro. Nunca utilizo a palavra comu- Fecho os olhos e vejo uma comunida-
coisas são mais difusas. É aquilo que como forma de dominação dos universal. Isso será possível? nismo. Na esquerda europeia, intelec- de sem pobreza, em que a proprieda-
[o filósofo italiano] Mario Tronti cha- cidadãos. O paradoxo é que a Temos que lutar por ela. Existem leis. tuais como Alan Badiou ou Slavoj de e as hierarquias não são o mais
ma de “fábrica social”: a sociedade maior parte das pessoas Mas em última instância vamos neces- Zizek tentaram reformar a palavra relevante e em que todos dispõem de
como fábrica. disponibiliza voluntariamente sitar de um sistema, não de regula- comunismo. Mas é impossível. Basta tempo livre para desenvolver o seu
Aquele carro pode estar ali estaciona- os seus dados. É por isso que diz ções, mas de direitos, que garanta que ir a alguns países para perceber que potencial humano e possuem recur-
do, depois daquela linha, porque o que a submissão aos princípios não podem colectar os meus dados ainda existem pessoas com uma sos materiais suficientes para viver.
proprietário tem dinheiro para pagar. do mercado livre constituiu sem a minha permissão. A vigilância memória viva do comunismo, que Imaginar não é difícil, embora tudo
Este está aqui porque é o único local uma preparação para a é o problema mais fácil de lidar. O classificam como fascismo. É inequí- comece por aí. Os meios, estão aí, ao
onde pode estar. É isto o capitalismo aceitação do controle das controle através dos algoritmos é mais voco. Para já não falar da China, essa nosso alcance.
financeiro. A esquerda precisa de ter máquinas? complicado. É possível estabelecer estranha mistura de autoritarismo, Quando nos lançamos de uma pran-
um programa para isso. Não pode Se perguntar a alguém se é capaz de probabilidades sobre o nosso com- contabilidade e confucionismo. O que cha de mergulho, colocada a muitos
ficar agarrada à visão de um mundo deixar as decisões da sua vida nas portamento. Nunca estivemos nesta é necessário fazer é pensar numa metros de altura, temos medo, mas
que, não tendo desaparecido ainda, mãos de uma máquina, ele dirá que situação enquanto seres humanos. transição do capitalismo, assente também somos percorridos por uma
está em acelerada transformação. não. Mas nas últimas décadas deixa- Ninguém irá escapar à inteligência numa outra economia, mais colabo- óptima aragem de liberdade. O capi-
O segundo aspecto nostálgico é que- mos decisões importantes das nossas artificial no século XXI. E o que é rativa e partilhada, onde seja possível talismo não funciona. As pessoas
rer democratizar a sociedade, presu- vidas nas mãos do mercado. O que mais: vamos gostar. Como o mercado. viver numa sociedade sem trabalho vêem isso. Não providencia um futu-
mindo que o consegue com uma os governos podem ou não fazer é Mas, reafirmo, a inteligência artificial automatizado e mais igualitária. Estou ro melhor aos nossos filhos. O que há
grande intervenção estatal. Não duvi- limitado pelos mercados. E nós, cida- tem de ser programada com um sis- longe de concordar com Marx em a fazer é dar pequenos passos no sen-
do que vamos precisar de grandes dãos, tornámo-nos agentes dessa tema ético capaz de reflectir uma muitos aspectos. Falhou ao presumir tido da transformação. A maior parte
intervenções do Estado, acima de lógica. O que me preocupa é o cres- visão humana da natureza, senão que não existem limites naturais para dos governos de esquerda, como o
tudo por causa das alterações climá- cimento do pós-humanismo em vamos ter problemas. o desenvolvimento humano. Há mui- português, opera com uma mistura
ticas – não acredito que consigamos todas as esferas da nossa vida. O con- O problema não é a inteligência to por onde criticar. Mas identifico-me de medidas pragmáticas resgatadas
descarbonizar a sociedade sem mexer trole de comportamentos através de artificial, mas o que se fará com com o seu humanismo radical quan- do Estado capitalista do século XX. É
de forma centralizada e séria no sis- algoritmos, ou de inteligência artifi- ela. Mas revela esperança que do diz que nascemos para colaborar preciso ir mais longe. Quanto tiver-
tema energético – mas existem áreas cial, que ainda está no início, levanta em vez de nos aprisionar, nos e que temos a habilidade de agir mos um governo de esquerda hones-
em que é desejável a coabitação entre problemas de privacidade, vigilância liberte. Por exemplo, do colectivamente de acordo com um to na Europa que consiga implantar
sector público e privado. Não deve- e liberdade. Por exemplo: ando a trabalho excessivo. plano consciente, no sentido de uma um projecto holístico, ou uma demo-
mos ser fetichistas em relação ao escrever no meu iPhone ideias para Os seres humanos são mais poderosos mudança ser possível. cracia social radical, e dar esses pas-
papel do Estado. Mas as pessoas à um filme, que depois passarei para do que qualquer força autónoma que Até alguns dos homens mais sos, a propagação, o efeito dominó,
volta de Corbyn fazem-no. Não enten- o meu notebook e irão parar à tivéssemos criado. Uma geração intei- ricos do mundo, de Bill Gates a dar-se-á. Algumas pessoas pensaram
dem a escala da crise. Ainda estão na “nuvem” sem que eu tenha garantia ra internalizou a liturgia do mercado Ray Dalio, afirmam que é que isso poderia ter acontecido com
luta de classes clássica. sobre os níveis de intrusão. Quero ter como líder dos destinos humanos e necessário reformar o o Syriza na Grécia, mas não era aque-
Desde que escreveu o seu a liberdade de escrever o que me esse culto abre espaço para a submis- capitalismo. Ainda assim, le o partido, nem o tempo nem o
anterior livro, as questões apetecer, sabendo que não vou ser são das máquinas. No momento em imaginar um cenário lugar. E depois a UE largou-lhes uma
ambientais tornaram-se lido por Google, Apple ou Facebook, que perdermos o controle das máqui- pós-capitalismo continua a ser bomba nuclear. Mas claro que foram
centrais. Estamos perante mais e não tenho essa garantia. Esta lógica nas, nunca mais o teremos de volta. impensável para a larga inábeis em termos tácticos. Não sou-
uma prova de que é essencial está infiltrada em todas as zonas da Seremos escravos das máquinas inte- maioria. beram mobilizar as pessoas. Por outro
superar o capitalismo se nossa vida. Existe toda uma indústria ligentes e estamos rodeados de gente Não me surpreende. Para muita gen- lado, a lição do Syriza foi: não vale a
queremos um planeta comportamental a partir dos dados que o deseja. Mas tal como a geração te significa pôr de lado algo em que pena lutar ao lado de estalinistas. Eles
sustentável? que oferecemos. Isso é poder. E exis- antifascista fez gestos inspiradores de acreditaram toda a vida. Às vezes, tiveram a sua revolução. Agora preci-
Há várias batalhas a ser enfrentadas. te apenas um órgão que pode ter resistência, espero que agora também digo às pessoas: “fechem os olhos, samos de uma nova esquerda, resi-
A luta contra a desigualdade. Contra algum controle sobre ele e que é o suceda o mesmo. A tecnologia pode pensem no pós-capitalismo, o que liente, assente num humanismo radi-

8 | ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019


que não é tarde para conter
o a tentativa de impor novas
eadas na raça, género ou
nem para recusar o controle
via inteligência artificial”

cal, capaz de requalificar a política. missora. O problema não são as tec-


Acredito que isso vai acontecer. nologias digitais, mas o que fazer
De onde lhe vem o optimismo e delas, fazendo que através delas
a confiança de que maximizemos o tempo livre, o pen-
conseguiremos mudar os samento, o lazer. E parece-me que
acontecimentos? É que o seu através delas vamos encontrar um
diagnóstico geral é sombrio. modelo económico mais cooperativo,
O meu optimismo reside na realida- superando esta mistura tóxica de
de. Acredito na capacidade de esco- ideologia neoliberal e dominação
lher, de superar o clima de irraciona- algorítmica. Não podemos deixar que
lismo e de fatalismo que alimenta o o futuro nos seja negado.
Brexit, Trump, Putin ou Bolsonaro e
de tomarmos as rédeas do futuro, O Ípsilon viajou a convite
projectando uma existência mais pro- da Objectiva

ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019 | 9


O José Luís

RUI GAUDÊNCIO
título, Autobiografia, e a
designação “romance” ins-
crita, logo abaixo, na capa
do mais recente livro de
José Luís Peixoto (n. 1974),
parece querer alertar o lei-

Peixoto
tor para o jogo de ilusões que aí vem.
E a leitura das primeiras páginas
confirma essa ideia: há um escritor
José [Saramago] e um aprendiz de
escritor também chamado José [Luís
Peixoto, pode o leitor presumir]. Ao

e o peso
fim de algumas páginas, percebe-se
que é um livro que desafia a atenção
de quem o lê: o jogo com os nomes,
a mudança abrupta de cenas, as
fronteiras ténues entre narradores e
personagens, e adivinha-se que tam-

do nome
bém haja essa diluição de limites
entre espaços e tempos. A estrutura
pouco comum, quando comparada
com as dos livros anteriores do au-
tor, torna de imediato Autobiografia
um livro singular na obra de José

Saramago
Luís Peixoto.
“Esse começo foi consciente no
sentido de mostrar que o livro vai ser
assim até ao fim”, confirma Peixoto
em conversa com o Ípsilon. “É uma
espécie de manifesto desta minha
proposta narrativa. Este é um ro-
mance que exige tempo de envolvi-
mento”. Com o prosseguir da narra-
tiva, Autobiografia vai-se alargando
em várias dimensões — até porque Autobiografia é um
um dos assuntos do livro é a escrita
de uma biografia de Saramago pelo
romance que desaÄa o
jovem aprendiz de escritor, José. Bio-
grafia que, à semelhança da “pro-
leitor ao diluir fronteiras
posta” autobiografia de Peixoto, se entre o real e o Äccional,
vai tornando também ela ficcional.
José Saramago surge neste ro- entre espaços e tempos,
mance como uma figura de ficção
alicerçada no real. Como persona-
entre duas personagens de
gem origina o jogo (ou os jogos) a que nome José, um jovem
o autor se propõe, assim divergindo
do caminho de reconstituição bio- escritor e José Saramago.
gráfica (que talvez fosse o mais natu-
ral e esperado pelos leitores). José
Este é provavelmente o
Luís Peixoto, que afirma que “foi um
grande esforço escrever este livro,
melhor romance de José
uma grande luta”, conta um pouco Luís Peixoto.
sobre as opções que teve de fazer ao
longo do tempo em que o escreveu
(pouco mais de um ano): “Ao longo
do processo de escrita, o livro teve
dois ou três momentos em que tive
José Riço
de reavaliar tudo, de reorganizar
toda a narrativa. Um dos princípios Direitinho
Na preparação deste livro, José
Luís Peixoto leu tudo o que lhe
faltava ler na obra de José
Saramago. E foi Pilar del Río,
que também é personagem, a
primeira leitora deste romance

