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Marcelo Bolshaw Gomes

CADERNOS DE ESOTERISMO
CONTEMPORÂNEO

Natal
2014
GOMES, Marcelo Bolshaw. Cadernos de Esoterismo
Contemporâneo. / Marcelo Bolshaw Gomes. Natal:
2014. 178 p.
1. Autores 2. Esoterismo. 3. Pensamento
contemporâneo
INDICE

Introdução: Cacos do mundo 07

Budismo, um estudo sobre a liberdade 13

Esoterismo Pós-moderno

Recapitulando Castaneda 33

Steiner - Biografia e Subjetividade 49

Osho – o Avatar da Rebeldia 65

Sistemas Esotéricos

O Livro da Transmutação 91

O Eneagrama como sistema complexo 107

A Ayahuasca como sistema de cuidados 123

Complexidade e Espiritualidade Integral

Paradoxo e Simetria 147

O modelo Wilber 165


“Prefiro ser essa metamorfose ambulante (...)”

Raul Seixas
INTRODUÇÃO: Cacos do Mundo, a globalização das
crenças.

Em tempos imemoriais, Brahmam (a Luz


eterna) entrou em movimento gerando
Vishnu (a Força) e Shiva (a Forma). A
Vishnu foi entregue a tarefa de criação e
de manutenção de todo o Universo. E a
Shiva foi dada à missão de sua
constante destruição.
E assim, viveram os três por muito
tempo, com a criação e a transformação
do Cosmo se alternaram diante do vazio
imutável. Certa vez, o “mais velho dos”
deuses, entediado com o nada e com os
ciclos de tempo gerados pela luta eterna
entre Vishnu e Shiva, criou um espelho
para se admirar.
Surgiu então a deusa Maya.
Disse então Brahmam: “Maya, vamos
brincar?”
Ao que Maya respondeu: “Só se você
criar o mundo”.
E Brahmam criou: o céu, a terra, o mar,
o sol, a lua, as estrelas, o homem e os
outros animais.
“Do que vamos brincar agora?” –
perguntou Brahmam.
“De esconde-esconde” – disse Maya e
tomando Brahmam pelas mãos, rasgou-
o em milhões de pedacinhos, colocando
o deus criador em cada um de suas
criaturas. E desafiou: ”Quero ver agora
você se achar, Brahmam!”

Há um Deus tentando se lembrar de si mesmo dentro


de cada um de nós e só conseguiremos que ele se torne
consciente em nós, se conseguirmos vê-lo também nós
outros. “Pelo caminho que viemos, é por ele temos que voltar”.
Mas, a globalização não é, por si só, a re-unificação
da consciência cósmica de Brahmam. Por isso, discute-se
aqui também que diferentes fragmentos tradicionais – as
técnicas do Reiki, do Feng Shui, do xamanismo tolteca - são
simplificados e distorcidos pelo consumismo da Nova Era. Há
também as crenças reinventadas, interculturais.

Recentemente, descobriu-se o Reiki Tradicional (isto


é, sobre como essa técnica é conhecida e utilizada lá no
Japão) e que tudo ou quase tudo que eu havia aprendido
desta técnica não era verdadeiro, ou pelo menos, que havia
sido reinventado pelo esoterismo ocidental. Os símbolos, que
muitos acreditavam vir de Atlântida e Lemúria, não
desempenham um papel importante na técnica, há um
verdadeiro ritual (com cantos e meditação) antes da prática e
há vários procedimentos (escaneamento, limpeza, utilização
diferente das mãos: à esquerda, voltada para cima, capta
energia; a direita aplica a energia captada no doente) que
foram deixados de lado.

Segundo os ensinamentos do Reiki mais conhecido, o


Dr. Mikao Usui foi o principal elaborador da técnica, que
transmitiu, por volta de 1930, a 16 professores, entre eles ao
Doutor Chujiro Hayashi, que abriu um hospital em Tóquio e foi
responsável pela cura de um câncer de uma havaiana, a
senhorita Hawayo Takata, que trouxe o Reiki para o Ocidente.

Hoje há pelo menos três grupos internacionais que


disputam o legado do Dr. Hayashi e da Srt. Takata: a Aliança
Reiki, a Associação Americana Internacional de Reiki (AIRA) e
o Usui System. Osho também decidiu abrir sua própria linha
de Reiki.
Um de seus discípulos, Frank Arjana Petter, para
aprofundar seus estudos, decidiu ir ao Japão e empreender
uma pesquisa sobre as origens da técnica. Foi então que se
descobriu um Reiki bem diferente do que aquele que se
conhecia. O mestre Usui, além de passar seus conhecimentos
para o Dr. Hayashi, criou uma sociedade secreta, a Gakkai,
que conta com milhares de participantes. Apesar da origem
budista, o Reiki tradicional está inserido em um contexto
Xintoísta (uma religião japonesa de culto aos antepassados de
caráter extremamente nacionalista): antes das aplicações
recitam-se os versos do imperador Hiroíto (aliado de Hitler e
Mussolini na 2a Grande Guerra), pratica-se a meditação
Gassho (de mãos unidas) e a respiração abdominal
desempenha um papel muito mais importante que a
visualização dos símbolos.

O mais interessante desta descoberta, no entanto, é


perceber o que fizemos de uma prática espiritual retirando-a
de seu contexto cultural. Transposto para ocidental como uma
mercadoria, o Reiki passou a ser uma ‘franquia’ de trabalho
espiritual, onde as iniciações (na verdade, venda de símbolos)
substituíram procedimentos rigorosos de desenvolvimento
moral e energético. E mais: é curioso como erigimos sistemas
de crenças próprias sobre um fragmento cultural
descontextualizado. Mas, como dizia meu finado pai: “no
caminho da vida espiritual não existem enganadores, apenas
os enganados”. Não foi ninguém que me enganou, fui eu que
me enganei. Mais uma vez.

Porém, diante de mais esse engano, vejo três atitudes


diferentes: os desenganados (que abandonaram o uso da
técnica), os que aderiram ao Reiki tradicional (mas, não ao
xintoísmo, espero) e os que ignoram solenemente a
descoberta de Petter, uma vez que o importante é a prática de
difusão da luz e não as teorias que a sustentam. De certa
forma, me incluo nesse último grupo. Embora, prefira sempre
saber a verdade, acredito que Destino escreve certo por linhas
tortas e que todos os enganos são necessários para nos
tornarmos conscientes.

O livro Cadernos de Esoterismo Contemporâneo é


uma coletânea de ensaios interdependentes sobre as ideias
de mudança pessoal e desenvolvimento da consciência. O
livro é formado por ensaios sobre autores esotéricos
contemporâneos (principalmente aqueles que dão ênfase a
‘desfazer’ o condicionamento social da consciência).

Budismo, um estudo sobre a Liberdade é um texto


introdutório que dialoga com o pensamento budista acerca de
sua crença sobre a idéia de Liberdade. Para tanto, resume-se
a doutrina budista e comparam-se alguns de seus conceitos
com outros sistemas de crenças, explicitando sua
singularidade filosófica e sua influência sobre os autores
contemporâneos. Em contraparatida, apresenta-se também o
fato do Budismo ter uma concepção exclusivamente subjetiva
de Liberdade, recusando-se a reagir contra injustiças sociais.

A partir da perspectiva imanente budista, então,


discute-se três linhas de pensamento contemporâneas: o
xamanismo pós-moderno de Carlos Castaneda; a Antroposofia
de Rudolf Steriner; e o esoterismo de Osho.
Recapitulando Castaneda é uma tentativa (bastante
precária, é verdade) de apresentar e sistematizar as ideias de
Carlos Castaneda, para analisá-las à luz de outras referências
teóricas. Também se valoriza a atitude de 'invisibilidade' como
uma estratégia de marketing.

Steiner - Biografia e Subjetividade são anotações


sobre os parâmetros e procedimentos metodológicos para
organização de biografias e para o estudo histórico da
subjetividade individual através da hermenêutica, a teoria
geral da interpretação.

Osho, o Avatar da rebeldia é outra tentativa (essa


mais detalhada) de sistematização crítica do in sistematizável.

A segunda parte do livro trata de sistemas esotéricos.

O texto O Livro da Transmutação examina o sistema


taoísta chinês a partir do livro I Ching, traçando paralelos
simbólicos com a Acupuntura, o Feng Shui (arquitetura
tradicional) e com Tai Chi Chuan.

Já o texto O Eneagrama como sistema complexo


resume e atualiza o livro Um mapa, uma bússola - Hipertexto,
Complexidade e Eneagrama (GOMES, 2000), que apresenta a
noção de Eneagrama (ou a estrela de nove pontas) como um
modelo de sistema complexo capaz medir ruído e auto-
organização, associando os fatores dinâmico e sincrônico aos
aspectos objetivo e subjetivos. Trata-se de uma apresentação
crítica do modelo tipológico adaptado pelo psicólogo chileno
Cláudio Naranjo e também de um resgate do pensamento do
místico armênio G. Gurdjieff.
E finalmente A Ayahuasca como sistema de
cuidados é um texto resultante de muitos anos de minha
experiência com a bebida, em diferentes contextos religiosos,
e das leituras decorrentes desta experiência.

A terceira e última parte do livro faz uma análise geral


dos fragmentos globalizados e a sua síntese em um novo
sistema mais abrangente e atual.

Em Paradoxo e simetria cognitiva, há uma tentativa


de análise de vários autores e ideias em um contexto teórico
mais avançado. Nele, investigamos fragmentos de diferentes
sistemas esotéricos de pensamento e os pontos de
intercessão entre eles.

O modelo Wilber é um resumo o pensamento integral


de Ken Wilber (e diferentes modelos teóricos e cartografias
tradicionais em uma abordagem holística), que aborda as
possibilidades de desenvolvimento atuais e a elaboração de
um sistema mais abrangente de relações entre as tradições
espirituais e o esoterismo contemporâneo.

Resta ainda agradecer a todos aqueles que


contribuíram com mais essa oportunidade de apresentar
minhas ideias.
BUDISMO
Um estudo sobre a
Liberdade
Quando o monge budista
Bodhidharma1 chegou à China,
no século VI, foi se apresentar na
corte do Imperador Wu (Ryo no
Butei).

O Imperador Wu levou o
monge então a grande salão
onde havia vários guerreiros
treinando lentamente Tai-chi Chuan, levitando pesadas bolas de
metal entre as mãos. E disse: “Esses são nossos guerreiros; através
do controle da energia eles podem vencer qualquer um que ataque a
China”.