10 | ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019


que me pareceu que poderia defen- tiva, e em que pais e filhos se cha- tindo dessa ideia tudo se foi cons- foram escrevendo sobre o livro, fo-
der o romance ao nível desta questão mam ‘Francisco’. O autor reconhece truindo aos poucos. O título só apa- ram-se referindo a ele como ro-
da presença da personagem Sara- esse seu recurso estilístico: “Fun- receu a meio da escrita do livro.” mance. Hoje também já o considero
mago era integrá-la num jogo. E fazer ciona aqui como um jogo, e com- um romance”.
com que o livro se movimentasse preendo que por vezes possa não ser A linguagem Mas não é apenas a forma esco-
nesse campo da construção literária muito claro e que possa mesmo gerar Para além de Autobiografia ter um lhida para a narrativa que influencia
e não tanto no da reconstituição his- alguma confusão, mas essa é uma das tipo de arquitectura narrativa pouco muito os livros de Peixoto. Também
tórica da sua vida. Contudo, a dimen- propostas que quis que estivesse pre- comum nos romances anteriores de a proximidade ao assunto, a natureza
são histórica também é importante, sente. Até ao final da narrativa há Peixoto, também a linguagem revela das personagens, a distância entre
e por isso, para lá das questões do momentos em que as coisas mudam um trabalho diferente, quase diria realidade e ficção, entre o concreto
enredo, da forma como a narrativa Autobiografia bastante, em que há anacronismos, mais cuidado e apurado. Na prepa- e o imaginado. “Há coisas que fazem
flui, dos anacronismos, houve depois José Luís uma espécie de rasteiras para um ração deste livro, o autor leu tudo o muita diferença. Por exemplo no li-
uma outra construção, a do autobio- Quetzal leitor que esteja mais habituado a que lhe faltava ler na obra de José vro Galveias: eu já tinha escrito sobre
gráfico e do ficcional. O possível co- leituras cronológicas.” Saramago. Não admira, portanto, esse espaço, mas sem o nomear,
nhecimento que os leitores têm da mmmmm Uma história curiosa ainda sobre que algum do ritmo desses romances usando um nome ficcional. Não se
vida do José Saramago, e da minha, nomes: num anterior livro de José por vezes faça assomo em Autobio- consegue escrever certas coisas se
em maior ou menor grau, também Luís Peixoto, Abraço, há um texto in- grafia, como se houvesse ali um ajus- não se tiver lá aquele nome concreto.
contribui para a leitura do livro. O titulado “Pacheco”. Esse texto fala tamento a fazer, mas é sobretudo na O facto de o nomear [ao lugar de Gal-
simples facto de saberem que eu me das muitas vezes em que lhe trocaram atenção ao pormenor, como se o veias, onde nasceu] provoca que eu
chamo José como uma das persona- o nome, e há nele uma fotografia de olhar se fosse aproximando do ob- escreva de maneira diferente sobre
gens, e que o título é Autobiografia, uma página autografada com uma jecto ou da acção, que se nota a dife- ele. Acho que se passou o mesmo
já direcciona para uma forma de lei- dedicatória com a data de 1997: ‘Para rença. “Não páro de ler enquanto com Autobiografia, o peso do nome
tura. Mas depois há outras. Se o leitor José Luís Pacheco, com a simpatia do escrevo. Abraço até as influências Saramago como personagem fez-me
souber, por exemplo, que eu ganhei José Saramago’. Peixoto conta, com que então me chegam. Escolho as também escrever de outra maneira,
o “Prémio Saramago” próximo da um sorriso: “Essa foi a primeira vez leituras em função do que estou a foi quase uma obrigação”.
idade daquele jovem escritor, e que em que estive na presença do Sara- escrever. Pode vir daí uma certa mu- Para José Luís Peixoto havia uma
o ganhei com o meu primeiro ro- mago, em que lhe pedi para me auto- sicalidade que se procura. Agiliza as espécie de “sombra”, um fantasma,
mance.” E Peixoto prossegue di- grafar o Memorial do Convento”. coisas”, diz José Luís Peixoto. “Com a pairar sobre a ideia de escrever um
zendo que todos os seus livros, de Fazer de José Saramago uma per- este livro decidi desde muito cedo romance em que José Saramago en-
uma maneira ou de outra, nem sem- sonagem nuclear de um romance, não fazer um pastiche da escrita do trasse como personagem. O seu nome
pre evidente, falam um pouco de si, pode não ser uma tarefa fácil se a Saramago. Ainda assim, há certas era Pilar del Río. “A Pilar soube do
que vai deixando dados autobiográ- forma escolhida for a da ficção: dia- escolhas, certos princípios, certos livro antes de eu ter escrito a primeira
ficos por necessidade: “Este livro logar com a sua figura, com tudo o valores da escrita, que dificilmente palavra. Esse foi um lado muito sen-
tem muito de mim porque essa era a que ela carrega como representação não são absorvidos.” sível. Isso era para mim muito impor-
minha proposta. Mas que pode não social e literária, com as expectativas Mas há ainda mais a considerar: tante. Aliás, a própria Pilar é referida
ser tão evidente como as pessoas dos leitores, com a complexidade de uma espécie de hierarquia que Pei- no romance como personagem. E há
pensam. Por vezes o que as pessoas leituras da sua obra. José Luís Pei- xoto estabelece para os seus livros, um aspecto curioso, pois no dia em
julgam ser mais autobiográfico não xoto confessa que tudo isto tornou o e que dessa forma definem o nível de que conheci o Saramago conheci
o é assim tanto. Outras coisas, even- livro bastante trabalhoso. E conta exigência da escrita. “Não é uma hie- também a Pilar. Eu tinha de saber
tualmente mais excêntricas, podem como chegou à ideia do romance: rarquia de importância, mas os ro- gerir isso. Normalmente quando se
por vezes ser decalcadas da minha “Tudo começou a partir de um conto mances são os pilares do caminho escrevem romances temos fantas-
realidade. Isto tem a ver com a forma que publiquei numa revista. Era um que eu tenho feito. Se eu tiver que mas, imagens na neblina, imagens
como eu depois valorizo o meu tra- conto que tomava a história de D. pensar nalguma coisa da minha vida, dos leitores que o vão avaliar. Neste
balho. Preciso de deixar essas coisas Pedro e de Inês de Castro como eixo. eu localizo-a sempre em relação aos caso eu tinha o rosto da Pilar. Para
escritas, essas informações, para A partir de certa altura, pensei escre- romances que publiquei, a pessoa mim foi um alívio enorme quando ela
depois sentir que ele me diz res- ver outros contos que tivessem como que eu era quando os escrevi. Os ro- leu o livro e se mostrou satisfeita. Ela
peito.” centro algumas personagens impor- mances têm para mim esse signifi- sabia que o livro é um artefacto lite-
tantes da História de Portugal. Co- cado pessoal de exigência de evolu- rário e que aquele Saramago é uma
Pacheco mecei a listá-las. E já na contempo- ção, e de uma tentativa de balanço. personagem, que apenas sugere uma
A questão do aproveitamento (neste raneidade a personagem que me O que nem sempre acontece nos ou- possibilidade de Saramago”. Mas Pei-
caso de uma coincidência) dos no- pareceu mais adequada foi o Sara- tros livros, que cumprem outras fun- xoto não sente que em algum mo-
mes das personagens feito por Pei- mago. Seria uma personagem dife- ções, e têm outras exigências que mento, o facto de vir a ter Pilar como
xoto ao longo do livro, não é um facto rente porque eu o tinha conhecido. nem sempre são tão exigentes como leitora do livro, o tenha constrangido
novo. Já no seu primeiro romance, A ideia foi crescendo, e acabei por as dos romances”. E acrescenta: “Há ou condicionado. Ela nunca lhe disse
Nenhum Olhar, há uma história em abandonar esse livro de contos. Ti- um caso engraçado com o livro No o que esperava do romance. “Só
duas gerações, com um pai e um filho nha nascido a ideia de escrever um Teu Ventre. Eu fiz finca-pé na editora quando o terminei ela soube alguma
de nome José; e, mais tarde, em Ce- romance que integrasse o José Sara- para que aquilo fosse considerado coisa sobre o livro. Imprimi-o e entre-
mitério de Pianos, há várias gerações mago como personagem central, não novela, e é isso que aparece na capa. guei-lho ainda antes de o enviar a
que se misturam no tempo da narra- quer dizer que seja a principal. Par- Mas depois, à medida que as pessoas quem quer que fosse”.

“Normalmente
quando se escrevem
romances temos
fantasmas, imagens
na neblina, imagens
dos leitores que
o vão avaliar. Neste
caso eu tinha
o rosto da Pilar”
ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019 | 11
“Queria
mostrar
de maneira
clara, mas
emocionante,
o abismo
que existe
entre quem
tem dinheiro
e quem
não tem
dinheiro”
Parasitas é uma enorme colecção
de bonecas russas à volta da
desigualdade entre ricos e pobres,
em tom de comédia-thriller-negra.
Nada que nos surpreenda vinda
de Bong Joon-ho, o homem
de A Criatura, Mother e Snowpiercer.
Ou talvez sim.

Jorge Mourinha,
em Locarno
12 | ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019
Q

CARLO ALLEGRI/GETTY IMAGES


uase parece que Bong
Joon-ho não estava à espera
disto. O sul-coreano que en-
tra por um salão espaçoso de
um hotel de Locarno num
dia sufocante de Agosto,
com uma pequena ventoinha portá-
til a pilhas a refrescá-lo, tem mais ar
de turista assoberbado do que de
cineasta aclamado internacional-
mente. E ri-se, muito, ao longo da
conversa; desde logo quando evoca-
mos, a abrir, a boutade que lançou
em Cannes em Maio quando mos-
trou em competição o seu último
filme, Parasitas. Sétima longa-metra-
gem do realizador de A Criatura
(2006) e Mother — Uma Força Única
(2009), seria, nas palavras de Bong
(Daegu, 1969), “um filme demasiado
coreano” para ganhar a Palma de
Ouro que ainda é o mais importante
prémio de um festival de cinema.
Enganou-se. Parasitas saiu do cer-
tame com a Palma de Ouro, e reinsta-
lou no centro das atenções um reali-
zador cujas duas obras anteriores,
feitas a flirtar com o mercado inter-
nacional, foram recebidas com algu-
mas reservas: Snowpiercer — O Ex-
presso do Amanhã (2013) e Okja (2017),
ambos falados em inglês com elencos
internacionais que incluiam Tilda
Swinton, Ed Harris, John Hurt ou Jake
Gyllenhaal. O primeiro foi apanhado
numa guerra surda com Harvey
Weinstein, que detinha os direitos
internacionais e exigia alterações que
o realizador se recusou a fazer; o se-
gundo foi uma das primeiras apostas
de prestígio da produção Netflix e um
dos filmes na origem do conflito entre
Cannes e o gigante do streaming.
Por isso, também, pode parecer
que Parasitas é uma reacção às exi-
gências desses projectos — um elenco
pequeno, um cenário quase único,
uma história contemporânea sul-co-
reana, como Memories of Murder
(2003) ou Mother. Mas não: o projecto
começou a ser montado durante a
pós-produção de Snowpiercer e antes
sequer de Okja estar no radar. E o tal
filme “mais pequeno” que era “dema-
siado coreano” ganhou a Palma de
Ouro. “Foi um bocado surreal”, con-
fessa Bong através da tradutora que,
num inglês impecável, traduz as suas
respostas atentas. Mas não dirá qual
é a percentagem de provocação e
qual a de convicção que a afirmação
manifestava.
Por muito amigável que Bong seja
há algo de reservado ao longo da en-
trevista, que tem lugar antes da exibi-
ção de Parasitas no Festival de Lo-
carno, no âmbito de um prémio de
homenagem ao seu actor-cúmplice
Song Kang-ho. É uma reserva que
pode ter a ver com a própria natureza
do novo filme: num pequeno texto
que distribuiu à imprensa mundial, o
realizador pede aos críticos e jornalis-
tas que não revelem de Parasitas mais
do que aquilo que se pode ver no trai-
ler, e que não divulguem pormenores
da narrativa para lá da premissa.
Por um momento, pensamos que
é o secretismo maníaco dos estúdios
de Hollywood (com os seus em- e

Sétima longa-metragem do realizador de A Criatura (2006)


e Mother — Uma Força Única (2009), Parasitas recebeu a Palma
de Ouro de Cannes e reinstalou o cineasta no centro das atenções
ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019 | 13
O alto
“Comecei por ricos com dinheiro das novas tecno-
logias, que vivem numa luxuosa man- e o baixo,
a luz e os
conceptualizar são construída por um arquitecto. O
filho dos Kim, Ki-woo, bom aluno, subterrâneos,
a vida à
a casa como uma aceita substituir um amigo como ex-
plicador de inglês da filha mais velha superfície (os
privilegiados)
prisão, uma dos Park, e ao conhecer a família
apercebe-se da oportunidade que ali e a vida nas
profundezas,
armadilha. Todo pode estar. Aos poucos, Ki-woo con-
segue que toda a família seja contra- numa espécie
de
o elenco está tada para trabalhar na casa dos Park
… e, igualmente aos poucos, Bong invisibilidade
(os
aprisionado num começa a tirar o tapete. Às persona-
gens e ao espectador. “parasitas”),
são elementos
espaço, e esse O cenário onde a maior parte do
filme decorre — a tal casa concebida que pontuam
o filme
espaço determina e desenhada do zero para efeitos da
rodagem — é central. “Comecei por

o seu destino” conceptualizar a casa como uma pri-


são, uma armadilha. Todo o elenco
do filme está aprisionado num es-
paço, e esse espaço determina visual-
mente o seu destino. Park vive numa
e bargos e a sua tentativa de “con- casa grande, rica, enquanto Ki-woo
trolo da narrativa”) a alastrar inter- vive numa semi-cave, a partir da qual
nacionalmente. Mas, visto Parasitas, pode ascender para o mundo dos ri-
não é nada disso; trata-se de uma da- cos ou afundar-se no abismo… Desde
quelas experiências que tanto melho- o momento em que estava a escrever
res são quanto menos soubermos o guião que estava a definir a casa. Se
sobre o que se vai passar. olhar para o meu iPad, vê os esboços
Referimos que há qualquer coisa que fiz de todos os cantos da casa,
no filme das matrioskas russas — as que depois passei ao cenógrafo.” É
bonecas que contêm outras bonecas um trabalho que Bong diz ser auto-
que contêm outras bonecas… “Fico mático: “Penso que é assim com to-
muito contente que diga isso,” res- dos os argumentistas-realizadores.
ponde Bong abrindo um sorriso. Quando estamos a escrever já temos como marca recorrente do realizador clusão — “acabar o filme de outro
“Queria que cada gaveta que o filme tudo na cabeça visualmente, já pen- uma dimensão suavemente “acti- modo deixaria o público furioso!”
abrisse destrancasse uma outra e por sámos nas imagens e nos sons. Depois vista”. O monstro de A Criatura e o Sorri. “Sei que, quando vai ao ci-
aí fora à medida que a história avan- é só explicá-la aos outros.” “super-porco” de Okja eram criações nema, o público quer divertir-se. As
çasse.” E é por isso que Bong passa o Dá o exemplo de uma cena de tem- mutantes da hubris e da ganância hu- suas vidas reais já são tão complexas
Parasitas tem tempo a fintar perguntas: um passo pestade que, colocada na história, a mana, Snowpiercer desenhava a luta que compreendo que as queiram
um elenco em falso, uma palavra no sítio errado, faz bascular mas serve também como de classes a bordo de um comboio esquecer ao entrar na sala... Mas, ao
pequeno, um e o castelo de cartas vem abaixo. “Al- metáfora do filme e das contradições pós-apocalíptico resultante das alte- mesmo tempo, um filme pode ex-
cenário quase fred Hitchcock dizia que fazer um do nosso mundo: “No ecrã é uma rações climáticas. pressar emoções dolorosas, compli-
único, uma filme é sempre jogar um jogo com o coisa muito caótica, mas preparámos “Sim, já existiam referências às cadas. É um bom impacto que os
história público. Às vezes respondemos às essa cena muito metodicamente com classes sociais e ao capitalismo em filmes podem ter. Especialmente
contempo- expectativas dele. Às vezes, não...” E a equipa de efeitos especiais durante Okja e Snowpiercer, mas com Parasi- numa história como esta.”
rânea o jogo não é só com o público; aqui, mês e meio. É essa a atracção do ci- tas queria ir mais fundo nessa explo- Que, à imagem de Okja ou A Cria-
sul-coreana, é também com o entrevistador. Uma nema: não podemos ser caóticos e ração, através das vidas quotidianas, tura ou Memories of Murder, explora
como o resposta fora de pé e o spoiler alert dá imprevisíveis quando queremos banais, das pessoas que nos rodeiam. também questões de família. “Ao
tinham sido cabo da conversa. mostrar o caos.” É um filme que tem muito mais cama- contar uma história sobre a desigual-
Memories O que se pode, então, dizer de Pa- A ironia não escapa a Bong: a certa das do que A Criatura – as persona- dade entre ricos e pobres, só podia
of Murder rasitas? Que é um encontro entre altura, uma das personagens diz que gens não são anjos nem demónios, fazê-lo no âmbito de um núcleo fami-
(2003) duas famílias: os Kim, desemprega- “o melhor plano de todos é não ter não são só boas nem são só más. Toda liar. A riqueza é herdada e a pobreza
ou Mother dos sem dinheiro, que vivem numa plano” porque a vida se encarregará a gente é boa e má ao mesmo tempo. também. Os ricos passam o dinheiro
(2009) cave feia e suja; e os Park, podres de de trocar as voltas. Ri-se quando o O que queria mostrar, de maneira à família ao longo de gerações e os
apontamos, como quem diz, “sim, é muito cruel e vívida, é que mesmo pobres mantêm-se pobres, e fica tudo
verdade…” Voltamos à Palma de aqueles que não têm o poder não se em família…” Inspiração nos recen-
Ouro que lhe trocou as voltas. “Há ajudam uns aos outros, mas antes se tes escândalos sul-coreanos dos chae-
alturas em que somos convidados atacam uns aos outros.” bol, os conglomerados familiares que
para a cerimónia de entrega de pré- Uma luta pela sobrevivência que têm abusado da sua posição magnâ-
mios sem ter ganho nada. Quando os já estava no centro de Snowpiercer e nima de senhores feudais? Bong não
prémios foram sendo entregues, o que parece entroncar naquilo que de responde. Mas sorri quando dizemos
filme não aparecia, e depois só so- surrealmente feudal ainda existe na que o olhar impiedoso do filme sobre
brava a Palma de Ouro…” Coreia do Sul — a dimensão de o capitalismo moderno podia sair de
Ainda assim: é difícil pensar numa “classe”, de casta, está muito pre- um manifesto socialista. “Queria
Palma mais “do momento” do que sente em Parasitas e daí talvez a tal mostrar de maneira muito clara, mas
Parasitas. O filme reivindica uma pos- boutade de Cannes. Mas o realizador também muito emocionante, o
tura de entretenimento puro, mas confessa que não é uma questão pu- abismo que existe entre quem tem
remete ao mesmo tempo para a lógica ramente coreana, “é global.” “Há dinheiro e quem não tem dinheiro.
autoral que Cannes ajudou a impor uma crescente desigualdade de ri- Claro que pode ser desconfortável,
(tudo em Parasitas se inscreve na pre- queza, uma crescente polarização mas não tenho problema nenhum
cisão formal meticulosa transversal a dos extremos. E isso entristece-me com isso. Era inevitável.”
géneros que reconhecemos ao cinema muito. Mas ainda me entristece mais Ironia: Bong Joon-ho faz filmes
de Bong) e não recua na dimensão de que as pessoas se resignem e achem desconfortáveis para o espectador
comentário social impiedoso ao que não há solução possível.” ver confortavelmente. O cineasta,
mundo que vivemos. Obliquamente, refere-se à resolu- que compreende o inglês mas pre-
Desde que Memories of Murder e A ção do filme, que diz ser mais ho- fere falar através da tradutora, per-
Criatura (2006) o revelaram aos ciné- nesto para com o público do que se cebe o trocadilho. Ri-se muito e faz
filos ocidentais que reconhecemos tivesse forçado um outro tipo de con- que sim com a cabeça.

14 | ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019


O cheiro a rabanete velho Outubro
Um dos Älmes mais perturbantes, e mais 2019
sintomáticos dum mal estar moderno,
que se poderão ver este ano.
Por Luís Miguel Oliveira

Da Coreia do Sul e de Bong Joon-ho (A Criatura,


Memories of Murder, Snowpiercer) chega o olhar mais
mortífero e mais eivado de uma ironia negríssima visto
em muito tempo sobre um tema clássico mas caído em
desuso no cinema ocidental: as questões de classe. São
eles, os pobres, os desempregados, os desapossados, os
“parasitas”, na figura da família que nos é apresentada
nas cenas iniciais. Vivem numa cave atravancada, com
uma janelinha ao nível da rua aonde os bêbedos vêm
urinar, e dedicam-se àquele “parasitismo” comum dos
Parasitas tempos modernos que consiste em tentar aproveitar o
Gisaengchung wi-fi dos vizinhos. Depois, arranjam um esquema para
De Bong que todos — um a um: pai, mãe, filho, filha — se
Joon-ho empreguem, em tarefas serviçais na casa da mesma

A Tragédia de
Parasitas família de classe alta, o que implica inventar maneiras
Com Song de fazer despedir os infelizes que lá trabalhavam antes
Kang-ho, Choi nas mesmas tarefas. É o primeiro sinal da enorme
Woo-shik, Lee violência contida no filme de Bong: os parasitas
Sun-kyun

mmmmm
parasitam, mas não há lugar para todos parasitarem ao
mesmo tempo e por isso têm que se eliminar uns aos
outros. As incidências da narrativa levarão isto ao
extremo, em cenas de uma violência quase cartoon,
Júlio César
mas firmemente mantida sob controlo por Bong Teatro 11-20 de William Shakespeare Estreia
Joon-ho, que nunca deixa o filme descambar para o Nacional out encenação Luís Araújo qua+sáb 19:00
irrealismo nem para as metáforas balofas. São João 2019 coprodução Ao Cabo Teatro, qui+sex 21:00 dom 16:00
O alto e o baixo, a luz e os subterrâneos, a vida à São Luiz Teatro Municipal, TNSJ M/12 anos
superfície (os privilegiados) e a vida nas profundezas,
numa espécie de invisibilidade (os “parasitas”) são
elementos que pontuam o filme, visualmente, num Mosteiro de São Bento da Vitória ⋅ Sala do Tribunal Teatro Carlos Alberto
extravasar de significados que não chegam a ser 4+5 out ⋅ sex 21:00 sáb 19:00 19+20 out ⋅ sáb 21:00 dom 16:00
“metafóricos”. O domínio do sensível impera — não há Estreia
apontamento mais cruel, nem mais humilhante, do que
Locker Room Talk Alma Nómada
aquele em que o pai da família rica se queixa de que o
encenação e interpretação Magali Chouinard
motorista (que é o pai da família “parasita”) cheira a
de Gary McNair coprodução Magali Chouinard, Festival International
“rabanete velho”, que é o cheiro que se sente “nas encenação Jorge Andrade des Arts de la Marionnette à Saguenay (Canadá),
pessoas que andam de metro”. Todos os complexos de produção mala voadora Festival Mondial des Théâtres de Marionnettes
classe (para cima ou para baixo) se resumem nessa frase M/18 anos de Charleville-Mézières (França)
e nessa ideia, a dum cheiro que “cruza a linha” (como M/12 anos
diz o pai rico). Mas, sinal da inteligência de Bong, não há
Teatro Nacional São João ⋅ Salão Nobre
verdadeiramente vilões, a família abastada é feita de 9-12 out ⋅ qua-sex 10:30+15:00 sáb 16:00
gente simpática e de comportamentos ou preocupações
apenas levemente caricaturais. Se a violência os toca, é
quase como um ricochete: são os pobres, os parasitas,
Ver a Odisseia para
que se matam uns aos outros por um lugar na cave dos
ricos, e isto é absolutamente literal.
Chegar a Ítaca
Retrato corrosivo e devastador — da sociedade sul a partir de Odisseia, de Homero
coreana, mas facilmente “importável” para as criação Jorge Loureiro e Leonor Barata
produção Projecto D – Pedagogia e Criação Artísticas
sociedades ocidentais — de um mundo onde o
M/6 anos
capitalismo cumpriu o que o socialismo prometeu
(esbater, através de truques de ilusionismo, a noção de Teatro Carlos Alberto
uma sociedade classista), Parasitas, rima curiosa para O FIMP no TNSJ 30 out – 2 nov ⋅ qua+sáb 19:00
qui 15:00 sex 21:00
outro filme asiático recente (o Shoplifters de Kore-eda),
é um dos filmes mais perturbantes, e mais sintomáticos
dum mal estar moderno, que se poderão ver este ano.
Mosteiro de São Bento da Vitória
17-20 out ⋅ qui 21:00 sex 15:00+21:00 sáb 19:00
dom 16:00
Niet Hebben
Estreia [Carta Rejeitada]
O olhar mais
mortífero
visto em
Alecrim vs criação e interpretação Crista Alfaiate
coprodução LU.CA – Teatro Luís de Camões, TNSJ

muito tempo Manjerona M/12 anos

sobre um
tema caído de António José da Silva (O Judeu) Mosteiro de São Bento da Vitória
direção Ana Saltão e Rui Oliveira 15 out ⋅ ter 21:00
em desuso coprodução Jangada Teatro, TNSJ
no cinema Leituras no Mosteiro
dobra

M/12 anos
ocidental: Lucy Kirkwood
as questões
de classe
www.tnsj.pt

ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019 | 15


© Inês Gonçalves
Jogos de
guerra com A
maior base militar da Eu-
ropa, dizem-nos as legen-
das iniciais de Campo, fica
em Alcochete. São mais de
sete mil hectares de ter-
reno, destinados aos exer-
cícios e treinos de todos os ramos das
os piqueniques, até a música) e mui-
tas criaturas não humanas (abelhas,
ovelhas, pássaros). É um olhar sur-
preendente sobre uma realidade
específica, feito com a força e o pro-
pósito poético suficiente para que
tudo se transfigure e se constitua no

vista para
forças armadas, mas onde se passa relato de uma narrativa mitológica.
muita coisa, e existe muita vida, que Se começamos com o “início” do
ultrapassa o estrito domínio militar. mundo, acabamos com o seu “fim”,
É como um microcosmos, ou como dado num plano da Lisboa ribeirinha
um cosmos dado em “maquete”. É, oriental, filmada da outra margem,
pelo menos, o que o filme de Tiago onde tudo é fogo e ruído.
Hespanha faz do Campo de Tiro de Tiago Hespanha, que não apresen-
Alcochete, transformando-o em ce- tava nenhum filme desde Revolução

as estrelas
nário para uma espécie de cosmogo- Industrial (de 2014, assinado a meias
nia (tudo começa, através da voz off, com Frederico Lobo, que já mostrava
pelo relato do lançamento dos ho- um interesse pela relação entre civi-
mens e dos animais sobre a Terra), lização e natureza), explica as raízes
ou de cartografia de um mundo iso- do filme, projecto que já vem de
lado onde, ao lado dos jogos de longe. “Vem de 2010, ainda estava a
guerra, existem outras actividades (a preparar Revolução Industrial. Fiz um
observação dos astros, a pastorícia, mestrado em Barcelona que impli-

NUNO FERREIRA SANTOS


Em Campo, Tiago Hespanha transforma a
maior base militar da Europa em cenário para
uma cosmogonia: o relato do lançamento dos
homens e dos animais sobre a Terra. No
Campo de Tiro de Alcochete há jogos de
guerra mas há outras actividades: a
observação dos astros, a pastorícia, os
piqueniques, até a música. E muitas criaturas
não humanas: abelhas, ovelhas, pássaros.

Luís Miguel Oliveira

18 | ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019


cava a concepção de um projecto. E
nessa altura falava-se muito do novo “Aquilo [os exercícios se passava, liguei ao pastor e ele não
atendeu logo. Eu na minha cabeça ia
aeroporto de Lisboa, a ser construído
naquela zona, eventualmente utili- militares] é o domínio filmar um parto, mas rapidamente
percebi que estava a correr mal,
zando a área do campo de tiro. Fiz
uma visita guiada de jipe, ao longo da simulação, há quando vi a ovelha passiva, sem
força. Foi muito duro, e quando
daquela área gigantesca, que é um
campo administrado pela Força Aé- sempre um contexto chega o pastor já todos percebemos
que a ovelha ia morrer e que as ten-
rea mas onde treinam todos os ramos
das forças armadas. A certa altura, vi fictício para os tativas dele eram desesperadas.
Quando ele diz ‘ela já está morta’, a
mesas de piquenique ali no meio. O
militar que me acompanhava expli- exercícios, guiões primeira coisa que faço é ir lá, como
se desse um salto. Não vou fazer
cou-me que se passavam ali e activi-
dades que nada tinham de militar. No detalhados, uma nada, só vou lá. Ficámos todos em
silêncio o resto do dia. Aquilo nem
escritório mostrou-me fotos e docu-
mentos de coisas que se passaram no geografia inventada, era material do filme, para mim. Mas
depois apercebi-me de que aquilo é
campo nos anos anteriores: uma
etapa do Paris Dakar, provas despor- beligerantes uma fortíssima chamada ao concreto,
e podia funcionar como um ponto de
tivas, filmes, investigações científicas.
Foi um universo que se abriu à minha inventados, etc . viragem no filme.” Ver o realizador a
“esquecer-se” do filme, a realidade a
frente, a partir do contraste entre o
mundo militar e esses outros mun- Interessava-me esse impor-se ao cinema, é um momento
raro: “é possivelmente a diferença, a
dos. Saí de lá com a sensação de que
havia ali um filme”. simulacro, porque linha absoluta, entre documentário
e ficção — a figuração da morte, entre
Mas é um filme que vai para além
tinha a ver com a a encenação e a não-encenação”.
NUNO FERREIRA SANTOS

da mera descrição do campo e das Mas “também tem a ver com a curva
actividades, e que se enforma num
olhar distanciado, às vezes irónico, a introdução da ficção final do filme, que começa a degene-
rar, a superação começa virar-se con-
criar uma perspectiva que está sem-
pre a fugir da realidade objectiva.
“Isso, sabia-o desde o princípio”, diz.
na realidade” tra nós próprios, o olhar dos animais
começa a voltar-se para as câmaras,
como um apocalipse”.
“Não seria um filme descritivo, e o O “apocalipse” que se consubstan-
universo militar também não me in- cia no plano final, com o fogo de ar-
teressava especialmente”. Cruzar tifício na silhueta nocturna de Lis-
tempos e espaços, justapor-lhes ou- procedimentos do treino militar e a numa “ideia de absurdo” a percorrer A “acção principal” em Campo boa. O “fogo”, os elementos “mar-
tros elementos, falar da “natureza olhar para o que estava em volta —a o filme, mas “foi desaparecendo”. tem um aspecto quase infantil: ciais”, transformados em festa.
humana”. Foi assim que lhe foram rapariga da ambulância, os soldados Ficou um relato mítico cheio de res- são “jogos de guerra”, “Durante a rodagem, sempre que
aparecendo ao caminho coisas que que olham para o céu à procura dos sonâncias, até ecológicas, como brincadeiras sérias de adultos nos embrenhávamos no campo, era
nada tinham a ver com o lugar: “his- aviões, os astrónomos que perscru- quando se diz, ao princípio, que no que conservam um aspecto fácil ter a sensação de que aquilo era
tórias, filmes, livros, e o filme nasce tam o universo (há inúmeros planos início dos tempos homens e animais lúdico um mundo isolado, mas a verdade é
daí, do encontro com o lugar e com do céu nocturno, das estrelas, da lua “não se distinguiam” e só depois se que era ao pé de casa, bastava passar
as associações que ele me sugeriu”. vista por um telescópio), e toda uma afastaram, e o filme propusesse uma a ponte Vasco de Gama e estávamos
série de situações à margem da “ac- reaproximação entre uns e outros. em plena cidade”, como num
Mais na periferia ção principal”. A “acção principal” “Durante muito tempo, para explicar “mundo perdido”, quase no sentido
do que no centro que tem, por seu turno, um aspecto simplificadamente a ideia do filme spielberguiano”. Pareceu uma boa
Primeiro, observou, tacteou, mas quase infantil: são “jogos de guerra”, dizia só isto: ‘é um filme sobre os ho- maneira de terminar o filme: a “civi-
“sabia desde o princípio que haveria brincadeiras sérias de adultos que mens e os animais’”. lização” a dois passos, naquelas ce-
voz off e um texto”. Só não sabia qual, conservam um aspecto lúdico. Algo Com os animais há pelo menos lebrações “um pouco ocas” como
nem com que elementos, isso veio a que rima com o “lazer” para que o uma cena extraordinária. A morte de uma passagem de ano — o plano foi
ser decidido na montagem, mas a campo também serve, mas que a voz uma ovelha durante o parto, um mo- filmado durante uma noite de réveil-
partir da experiência da rodagem. off também aproxima dos “jogos” da mento tão forte que o realizador, lon. “O génio humano transformado
“Experimentei muitas coisas en- antiguidade. impulsivamente, sai de trás da câ- Campo em festa, os ruídos da guerra feitos
quanto filmava, e foi difícil encontrar “Aquilo é o domínio da simulação, há mara e entra em campo, como se De Tiago celebração”. O realizador tinha a
o meu lugar. Aquilo são treinos muito sempre um contexto fictício para os para “passar a certidão de óbito”. Hespanha ideia de que acompanhar esse fecho
repetitivos, mas sempre com pessoas exercícios, com guiões muito detalha- Falamos-lhe daquela cena dum nas- Documentário com uma canção, a versão de PJ Har-
diferentes, não dava para estabelecer dos, uma geografia inventada, belige- cimento dum bezerro em Tulpan de vey de Is That All That Is, original-
uma relação, para ter ‘personagens’, rantes inventados, etc . Esse contexto Sergey Dvortsevoi, que ele diz ser mmmmm mente popularizada por Peggy Lee.
e no início havia tendência para determina sempre a acção, e interes- uma cena incrível, e provavelmente Desistiu porque era “too much”. Fez
acompanhar a acção. Só com o sava-me esse simulacro, porque tinha a única desse filme de que gosta bem: se, como se diz no poema de
tempo comecei a perceber a minha a ver com a introdução da ficção na mesmo. Mas “sabia que queria filmar Alberto Caeiro citado no texto off,
posição: mais na periferia do que no realidade”. Daí o texto dito em off, uma ovelha a nascer, e falei com o “as coisas são o único sentido oculto
centro da acção”. O que o levou a abordagem histórico-mitológica leve- pastor. Era difícil, porque elas saem das coisas”, Campo termina como
aproximar-se, “obsessivamente”, dos mente irónica, como uma cosmogo- para parir à noite e aparecem de dia, principiou, deixando o espectador
indivíduos que também estavam na nia, a contar o “início dos inícios”. O a não ser que precisem de ajuda. Um a sós com as “coisas”, sem lhes acla-
“periferia”, a sair da mecânica e dos realizador pensou, inicialmente, dia vi a ovelha deitada, percebi o que rar o sentido.