Depois, o Imperador foi a outro salão em que vários médicos


curavam as pessoas através de técnicas de imposição das mãos nos
canais de energias do corpo (Shiatzu e Do-in) e de pequenas
agulhas esquentadas no fogo (acupuntura e mosha). Outros faziam
poções e chás, davam banhos e compressas nos doentes. E disse:
“Esses são nossos curadores; eles recuperam e revigoram a vida do
povo”.

E finalmente, o Imperador Wu levou Bodhidharma a um terceiro


salão, onde vários sábios estudavam o I Ching – o livro das
transmutações – e faziam previsões através das rachaduras de
cascos de tartaruga. E disse: “Esses sãos nossos aprendizes dos
mestres do Destino, que estudam o tempo e profetizam nosso
futuro”.

Ante a falta de interesse do monge, o Imperador então colocou:

- Este é o taoísmo, o tesouro espiritual da cultura chinesa. E


você, indiano, qual é o ensinamento sagrado que trouxe para nos
ensinar?

1
Bodhidharma (em japonês: Daruma ou Bodaidaruma) é o mestre indiano
que levou o Budismo à China. É o primeiro patriarca do Budismo Zen e o 28º
na linhagem do Budismo Indiano iniciada por Buda Shakyamuni (Sidarta
Gotama). É ainda o introdutor do kung-fu nos templos Shaolin e o criador da
cerimônia do chá.
- Nada sagrado, apenas um grande vazio2 – respondeu
humildemente Bodhidharma e se retirou do palácio para as
montanhas Shaolin.

O Budismo e budismos
O Budismo é um sistema de crença que se acredita
acima dos demais sistemas de crenças. Por isso, se diz que
ele não é mais uma religião e sim uma filosofia da imanência,
em que não há deuses, divindades ou qualquer tipo de
transcendência metafísica. Nas versões mais ortodoxas e
antigas, a filosofia budista é um empirismo absoluto formatado
pela observação psicológica e pela experiência mística.
Mircea Eliade compara o Budismo ao pensamento
neopositivista de Wittgeinstein, porque ambos operam “uma
lógica inclusiva de desconstrução negativa” (1999, 69).

Na verdade, há vários budismos.

Hoje, há três escolas principais com várias


ramificações. Há mais antiga é a Theravada (do páli thera,
"anciãos" e vada, "palavra, doutrina", "Doutrina dos Anciãos").
É predominante em: Sri Lanka, Tailândia, Mianmar, Laos,
Camboja, Bangladesh, Vietnã e Malásia. E o maior no
Ocidente também. Atualmente o número de budistas desta
escola em todo o mundo excede 100 milhões de pessoas.

Em segundo lugar, em antiguidade e em tamanho, é o


Zenbudismo. Zen é o nome japonês da tradição Ch'an,
surgida na China, por volta do século II. Cultivado, sobretudo,
na China, Japão, Vietnã e Coréia. Alguns estudiosos

2
Em outras traduções: “Nada sagrado: espaços abertos”. Esse texto é uma
livre adaptação minha do koan 29 do Denkoroku, Registro da Transmissão da
Luz, de Keizan Jokin Zenji.
consideram estas escolas como uma linhagem Mahayana.
Outros, no entanto, dizem que, pela ênfase ser diferente, e
pelo Zen/Chan ser "descendente" também do Taoísmo, deve
ser considerada uma escola à parte.

E, finalmente, a Vajrayana é a mais recente das


principais escolas budistas. O Budismo tibetano, também
chamado de lamaísmo, tem forte influência do xamanismo
siberiano e tem suas práticas de meditação na forma de
elaborados rituais, com leitura de saddhanas (textos
litúrgicos), visualizações e instrumentos musicais.

O budismo tibetano possui uma tradição nas artes,


como pinturas e esculturas, e também tradição em ordens
monásticas, com ênfase no relacionamento alunos e lamas.
Apesar de não se organizar como uma instituição, essa escola
tem sua representação maior na figura do Dalai Lama. As
principais escolas são nyingma, kagyu, gelug e sakya. Neste
sentido, o Budismo tântrico tibetano (Vajrayana) é
filosoficamente superior tanto ao Zen-Budismo e quanto a
antiga escola Theravada porque tem uma visão
fenomenológica de si, admitindo que haja um conjunto de
ideias (crenças) - ou 'juízos sintéticos a priori', para usar meu
Kant - que formatam a experiência da vida budista.

E quais são os juízos sintéticos a priori do Budismo?

São as Quatro Nobres Verdades: tudo que vivemos é


sofrimento; a ignorância, o desejo e a aversão são as causas
do sofrimento; acabando com a ignorância, com o desejo e
com a aversão, o sofrimento também acaba; e, finalmente,
para acabar com as causas do sofrimento é necessário seguir
o Nobre Caminho Óctuplo.

Enquanto as Nobres Verdades são um diagnóstico, o


Nobre Caminho é o remédio.

E este, por sua vez, é formado por oito preceitos:

1. o entendimento correto (do sofrimento e suas


causas);
2. o pensamento correto (que reflita a realidade das
coisas, sem distorções subjetivas);
3. a linguagem correta (não mentir, caluniar,
distorcer os fatos ou exagerar, não ferir ou
ofender, não falar inutilmente);
4. a ação correta (não matar, não roubar, não ter má
conduta sexual, não beber álcool, não comer
animais e não consumir substâncias tóxicas);
5. o modo de vida correto (encontrar uma forma
honesta de viver, um ambiente que propicie a
realização dos demais preceitos);
6. o esforço correto (redirecionar a energia, não
alimentando mais desejos e aversões em nossa
consciência e, em contrapartida, emanar o amor
e a compaixão a todos os seres);
7. a atenção correta (desenvolver a capacidade de
focar a atenção e de se observar)
8. e, finalmente, a concentração correta (a
capacidade de permanecer profundamente
absorto no aqui-e-agora por períodos de tempo
cada vez mais longos).
Outra forma tradicional de apresentar a doutrina
budista é dividi-la em três: a Moral (sila), a Meditação
(samadhi) e a Sabedoria (prajña). Sendo que a moral
corresponde aos preceitos 3, 4 e 5; a meditação aos preceitos
6, 7 e 8; e a sabedoria aos preceitos 1 e 2 do Nobre Caminho.
Todos os preceitos estão inter-relacionados.

E, de todas as formas, o ponto de partida do Budismo


é sempre a percepção de que o desejo causa inevitavelmente
o sofrimento. Deve-se eliminar o desejo para se eliminar a dor
e, assim, atingir a paz interior ou felicidade. O objetivo é o fim
do ciclo de sofrimento, Samsara, despertando no praticante o
entendimento da realidade última - o Nirvana. Para tanto, o
praticante deve apenas evitar o mal, fazer o bem e cultivar a
própria mente. Como foi dito: para maioria das escolas
budistas a doutrina budista é resultado da meditação e da
observação dos que se iluminaram. Apenas as escolas mais
recentes admitem que as Nobres Verdades e o Nobre
Caminho são estruturas metafísicas anteriores à experiência
que formatam mentalmente a observação. Há ainda muitos
outros conceitos secundários, que as diferentes escolas
enfatizam ou omitem. Mas, há, sobretudo, alguns conceitos
que são muito mais importantes do que a doutrina budista
declarada, pois realmente caracterizam a singularidade do
Budismo em relação a outros sistemas de crença.

- a Impermanência (Anicca). Todas as coisas são


impermanentes. Tudo muda o tempo todo sem parar. Este é
um ponto em comum entre o Budismo e a filosofia de
Heraclito e do Taoísmo. “Nunca um mesmo homem se
banha em um mesmo rio.” O que nos faz sofrer não é a
impermanência em si, mas o nosso desejo de que as coisas
sejam permanentes enquanto elas não o são.
- o Não-eu (Anatta). Nada que existe tem existência em si
mesmo, separada e independente. Todos os fenômenos
estão inter-relacionados. É a Unicidade. Cada coisa precisa
estar ligada com todo o universo para poder existir. Não
existe nada que é separado do resto, que possa existir de
forma independente e definitiva. O ‘eu’ ou a alma (atma) é
apenas uma ilusão.
- o Nirvana. Sidarta Gautama descreveu o Budismo como
uma jangada que, após atravessar um rio, permite ao
passageiro alcançar o Nirvana. Nirvana é a liberação total do
sofrimento, um estado de paz inabalável e de indescritível
felicidade. Nirvana é o estado de absoluta liberdade e de
completo silêncio do coração, além de todos os conceitos.
Literalmente nirvana significa “extinção”.

Sendo um ‘meta sistema’ de crenças, o Budismo


apresenta várias incoerências e ambiguidades – em suas
diferentes versões. Some-se a isso que, no Budismo, a
verdade é sempre subjetiva e relativa. Tradicionalmente é dito
que o Buda, “em sua infinita compaixão”, ensinou 84.000
ensinamentos, adaptados a cada tipo de seres existentes. O
que dá margem a englobar tudo e esconder bem as próprias
contradições. Por exemplo, enquanto as versões mais
refinadas afirmam ‘nada existe a ser feito ou realizado’, a
ausência de objetivos é o que permite viver o momento e ser
felizes aqui e agora; para outras (para maioria), o nirvana é o
principal objetivo individual. Em contrapartida: muitas versões
populares transformam o(s) Buda(s) em uma entidade(s)
semelhante(s). Os rituais tibetanos utilizam expedientes
mágicos, associando visualizações, mantras, incensos,
oferendas – da forma semelhante a outros cultos devocionais.

Como um ‘meta sistema’ de crença, o Budismo muitas


vezes se torna uma concepção de mundo elitista, que se
considera superior às outras concepções de mundo. Por isso,
ele é particularmente adotado pelas elites que não se
identificam com suas tradições culturais. E isto não é vale só
para as elites atuais de países periféricos em um mundo
globalizado (como aqui no Brasil), mas também historicamente
para China, o Japão e o sul da Ásia. O Budismo só não
cresceu na Índia. Um breve estudo da história do Budismo
mostrará que ele floresce primeiro nas elites (embora, em um
segundo momento, desenvolva 'versões populares'3 como
também mimetiza formas híbridas com outras religiosidades)
através de um distanciamento das culturas locais, com um
forte apelo para o individualismo. É como alguém disse: “um
credo de intelectuais irracionalistas”.

A grande originalidade do Budismo em relação a


outras religiões está na concepção de mundo resultante
desses três conceitos: a impermanência, a inexistência da
alma e a iluminação. Isto nos coloca pelo menos em dois
outros pontos importantes: a crença na Liberdade e a
reinterpretação das noções de reencarnação e karma,
originárias do Hinduísmo.

Vejamos cada um desses pontos.

A crença na Liberdade

Trata-se aqui da crença na Liberdade. E não do


conceito de Liberdade, tarefa legítima da filosofia analítica, ou
do mito da Liberdade, como querem os que não acreditam
nela. Na perspectiva de uma arqueologia dos credos, a crença
da liberdade é, universalmente, oposta às outras crenças
religiosas. Apenas o budismo acredita na Liberdade, embora
de uma forma bastante subjetiva – como veremos adiante.

De uma forma em geral, enquanto alguns religiosos


enfatizam a liberdade como um desemaranhar do karma;
outros (como o pensador esotérico brasileiro Trigueirinho, por
3
Como as escolas devocionais da Terra Pura (Jodo Shu) e Verdadeira Terra
Pura (Jodo Shinshu), trazida para o Brasil pelos imigrantes japoneses.
exemplo) afirmam que o livre-arbítrio é típico de seres
espiritualmente atrasados como o homem, ou seja: se
fossemos inteiramente crédulos e não duvidássemos,
seríamos mais sábios e espiritualizados.

Também em inúmeras lendas e mitos, a liberdade


aparece como um castigo ou como resultado de uma
desobediência da humanidade em relação aos deuses. Em
algumas narrativas, a liberdade é dada ao Homem por outros
seres, como no mito de Prometeu, em que o fogo dos deuses
é roubado para que o homem conquiste a própria liberdade;
em outras, é a consciência que, mascarada por diferentes
símbolos, é engendrada por conflitos entre deuses, ou seres
de outra ordem evolutiva, em que alguns são favoráveis e
outros contrários ao desenvolvimento da humanidade.

Entre todos os credos tradicionais, no entanto, apenas


o Budismo apresenta a Liberdade como objetivo espiritual a
ser alcançado – o que influenciou bastante não apenas a
espiritualidade atual, mas também a filosofia contemporânea,
que se comporta com se fosse a sua proprietária exclusiva.

Mas, de que liberdades estão falando?

É claro que a crença na Liberdade é uma só, mas a


distinção de três dimensões ou profundidades também é muito
útil para contextualizar seus diferentes aspectos. Como a
liberdade também tem uma dimensão individual e outra
coletiva pode-se utilizar a metodologia dos quadrantes
proposta por Ken Wilber (2007) para obter um quadro de
referências ainda mais amplo.
SUJETIVO OBJETIVO
INDIVIDUAL Liberdade Psicológica Liberdade Política
COLETIVO Liberdade Cultural Liberdade Biológica

4º quadrante (coletivo/objetivo) - Em uma perspectiva


sistêmica, estritamente objetiva, a Liberdade coletiva é a
capacidade de autodeterminação da espécie, representando
o mínimo de dependência do sistema (ou meio ambiente) e
de seus outros elementos (outras espécies na cadeia
alimentar). Se uma organização tem um único fornecedor
(entrada) ou um único cliente (saída) ficará dependendo
dele. E quanto mais diversificar seus insumos e produtos,
mais autonomia ela terá em relação às oscilações
ambientais e à interferência de outros agentes. A Liberdade
é assim, nas palavras da biologia da complexidade (Umberto
Maturana), Autopoesis, ou a capacidade de produzir a si
próprio, criativamente, e de centralizar trocas com um
número extenso de parceiros diversificados.
3º Quadrante (coletivo/subjetivo) - Essa liberdade da
espécie frente ao meio ambiente, no entanto, é mais
desfrutada por alguns indivíduos do que outros por razões
de ordem cultural. Nesse quadrante em especial, a liberdade
é uma crença. E ela sempre anda de mãos dadas com as
crenças culturais na objetividade (e da perspectiva de um
observador onisciente) e na história (e do tempo contínuo
que acumula informação). E como já foi dito, a liberdade é
uma crença oposta à maioria dos sistemas de crenças
religiosas tradicionais e, por isso mesmo, desempenha
também um papel especial em relação aos sistemas de
ideias filosóficas e de organização política das sociedades
ocidentais. O que nos leva ao próximo quadrante.
2º Quadrante (individual/objetivo) – A liberdade política e
objetiva, isto é: da autonomia de decidir o que ser e fazer e
não o que os outros querem; é a luta da Liberdade contra as
regras e contra a autoridade. A liberdade objetiva individual
data da Revolução Francesa, que a tornou um direito
universal, mas ainda hoje ela é exercida apenas por uma
minoria. É a ‘Liberdade para’, em oposição à ‘Liberdade de’
(que é subjetiva). O que inclui também sua dimensão
psicológica.
1º Quadrante (individual/subjetivo) – A Liberdade psicológica
e subjetiva, a Liberdade de aceitação da vida. Aqui a luta
pela Liberdade é contra o próprio condicionamento que
absorvemos, é o aperfeiçoamento interior para se conseguir
usufruir da liberdade exterior. Quando se fala de liberdade
individual subjetiva não trata apenas das escolhas
individuais, e sim de como cada individuo enfrentar seu
destino, lutando para construir alternativas de vida. É a
‘Liberdade do sim’, em oposição à ‘Liberdade do não’, (que
é objetiva).
O pensamento budista se inscreve nos primeiro e
terceiro quadrantes (da liberdade psicológica individual e da
liberdade cultural coletiva) e praticamente ignora as liberdades
objetivas (política individual e biológica coletiva). O
comportamento centrado na vida interior, no entanto, aliena o
praticante de sua vida social. O nirvana substitui a utopia
social, isto é, o ideal de construção de uma sociedade justa e
a favor do desenvolvimento equilibrado.

E assim o Budismo não consegue diferenciar


aceitação da vida de conformismo social. A ideia budista de
paz associa um estado de consciência de transe profundo a
uma atitude política de não-reação à violência. E isto tem um
apelo especial para a juventude ocidental, pois dá um sentido
político à meditação e um sentido espiritual à vida política. Por
outro lado, talvez por isso, que no Kashimir, no Tibet e na
Birmânia, o Budismo não consiga de defender contra as
agressões de que é vítima.

Mudar a si mesmo não modifica imediatamente o


mundo em que se vive e o projeto coletivo de extinção do mal
através da renúncia aos sentidos (ou de construção
intersubjetiva da paz e da liberdade coletiva apenas de modo
introspectivo) é uma estratégia suicida. E é preciso se
comportar de um modo diferente do que o Budismo em
relação às tiranias do mundo.

Karma e Reencarnação
Karma (do sânscrito Karmam, e em pali, Kamma,
“ação”) é um termo usado para expressar um conjunto de
ações dos homens e suas consequências. O Budismo
compreende o karma como uma dívida (como uma
contabilidade moral de méritos e deméritos durante a vida) a
ser saldada, passivamente, por ações meritórias e pela não-
reação à violência; enquanto o Hinduísmo o Karma Yoga é um
sistema voltado para ação.

No Bhagavadgita, Krishna instrui Arjuna como


guerrear sem adquirir karma. O Bhagavadgita, a sublime
canção, foi introduzido nos Vedas no século II d.C. (ELIADE,
1999, 178). O nascimento de Sidarta Gautama foi entre 600 e
400 a.C. É possível que o Gita seja uma resposta do
Hinduísmo à doutrina budista do karma, vista como uma
dívida a ser paga através da ‘não-reação’.

O Gítã é a conclusão de uma grande epopeia mítica, o


Mahabarata ou o combate dos irmãos Pandavas com seus
primos, os kauravas, pelo reino de Bharata. Enganados no
jogo de dados, os Pandavas são exilados, passando dez anos
vagando pelos reinos mágicos da Índia. Quando voltam para
casa, são impedidos de entrar pelos primos e anuncia-se uma
grande batalha. O Gítã narra o momento que antecede a luta,
em que Arjuna se recusa a combater, para não matar seus
antigos mestres e amigos e assim aumentar seu karma. Então
surge Krisna e diz que se Arjuna não cumprir seu destino e
derrotar o inimigo, o mundo estará entregue a maldade. Krisna
instrui a Arjuna nas três modalidades de ioga: Jnana para
mente, Bhakti devocional, e a karma ioga, ou a arte da ação
guerreira sem adquirir karma.
Não é a ação em si que gera o karma, mas o
sentimento agregado a ela.

Assim, para o Hinduísmo, o karma é a ação e não o


resultado de sua reação, como no Budismo. E mais: para o
Hinduísmo, karma é a dívida que transportamos de uma vida
para outra. O Budismo usa a palavra karma no sentido de
“conjunto de deméritos acumulados”, mas não no sentido de
transmissão de responsabilidade de almas entre organismos
diferentes; preferindo falar de renascimento à reencarnação,
pois não aceita que um ‘eu’ permanente que passe de uma
vida a outra. No Budismo, não há uma alma imortal que se
reencarna sucessivamente através das vidas. Para alguns
budistas contemporâneos não há reencarnação e sim
renascimento. A noção de Reencarnação, ideia central do
Hinduísmo reinventada pelo espiritismo e da religiosidade
esotérica, é que uma parte do Ser (consciência, espírito ou
alma) é capaz de subsistir à morte do corpo e de ligar-se
sucessivamente a diversos outros corpos para a consecução
de um fim específico, como o aperfeiçoamento moral e a
anulação do karma.

A reencarnação e o karma são crenças fundamentais


do espiritismo kardecista e de vários outros tipos esoterismos
modernos (teosofia, rosa-cruz, etc), porém dentro de um
quadro de referências culturais bem diferentes: o tempo
histórico (e as noções de progresso material e evolução
espiritual); o paradigma pseudocientífico, cartesiano e
mecanicista, em que o karma é determinado como “uma lei de
causa e efeito”; e, sobretudo, o contexto cultural, ao mesmo
tempo, desencantado e supersticioso. Já no Hinduísmo e em
outras tradições, o tempo não era entendido de forma
contínua, progressiva e histórica; e sim de forma simultânea,
complexa e circular, com breves ciclos de duração dentro de
ciclos mais longos e até infinitos; e não há ênfase na
causalidade na vida individual, mas sim nos acontecimentos
coletivos. A ideia de karma era posta de forma mais
probabilística que determinística. Os karmas eram grupais e a
reencarnação estava inserida em um contexto de retorno dos
ancestrais e também das divindades. Ou seja: há uma grande
diferença entre as crenças modernas e antigas de
reencarnação e karma. E para universalizar o valor de suas
crenças, os esotéricos atuais tendem a vê-las em todos os
lugares e épocas - até aonde elas não existem4.