Tiago Hespanha não apresentava nenhum filme desde Revolução


Industrial (2014, assinado a meias com Frederico Lobo), que já
mostrava um interesse pela relação entre civilização e natureza

ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019 | 19


Ari Aster (não)
quer fazer género
F
Em Lisboa para az agora mais ou menos ano e
meio, um nome vindo do nada
apresentar aterrava de surpresa no festi-
val de Sundance. Para pri-
Midsommar, nas meiro filme de um jovem rea-
lizador e argumentista ameri-
salas esta cano, Hereditário aparecia com um
semana, uma das elenco de primeira água — Toni
Collette, Gabriel Byrne, Ann Dowd. O
mais recentes fenómeno funcionou por boca a boca
de crítica e espectadores: história de
sensações do uma família em desintegração acele-
novo cinema de rada pela morte da avó e pela desco-
berta da sua ligação a um estranho
terror americano culto, seria um dos filmes mais ater-
rorizantes de sempre. (Exagero do
confessa que é marketing, claro, que para os ameri- cinema de género! E não sinto nada peonato de Kubrick, mas é um dos Midsommar
canos a memória é uma coisa muito que isso seja um insulto. Mas concor- cineastas que mais admiro. Quando acompanha
um realizador de fugidia — parecia que já ninguém se do consigo: nenhum dos meus filmes falamos de Kubrick falamos de um um grupo de
género, só que lembrava que encómios do género
tinham recebido, ainda só há dez
assume por inteiro essa ideia de filme
de género. Midsommar não é para
certo estilo. Mas também podia falar
de Alain Resnais e O Último Ano em
universitários
americanos
não quer fazê-lo anos, o primeiro filme da série Activi- mim um filme de terror, vejo-o mais Marienbad, ou de Kenji Mizoguchi e numa visita a
dade Paranormal…) como um conto de fadas. Aliás, é por do modo como ele deixa que as coisas uma remota
do mesmo modo A verdade, contudo, é que havia de isso que o primeiro plano do filme é aconteçam dentro do enquadramen- aldeia sueca
que vive ainda
que os outros. facto algo em Hereditário que se ins-
crevia numa nova geração de cineas-
uma ilustração medieval que se abre
como uma cortina: quero deixar claro
to, ou de Akira Kurosawa e do modo
como coreografa os actores em algo de acordo
tas que não olhavam para o género que o que se segue é inevitável e já está como Os Sete Samurais. com tradições

Jorge como coisa menor — gente como Ja-


mes Wan, Fede Alvarez, Panos Cos-
matos, Peter Strickland, David Robert
definido. Acredito em espalhar pelos
filmes detalhes proféticos, periféricos,
que ajudam a uma imersão no mundo
Aliás, há muito de coreografia
no modo como dirige.
Para mim a coreografia e a realização
ancestrais

Mourinha Mitchell, Nicolas Pesce, Jeremy Saul-


nier, Jennifer Kent. Fazia todo o sen-
tido juntar-lhes Ari Aster (Nova Ior-
que crio, e tenho cuidado em cortar
tudo o que seja desnecessário. E preo-
cupo-me muito com o lado estético.
são uma e a mesma coisa.
Filma como se estivesse a fazer
uma experiência num
que, 1986), porque, antes de ser um Acredito que existe uma maneira de laboratório, dirigindo a câmara
JIM SPELLMAN/WIREIMAGE

filme de terror, Hereditário era um chegar à substância através do estilo. para os participantes e ficando
estudo sobre o peso da família. Aliás, Midsommar tem uma a ver o que acontece.
A segunda longa de Aster, que influência mais forte dos filmes Interessante… Sim, penso que tem
chega esta semana às salas portugue- de terror ingleses ou europeus razão, embora me pareça menos evi-
sas, confirma essa abordagem oblíqua do que do cinema americano. dente em Midsommar. Quer dizer,
ao filme de género — coisa que o rea- Sim. Sei que peço mais aos especta- construímos toda aquela aldeia do
lizador admite num salão de um hotel dores do que eles estão habituados. zero, nada existia, mas digamos que
do centro de Lisboa, onde veio acom- Sei que é diferente na Europa mas é aqui isso está tudo mais abaixo da
panhar a ante-estreia de Midsommar nos EUA que trabalho e sei que o superfície. Obviamente, em Heredi-
— O Ritual no MOTELX e participar modo como filmo vai afastar públicos tário as casas das bonecas eram uma
numa mesa-redonda sobre o folk hor- que não estão habituados a isso. Mas metáfora para o que estava a aconte-
ror com o escritor Howard Ingham. vivo bem com isso. cer com a família, que, no fim de con-
Midsommar acompanha um grupo de Há uma referência evidente em tas, era que estava ao longo do filme
universitários americanos, entre os Midsommar, que é O Sacrifício a ser reduzidas a marionetas sem
quais uma jovem transtornada que (1973) de Robin Hardy... nenhuma palavra a dizer. E aqui os
acaba de perder a família, numa visita Sim, é um ponto de referência óbvio, visitantes à aldeia também não têm
a uma remota aldeia sueca que vive mas sabe que não o revejo há mais de nenhum controlo sobre a situação,
O americano Ari Aster, franzino e tímido, parece ainda de acordo com tradições ances- dez anos? Este filme começou porque embora achem que sim, que têm. O
mais um fã entusiasta do que um cineasta, e um trais. É o fim da manhã e o fim de uma eu queria escrever a história de uma que para mim aproxima ambos os
cineasta que ainda por cima reivindica longa ronda de entrevistas aos media ruptura sentimental, mas uma pro- filmes é que, desde muito cedo, o
influências mais europeias do que é normal portugueses, e Aster, franzino e tí- dutora sueca veio ter comigo a dizer- destino final das personagens está
mido, parece mais um fã entusiasta me: “queremos que faça um filme de predestinado, já está definido. São
do que um cineasta, e um cineasta horror pagão na Suécia”. E aceitei, filmes que vão onde o género nos
que ainda por cima reivindica influên- porque conheço esses filmes de trás promete levar, mas quando lá chega-
cias muito mais europeias do que é para a frente e estava disposto a acei- mos percebemos que não seguimos
normal. Foi por aí, aliás, que a con- tar as restrições que isso colocava. o caminho do costume e fomos por
versa começou: afinal, Midsommar é Mas, precisamente por causa disso, uma direcção diferente.
ou não um filme de terror? não fui rever O Sacrifício nem O Caça- Antropologicamente falando,
dor de Bruxas nem Blood on Satan’s quanto de Midsommar se baseia
Muita gente diz que você é um Claw. Já os tinha na cabeça. em tradições reais? A aldeia é
cineasta de género, que faz Quais foram então as suas inventada, mas percebe-se que
filmes aterrorizantes. No referências? Lembrámo-nos houve cuidado em torná-la
entanto, os seus filmes parecem muito de The Shining… verosímil.
ter mais influências do cinema Sinto-me elogiado por essa compara- Era importante sentir que a aldeia
dito “sério”… ção e também bastante embaraçado, seria um sítio habitado, enraizado, e
Mas acho que sou um realizador de porque não estou no mesmo cam- qualquer que seja o filme que esta-
20 | ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019
O medo à luz do sol
Passo em frente relativamente à estreia,
Hereditário, Midsommar conÄrma Ari Aster
como um cineasta interessante que ainda
não fez o seu grande Älme.

Faz agora pouco mais de um ano, o americano Ari Aster entrava com
estardalhaço no território do novo horror indie americano com um
Hereditário que conquistou muita crítica internacional mas nos tinha
deixado pouco impressionados — muito estilo, um evidente savoir-faire
técnico, uma enorme inteligência formal, mas tudo desbaratado num
narcisismo complacente de quem se deslumbra com a casa de bonecas
que criou.
Mais divisivo do que Hereditário, Midsommar, segunda realização do
americano, é também significativamente melhor filme — foge à tentação
de “resolver” a narrativa que condenara Hereditário, explora com mais
Midsommar segurança o que significa criar um ambiente e mantê-lo. Mesmo que a sua
— O Ritual narrativa funcione à base dos arquétipos, é impossível negar a convicção e
Midsommar seriedade com que Aster se empenha em montá-los pacientemente para
De Ari Aster logo a seguir os destruir com um prazer quase alucinogénico. Aqui,
Com Florence acompanhamos um grupo de universitários americanos convidados para
Pugh, Jack visitar uma remota comuna sueca cujo modo de vida parece intocado pela
mos a fazer, é essencial criarmos uma de opereta. São gente bem intencio- Reynor, William civilização moderna — civilização essa da qual o oportunista e indeciso
sensação de lugar, de pertença. E sim, nada, mas ao mesmo tempo podemos Jackson Harper Christian, o bronco e grosseiro Mark e o estudioso e remoto Josh, todos
fizemos muita pesquisa, baseando- ver o modo como tratam, por exem- incapazes de pensar nos outros e concentrados apenas em si mesmos, são
nos em muitas coisas diferentes. Fiz plo, as minorias, que não é igual ao mmmmm exemplos perfeitos.
muita pesquisa sobre as tradições modo como tratam os visitantes bran- Isto cria o peculiar efeito do mal, no fundo, estar menos nos outros do
suecas, germânicas, inglesas, sobre cos. Desfazem-se deles de outras que em nós mesmos e explica em parte porque é que Midsommar é um
os rituais do solstício de Verão e as maneiras. Os americanos, claro, não filme “diurno”, solar, onde o medo está menos no que se vê e mais no que
lendas do folclore sueco. Aprendi o são assim tão diferentes… transportamos connosco, de um modo que a sua referência evidente — o
alfabeto rúnico, e investiguei diferen- Aliás, os americanos aqui é que lendário e maldito Sacrifício de Robin Hardy – não tinha. Não é o
tes movimentos espirituais. Mas fui são os maus da fita! desconhecido que é o medo em Midsommar – somos nós.
liberal a partir daí: peguei no que era Sim. Sobretudo face a uma comuni- Para o provar, com o grupo de palermas viaja Dani, uma jovem
útil para a história que queria contar dade que pensa no colectivo, que é emocionalmente abusada que acaba de perder a família, para quem esta
e depois foi uma questão de inventar, bastante altruísta, que trabalha em viagem vai ser algo de catártico: um mergulho redentor nas trevas a que
de acrescentar e subtrair detalhes. conjunto para o bem de todos. Os Florence Pugh, a revelação de Lady Macbeth, se abandona
Um dos aspectos mais curiosos é americanos são individualistas, egoís- desarmantemente, primeiro como testemunha e depois como cúmplice.
que a comunidade que pinta é tas, só pensam em si mesmos e não E é aí que Midsommar se torna interessante, ao explorar ideias de luz e
extremamente solar. Quase se ajudam uns aos outros — certamen- trevas, individualismo e comunidade, de um modo reflectivo mesmo que
tudo o que acontece acontece à te que o Christian não ajuda a Dani, e paredes-meias com o sisudo, ocasionalmente mesmo solene.
luz do sol. a Dani acaba por encontrar nesta É também verdade que, às tantas, a ambição de Aster o faz tropeçar
É verdade, e há muitas coisas a favor comunidade o que não foi capaz de sobre si mesmo; a sua vontade de criar um ambiente no limiar do
desta comunidade — estão muito mais encontrar. insustentável não é (ironicamente) sustentável ao longo de duas horas e
presentes uns para os outros e muito Uma família? meia, sob risco de tornar o filme redundante e cansativo. Mas Midsommar
mais ligados ao mundo ao seu redor Exactamente. é francamente mais conseguido que Hereditário, o que já não é pouco, e
do que, por exemplo, os americanos Voltamos à família… confirma que existe mais cinema na cabeça de Ari Aster do que em muitos
de visita. E acreditam de alma e cora- É verdade que a Dani encontra aqui aspirantes a realizadores. J.M.
ção em algo, empenham-se nessas uma família de acolhimento, por
crenças e uns nos outros. Também são oposição à sua família verdadeira
extremamente supersticiosos e muito que a desiludiu, e que em Hereditário
fechados sobre si mesmos e sim, têm a família era a origem de todo o mal.
algo de sinistro, mas era importante Mas não acredito que os familiares
para mim não os pintar como vilões sejam os inimigos, que tenhamos de
os renegar. Midsommar começou por
ser a história de uma ruptura amo-
“Peço mais aos rosa, porque eu estava a viver uma
quando o escrevi, e acredito em con-
espectadores do tar histórias que se centram nas per-
sonagens. O meu primeiro dever
que eles estão como cineasta é tomar conta das
personagens.
habituados. Sei que é
diferente na Europa
mas é nos EUA que
trabalho e sei que o
modo como filmo vai
afastar públicos que
não estão
habituados a isso”
ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019 | 21
Um festival a leste
Um dos mais
interessantes
festivais de
cinema

da espuma dos dias emergentes no


país, o BEAST,
focado nas
cinematograÄas
e contracurvas
da história da
Europa de Leste,
dá cartas no
momento em
que o calendário
assinala o 3.º
aniversário. Uma
Outubro
Uma relação
programação
“proibida” refrescante que
entre um
universitário se inicia amanhã
africano, negro,
e uma russa,
e decorre até 6
branca, grávida de Outubro, no
e sem saber o
que fazer à Porto.
vida: um filme
angustiado,
poética da
incerteza num
estupendo
preto e
branco por
Francisco
Abderrahmane
Sissako Noronha