Há ainda, atualmente, vários cientistas adeptos da


ideia da reencarnação como fenômeno objetivo e “não como
uma crença religiosa”. A ciência, no entanto, também é um
sistema de crença empirista (como o Budismo, o espiritismo
kardecista e até vários tipos de xamanismos) ‘acredita’ ter sido
forjado apenas a partir da experiência e da observação pura,
ignorando que a experiência é pré-enquadrada em um quadro
de referências interpretativas. E não adianta tentar convencer
o budista, o cientista ou o espírita que as coisas não são como
eles pensam, pois eles geralmente sustentam suas opiniões
em experiências práticas vividas (e interpretadas pela tradição
que sustentam). E embora ‘os fatos’ pareçam ter um valor

4
Diversos estudiosos defendem que a reencarnação era admitida pelo
cristianismo, tendo sido proscrita pelo Segundo Concílio de Constantinopla,
em 553 d.C. É preciso dizer que essa informação é absolutamente falsa,
nunca houve nenhuma menção à reencarnação no referido concílio e não há
nenhuma prova da adesão do cristianismo primitivo às teses espíritas.
universal, muitas vezes as diferenças de contexto dão
significados bem distintos aos acontecimentos semelhantes.

Para o Budismo, a cada vida somos um conjunto de


seres que se dispersam após a morte. O homem é um
conglomerado de eu’s que lutam entre si. Apenas os que
conseguem realmente evoluir espiritualmente conquistam
alguma unidade, através da identificação progressiva com o
próprio Ser (e da depuração dos diversos agregados
psíquicos). O destino já está determinado, mas temos plena
liberdade de decidir como vamos realizá-lo. Por exemplo:
estamos predestinados a um casamento ou a um acidente,
mas a forma como vamos enfrentar esses eventos é de nossa
inteira responsabilidade. O karma corresponde às causas do
destino e livre-arbítrio, ao modo de vida.
O karma, assim, é uma espécie de inércia, uma
tendência de o vivente repetir as atitudes do passado diante
de situações análogas às que já viveu. Esse processo de
repetição aprisiona o homem, moldando um padrão e um
destino provável, pois suas ações têm sempre a mesma
inflexão e resultados semelhantes. Assim, “não há
coincidências” e “o acaso não existe”. O destino é
condicionado pelo passado/presente (ou pelo conjunto de
condições inerciais) e segue a lógica resultante de suas ações
anteriores: “colhemos o que plantamos”.
Karma Reencarnação
Reencarnação de
Modelo de ação e reação, baseado
Hinduísmo antepassados e
nas emoções.
divindades.
Reencarnação
Espiritismo Lei determinista de causa e efeito
evolutiva individual.
Budismo Sistema probabilístico, baseado Renascimento
em ações passadas não meritórias. múltiplo dos eus

Budismo na veia

A grande joia de sabedoria e espiritualidade do


Budismo é a meditação Vipassanã, hoje praticada apenas por
grupos laicos (como o de Goenka) e pelas escolas Theravada.
Mas, como foi a primeira, está na raiz tanto das meditações
zen quanto das meditações visuais e mântricas das escolas
tibetanas. Vipassanā significa “insight”, ver as coisas como
elas realmente são. Foi elaborada por Sidarta Gautama, o 1º
Buda, há 2.600 anos.
É a observação da experiência da percepção direta. E
o princípio subjacente é a investigação e entendimento dos
fenômenos manifestados nos cinco agregados: o apego à
forma física, o apego às sensações ou sentimentos, o apego à
percepção, o apego às formações mentais e o apego à
consciência. Ou seja: tornarmo-nos conscientes das
sensações do corpo; dos afetos individuais; da sintaxe da
percepção; dos padrões coletivos de cognição do
pensamento; e, finalmente, conscientes de nossa própria
consciência, da consciência do contexto de enunciação da
própria consciência.
A técnica tradicional é dividida em duas etapas:
Anapana, em que a pensa concentra atenção em um ponto
específico do corpo (o mais comum é a entrada e a saída de
ar das narinas); e Vipassana propriamente dita, que consiste
em movimentar a atenção pelo corpo no sentido ascendendo
e descendente, como um scanner. Não há mantras,
visualizações ou respiração específica, mas sim a observação
da respiração (esteja ela profunda ou rápida).
A meditação Vipassana foca a interconexão entre
mente e corpo, a qual pode ser experimentada diretamente
por meio da atenção disciplinada às sensações físicas. Essa
técnica de meditação, utilizada por dez dias consecutivos
dentro do nobre silêncio e de uma dieta vegetariana de baixa
caloria, leva a observação da mente pela consciência como
algo objetivo, externo à percepção.
Em outras técnicas, há uma expansão da consciência
que extrapola os limites do ego, mas essa permanece dentro
da mente. A consciência em estado de percepção ampliada
acessa níveis profundos do inconsciente, mas permanece
dentro dos limites da estrutura mental. O que acontece com a
técnica Vipassana é diferente: através da focalização da
atenção na respiração (fronteira sensorial entre o intencional e
o involuntário), acessam-se os padrões profundos do
inconsciente, vistos pelo lado de fora.
É a fala que organiza a memória com sua narrativa.
Com ‘o nobre silêncio’, há um aumento da memória e sua
reorganização fora dos padrões discursivos. Não apenas
lembramo-nos de mais coisas, como também a forma como
nos recordamos dos eventos não é tão ego-centrada. Com
silêncio, a memória não funciona mais por lembranças
discursivas, mas sim por recordações visuais. As sensações
de dor e sofrimento emocional devido às restrições
perceptivas do enorme esforço cognitivo voltado para atenção
sobre o corpo e a respiração fazem emergir desejos de
aversão e as sensações de bem estar corporal fazem emergir
desejos de cobiça (não só sexuais, mas de repetição de
situações prazerosas). Quando temos experiências ruins,
desejamos não repeti-las e surge a aversão; quando temos
experiências boas, desejamos repeti-las e então surge a
cobiça. Normalmente, em outras técnicas ou terapias com
foco sensorial, esses desejos de repetir experiências
prazerosas são vistos como positivos, mas quando vistos
objetivamente na Vipassana, eles se mostram obsessões
neuróticas tão nefastas quanto às aversões inconscientes que
nos impedem de aceitar a vida.
Aliás, esse é um ponto importante em dois aspectos.
Primeiro: o Budismo prescreve a 'equanimidade' ou a
capacidade de entender o lado positivo das experiências ruins
e o lado negativo das experiências boas, mas esse equilíbrio
só pode ser desenvolvido na prática através da técnica da
Vipassana. A prática da meditação Vipassana traz toda a
hermenêutica budista embutida em si. A ideia de não-reação,
por exemplo, perpassa toda doutrina budista; e na Vipassana
não se deve reagir nem às dores, nem às outras sensações,
sentimentos ou percepções – apenas observar. A meditação
treina na prática seu praticante na noção aceitação budista. E
o mais importante: o Budismo é a única hermenêutica religiosa
que compreende (ou que deseja compreender) criticamente as
experiências psicológicas positivas e, principalmente, que
prescreve a suspeita em relação à transcendência espiritual.
Como tudo na vida, o Budismo também tem seus
aspectos negativos - a concepção subjetivista de liberdade, o
relativismo inclusivo e o elitismo cultural - e seus aspectos
positivos - o foco na observação de si, a concepção não
determinista de karma, a noção de renascimento (e não de
reencarnação), a meditação Vipassana.
É preciso lembrar de que se trata de uma tradição de
26 séculos, assumindo várias feições e beneficiando um
número incalculável de pessoas. Pode-se dizer que, em um
primeiro momento, o Budismo foi mais voltado para a
realização individual do nirvana; e depois, no decorrer dos
séculos, enfatizou mais a tradição dos Bodisatvas (budas da
compaixão, iluminados que permanecem vivos no mundo para
ajudar a humanidade) e uma concepção meritória da roda do
Dharma. A própria noção de Dharma evoluiu, deixando de
significar ‘destino’ para ser ‘doutrina’. Pouco a pouco, a prática
da compaixão se tornou uma ênfase em todas as escolas.
O importante, no entanto, é que, na essência budista
original não havia espaço para transcendência, imagens ou
ideias permanentes: não há nada além deste mundo
(arquétipos, espíritos ou dimensões) e a realidade é apenas
uma descrição feita pela mente. E essa ênfase na imanência
espiritual (um anti-platonismo radical e a ausência de um telos
coletivo transcendental) é a principal característica do
Budismo, influência com uma longa lista de pensadores
esotéricos contemporâneos, que enfatizam mais o
descondicionamento da consciência cotidiana do que os
sistemas de crenças tradicionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ELIADE, M.; COULIANO, I. P. O Dicionário das Religiões. Tradução; Ivone


Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
WILBER, Ken. Espiritualidade Integral – uma nova função para religião
neste inicio de milênio. Tradução Cássia Nassser. São Paulo: Alef, 2007.
Esoterismo
Pós-moderno
RECAPITULANDO
CASTANEDA
Apresentar o pensamento de
Castaneda de forma analítica é, de
certa forma, traí-lo, uma vez que ele
sempre enfatiza o caráter prático e
assistemático do ensinamento
tolteca. E uma enorme dificuldade
inicial é caracterizar as ideias de Castaneda, uma vez que seu
pensamento não é nem esotérico nem acadêmico, mas reúne
elementos de ambos em conceitos sofisticados - como 'ponto
de encaixe da percepção' ou 'seres inorgânicos' - sem
apresentá-los de forma sistemática.

Também não se pode classificar o texto de Castaneda


de literário, no entanto, é evidente que ele se utiliza artifícios
literários autobiográficos para passar seus conceitos chaves
de modo subliminar. Por exemplo, Castaneda passe imagem
que é tolo e demasiadamente racional, levando seus leitores a
subestimá-lo e a se imaginarem que seriam mais espertos
como aprendizes de Don Juan. Por detrás desta manobra de
desvalorização de sua intelectualidade atrapalhada,
Castaneda, na verdade, coloca sorrateiramente sofisticados
conceitos na boca de Don Juan. Ele oculta seu esforço teórico
enfatizando o caráter pragmático, relativo e misterioso mundo
da feitiçaria, mas, na verdade, cunha modos de vê-la e de
entendê-la de modo bastante abstrato e preciso.

Outro artifício interessante é que Castaneda em


praticamente todos os livros conta a mesma história, a história
de seu aprendizado com Don Juan, mas a cada vez narra os
mesmos acontecimentos com enquadramentos e sintaxes
completamente diferentes. Dentro de seu propósito, tal fato se
dá devido à lembrança posterior dos acontecimentos vividos
em outro estado de consciência. Este também é um efeito
literário interessante, uma vez que para entender a história, é
preciso conhecer suas diferentes versões; e, ao mesmo
tempo, um método de pesquisa da própria experiência de
vida, em que há uma ampliação da sintaxe de sua memória e
do seu modelo de interpretação da realidade.

Embora poucos cientistas reconheçam, Castaneda é


um marco na antropologia. Aliás, esta poderia ser subdividida
em três grandes estágios: o período evolucionista e
etnocêntrico, em que os antropólogos consideravam os outros
povos primitivos; o período funcionalista-estruturalista, em que
Franz Boas e Levi-Strauss, entre outros, se descobriram
iguais aos selvagens que estudavam; e o período
etnoantropológico, em que, invertendo a perspectiva inicial, o
antropólogo se conhece cultural e psicologicamente através
de tradição que estuda.

E neste sentido, o esforço teórico de Castaneda ainda


é muito mal compreendido. Mas, além de ser um cientista
social do novo paradigma de conhecimento, Castaneda
também é "o novo nagual" (ou nagual das três pontas),
iniciando uma nova linhagem de feiticeiros sem fetiches.

Linhagem? Sua interpretação teórica do xamanismo


mexicano se deu em um ambiente globalizado, fazendo com
que este saber se desterritorializasse, se espalhando pelo
planeta em milhões de grupos sem nenhuma relação cultural
ou física com as linhagens tradicionais.
Entre as diferentes contradições geradas por esta
situação destaca-se o fato de Castaneda ter se tornado uma
‘celebridade invisível’, isto é, um personagem público que
apagou sua história pessoal. Armando Torres observa que
devido a esta estratégia de se tornar invisível, Castaneda teve
que reformular sua relação com as ‘plantas de poder’ (parte
essencial do xamanismo mexicano), pois ela ameaçava sua
imagem pública e colocava como secundário, o ensinamento
que considerava essencial.

Dito isto, resta ainda explicar que aqui, mais do que


uma exposição sistemática ou crítica do pensamento de
Carlos Castaneda, nosso objetivo aqui é utilizar suas ideias
para reler outros pensadores e formular algo bastante
diferente do que ele pensou e escreveu. Minha intenção não é
confirmar ou criticar, mas sim avançar criativamente no
desenvolvimento de um novo saber, em que ciência e tradição
dialoguem.

Há uma grande diferença de enfoque entre o


esoterismo da nova era (ou nova gnose) e o ensinamento de
Castaneda e D. Juan: para esses últimos não existe
transcendência, platonismo ou imagens-ideias permanentes –
de modo semelhante aos autores pós-modernos. Não existe
nada além deste mundo e a realidade é apenas uma
descrição (na verdade, um inventário) feita pela mente.

Castaneda nega a reencarnação e a lei do karma?


Não. Ele as considera irrelevantes para seus objetivos
espirituais estratégicos. Ele também não nega a criação de
uma alma imortal, simplesmente se percebe com um
conglomerado de eu’s que lutam para se unificar. Alias, acho
que essa espiritualidade ‘sem telos’ existe em vários autores
contemporâneos influenciados pelo pensamento oriental.
Pode-se até dizer que esses autores desconsideram a
dimensão transpessoal da psique, que, para eles, ela é
apenas ilusão ou ideologia das religiões institucionalizadas.

Por outro lado, nos livros de Armando Torres (2003),


discípulo de Castaneda, e de Merilyn Tunneshende (2006) do
grupo do D. Juan, os personagens de Genaro e Soledad são
bem diferentes. Um trabalha com cura e a outra é cartomante
- algo inconcebível para ética do guerreiro de Castaneda. A
ênfase da luta contra a autopiedade e a importância pessoal
levou a uma concepção pouco generosa. E muitos acusam
Castaneda de ter reinterpretado a tradição tolteca de uma
forma muito ... ‘pós-moderna’. 5

O livro mais chocante é o de Amy Wallace (2007), filha


do famoso escritor Irving Wallace. O livro, ao contrário dos
outros, não trata de feitiçaria, mas sim do desenvolvimento de
sua relação amorosa com Castaneda, apresentando-o como
uma pessoa indisciplinada e imatura afetivamente,
mulherengo, um líder dominador e cruel. Além de
desmascarar várias mentiras6, o livro traz uma cópia de
atestado de óbito de Castaneda, para provar que ele morreu
de câncer no fígado (uma morte vergonhosa para um
guerreiro) e não se transformou em uma bola de fogo, dando

5
Domigues Delgado, por exemplo, distingue a ‘toltequidade’ do penseamento
casteniano. <http://www.perceptica.com.mx/>
6
Uma das "mentiras" de Castaneda, e justamente a que mais polêmica
causou, foi a história da Mulher Nagual (Carol Tiggs, na verdade era Muni
Alexander, ou melhor Elizabeth Austin ou ainda Kathleen A. Pohlman), que
teria desaparecido na "Segunda Atenção" durante 12 anos, de 1973 a 1985,
quando ela ressurgiu. Mas, na verdade, ela estava matriculada em uma
escola de acupuntura, era casada e se divorcia exatamente na mesma época.
um salto para o infinito, como alguns de seus seguidores
passaram a propagar. Amy acha também que as três bruxas
que seguiam o nagual – Carol Tiggs, Taisha Abelar e Florinda
Donner – se suicidaram. Alguns dos leitores dos livros de
Castaneda e de suas ajudantes não acreditam na narrativa de
Amy Wallace. Aliás, consideram inclusive que ela pode estar
deliberadamente mentindo para esconder o verdadeiro destino
de Castaneda e das bruxas – o que certamente combina com
suas ideias e sua estratégia de guerreiro.

Para nós, no entanto, nada disso importa. Relevantes


são as ideias abstratas que pretendemos analisar e não as
fofocas de ex-namoradas ou as crenças de seus admiradores.
Porém, não há como negar o papel que a contrainformação
desempenha em relação a tudo que envolve Castaneda. É
como se ele trabalhasse seus conceitos de forma tão discreta,
como se sugerisse suas noções de forma tão delicada, que no
final ficasse a dúvida: “Bom talvez esse cara não exista
mesmo, seja apenas um truque do mercado editorial
americano, mas quem será que pensou tudo isso?”

Os conceitos de Tonal e Nagual, por exemplo,


representam por tanto princípios e campos perceptivos
opostos e complementares, em que o primeiro é a ordem, o
racional, o conhecido; e o último, o caos, o irracional e o
desconhecido. O tonal é nossa percepção ordinária
(sensorial-mental) do mundo como algo formado por objetos
concretos, pessoas e coisas sólidas. O nagual é quando
percebemos que estamos em um universo de relações, que
tudo é feito de energia em diferentes níveis de organização e
de adaptação. Na verdade, há três posições perceptivas: o
conhecido (tonal ou primeira atenção), o desconhecido
(nagual ou segunda atenção) e o incognoscível ou terceira
atenção, ou Intento. Atenção aqui entendida como a
capacidade de enfocar o que desejamos perceber.

Em muitos textos o tonal é comparado a uma ilha (ou


bolha da percepção) e o nagual a um oceano-universo que o
engloba: o mar escuro da consciência. Neste contexto, o
sonhar é a base de toda experiência cognitiva: estamos
sonhando o tempo todo, seja dormindo ou quando estamos
acordados. A diferença é o enquadramento mental-sensorial
no estado de vigília (ou tonal) da percepção da energia sem
realidade sensorial dos estados alterados de consciência (ou
nagual). Aliás, enquanto campos perceptivos podem-se
inclusive comparar a relação entre Tonal e Nagual às de
consciência algorítmica e consciência quântica, em voga entre
os neurocientistas.

Também se chama de Nagual ao líder de um grupo de


guerreiros na tradição xamânica mexicana. Nos grupos, os
guerreiros se subdividem em sonhadores e espreitadores; e o
nagual é o único que tem a mestria nas duas artes. Ele é o
líder porque tem seu segundo eu enraizado no campo nagual
e tem energia suficiente para desferir o "golpe do nagual", isto
é, uma descarga de energia no meio das omoplatas dos
guerreiros, onde fica o ponto de aglutinação dos guerreiros,
deslocando sua percepção para o nagual e tornando
irreversível seu desenvolvimento posterior. O ‘golpe’ também
pode ser um acontecimento (a morte de um parente próximo
ou um acidente fatal com a própria pessoa) que faça o
desconhecido emergir na vida do golpeado, deslocando a sua
percepção de tempo e de seu propósito de vida.

Há ainda a ‘regra do Nagual’, mais que um conjunto de


normas da tradição oral, uma determinada configuração
energética das linhagens xamânicas que regula as relações
entre o líder e o grupo de dezesseis guerreiros, com dois
espreitadores e dois sonhadores para cada ponto cardeal.
Alguns praticantes chamam de Nagualismo ao conjunto de
práticas e ideias associadas a esta tradição.

Aliás, os termos 'xamanismo tolteca' - nome mais


associado às práticas anteriores a Castaneda e a outros
grupos paralelos ao de D. Juan, como os de Miguel Ruiz - e
'tensegridade' (este termo mais associado às suas
sucessoras, Florinda Donner, Carol Tiggs e Taisha Abelar)
nunca pareceram nos seus livros. O ensinamento professado
pelo Sr. Carlos Castaneda é a Arte da Feitiçaria, redefinida
como a arte de acumular e redistribuir energia com o propósito
de escapar à segunda morte - independente dos sistemas de
crenças, das tradições ou das práticas mágicas. E a feitiçaria
se subdivide em duas grandes partes: a Espreita e o
Ensonhar.