T A mostra
em sido discreto o percurso em foco (Lituânia), da homenagem a propaganda que pretendia montar mena da Universidade de Coimbra à
do BEAST no panorama por- Jonas Mekas à mostra Cinegeografia uma narrativa de amizade e coopera- beira de concluir um doutoramento
tuguês dos festivais de ci-
nema, talvez porque, tendo
Socialista, entre outras possibilidades
de escolha. De entrada gratuita na Cinegeografia ção com as nações africanas mas que,
sobretudo, no caso do filme de Markov
sobre o papel das mulheres nos movi-
mentos de libertação angolanos. Io-
realizando a sua primeira edi-
ção em 2017, surgiu num mo-
Casa das Artes, esta última é um dos
must-see da edição, fazendo confluir Socialista é um (apetece dizer: um autêntico feel-good
movie em que a URSS se assemelha ao
landa refere, aliás, que, “se olharmos
para os acordos bilaterais de coopera-
mento em que o seu leitmotiv – as ci-
nematografias do Leste Europeu – não
assuntos ainda muito pouco debati-
dos: as relações entre a URSS e os Es- dos must-see mais feliz dos campos de férias do
mundo), acabam a dar tiros nos pró-
ção entre a Roménia e os países afri-
canos, há um interesse em extrair
podia estar menos “in” (e continua a
estar muito pouco “in” quando colo-
tados africanos independentes saídos
da luta anti-colonial e as imagens – o desta edição, prios pés (o “nossa” do título do filme
já diz muito).
matérias-primas a preços módicos.
Havia, de certa forma, esta ideia de
cado em perspectiva com os assuntos
quentes do momento). Talvez por isso
cinema – produzidas nesse interstí-
cio. fazendo confluir É isso o mais fascinante nas ima-
gens de A Nossa África, o modo como,
aproveitamento, que penso que era
transversal à URSS”.
– ou também por isso, decididamente
– é que a sua programação se revela Um copo de leite
no kolkhoz
assuntos ainda involuntariamente, se auto-sabotam
(isso e a ilustração de todo um outro
O mauritano-maliano Abderra-
hmane Sissako, um dos mais impor-
uma das mais estimulantes no actual
circuito de festivais, todos eles com as Num tempo em que os estudos acadé- pouco debatidos mundo, um exclusivamente decidido
por homens em acérrima competição
tantes cineastas em actividade e que
ainda recentemente assinou o magní-
suas valências e idiossincrasias, é
certo (especialmente para espectado-
micos pós-coloniais têm feito escola e
muitos dos seus protagonistas ga- como as relações pelo maior número de cigarros fuma-
dos): são os soviéticos, invariavel-
fico Timbuktu, tem em Rostov-Lunda
(2 de Outubro), comovente périplo
res fora do circuito estritamente ciné-
filo, convém ter presente), mas enre-
nham expressão na esfera cívica e
política, muito pouco conhecimento entre a URSS e os mente, que ensinam os africanos,
nunca o contrário; os negros, sempre
autobiográfico em busca do paradeiro
de um amigo que é também um tra-
dados numa lógica de saturação e de
“evento” que os acaba por atirar para
tem sido produzido e discutido, tanto
na academia anglo-saxónica como Estados africanos sorridentes e amestrados, são décor
sem voz, mero receptáculo de lições
tado sobre a história recente de An-
gola, e Outubro (no mesmo dia) dois
uma certa indiferenciação. Ao cen-
trar-se num horizonte geográfico es-
nos próprios países do antigo bloco
socialista, em torno do modo como independentes (engenharia, agricultura, etc.).
“Há uma visão paternalista. Não é
dos filmes mais marcantes da mostra,
em ambos se abordando o fenómeno
pecífico, com questões políticas e
culturais anciãs, o BEAST vira a câ-
estes últimos se aproximaram – pari-
tariamente? Interesseiramente? – dos saídos da luta propriamente uma relação colonial,
mas há uma relação hierárquica. E
dos jovens africanos (como o próprio
Sissako) que, ao abrigo dos protocolos
mara para outro lado: o que se passa,
afinal, a leste do paraíso? Movimento,
aliás, com a virtude adicional de con-
Estados africanos na sequência dos
processos de libertação. Tito em África
(newsreel montado pelo Museu da
anti-colonial acho que essa é a grande diferença
para o que o Tito tentou fazer, e que
depois Ceausescu [ditador romeno]
instituídos nas lógicas de cooperação,
foram enviados para a universidade
de Moscovo e de outras cidades sovié-
ferir visibilidade a autores e filmogra- Jugoslávia e pela associação Filmske replicou. Tito tentou fazer a solidarie- ticas. Uma relação “proibida” entre
fias que nem sempre têm a atenção novosti; passa a 3 de Outubro), dade, em que as relações são mais um universitário africano, negro, e
devida, mesmo no circuito cinéfilo e roadshow do estadista jugoslavo no igualitárias, de aprendizagem mútua, uma russa, branca, grávida e sem sa-
des festivais. É essa carência que a contexto do por si co-fundado Movi- e não tanto a cooperação, na qual ber o que fazer à vida: Outubro é um
proposta, rica e original, vem contra- mento dos Não Alinhados, e A Nossa existe uma relação hierárquica”, filme angustiado, poética da incerteza
riar, das secções competitivas (ficção, África (Alexander Markov, 2018; no aponta Iolanda Vasile, co-organiza- num estupendo preto e branco (há
documentário, experimental) ao país mesmo dia) fazem uso de imagens da dora da mostra e investigadora ro- um único plano “a cores”: é com e
22 | ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019
Para Arŗnas Matelis, vencer
(não) é o mais importante conseguiram reparar os danos, há Quando lhe
Pouco se tem visto e debatido sobre o uma força irreprimível em perguntamos
andamento… Esta ideia de dilúvio pelas novas
cinema recente feito na Europa de Leste. possui uma dimensão bíblica que gerações
acabará por ter correspondência na de cineastas
ArŴnas Matelis, cineasta lituano que estará presença de algumas figuras lituanos,
religiosas nos seus filmes, caso do Matelis,
no BEAST para apresentar o seu último padre que, qual líder 58 anos,
revolucionário, encabeça, em apressa-se
Älme, é um desses cineastas que importa Baltic Way (1989), os massivos a responder,
protestos que os lituanos galhofeiro,
descobrir. organizaram contra o Pacto “Eu!”
Molotov-Ribbentrop, acordo de
não-agressão assinado entre nazis e

D
epois da chamada cair, fundador de um das mais antigas soviéticos em 1939. Um filme sobre
ficamos a pensar na produtoras de cinema (Studio dor e sacrifício, dádiva e
pergunta que não nos Nominum) da Lituânia, confessa generosidade – talvez Wonderful
lembrámos de fazer: gosta nunca ter perspectivado assim as Losers seja, afinal, um filme…
do Los Olvidados, de Luis coisas. “Mas tem razão, agora vejo cristão. Matelis sorri: “Um crítico
Buñuel? Não que o essa ligação. No ascensorista, francês escreveu que era o filme
cinema de ArŴnas Matelis, trata-se da busca por um significado mais cristão que já tinha visto! É um
predominantemente (mas nas pequenas coisas que fazemos, filme sobre um desporto, mas…
hibridamente) documental, mesmo que absurdas, como não é um filme sobre um desporto.
possua uma intenção carregar num botão. No desporto, Conheço partisans que estiveram OS DIAS DAS
(neo-)realista de denúncia, mas também é uma situação um pouco muitos anos na floresta a lutar
nele existe também um desejo de absurda: conseguir ficar em contra os nazis sem qualquer PEQUENAS
rememoração: os olvidados de primeiro lugar e encontrar um esperança, sabendo que não
Matelis são tanto o ascensorista de significado nisso. Mas ao fazer o tinham hipóteses de vencer. COISAS
Sunday. The Gospel According to filme, vi nos rostos dos gregários Podiam sobreviver ao Inverno anos
lift-man Albertas (2003) como as que eles são mais como monges a fio, mas a luta não era pela vitória,
crianças do hospital oncológico no num mosteiro do que atletas. São era por viver um sonho, a
13.09.2019
belíssimo Before Flying Back to
Earth (2005), como, ainda, os
homens espiritualmente muito
fortes. Isso mudou a minha
liberdade. Por algo maior do que
uma vitória. Não quis dizê-lo de -
gregários de Wonderful Losers: A percepção do que é a vitória. O que forma explícita, mas queria fazer 22.03.2020
Different World (2017, é? Pode ser o sacrifício. Pode um filme sobre estes monges
representante lituano nos encontrar-se um sentido para a vida estranhos que são felizes a
Óscares), filme que o cineasta virá no acto de contribuir para a vitória dedicarem-se aos outros. É muito CURADORAS
apresentar ao Trindade a 1 de de outra pessoa. Afinal de contas, o mais difícil encontrar um sentido
Outubro. São filmes em que o ciclismo é um desporto em que 95% no sacrifício do que ganhar uma MARIA DE AIRES SILVEIRA
olhar se demora por figuras dos atletas nunca ganham nada. Os corrida. É um sentido para a vida. EMÍLIA FERREIRA
não-protagonistas, não-óbvias, gregários têm outro mundo, com Eu queria olhar bem para os seus
que estão habitualmente outros ideais”. Matelis, cujo pai foi rostos, para os olhos destas
esquecidas ou em segundo plano 25 anos prisioneiro num gulag da pessoas, porque as respeito”.
no dia-a-dia. Wonderful Losers, em Sibéria, fez o seu primeiro filme, Quando lhe perguntamos pelas ESTAÇÃO BAIXA-CHIADO
particular, olha para uma figura Giants of Pelesa, no ano da queda do novas gerações de cineastas
característica do ciclismo – os Muro, contexto (a Lituânia viria a lituanos, Matelis, 58 anos, TERÇA A DOMINGO
gregários – cujo objectivo conquistar a independência em apressa-se a responder, galhofeiro, 10H00-18H00
primordial é… não vencer. Ou 1990) que não mais deixou de “Eu!”. “Depois do Wonderful SEGUNDA-FEIRA ENCERRADO
melhor, sacrificar os resultados assombrar a sua filmografia. Losers, quero fazer um filme sem
individuais em detrimento da Sobretudo no simbólico elemento movimento, sem humanos, talvez
vitória de um colega de equipa, da água, essa que, brotando apenas com um quarto. O que pode
num esforço físico e mental livremente de uma canalização de ser isto? Ainda não sei! (risos). Eu
hercúleo cujo “prémio” está rua rebentada no início de Ten faço os meus filmes muito
condenado exclusivamente ao Minutes Before the Flight of Icarus devagar… Wonderful Losers
reconhecimento dentro da própria (1990, título que Matelis explica demorou-me 8 anos a fazer”. Não museuartecontemporanea.gov.pt
equipa – as notícias, os flashes, as pelo mito grego que Bruegel um dia será esse, afinal, um filme sobre RUA CAPELO, 13 | 1200-444 LISBOA

capas de jornais, enfim, a História pintou e no qual, ante a Deus? Novo sorriso. “Não, mas…
nunca terá o seu nome inscrito. normalidade do quotidiano, Bom, talvez seja sobre a relação
Sobre esta ideia de demoramos a reparar nos pés em entre os homens e os animais,
“esquecimento” comum tanto à afogamento de Ícaro), se mantém sobre como alguém pode viver em MECENAS INSTITUCIONAIS

figura do ascensorista como à do em pleno jorro no último plano do solidão, de como precisamos uns
gregário, Matelis, que é também o filme – as autoridades não dos outros… Talvez…”. F. N.
ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019 | 23
A programação
do BEAST é uma das THE HOUSE WHERE YOUR FUN BEGINS

mais estimulantes
no actual circuito
de festivais,
Tito em África
todos eles com
Newsreel
montado pelo
as suas valências
Museu da
Jugoslávia
e idiossincrasias,
e pela
associação
é certo, mas
Filmske
novosti,
enredados numa
um roadshow
do estadista
lógica de saturação
jugoslavo
no contexto
e de “evento” que os
do Movimento
dos Não
acaba por atirar para
Alinhados a indiferenciação
A Nossa ferramentas na mão!”.
África Não estritamente sobre as relações
O filme de entre o bloco soviético e os países afri-
Alexander canos mas filmado pelo jugoslavo
Markov Zdravko Velimiroviæ, O Tempo dos
faz uso de Leopardos (1985; passa a 1 de Outu-
imagens da bro), obra escassamente vista em
propaganda Portugal, é um importante docu-
oficial da mento de que pouco ou nada se fala
URSS que quando se pensa em filmes sobre a
pretendia guerra colonial portuguesa. Frágil
montar uma pelo acting por vezes embaraçoso
narrativa de (compreensível: todos os actores não-
amizade e profissionais), denota, porém, uma
cooperação mise-en-scène e um trabalho de câ-
com as nações mara estimáveis (a que se junta um
africanas uso acutilante da banda de som), com
algumas cenas excelentes (logo o tra-
e sangue…) tão devedora da escola afinal, por parte dos soviéticos pe- velling lateral inicial ou as cenas de
soviética como da nouvelle vague fran- rante a chegada destes estudantes? “É convívio e dança no mato).
cesa. Maria Paula Meneses, investiga- preciso ver que, por aquela altura, “Há um problema sério no filme e
dora moçambicana na Universidade três quartos da população russa eram que talvez passe à margem do espec-
de Coimbra e que durante 6 anos es- camponeses vindos de ‘onde Judas tador português: a narrativa do que
tudou na ex-URSS ao abrigo do mesmo perdeu as botas’. Eram camponeses é ser moçambicano é retratada como
programa, reconhece no filme uma que nem sabiam bem como viver em sendo a luta armada conduzida pela
história semelhante a tantas outras São Petersburgo, porque vinham da Frelimo, como se não tivesse havido
que viveu de perto. Sibéria, da Rússia profunda, era uma outro tipo de experiências e resistên-
“Por um lado, havia problemas população rural e sem conhecimento. cias. Não se ouve falar do papel das
com as famílias dos russos. Mas tam- A certa altura, fomos visitar um igrejas na mentalização política, não
bém acontecia o contrário: normal- kolkhoz e havia uma senhora velhota se fala dos presos políticos, de outras
mente, os estrangeiros tinham mais que todos os dias, durante o mês, con- lutas clandestinas”, observa Maria
dinheiro do que os russos. Por isso, vidou o Hermínio, um amigo nosso, Paula de Meneses. Em qualquer caso,
havia o desejo de chegar a nós, que que era o mais escuro de nós, para um filme humanista, bem complexo
trazíamos os bens de prestígio de beber leite em sua casa. Nós até dizía- nas entrelinhas, jogo de espelhos (à
fora, como os jeans. E também havia mos: ‘O que é que ele tem que nós não dupla militar portuguesa opõe-se a
situações ‘malvadas’: vários dos meus temos?!’. No fim, o Hermínio aparece dupla moçambicana e um episódio
colegas voltaram para casa e a mulher todo chateado porque se tinha ido marcante de uma infância mítica
russa e o filho ficaram para trás. Havia despedir e a senhora lhe tinha dito unindo uns e outros) que recusa um
mães russas que não tinham capaci- com a maior das boas vontades: maniqueísmo fácil (o que, se hoje pa-
dade para suportar os filhos e os en- ‘Dei-te tanto leite e tu não ficaste mais rece corajoso, ainda mais o terá sido
tregaram ao orfanato… Por isso é que claro!’. Lembro-me de estar a falar à época): brancos e negros, portugue-
hoje, sobretudo na ex-RDA, há uma com um colega do Congo e de chega- ses e moçambicanos, há-os aqui de
data de jovens à procura dos pais. rem uns sobrinhos de uma colega toda a espécie, bondosos e justos,
Têm um nome, uma fotografia e an- russa e de lhes ouvir uma frase que violentos e desleais (o protagonista
dam à procura. Mas também há famí- nunca mais esqueci: ‘Olha, está ali um que dá título ao filme dirá, como Man-
lias que perduraram. Neste momento, macaco. E fala russo’. Era este o nível dela, que a futura nação moçambi-
há segundas gerações de africanos na de desinformação e de racismo pri- cana não será um Estado para negros,
Rússia”. mário. São Petesburgo já era outro mas para todos, brancos e negros),
Quando todas as semanas nos che- mundo, ia no comboio a discutir com não deixando de aludir ao papel das BILHETES À VENDA EM BLUETICKET.PT, FNAC, WORTEN,
gam notícias de mais um cântico ra- as pessoas a situação política em mulheres moçambicanas no conflito. EL CORTE INGLÉS E NOS LOCAIS HABITUAIS
cista de uma claque russa contra um África. A primeira vez que ouvi falar Com todas as suas fragilidades, é,
HOUSEOFFUN.PT
jogador negro (inclusivamente da sua em Chinua Achebe foi com um senhor com Rostov-Luanda, uma das pérolas
equipa), que tipo de reacção existia, russo que estava com uma mala de a não perder no festival.
24 | ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019
“O
mundo não é mais rock. É um álbum negro e denso, com grafia da banda. Na primeira, recupe- módulos musicais, rítmicos ou meló-
um lugar seguro! O os Mão Morta a alternarem planares rando parte da cenografia da peça dicos. Quando surgiu o convite do
mundo deixou de ser rock assombrados com ataque sónico criada com Inês Jacques, ouvir-se-á o GUIdance, estávamos com o disco
um lugar seguro tenso e intenso. Avançamos de terror novo álbum na íntegra. atrasado. Como quisemos aceitar o
quando os oceanos em terror, ténues esperanças destruí- Adolfo Luxúria Canibal, que acaba convite – juntar música rock à dança
invadiram a terra das, até à solidão final: “És tu, este ser também de editar, pela Porto Editora, não é nada inédito, mas para nós era
com as suas ondas viscosas e empur- que vela por mim e não se ilumina? No Rasto dos Duendes Eléctricos (Poe- -, o que nos pareceu possível coorde-
raram toda a gente para o alto das Sinto tanto frio, meu amor…”. sia 1978-2018), colecção da sua obra nar era juntar as duas coisas, o novo No Fim
montanhas”. Assim somos introdu- A música que a integra foi levada a poética coordenada por Valter Hugo disco com o espectáculo de dança. E era o Frio
zimos em No Fim era o Frio, o novo palco em Fevereiro de 2019, no festi- Mãe, fala ao Ípsilon do presente que foi assim que fizemos a sinopse para Mão Morta
álbum dos Mão Morta, sucessor de val GUIdance, em Guimarães, numa existe nesta distopia encenada num apresentar o espectáculo de dança, Rastilho
Pelo Meu Relógio São Horas de Matar colaboração com a bailarina e coreó- futuro incerto. uma sinopse abstracta sobre esta Records
(2014). Este último tinha como pano grafa Inês Jacques. Gravado após essa ideia modular.
de fundo as consequências humanas primeira apresentação, será agora O que ouvimos no disco foi O Miguel [Pedro] começou a fazer as mmmmm
da crise financeira. Já No Fim era o revelado ao vivo. Dia 28 de Setembro primeiro apresentado numa suas montagens e nasceu a primeira
Frio é uma distopia. História de no Hard Club, no Porto; dia 11 de Ou- colaboração com a bailarina e sequência, os módulos I a IV. Eu fiz a
perda, sem esperança nem reden- tubro no LAV, em Lisboa; e dia 31 de coreógrafa Inês Jacques no letra para esses quatro módulos, e
ção, com a crise climática como apo- Outubro no Cineteatro Louletano, em festival GUIdance, em criei logo ali uma história. Não havia
calipse confirmado. Loulé. Veremos concertos divididos Guimarães. Nasceu de uma ideia nada definido sobre o disco, se seria
O novo disco nasceu de uma ideia em duas partes. Na segunda, o voca- conjunta entre os seis músicos e conceptual, mas quando cheguei ao
musical inspirada na composição em lista Adolfo Luxúria Canibal, o bate- os seis bailarinos em palco? Módulo IX [A minha amada], olhei
módulos da música electrónica e, rista Miguel Pedro, o teclista e guitar- A génese é anterior e é musical. Que- para trás e tinha uma história. Antes
nele, sobressai uma toada mais am- rista António Rafael, a baixista Joana ríamos construir um disco eléctrico, de chegarmos a ele, o Miguel tinha-
biental, com algumas sugestões de Longobardi e os guitarristas Sapo e de rock, a partir do conceito de músi- me dito que queria uma narrativa
kraut-rock ou das panorâmicas pós- Vasco Vaz revisitarão a longa disco- ca electrónica, que trabalha com com sexo, do género de Divino Mar-
quês [de O.D. Rainha do Rock e do
Crawl, 1991]. Fiz as letras anteriores,

“O mundo
do módulo VII [Deflagram clarões de
No Fim Era o Frio, luz] e VIII [Invasão bélica], a pensar
o novo álbum como chegaria à narrativa à Divino
Marquês. Só aí é que percebi que tinha
dos Mão Morta, uma história. Depois, só precisei de
limar alguns pontos, para a narrativi-
é uma narrativa

não é mais
dade ficar evidente. Foi essa história
distópica sobre que passámos à Inês. Por questões
coreográficas, a música do bailado
a crise ambiental. não corresponde à música que está
no disco, mas quando fomos gravá-lo
A banda
de Braga
É também um voltámos a versão original. apresenta

um lugar
No Fim era o Frio aborda a crise este álbum
álbum sobre ambiental colocando-nos num que é
perda, perda cenário pós-apocalíptico,
quando a sobrevivência
negríssima
narrativa
total, esvaziada humana se tornou já impossível.
A questão ambiental é o mais
sci-fi este
sábado no

seguro!”
de qualquer importante desafio que Hard Club,
e no Porto
esperança. enfrentamos hoje?

Adolfo Luxúria
Canibal fala
ao Ípsilon.

Mário Lopes

DR

ípsilon
ípsilo
íp
ípsilo
lo
on | Se
Sexta-feira
exta
x -fe
feira
feira 27 Setembro
ira Setem
mbro
o 2019
9 | 25
e

DR
Estamos quase no ponto de não
retorno e isto não é alarmismo.
poder económico. Ao mesmo tempo,
apresentando as coisas como não “Pensávamos Era essa a sensação final que queria
acentuar, a de que estamos no abis-
Vamos ocupando o espaço, vamos
competindo com as outras espécies
havendo alternativa tentava-se não
beliscar o voto perante aquilo que era que nos tínhamos mo. Os próprios lampejos de espe-
rança não passam de alucinações.
e destruímo-las. Destruímos o pró-
prio espaço que habitamos porque
lesivo para essa maioria, como os cor-
tes nos rendimentos. Já as questões libertado de Deus, Nada é palpável, nada é real. Este
texto foi publicado num livro ante-
queremos sempre mais. Não estamos
perante a extinção do planeta, que
ambientais são coisas difusas. Esta-
mos a falar do choque de uma coisa mas não, parece que rior, chamado precisamente No fim
era o frio – e outros textos de amor e
continuará a existir seja lá como for,
mas perante a extinção da nossa espé-
que é muito abstracta e de uma outra
que é muito concreta. Nesse embate, Deus está a voltar e, solidão, que saiu em Abril numa
pequena editora de Coimbra [Do
cie. Ficar sem habitat implica a nossa
destruição, e é o que estamos a fazer.
os políticos têm tendência a pensar
mais próximo do concreto. Como têm com Deus, vem toda Lado Esquerdo]. Na apresentação do
livro li esse texto e, quando cheguei
É evidente que lutar contra ela tem
custos financeiros, e uma pessoa
medo de tocar nos interesses finan-
ceiros, que são afectados pela mudan- a violência, vem todo ao fim, parecia que tinha dado um
murro no estômago das pessoas. Foi mos libertado de Deus, mas não,
habituou-se desde a Revolução Indus-
trial a pensar as coisas em termos de
custo financeiros, mas há custos
ça de paradigma comportamental, e
como têm medo de impor comporta-
mentos que as pessoas não perce-
o fanatismo” uma sensação estranha e interessan-
te, mas era o que procurava. Custa a
respirar no fim desta história. Não é
parece que Deus está a voltar e, com
Deus, vem toda a violência, vem todo
o fanatismo, vem toda a intransigên-
maiores que os que meia dúzia de bem, porque são demasiado abstrac- que eu tenha ou deixe de ter espe- cia, e, perante Deus como única ideia
empresas e de países podem ter. Para tos, rodopiam e andam atrás do rabo rança no futuro, mas há que fazer possível, vem o apoucar da liberdade
o custo da extinção da espécie huma- a fingir que tomam medidas ou dizem ligação visceral ao real e se o disco alguma coisa por ele. de ideias. Os Mão Morta serem enten-
na é que não há volta a dar. abertamente que é tudo um dispara- anterior era construído em tempo Não tem fé na “capacidade didos como bichos interventivos tem
No momento da crise financeira te, como é o caso de grandes líderes de crise, em tempo de guerra, este é regeneradora da canção”, como muito a ver com isto. Não estamos
impôs-se a narrativa do “não há mundiais como Trump ou Bolsonaro, um disco que, no fundo, espelha nos disse em entrevista sobre o distantes, em termos ideológicos, do
alternativa” relativamente às energúmenos que dizem todos os outra realidade. Para mim é um álbum anterior. No entanto, é que éramos há 20 ou há 30 anos, os
decisões tomadas para lhe fazer disparates que lhes passam pela cabe- disco de perda, muito emocional. difícil olhar para Pelo meu tempos é que são outros. Agora nota-
frente. No caso da crise ça como se fossem meninos de cinco Pode ser entendido como muito relógio são horas de matar e para se mais que a nossa música e a nossa
climática, quando todos os anos. pessoal, uma perda desligada do No fim era o frio sem pensar em escrita têm a ver com o nosso pensa-
dados fornecidos pela ciência Tanto no som, como na forma problema ambiental, como também activismo, ou, pelo menos, em mento. Pensamos em voz alta, ence-
indicam que não há realmente como a música é apresentada, pode ser relacionado com a perda música que pretende agitar namos pensamentos e, ao fazê-lo,
alternativa a uma alteração No Fim Era o Frio é diferente de da espécie humana e do seu habitat. consciências. estamos a convidar os outros a pen-
radical da forma como nos Pelo meu relógio são horas de São questões prementes, questões O mundo tem evoluído para uma sar. Este convite ao pensamento,
organizamos, o poder político matar. No entanto, apesar dos de hoje, e, nesse sentido, há essa forma mais fechada em termos de numa época em que o pensamento
não mostra certezas cinco anos que os separam, continuidade com o disco anterior. circulação de ideias, de possibilida- começa a ser mirrado e sufocado,
semelhantes. dado os temas que cada um O álbum é de uma desesperança des ideológicas, de liberdade. Só vejo em que começa a imperar o fanatis-
O poder político funciona muito com aborda, a crise financeira e a total. O amor surge como comparação com fenómenos do iní- mo e o choque de ideias únicas, é
base em duas coisas. No voto popular, crise ambiental, não haverá hipótese de redenção, mas nem cio do século XX e que levaram às uma coisa que dá nas vistas, que é
ou seja, agradar à maioria, e nos favo- neles algo de complementar? ele é capaz de salvar. Imagino guerras mundiais, fenómenos de estranho, politicamente incorrecto.
res ao poder económico. Na crise Em termos sonoros, na forma como que não se sinta optimista. empobrecimento mental e de fana- É apenas a mudança dos tempos que
financeira, a ideia do “não há alterna- as coisas são abordadas, há uma O fim deixa-nos um vazio enorme. tismo. Há um recrudescimento reli- faz com que hoje sejamos mais vistos
tiva” serviu para imprimir um mode- grande diferença em relação ao “No fim era o frio” junta-se ao início gioso extraordinário, mesmo em como interventivos do que há vinte
lo comportamental que agradava ao disco anterior. Mas também há essa bíblico, “no princípio era o verbo”. Portugal. Pensávamos que nos tínha- anos.