A arte da espreita é a capacidade de fixar


conscientemente o ponto de aglutinação da percepção através
do campo da cognição ordinária, também chamada de
primeira atenção ou tonal. Esta arte apresenta diferentes
técnicas e estágios (o não-fazer, o pequeno tirano, a arte da
loucura controlada através de disfarces, a recapitulação) e
torna o praticante liberto de sua auto-importância pessoal (ou
do uso inadequado de seu ego) através de mudanças de
comportamento que diminuam o desperdício de energia
psíquica. A espreita implica em tomar tudo como presa,
inclusive às próprias fraquezas, implica em agir de modo
estratégico em relação ao próprio comportamento e à sua
transformação permanente. “A arte da espreita está ligada ao
coração, assim como a mestria da consciência está ligada à
mente, e a mestria do intento ao espírito”. É uma batalha
silenciosa para “conseguir os objetivos” da melhor forma em
cada situação. A espreita pode ser aplicada a tudo, mas
espreitar a si mesmo é a sua maior expressão.

Para espreitar é preciso ter um propósito, ser


impecável, sair da auto importância, banir hábitos e praticar a
loucura controlada (fingir-se imerso na ação, mas sem se
identificar, nem ser notado). A recapitulação é o ponto forte
dos espreitadores, pois é uma forma especializada de
espreitar as rotinas internas.

A arte do ensonhar consiste na capacidade de


deslocar deliberadamente o ponto de aglutinação da
percepção através do campo da cognição extraordinária,
também chamada de segunda atenção ou nagual. Através
desta arte, o praticante deve construir um 'segundo eu' ou
Duplo, que poderá tomar outras formas e subsistir ao seu
desaparecimento físico. A esta experiência - de se reconhecer
como um conglomerado de campos de energia - chama-se
"perder a forma humana" e é considerado um passo
irreversível no desenvolvimento dos sonhadores que passam
então, a ver o universo como energia viva e perdem todos
seus condicionamentos sociais.
Para Castaneda, percebemos apenas uma descrição
consensual da realidade, a ilha tonal. Para ultrapassar os
limites perceptivos desta ilha temos que aprender a nos ver
como um campo energético, como outro eu ou corpo
sonhador, construído através do desenvolvimento da
consciência e de diferentes estados de percepção.

Esta é a manobra dos feiticeiros, isto é, preparar o


corpo sonhador para sobreviver à morte física e continuar
existindo (de modo semelhante à alma penada do suicida, que
fica presa no astral até o dia em que deveria realmente morrer,
mas por tempo indeterminado e com poderes de
materialização entre outros) até o momento de mergulhar do
infinito e trocar a consciência pela liberdade. Esta ideia é que
certamente o que há de diferente e de mais polêmico neste
ensinamento. Ao contrário do corpo astral, o duplo etéreo e os
outros corpos percebidos (ou imaginados) no esoterismo
tradicional, o corpo sonhador do nagualismo é uma entidade a
ser construída. E a melhor forma de construir um corpo
sonhador no sentido proposto com Castaneda e D. Juan é
buscar se conhecer obsessivamente a si mesmo.

Na verdade, é preciso reconhecer que existe aí um


‘telos’, um universal, uma transcendência no sonhar. A
verdade é que o judeu reza pela vinda do messias; o cristão
deseja ser bom para antecipar a utopia social; o budista
medita porque crê no nivarna e o tolteca intenta um corpo que
sobreviva à morte e a formação de um grupo.

Todo mundo tem uma transcendência que dá sentido a


sua vida, mesmo que não goste de admitir. Embora o budismo
e o nagualismo tolteca acreditem que empíricos, a finalidade
que dá sentido a vida das pessoas que seguem esses
sistemas não é melhor do daqueles que acreditam na volta do
messias ou na Jerusalém celeste. Para sonhar ou espreitar,
ou seja, deslocar o foco da consciência para diferentes pontos
de fixação da percepção, o praticante viaja através de um
horizonte vertical pelos diferentes aspectos de uma única
realidade. Segundo Taisha Abelar (1995), existem “nove
formas de mover o ponto de aglutinação” que podem ser
praticadas separadas ou em combinação umas com as outras:
Tensegridade; Recapitulação; Não-Fazeres (‘Não fazer’
significa, essencialmente, não usar itens de nosso velho
inventário); Pequenos Tiranos; Técnicas de observação; o
Silêncio interior; Disciplina e ações impecáveis; Sonhar; e
Espreita. As nove formas estão listadas em ordem
ascendente, em relação à energia necessária para se
conseguir praticar adequadamente. Assim, começa-se pelos
passes, pela recapitulação e pelo inventário; em seguida,
consegue-se enfrentar os desafios do poder; e, finalmente,
chega-se ao patamar energético que permite atual o par
espreita-sonhar. Na prática, para deslocar o ponto de encaixe
da percepção é preciso reunir a energia necessária através de
duas práticas simultâneas e constantes: a recapitulação e os
passes mágicos.

Os passes mágicos são sequências de gestos,


movimentos e respirações para intensificar a consciência,
como também dinamizar e redistribuir a energia do corpo
físico e ajudar a construir o segundo eu. Os passes mágicos
também são conhecidos por Tensegridade - outro conceito
sofisticado de Castaneda importado da arquitetura e da
biomecânica, onde é sinônimo de integridade tensional, uma
propriedade presente em objetos cujos componentes usam a
tração e a compressão de forma combinada, de forma a
proporcionar-lhes estabilidade e resistência.

A Recapitulação é um tipo especial de passe mágico


que consiste em revisar a própria vida com ajuda da
respiração visando resgatar a energia presa no passado.
Recapitular é resgatar e desembaraçar a energia gasta com
as feridas emocionais do passado, permitindo reestruturar a
memória, para que possamos nos servir energia excedente
para sonhar. Este processo também é chamado,
principalmente nos primeiros livros do nagual, de "apagando a
história pessoal".

A recapitulação enquanto prática de reorganização da


memória e expansão gradativa da consciência é mais
detalhada nos livros de Taisha Abelar e Victor Sanches do que
nos de Castaneda. O objetivo destas práticas (de ganho e
redistribuição energética) e do desenvolvimento do Duplo e da
mestria no deslocamento do ponto de aglutinação da
percepção (na espreita e no ensonhar) é se capacitar para
saltar para o infinito e entrar na terceira atenção, sobreviver à
morte física.

Ao contrário do reencarnacionismo, Castaneda afirma


que a morte pode ser o fim definitivo e que a grande maioria
da humanidade, após ter sido sugada por toda vida através de
Predadores de Energia, está fadada a servir de alimento aos
Seres Inorgânicos - demônios ou espíritos da terra e da lua
que se alimentam da vida orgânica em uma escala evolutiva
paralela.
Assim, pode-se dizer que o pensamento de Castaneda
é duplamente contrário à visão humanista e antropocêntrica
do esoterismo, que sempre viu o Ser Humano com um
pequeno deus, no ápice da evolução do universo, pois postula
que além, da existência de outras criaturas que não são
moralmente nem superiores nem inferiores ao homem, o
objetivo de deixar de ser humano para não ser alimento
destes seres. Alguns indivíduos, no entanto, após perderem a
forma humana e forjarem corpos sonhadores ou Duplos,
sobrevivem e recebem o Presente da Águia, a possibilidade
de continuar se desenvolvendo e habitar em reinos
inorgânicos em outra ordem evolutiva.

Uma das consequências diretas desta consciência


permanente com a Morte (eterna, como fim da existência) é o
Caminho do Guerreiro e sua luta pela impecabilidade. Mais
do que um simples código de conduta comportamental, a ética
do guerreiro é uma determinada configuração energética em
que o praticante, através de seu propósito inflexível alinha-se
ao Intento, uma energia inteligente que pode treiná-lo e guiá-
lo até seu salto para o infinito. O Guerreiro deve aprender a
agir por agir, sem esperança nem desespero, a dar o melhor
de si sem esperar retribuição, a crer sem crer, a viver
deliberadamente através de desafios constantes, a sempre
escolher o caminho de seu coração, entre outros preceitos.

Há ainda muitas várias outras práticas (o inventario de


crenças, parando o diálogo interno ou o mundo) e outros
conceitos (Silêncio Interior, O Brilho da Consciência, as
Emanações da Águia). Não vamos detalhar todos aqui todos
esses termos e etapas de desenvolvimento. Para nós, o
importante é perceber que se, por um lado, há uma metafísica
oculta no pragmatismo dos que se acreditam empiristas e
amantes do concreto (a Iluminação é a escatologia do
budismo e do Osho, a ‘regra do nagual’ é a teleologia da
tradição tolteca); por outro lado, é preciso também reconhecer
que há também, nos ensinamentos professados por
Castaneda, uma nova sintaxe para percepção , ou pelo 7

menos, uma nova forma de colocar as velhas questões.

Por exemplo, a diferença entre a projeção astral e o


sonhar. Há uma única atividade cognitiva ou um estado de
consciência que é interpretado por sistemas de pensamento
diferentes. E do ponto de vista prático também surgem
diferenças a partir dai. A primeira é que se pode sonhar
acordado e a projeção geralmente acontece durante o sono.
Na verdade, sonhamos o tempo todo, sendo que, na vigília,
com um enquadramento sensorial. Sonhar juntos não é
apenas se encontrar durante o sono, mas, sobretudo ter
objetivos comuns de vida. O sonhar e a projeção astral são
apenas formas diferentes de sonhar o sonho, diferentes
interpretações sobre a abrangência do sonhar.

Outra diferença é que no sonhar de Castaneda há


outro eu com várias possibilidades (animais xamânicos,
sonhar ser outra pessoa, se reconhecer como uma bola de
energia); na projeção, há um outro corpo (o corpo astral) com
o mesmo eu. Nas experiências ligadas à projeção astral há

7
Sintaxe é a estrutura das palavras na frase e das frases no discurso. Nos
dois casos, o termo sintaxe se refere à organização espacial da linguagem em
padrões. Na linguística contemporânea, sintaxe é o eixo analógico oposta ao
repertório (ou ao léxico) na organização da linguagem. Foi daí que Castaneda
tirou o termo sintaxe, dando um sentido mais abrangente ao termo: as regras
do jogo da percepção. E trocando a palavra 'repertório' pela de 'inventário'.
uma continuidade entre o eu da realidade ordinária e o eu
projetado. O próprio termo projeção astral sugere uma
continuidade, uma extensão. Já nas experiências do sonhar,
há uma interrupção do eu ordinário e um tipo de consciência
diferente da vida cotidiana.