26 | ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019


Encontramos

HERB SNITZER/MICHAEL OCHS ARCHIVES/GETTY IMAGES


Coltrane num
pico criativo,
Blue World,
e Miles
numa fase
descendente:
Rubberband

Gonçalo
Frota
Num mesmo mês, vemos
chegar gravações inéditas de
Miles Davis e John Coltrane.
Em sentidos diversos, Miles

O Miles de hoje, foi trabalhado para dialogar


com 2019, Coltrane foi
deixado em 1964.

o Coltrane de sempre
S
critti Politti, Michael Jackson, enchia os ouvidos e os discos de ele- tação do tema em Montreux e dito
Mr. Mister ou Cyndi Lauper. mentos funk, pop e rock, a versão de ao trompetista que tinham de lançá-
Em meados dos anos 80, Time after time havia, na verdade, de lo em disco, promessa que se foi
Miles Davis mantinha a tele- ser um dos principais motivos invo- adiando para irritação do músico. “O
visão na sua casa de Malibu cados por Miles Davis para abando- George andava demasiado ocupado
sempre ligada na MTV e o nar a editora que, ao longo de 20 com o Wynton Marsalis”, queixou-se
volume era mantido num nível mí- anos, publicou o seu período mais ao NME.
nimo até que algum nome como os criativo — a Columbia Records. Miles Davis já estaria com a Colum-
acima referidos surgisse no ecrã. Só Em entrevista ao New Musical Ex- bia e Butler pelos cabelos quando,
então o trompetista carregava no press, em 1985, Miles Davis defendia segundo contou na mesma altura em
som, à espera de se encantar com que um standard é “um tema que, entrevista ao jornalista Graham Reid,
alguma canção pop. Quando isso, de de cada vez que se ouve, quer ouvir- o editor lhe telefonou dizendo “Miles,
facto, acontecia, pedia depois à edi- se um pouco mais”, razão pela qual porque é que não ligas ao Wynton? É
tora que lhe enviassem o álbum e Time after time devia, no seu enten- o aniversário dele.” Seria uma tenta-
“ouvia esses discos repetidamente, der, figurar ao lado de temas como tiva de apaziguar o clima entre os dois
escolhendo as canções pop que que- Stardust, Summertime ou My funny — cuja troca de impressões sobre o
ria tocar”, lembra Vincent Wilburn valentine. “Time after time será um trabalho de cada um, em público, se
Jr., sobrinho de Miles. Assim nasce- standard, em parte porque eu o to- tornara especialmente azeda —, mas
RICHARD ROTHMAN

ram as versões de Human nature (de quei, em parte porque a Cyndi o em vez disso Miles resolveu bater com
Jackson) ou Time after time (de Lau- cantou, mas é também uma boa me- a porta e mudar-se de armas e baga-
per) que Miles gravou em You’re Un- lodia”, argumentava. Alegadamente, gens para a Warner Brothers.
der Arrest. Numa altura em que o depois de Miles tocar o tema ao vivo Esse corte com a Columbia acon-
músico manifestava uma aberta durante meses, George Butler da teceria numa fase em que Miles Davis
aversão ao vocáculo “jazz”, e em que Columbia terá ouvido a sua interpre- voltava à vida, tentando manter- e

É também disto que nos falam estes lançamentos:


a sobrevivência de um génio não é isenta de riscos
ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019 | 27
e se artisticamente relevante, mas
soando sempre algo perdido e longe
chamar-se Rubberband, o seu pri-
meiro registo para a Warner Temos acesso registo com que o saxofonista res-
pondeu ao pedido do cineasta do
de um fulgor criativo que desapare-
cera de cena depois de On the Corner
Brothers. Só que a meio das grava-
ções, numa altura em que esse novo a uma música Quebeque Gilles Groux para criar a
banda sonora do filme Le Chat dans
(1972). Para um protagonista de vá-
rias revoluções no jazz documenta-
reportório já era também testado em
palco, Tommy LiPuma, responsável mantida intocada le Sac, história de amor polvilhada
de sugestões políticas plantada em

Rubberband
das em álbuns como Birth of the Cool,
Kind of Blue, Milestones, In a Silent
pelo departamento de jazz da edi-
tora, terá sugerido ao trompetista (o disco de Coltrane) Montreal.
Acompanhado dos companheiros
Miles Davis
Warner Music
Way, Bitches Brew ou Jack Johnson,
uma tal mudança de ares implicaria
que adoptasse uma nova direcção
— aquela que, pouco depois, deu ori- e tomamos habituais do seu quarteto maravilha
— Jimmy Garrison, Elvin Jones e

mmmmm
a ambição de deitar tudo abaixo e
reerguer algo de profundamente
gem a Tutu. Ou seja, Rubberband foi
abandonado, emprateleirado du- contacto com outra, McCoy Tyner —, Coltrane passou, em
Junho de 1964, pelo estúdio do es-
novo. Só que o verdadeiro e conse-
quente aventureirismo na carreira
rante décadas, e Tutu tornou-se a
estreia oficial de Miles na Warner, a de Miles, sencial Rudy Van Gelder e gravou
várias takes de alguns temas capitais
do trompetista estava já enterrado.
Daí que, recorda Vincent Wilburn Jr.,
ainda que sem concretizar qualquer
revolução. refeita para no seu caminho — Naima, Village
blues e Like Sonny —, acrescentando
o sobrinho baterista que o acompa-
nhou desde o início da década de
Mais do que antecipar o futuro,
algo em que Miles Davis perseverou não ser vítima o inédito Blue world, que dá nome ao
álbum que agora é revelado. São 36
1980, o primeiro pedido de Miles ao
guitarrista e compositor Randy Hall
para as primeiras sessões de grava-
sobretudo nas suas duas décadas na
Columbia — basta perceber a soberba
gestão da participação dos músicos
do seu anacronismo minutos de altíssimo nível, clara-
mente encaixados entre Crescent e A
Love Supreme, dos quais Groux aca-
Blue World ção pós-Columbia foi para que lhe que esteve na origem das obras-pri- bou por usar apenas 10.
John Coltrane escrevesse “um êxito pop”. mas In a Silent Way e Bitches Brew —, Blue World soa exactamente àquilo
Impulse!; distri. A cabeça de Miles Davis estava, na nos anos 1980 tentou acertar o passo que se poderia antecipar. Não é, cla-
Universal Music altura, focada na pop com que se cru- com a música que borbulhava fora ramente, a execução de uma banda
zava e através da qual desejava rein- do jazz. Tutu é exemplar nisso — sonora, mas antes a gravação de vá-
MMMMM ventar-se. Fiel a uma constante in- Splatch, por exemplo, um dos seus rios temas de Coltrane a que Groux
quietude, desprezava, na verdade, a melhores momentos, banha-se em poderia recorrer. E não é também a
atitude de os jovens músicos de jazz águas do funk-pop de Prince e numa documentação de um disco, no sen-
que se limitavam a repisar os stan- cadência em tudo devedora da pro- tido em que o quarteto discorre so-
dards de sempre ou até aqueles que ximidade ao hip-hop. “Era o Miles insistindo numa abordagem que — bre as criações do saxofonista sem a
começavam a carreira a imitar a so- Davis, sempre à procura de novos sabe Vincent — “não será bem aco- preocupação de ter de construir um
noridade dos seus dois quintetos, que sons e de novas ideias — era isso que lhida pelos puristas de jazz que ado- todo coerente. Destes factos resul-
desvalorizava como mera expressão o movia, evoluir e nunca olhar para ram o Sketches of Spain e o Birth of tam óbvias forças e fraquezas: as
de anacronismo e passadismo. Daí trás. Se quisesse mudar de direcção the Cool”. Só que se os temas de magníficas interpretações de Naima
que, sem um motor de revolução ar- e mudar um álbum inteiro no dia Rubberband dialogavam com o pre- e Village blues beneficiam da falta de
tística extraordinário, aquilo que lhe seguinte a gravá-lo, era o que fazia e sente de então, só conhecendo a luz pressão, soando com uma intensi-
interessava neste período era a apro- nós seguíamo-lo”, admite Wilburn. do dia em 2019 teriam, na opinião dade compatível com enormes le-
ximação de músicos como Prince e Não foi esse o caso, mas ninguém dos três, de actualizar esse diálogo. veza e liberdade; o facto de Blue
de um reportório mainstream. Foi parece saber muito bem o que moti- Para fazer justiça a um Miles Davis World não ter sido pensado como
com esse espírito que voltou a juntar- vou o constante adiamento de que, diz o sobrinho, “mudava de álbum faz com que não se oiça esta
se a Vincent, Randy e outros dos jo- Rubberband. O certo é que o disco roupa seis vezes por dia” e que car- colecção de takes com o mesmo ma-
vens músicos que descobrira à dis- permaneceu arquivado até há um regava consigo “um vasto espectro ravilhamento que jorra dos álbuns
tância de um telefonema numa altura par de anos, quando a Warner resol- musical — quem mais é que alguma deste período (Crescent e A Love Su-
em que se encontrava numa fase de veu contactar a família e ressuscitar vez tocou com Charlie Parker e preme, claro, mas também Ascension,
semi-reclusão. Rubberband. Vincent voltou então a Prince?” Impressions e Africa / Brass).
“Eu tinha uma banda [Data] em escutar as sessões na companhia de Apesar de não ser complicado Se é sempre um privilégio desco-
Chicago e costumávamos ensaiar na Erin Davis, filho mais novo de Miles, identificar a óbvia marca de Miles brir Coltrane e é uma abençoada
cave dos meus pais, no Southside”, e os dois rapidamente perceberam Davis, e tentar imaginar aquilo que raridade ouvir o saxofonista a rein-
lembra Wilburn. “O tio Miles ligava que o material “soava demasiado hoje o trompetista estaria a fazer, é terpretar a sua obra, é sobretudo
e pedia à minha mãe para pousar o anos 80, demasiado datado”. Passa- difícil não ouvir Rubberband como uma revelação seguir-lhe os passos
telefone por perto e assim ouvir os dos 28 anos, Wilburn convocou de um álbum que ostenta o seu nome à medida que nos arrasta consigo em
nossos ensaios.” Estavam então em novo os produtores originais Randy mas no qual o trompetista soa com Blue world, como se tecesse uma teia
1979 / 1980 e Miles recorreu várias Hall e Attala Zana Giles, e os três de- frequência a um músico convi- com um fraseado que rouba qual-
vezes a este esquema, aproveitando cidiram trazer 1985 para o presente. dado. quer hipótese de fuga sem que nos
para dar conselhos individuais aos Nos temas inicialmente previstos apercebamos disso — Coltrane arras-
músicos no final dos ensaios. As ve- para as vozes de Chaka Khan e Al Uma falsa banda sonora ta-nos para o fundo e por lá nos
zes suficientes até os “miúdos” rece- Jarreau encontramos agora as canto- Proposta bem diferente é aquela tra- deixa. E aí se percebe, por inteiro, a
berem bilhetes de avião para Nova ras Lalah Hathaway e Ledisi, e o pró- zida por Blue World, álbum com ma- grande diferença entre estes dois
Iorque e se juntarem ao mestre em prio Hall. terial inédito de John Coltrane que a lançamentos: encontramos Coltrane
estúdio na gravação de The Man With Das sessões originais sobraram Impulse! foi desenterrar aos seus num pico criativo e Miles numa fase
the Horn. “Mas é quem é que são es- sobretudo as partes de trompete e arquivos. Um ano depois de Both descendente; temos acesso a uma
tes putos de Chicago que levaram o de sintetizadores que Miles deixara Directions at Once se ter tornado o música mantida intocada e tomamos
Miles de volta para o estúdio?”, lem- registadas, acrescentadas de esco- maior sucesso de vendas de sempre contacto com outra refeita para não
bra-se de ouvir perguntar Wilburn. lhas tomadas a “pensar naquilo que na discografia de Coltrane, ao lançar ser vítima do seu anacronismo. Claro
faria o tio Miles orgulhoso”. A partir para o mercado as sessões de um que Coltrane não chegou a atravessar
Na prateleira do conhecimento que tinham do disco que nunca chegou a existir — os anos 80, poupando-se a embara-
Foram alguns desses músicos que o músico, os três carregaram, no en- nem há certezas que tenha, de facto, ços que haviam de germinar. Mas é
acompanharam nos anos seguintes tanto, numa vertente mais soul em sido pensado enquanto tal —, Blue também disso que nos falam estes
e que Miles chamou, em 1985, para Rubberband of life e So emotional, World reincide nesse improvável dois lançamentos: a sobrevivência
as sessões de um álbum que havia de mas também no funk de This is it, sucesso de mercado ao resgatar o de um génio não é isenta de riscos.

28 | ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019


Eneida Marta renasceu da dor
BRUNO OLIVEIRA

Nuno Pacheco
Depois de Nha Sunhu,
a cantora e compositora
guineense Eneida Marta
teve de superar a morte do
mestre de kora Ibrahim
Galissa. E fê-lo renascendo
dessa dor: o seu novo disco
tem o nome de Ibra.

D
esde que lançou Lôpe Kai, ainda está vivo. E vai continuar muito Idealizei um disco com refrões fá- mim, na minha história. Fez a música
em 2006, que a voz de vivo em mim.” ceis, que ficassem no ouvido, e com e a letra e disse-me: aqui tens. É uma
Eneida Marta se afirmou Isto explica o título do disco, Ibra, melodias simples de se fixar. Isto música onde eu entrego tudo nas
como uma das grandes pro- abreviatura pela qual era conhecido para que chegasse às pessoas de mãos de Deus porque, por pior que
messas da música gui- Ibrahim Galissá, músico nascido em forma mais rápida. Porque nos meus eu esteja, só tenho de agradecer a
neense. Para trás ficava um Gabú, no Leste da Guiné-Bissau, e que discos anteriores as melodias e os Deus tudo aquilo que tenho, porque
disco ainda incipiente, Nô Stória se tornou exímio no instrumento que arranjos eram mais complexos.” há pessoas que estão pior do que eu.
(2001), seguindo-se a Lôpe Kai um escolheu e ao qual se afeiçoou, a korá. Mas a leveza é só aparente, porque Por isso não caio no abismo da de- Ibra
outro trabalho onde ela tentou, com “O disco era para se chamar Alma na a força da interpretação e o cuidado pressão. Essa é a forma de me defen- Eneida Marta
êxito, superar-se; Nha Sunhu (2015). fala [alma na voz] mas deu-se aquilo nos arranjos tornam Ibra um sucessor der dos baixos que me surgem.” Já Algeventos
Mas uma hospitalização inesperada, e a única coisa que me veio à cabeça à altura de Nha Sunhu, sem cedências Paulo Nanki, de José Carlos Schwarz, distri. Ocarina
durante a digressão desse disco, foi: o meu álbum vai-se chamar Ibra. que poderiam afastá-lo do que tem é a história verídica de “uma pessoa
obrigou-a a parar durante um tempo. Porque de alguma forma ele tinha de sido o grau de exigência posto nos que teve e deixou de ter. Fala das mmmmm
Recuperou fisicamente, sem quais- estar no álbum. De todas as homena- dois discos anteriores. Um pormenor pessoas que estão em alta e que não
quer sequelas, mas decidiu ficar gens que eu possa vir a render-lhe, relevante foi o facto de a produção ter sabem, no fundo, usufruir daquilo
mais tempo na Guiné. “Tinha uma esta é uma gotinha, ainda.” sido entregue a Koudou Athanase, que têm. E só começam a perceber
necessidade muito grande de lá es- engenheiro de som que já trabalhou isso quando estão numa fase em que
tar, para me reencontrar, porque fi- Um ‘casamento’ mágico com Salif Keita ou Richard Bona, en- perdem o que possuem.”
quei emocionalmente devastada.” E Superar a morte de Galissá seria, tre outros, e que, segundo Eneida Mas é Homis di gossis [homens de
resultou: “Fiquei outra vez Eneida para Eneida, renascer também dessa Marta, soube interpretar tudo o que hoje] que tem sido, segundo Eneida,
Marta, com a força toda. Foi como dor. E o disco, mesmo sem ele, ecoa ela imaginava: “Posso descrever isso o tema mais popular dos que gravou
um renascer das cinzas.” algo da sonoridade que ao longo dos como uma magia, pelo ‘casamento’ no disco: “É um acordar de consciên-
E isso levou-a a querer ir de novo anos ele foi deixando nos trabalhos que houve entre mim e o meu produ- cias para aqueles homens que só sa-
para estúdio, gravar outro disco, pôr da cantora. Com canções de nomes tor. Eu tinha uma coisa na cabeça, bem fazer os filhos, mas o assumir de
nele tudo o que lhe ia na alma. E co- históricos como José Carlos Schwarz sabia o que queria ouvir, e ele é que responsabilidades, nem vê-lo! Conti-
meçou a escolher canções, a falar (1949-1977) ou Aliu Bari (1947-2013) e lhe dava forma, sem que eu tivesse de nua a ser assim, na Guiné-Bissau, por
com músicos, a pôr em marcha o me- com a participação de músicos que lhe dizer nada. Por isso é que digo que isso é que lá este tema está a ser um
canismo habitual nestas coisas. Até desde há muito a acompanham, o que aconteceu entre nós foi real- hino. Está nos telefones de pratica-
que, em Janeiro deste ano, sofre um como Manecas Costa, Tony Dudu ou mente mágico.” Por absoluto acaso, mente todas as mulheres e algumas,
novo golpe: o músico guineense Ibra- Zé Manel Fortes (dos Super Mama Koudou Athanase, que é de Abidjan, quando lhes telefonam os pais das
him Galissá, mestre de korá, que tinha Djombo), Ibra conta com vozes no- Costa do Marfim, tem a mesma idade filhas, já nem falam, põem logo a mú-
tocado com ela em Nô Stória, Lôpe Kai vas da Guiné, como Karyna Gomes, que tinha Ibrahim Galissá: nasceram sica. E está a surtir efeito. Porque pelo
e Nha Sunhu e em numerosos concer- Eric Daro, Remna Schwarz (filho de ambos no mesmo ano, 1964. menos uma pessoa que eu encontrei
tos, morre subitamente, após ter con- José Carlos Schwarz) ou Missy Bity. num voo de Londres para Lisboa já
traído o que foi diagnosticado como “Alguns temas, eu já tinha em mente Um hino para me disse uma coisa que me encora-
constipação. Foi hospitalizado no dia gravá-los, como Paulo Nanki, do José as mulheres jou. Uma moça tinha ficado grávida
em que ia começar a gravar no estú- Carlos Schwarz, Colonia, do Aliu Tal como nos discos anteriores, tam- dele, em Bissau, e ele não assumiu
dio e morreu dois dias depois. “Uma Bari, ou Koitadi, do Zé Manel For- bém aqui as canções vivem de coisas porque não estava nos seus planos.
morte estúpida, que até hoje ainda tes”, diz Eneida. Mas outros foram do quotidiano, histórias, persona- Mas disse-me, quando o encontrei:
não aceito”, diz ao Ípsilon Eneida surgindo à medida que o disco ia to- gens. Alma na fala, por exemplo, é ‘Estou a voltar, para corrigir.’ Já é bas-
Marta. “Muitas vezes estou a falar mando forma na sua cabeça. “O Ibra quase biográfica: “A Karyna Gomes tante significativo. Há muita gente
dele e falo no presente. Para mim, ele foi construído de uma forma leve. escreveu esse tema inspirando-se em que está a corrigir isso.”

ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019 | 29


CHERYL-FOX

Cinema
Estreiam
As lobas de Wall
Street
A história verídica de strippers
unidas para desfalcar os ricos:
um comentário pensativo e
frívolo sobre as desigualdades
modernas. Jorge Mourinha

Ousadas e Golpistas
Hustlers
De Lorene Scafaria
Com Constance Wu, Jennifer Lopez,
Julia Stiles

mmmmm
The Lost Boy é um dos melhores álbuns de estreia de um rapper americano em muitos anos
Um dos grandes êxitos dos
Eurythmics chamava-se Sisters Are
Discos
tempo em que ainda assinava como Doin’ It (For Themselves) e era um
Pop Entendre e se encontrava longe do hino girl power avant la lettre, sobre
aprumo orquestral, ricamente o poder de mulheres unidas para
Quem se perde soulful, que agora lhe
testemunhamos. Se The Lost Boy
um objectivo comum. Ousadas e
Golpistas seria a sua tradução
assim não é gago não é, certamente, o melhor álbum cinematográfica: um pequeno
do hip-hop americano de 2019, núcleo de dançarinas exóticas num
Dos “perdidos e achados” da será, provavelmente, um dos mais strip club nova-iorquino que se une
bem “arranjados” (atente-se só no para tomar posse do seu corpo e do
juventude afro-americana sai último minuto da aditivamente seu destino e ter a vida que sempre
um grande LP de estreia, com edulcorada Bad Idea, piano e desejaram. É, ainda por cima, uma
entrada directa para a safra violino a encerrarem a canção história verdadeira que teve lugar
do melhor hip-hop de 2019. como se a última página de um livro em Nova Iorque e foi descrita no
se virasse), para o que muito artigo da revista New York que serve
Francisco Noronha contribuem os numerosos artesãos de base ao filme de Lorene Scafaria
The Lost Boy que aqui metem as mãos. (Até que o Fim do Mundo Nos Separe):
Dos mais novos (Terrace Martin, strippers que não tinham problemas
YBN Cordae
Art@War, Atlantic Records J. Cole) ao pessoal dos Dap-Kings, em “desfalcar” os “lobos de Wall
passando por dinossauros, muitos Street” de milhares de dólares
mmmmm deles há anos sem entrarem em numa noite, porque eles tinham
estúdio para trabalhar num disco mais dinheiro do que precisavam e
Noutros tempos, de hip-hop: Jon Lucien, Roberta elas precisavam de mais dinheiro do
aparentemente Flack (!) e Donny Hathaway (!!), sim, que ganhavam. Até ao momento em
perdidos para mas, não menos importante, gente que houve a Grande Recessão de
sempre, o facto dos bastidores responsável pelo 2008, Wall Street veio por aí abaixo
de uma editora som da Philly Soul dos anos 70, e tudo cai por terra.
“de prestígio” caso da dupla Kenneth Gamble e A sobrevivência exige um
como a Atlantic pegar num novato Leon Huff ou de Charles Mann. pequeno passo em direcção à
como YBN Cordae sinalizaria, Se o título do disco é desmentido ilegalidade: as meninas começam a
quase inequivocamente, o pela designação da última das drogar as bebidas dos clientes para
virtuosismo deste americano faixas (Lost & Found, canção, aliás, poderem facturar. Destiny, a nossa
criado em Maryland e hoje a viver supérflua e que impede o disco de “guia” pela história das strippers do
em Los Angeles. Mas estamos em fechar magistralmente com We Gon clube Moves, racionaliza a decisão
2019: dias em que a Motown tem Make It), é porque tal contradição, como uma espécie de assalto à
no seu catálogo pobrezas da estirpe deliberada, reflecte o processo de Robin dos Bosques, devolvendo à
de Migos ou Lil Yachty e a própria crescimento e amadurecimento, classe trabalhadora o dinheiro que
Atlantic edita Cardi B ou Gucci “tentativa e erro”, de um jovem
Mane. adulto provindo de uma vivência
Posta esta hipótese de lado, uma social e familiar complicadíssima a AS ESTRELAS Jorge
Mourinha
Luís M.
Oliveira
Vasco
Câmara
mais interessante se nos afigura: o
que leva dois intérpretes da
quem a música e a resiliência
tiraram dos piores caminhos, DO PÚBLICO
excelência de Chance The Rapper e histórica e heróica condição de
Anderson .Paak (com quem Cordae toda a população afro-americana
“saca”, coisa rara no rap, um dueto desde o princípio dos tempos: Ad Astra mmmmm mmmmm mmmmm
no verdadeiro sentido do termo, onde Nina Simone se Amazing Grace mmmmm mmmmm mmmmm
em vez da habitual mera partilha auto-intitulava Young, Gifted and
Campo mmmmm mmmmm –
de rimas por bloco) a aceitarem Black, Cordae proclama-se como
colaborar no LP de estreia de um um Young Boss Nigga (YBN). Dor e Glória mmmmm mmmmm mmmmm
miúdo de 21 anos, um rookie com Balanço, (des)equilíbrio que é, Downton Abbey mmmmm – –
visibilidade reduzida no também, o que o próprio som
A Herdade mmmmm mmmmm mmmmm
ultra-povado mundo do hip-hop global do disco vai produzindo: ora
americano? exultante, ora angustiado, doce Lupo mmmmm – –
A resposta está nas 15 pistas de aqui e negro acolá, a um tempo Midsommar: o Ritual mmmmm a –
The Lost Boy, um dos melhores colorido, resplandecente, para,
Ousadas e Golpistas mmmmm – –
álbuns de estreia de um rapper logo a seguir, nos dar uma linha de
americano em muitos anos (tal piano sombria, violentíssima, das Parasitas mmmmm mmmmm mmmmm
como, em 2009, Fashawn que bombam no bólide que faz a Rambo - A Última Batalha – mmmmm –
encantava meio mundo com Boy visita de supervisão ao negócio no
Santiago, Itália mmmmm mmmmm mmmmm
Meets World), muitos furos acima block, como a de Broke As Fuck
a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente
das mixtapes anteriores de Cordae, (carregadinha de bounce G-Funk).
30 | ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019
Jennifer Lopez e Constance Wu: Ousadas e Golpistas, girl power e capitalismo na Nova Iorque As esperanças de um digno final de carreira para Rambo
dos anos 2000 esboroam-se...

realizador italiano que foi um dos pelos políticos da altura (sequência mexicanos, numa narrativa sem
pioneiros do cinema em Portugal de “visões”, um pouco mais profundidade ou matizes, sem
com Mulheres da Beira e Os Lobos, adiante). E se estas duas personagens dignas desse nome
teve primeira exibição há ano e impotências até pareciam (até Rambo, com um Stallone mais
meio no IndieLisboa e só chega a prometer algo de complexo ou autómato do que nunca, falha a
sala (numa estreia condenada à pelo menos politicamente aura elegíaca, “fora de tempo”,
desatenção e quase só contratual) ambíguo (de acordo com os que o Rambo precedente, o de
depois de já ter estado em rotação pergaminhos de uma personagem 2008, dava tão bem), e com uma
nos canais TVCine. O filme, esse, mais complexa e politicamente realização incapaz do mínimo ar
não tem culpa nenhuma destas ambígua do que a vox populi ainda da sua graça. No fim, chega um
bolandas — e é uma descoberta que hoje faz crer – aquela coisa do genérico de fecho estranhíssimo,
vale muito a pena fazer, pelo modo “super-herói reaganista” e mais que monta imagens dos vários
lúdico e inteligente como cativa o não se sabe o quê), as esperanças filmes da personagem (a começar
espectador para acompanhar a de um digno final de carreira pelo First Blood de Ted Kotcheff
história de um actor tornado esboroam-se rapidamente. Last onde ela nasceu), como se fosse
realizador, um apaixonado do Blood é muito pobre, simples um daqueles in memoriam das
cinema mas também oportunista história de vingança cerimónias dos Óscares. Assim
Um périplo detectivesco pela Europa acompanhando à distância bon vivant que ia queimando a sua ultra-sanguinária onde o que seja, que Rambo descanse em paz
as viagens de Lupo reputação por onde passava. Lino Rambo pode (e concretiza) é – mas esta adenda, feita desta
faz um périplo detectivesco pela chacinar um grupo de vilões maneira desgraçada, era escusada.
Europa acompanhando à distância
os banqueiros roubaram e surge à custa de um as viagens de Lupo, descobre
desfalcando apenas aqueles que desinvestimento na espessura das descendentes e parentes afastados,
têm mais dinheiro do que personagens — basta olhar para o histórias mirabolantes e fugas em
precisam. Mas as coisas não são tratamento de Destiny e Ramona, frente, triunfos e fracassos. Fá-lo
assim tão simples. Ladrão que Constance Wu e Jennifer Lopez com alguma elegância e algum
rouba a ladrão é ladrão na mesma, (ambas muito bem, diga-se desde humor, num filme atento,
mesmo que racionalize as coisas — já), irmãs/rivais cujas verdadeiras constantemente aberto à aventura
e não é como se Destiny, Ramona, motivações ficam sempre por e nunca menos do que absorvente,
Mercedes, Annabelle e as outras, verdadeiramente esclarecer. O que mesmo que por vezes se sinta que
tomando o seu destino nas mãos, daqui sai é um filme singular — se perde pelo caminho. É
tenham motivos genuinamente inteligente e inerte, pensativo e reconfortante que um filme como
altruístas. frívolo, que levanta perguntas sem este possa ser visto em sala, no
Ousadas e Golpistas oscila sempre lhes responder. Não porque não habitat natural do cinema; é pena
entre estes dois pólos: um, a possa, mas porque não quer. que tenha levado tanto tempo a lá Orquestra
celebração da solidariedade chegar. Metropolitana de Lisboa
feminina resistindo contra um
A fantástica direção musical Pedro Amaral
universo patriarcal que se limita a
aventura de In memoriam
objectificá-las como corpos; outro, a
denúncia do capitalismo selvagem e
dos seus efeitos corruptores. Ou, Rino Lupo John Rambo Circum-navegações
como Ramona diz às tantas, “o
mundo é todo ele um strip club, há
Um óptimo documentário
Simples história de vingança Concierto de Aranjuez
os que pagam e os outros que ultra-sanguinária onde
dançam”. Os dois pólos não estão sobre um dos pioneiros do Rambo chacina um grupo de
Palillos y panderetas
alinhados: o filme faz questão de cinema em Portugal, que Joaquín Rodrigo
vilões mexicanos. Luís Miguel
não julgar as personagens, mas ao chega tardiamente a sala já Oliveira
mesmo tempo desenha o conforto
consumista urbano como um
depois de ter passado por Sinfonia do Novo Mundo
festivais e televisão. Rambo – A Última Batalha Antonín Dvořák
desejo irresistível para uma classe
Rambo: Last Blood
operária habituada a coexistir com Jorge Mourinha
De Adrian Grunberg
o luxo que lhes está vedado. Por Lupo Com Sylvester Stallone, Paz Vega, 28.09.2019
muito que elas julguem subverter o
sistema, estão a contribuir para ele.
De Pedro Lino Adriana Barraza, Sergio 21:30
Documentário Peris-Mencheta
Lorene Scafaria sabe disso mas
limita-se a manter a ambiguidade mmmmm mmmmm
inerente a uma história com tanta
de caucionário como de sedutor. Mais uma peculiaridade de um John Rambo não pode nada contra Programação Coliseu Porto Ageas
Ousadas e Golpistas acaba por ser mercado de distribuição e exibição as catástrofes climatéricas www.coliseu.pt
um filme honesto na sua que parece andar de candeias às (sequência introdutória, com um
transferência do ónus do avessas. O óptimo documentário tufão), e também não pode mudar
julgamento moral para o de Pedro Lino sobre a vida e obra a história da guerra do Vietname
espectador; mas essa honestidade de Rino Lupo (1884-1936), o nem o facto de se sentir enganado
ípsilon | Sexta-feira 27 Setembro 2019 | 31
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