Outro aspecto bastante relevante em relação aos


ensinamentos de Castaneda, pelo menos em minha opinião, é
o desafio de dosar autonomia radical (espreita individual) e
sonhar junto. Quando várias pessoas têm um propósito
comum - a transformação - a energia total é mais do que a
energia individual de cada um. Esse ganho de energia propicia
que cada um tenha mais energia para cumprir sua mudança
do que se a tivesse intentado sozinho. A isso Castaneda
chama 'massa crítica'.

Por outro lado, se as pessoas se organizam em


grupos e/ou em instituições, o ganho energético inicial acaba
se tornando um capital coletivo e as pessoas passam a
depender uma das outras, perdendo a autonomia e entrando
na neurose. E para aumentar a massa crítica
exponencialmente e ficar vinculado afetivamente a outras
pessoas, o praticante deve agir como um guerreiro, nunca
adotando um grupo ou local definitivo para o seu trabalho de
acumular energia.

Há uma passagem conhecida em que Castaneda se


torna um corvo. Depois pergunta a Don Juan: “Realmente me
tornei um corvo ou imaginei ter me tornado um?”. Ao que índio
respondeu: “Qual a diferença?”. Inconformado, Castaneda
ainda perguntou: “E se houvesse comigo alguém do meu lado,
ele me veria como corvo ou como um homem que imagina ser
corvo?” E Don Juan explicou que o ponto de encaixe da
percepção funciona por indução e que se alguém estivesse ao
seu lado provavelmente também teria seu ponto de encaixe
deslocado para o mesmo ponto, e não só veria Castaneda
como corvo mas também se veria como outro corvo.

Se você acredita que é um ovo luminoso, ou se o


grupo de pessoas com que partilha uma forma alternativa de
ver o mundo pensa isso, é possível que se vejam realmente
como tal. Se partilharmos de imagens de animais xamânicos
ou de outros arquétipos, é com elas que vamos nos
reconhecer. Existe um pacto cognitivo que diz que somos
homens. Pode-se propor um pacto alternativo dizendo que
somos ovos ou bichos, mas sozinho, não tenho capacidade de
dizer que sou nada. Depende-se sempre de uma energia de
massa crítica para se definir como algo. Eis porque
continuamos sempre e sempre acreditando apesar de não
acreditarmos realmente em nada. Eis porque não
conseguimos superar o sistema de crenças e sonhar um novo
sonho, uma nova sintaxe.

Tentar sistematizar pensadores irracionalistas se


parece com dar voltas em círculos, escrever sempre a mesma
coisa sem conseguir concluir. Mas, se há alguma mensagem
no ensinamento de Castaneda é que precisamos modificar
nosso ponto de encaixe de percepção coletivo, temos mudar
nosso sonho do planeta. Nesse caso, o período de
‘celebridade invisível’ e o súbito desaparecimento do nagual e
do seu grupo fariam realmente parte de uma estratégia de
aumentar a massa crítica em torno de suas ideias e, ao
mesmo tempo, apagar sua história pessoal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABELAR, Taisha A Travessia das Feiticeiras. Rio de Janeiro: Record/Nova


Era, 1995a.
_______ Palestra em seminário de Tensegridade, Instituto Omega.
Transcrito das anotações de Rich Jennings. Maio de 1995b.
CASTANEDA, Carlos. Readers of Infinity: A Journal of Applied
Hermeneutics - 1996 - Diários do trabalho de Castaneda com suas discípulas
ainda não traduzido.
____ O Lado Ativo do Infinito (The Active Side of Infinity - 1999). Rio de
Janeiro: Record/Nova Era, 2000a.
_____ Roda do Tempo (The Wheel Of Time: The Shamans Of Mexico -
2000) - uma antologia de citações comentadas. Rio de Janeiro: Record/Nova
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DONNER, Florinda Donner: Sonhos Lúcidos. Rio de Janeiro: Record/Nova
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_______ A bruxa e a arte do sonhar. Rio de Janeiro: Record/Nova Era,
1998.
SANCHES, Victor. Os ensinamentos de Don Carlos – as aplicações
práticas dos trabalhos de Carlos Castaneda. Rio de Janeiro: Record/Nova
Era, 1997.
TUNNESHENDE Merilyn A Serpente do Arco-íris tolteca - Don Juan e a
arte da energia sexual tradução exclusiva da Dra. Arlinda Silva para os
integrantes da lista dos rastreadores de energia, 2006.
WALLACE, Amy. Aprendiz de Feiticeira – minha vida com Carlos
Castaneda. São Paulo: Nova Era, 2007.
STEINER - BIOGRAFIA E
SUBJETIVIDADE
Este texto pretende
discutir parâmetros e
procedimentos metodológicos
para organização de biografias
e para o estudo histórico da
subjetividade individual
através da hermenêutica, a
teoria geral da interpretação. Geralmente, a hermenêutica é
aplicada para explicar e para compreender outras teorias
científicas, obras de arte, discursos políticos; aqui, pretende-
se utilizá-la para também entender não o percurso biográfico.

O estudo biográfico nas Ciências Social (ou a relação


Indivíduo-Sociedade) tem uma longa história, tendo sido
utilizado de diferentes modos em diferentes momentos
(FERRAROTTI In: NÓVOA & FINGER; 1988. p. 17-34). A
partir dos anos 80, a abordagem chamada de “história de vida”
– em que há uma distinção entre ‘estória de vida’ (a
autobiografia oral) e ‘história da vida’ (a subjetividade
objetivada por documentos e pela narrativa externa do
pesquisador) - ganhou destaque na pesquisa antropológica.

E, recentemente, esta técnica passou a ser aplicada a


grupos sociais específicos, muitas vezes de forma
autobiográfica, como os professores e alunos (BUENO, 2002).
Os atores coletivos das Ciências Sociais (classes, partidos,
estados, organizações, etc) são, na verdade, formados por
pessoas.
Aqui, no entanto, não se trata de utilizar o enfoque
biográfico para reconstituir a memória histórica, mas sim de
chegar ao vértice cognitivo da ação social. Nesta perspectiva,
a verdadeira práxis histórica é aquela que responde
criativamente às seus condicionamentos estruturais,
transformando as condições que a formaram.

Afinal, “são os homens que, sem saber, fazem a


própria história”. Porém, embora existam muitos cientistas
sociais conscientes do peso das estruturas coletivas e do
papel da práxis individual como principal fator de
transformação social, a tarefa de escrever biografias sempre
foi deixada aos jornalistas e escritores, que, por força do
hábito, geralmente exageram no poder da personalidade
biografada sobre seu contexto histórico.

O mesmo pode ser dito das biografias de inspiração


psicanalítica e literária. E o foco da pesquisa biográfica não
pode nem minimizar nem supervalorizar a subjetividade
individual em relação à dimensão coletiva. Esta exigência de
um enquadramento realista do individuo na sociedade torna-
se ainda maior e mais complexa quando se trata de uma
autobiografia, em que a subjetividade do sujeito pesquisador é
a mesma que a do objeto pesquisado.

Quando a pesquisa torna-se sujeito, verbo e objeto do


discurso, quando a investigação sobre a vida se confunde com
a própria vida, é preciso definir parâmetros para manter
alguma objetividade.
Assim, o primeiro passo da pesquisa biográfica é
contextualizar a vida individual estudada em relação aos
diferentes cenários em que está inserido.

ESTRUTURA SOCIAL FATORES CONDICIONANTES

Cenário geográfico País, região, cidade, local de vida.

Cenário histórico Século, décadas, fatos relevantes.

Cenário familiar Pais, irmãos e parentes próximos.

Cenário educacional Escolas, professores, amigos.

Cenário econômico Modo de produção, classe social

Porém, de nada servem a contextualização social e


histórica da vida individual se não se observa também à
dimensão psicológica do estudo biográfico, tanto no que diz
respeito à formação, aos conflitos e à transformação da
personalidade do biografado como no que se refere a nossa
própria subjetividade. Vivemos vidas parcialmente já vividas e
transformadas em paradigmas e modelos. Mimetizam-se,
involuntariamente, comportamentos estruturados antes de nós
por semelhantes em uma situação recorrente. Neste sentido, o
estudo das biografias das personalidades históricas pode nos
revelar padrões inconscientes, permitindo novas opções e
escolhas diferentes.

Além de pesquisar a biografia das personalidades, o


estudo biográfico aqui proposto implica ainda em discutir um
método autobiográfico voltado para o estudo compreensivo da
subjetividade. Para tanto, além de uma contextualização
objetiva, é preciso também compreender a contribuição da
psicanálise ao estudo de duas outras dimensões:
 Subjetividade, com destaque para a ideia de que os
eventos traumáticos de uma biografia ficam recalcados no
inconsciente, gerando neuroses e compulsões na
Personalidade;
 Intersubjetividade, principalmente ao dispositivo
dialógico de transferência e contratransferência analítica,
isto é, ao processo de projeção analógica de semelhanças
e diferenças culturais entre o Pesquisador e o Biografado.
Ou seja: o discurso analítico sobre o Outro é também
uma compreensão pessoal de Si mesmo. Assim o segundo
passo da pesquisa biográfica aqui proposta é observar as
relações da subjetividade do Pesquisador com a subjetividade
do Biografado. Entre as várias técnicas dialógicas e esquemas
de entrevistas para pensar a situação de transferência e
contratransferências analíticas, há um diagrama simples de
organização destas relações.

PESQUISADOR BIOGRAFADO

SEMELHANÇAS Interseção Contradição

DIFERENÇAS Contraste Ambientação

 Interseção: O que motiva a pesquisa? Por exemplo,


somos jornalistas e nos interessamos em pesquisar a
atividade jornalística de fulano de tal porque nos
identificamos com ela. Aqui se delimita o universo temático
da pesquisa.
 Contradição: Dentro do universo temático comum ao
Pesquisador e o Biografado existem diferenças e
semelhanças ‘internas’, há uma pergunta a ser
respondida, um conflito a ser mediado. No exemplo da
biografia do jornalista fulano de tal é necessário explicitar
quais as suas características específicas e quais
dificuldades e vantagens resultantes deste perfil.
 Contraste: Mas fulano de tal teve uma vida cuja
identidade ultrapassa nossa projeção inicial: ele não só foi
romancista, teatrólogo, professor do ponto de vista
profissional, mas também amigo, pai, aluno, irmão,
marido, filho, amante, cidadão e muitas outras facetas.
Aqui se especifica o que fica no ‘fundo’ em relação à figura
de um retrato.
 Ambientação: Seguindo a metáfora, neste ponto
detalha-se o lugar que o retrato ocupa em nosso
ambiente. Ou o que se aprende com a história de fulano
de tal? Qual a importância desta biografia em nossa vida
(na vida do pesquisador e na do seu leitor)?
No caso de estudos autobiográficos, em que o
pesquisador e biografado são a mesma pessoa, pode-se
utilizar o mesmo esquema, mas é necessário um interlocutor.
Este interlocutor deve ter alguma experiência em escuta
analítica e de forma alguma interferir ou dirigir o processo
autobiográfico, se limitando a elaborar perguntas que facilitem
a emergência das relações de identidade (“você quer falar em
nome de sua geração?” ou “o que sente o brasileiro quando
conhece o exterior?”).

A conhecida tendência de só querer mostrar os


momentos aspectos positivos da vida, varrendo para debaixo
do tapete do inconsciente os tempos difíceis e os erros
cometidos, seja por bajulação do biógrafo seja por vaidade do
biografado, deve ser exorcizada por ambos desde o início do
processo e é, não havendo técnica ou procedimento
metodológico que garanta a ética, uma questão de
consciência. Além desta contextualização intersubjetiva do
recorte que o pesquisador faz do seu objeto, a dimensão
psicológica da subjetividade implica ainda no estudo biográfico
do desenvolvimento da personalidade. Para elaborar mapas e
procedimentos para tabulação destas informações, lançamos
mão aqui de uma abordagem teórica diferente e heterodoxa: a
psicologia biográfica.
FASE SETENIO CRISE

0 –7 Crise de Socialização

FORMAÇÃO Crise de Crise de Identidade


8 – 14
0 -21
15 – 21 Crise de Sexualidade

21 – 28 A alma da sensação

PLENITUDE A alma do intelecto


29 – 35
22 -42
36 – 42 A alma da consciência

43 – 49 Segunda crise de sexualidade

DECLÍNIO BIOLÓGICO Segunda crise de Identidade


50 – 56
43 -63
57 – 63 Segunda crise de socialização

A psicologia biográfica, estruturada no sistema de


desenvolvimento baseado em ciclos de sete anos no
desenvolvimento do ser humano em estágios de sete em sete
anos, é um dos ramos da Antroposofia, elaborado pelo
pensador alemão Rudof Steiner. Seu método foi
detalhadamente aplicado tanto no estudo de biografias como
em práticas pedagógicas e terapêuticas e tem ampla
comprovação empírica.

Por exemplo, com base nesses princípios de


desenvolvimento biográfico organizou-se a pedagogia Waldorf
(que tem escolas em todo mundo); uma metodologia de
estratégias etárias para recursos humanos adotadas por
várias empresas; e uma abordagem médica que leva em
conta a etapa da vida das pessoas.
Segundo os chineses, em uma vida “há 20 anos para
crescer/aprender, 20 anos para lutar e 20 anos para alcançar
a sabedoria”. A psicologia biográfica subscreve esta afirmação
e ainda subdivide em setênios cada uma destas três grandes
fases. Na primeira fase, do nascimento até os 21 anos,
observa-se a formação do corpo e da personalidade em três
etapas: até os sete anos, dos 8 aos 14 e daí a maturidade.

Cada uma dessas etapas de sete anos corresponde a


um determinado estágio de desenvolvimento do corpo e da
personalidade e a passagem de uma etapa para outra implica
em uma crise e uma adaptação. Ao final do sete anos, a
criança vive uma crise de socialização; aos 14, a crise da
sexualidade; e aos vinte a crise de identidade. Da mesma
forma, a psicologia biográfica subdivide a fase adulta (21-42) e
fase madura (42-63) em três etapas de sete anos cada, com
crises de transição. Enquanto nos primeiros três setênios da
vida o indivíduo vive um predomínio dos fatores biológicos
sobre os subjetivos, ele terá também um período igual em que
há um equilíbrio e um período de decadência biológica e
oportunidade espiritual a partir dos 42 anos de idade. Neste
último período, há um predomínio dos fatores subjetivos sobre
os biológicos e as crises (ou mudanças cognitivas) são
simétricas aos setênios da juventude. Dos 43 os 49,
retornamos aos 14-21; dos 50 aos 56 de volta aos 7-14; e,
finalmente, dos 57 aos 63, o período dos zero aos sete anos.

Vejamos agora cada um dos setênio e as perguntas


correspondentes a cada etapa, desenvolvidas pela Dra.
Gudrun Burkhard, no livro Tomar a Vida nas próprias mãos
(2000), a grande codificadora da teoria biográfica.
De zero aos sete anos, no 1º setênio, é a fase de
estruturação biológica da pessoa. A relação com os pais e
com a família é fundamental nessa fase. Por isso é importante
determinar como era a casa, o lar, o ambiente e as pessoas
do lugar onde você morava nessa época.

“Qual era a sua relação com pai, mãe, irmãos,


avós, tias? Moravam todos na mesma casa
que você? Definido o ambiente humano em
geral, estabeleça também as rotinas de sua
vida no período. Quais eram seus brinquedos
prediletos? Quais eram suas atividades
preferidas?” (BURKHARD, 2000, 73-74).

Geralmente a primeira lembrança que se tem é


próxima do advento das primeiras palavras. As memórias
anteriores à fala são mais difíceis de acessar. A propósito, a
capacidade discursiva desempenha um papel fundamental na
organização da memória e a imagem que se faz de si mesmo
(diante da mãe) antes de seu aparecimento da fala permanece
inconsciente para o resto da vida, como um padrão de apego
nos relacionamentos. Na Antroposofia, é período de
construção do corpo vital ou duplo etéreo.

De 7 a 14 anos, no 2º setênio, o foco do


desenvolvimento se desloca da família para escola, dos pais
para os amigos. É preciso perguntar com que idade se
ingressou na escola, como foi alfabetização, quais os
professores e das matérias preferidas.

“Quais foram os conceitos, normas e


costumes que recebeu naquela época? Como
foi sua educação religiosa? E quais foram
suas atividades artísticas?” (2000, 74).
Também é importante se lembrar de como eram as
férias do período escolar. Se havia oportunidade de praticar
algum esporte, fazer excursões, ter contato com a natureza.
Os amigos passam a desempenhar um papel fundamental,
principalmente, os do sexo oposto, embora nessa fase as
crianças aparentem desinteresse e até mesmo aversão pelos
comportamentos do outro sexo. E quando entrou na
puberdade, como você lidou com as mudanças corpóreas?
Como foi o primeiro beijo? E a primeira experiência sexual,
como você descobriu a sexualidade.

No 3º Setênio, de 14 a 21anos, entramos na


adolescência, período em que geralmente nos rebelamos
contra a família e as outras instituições que regulam nossa
vida. Também é importante definir se precisou trabalhar ou
pode investir em sua formação profissional. Aliás, como
aconteceu sua escolha profissional?

“Quais eram seus ideais? Que pessoas


influenciaram você positiva ou negativamente
na época? Como era seu relacionamento com
seus pais? Como eram seus relacionamentos
com o sexo oposto?” (2000, 74-75 ).

De 21 a 28 anos, no 4º setênio, começa a segunda


parte de nossas vidas. Já não se trata mais de crescer, de
aprender; agora, trata-se de lutar, de conquistar espaço.
Nesse período, ao mesmo tempo em que há uma
continuidade das condições do setênio anterior há também
uma reflexão sobre os excessos, bem como um
amadurecimento e uma consolidação da personalidade
formada na adolescência, da mente desenvolvida no período
escolar e do ego construído em casa. Muitos insistem (em
vão) na adolescência! A grande maioria de jovens
trabalhadores se pergunta se escolheu a profissão certa, se
teve oportunidade de conhecer várias situações de trabalho. E
com relação à vida pessoal, também existem dúvidas e
inseguranças. Muitas vezes, esse é um período de novos
começos, não só na vida profissional, mas também na vida
pessoal.

Como escolho meus parceiros? Há algum


padrão em comum nas pessoas que escolho
para me relacionar? Que papeis assumi?
Quais mais me pesaram? E mais: consegui
uma boa relação com o mundo, com a
organização de trabalho, com a família e
comigo mesmo? Consegui colocar meus
ideais em prática? Quais talentos e aptidões
eu deixei para trás? Quais minhas reais
habilidades técnicas?” (2000, 100).

De 28 a 35 anos, no 5º Setênio, a ‘crise dos talentos’


potencializa ainda mais a dúvidas sobre ser vencedor ou
perdedor (uma avaliação sempre precoce, é claro) em relação
aos objetivos traçados na adolescência. Espera-se que a
pessoa tenha encontrado a missão de sua vida. Nesse ponto,
a pessoa questiona sobre se encontrou e aceitou a questão
básica de vida, seu propósito estratégico.

“Minha individualidade pode desenvolver-se


bem? Pode se expressar? Eu me senti
oprimido ou oprimi alguém? Encontrei meu
lugar de atuação? Sentia-me valorizado? Em
que sentia minha valorização?” (2000, 111).

O 6º Setênio, de 35 a 42 anos, é o ápice da biografia.


Momento de equilíbrio entre o aspecto biológico e psicológico,
bem como de maior capacidade física e mental. Nesse
contexto, a pessoa faz um balanço de seu desempenho e de
sua imagem com mais propriedade.
“Como os outros me veem? Como vejo a mim
mesmo? Que ilusões sobre mim mesmo eu
tive que de desmantelar?” (2000, 120).

Com 7º setênio, de 42 a 48 anos, começa o declínio


biológico e a terceira fase da vida. Agora, a pessoa deve se
preparar para velhice com saúde e para o desenvolvimento de
sua subjetividade e de sua sabedoria. Mudam os valores de
comparação, muda a perspectiva, mudam também os
objetivos de vida. Mas, nem sempre essa passagem se dá
consciente e voluntariamente. A andropausa (e a menopausa,
para mulheres) e a chamada crise de meia-idade, a idade do
lobo, são resultantes de um retorno imaginário à adolescência,
o 3º setênio é simétrico ao 7º - ambos tratam da sexualidade e
do aparelho reprodutor.

“O que deixei para trás em aptidões,


potenciais e talentos que agora quero
resgatar? Em meu trabalho, estou
preocupado com sucessores? Tenho
conseguido doar meus frutos maduros? A
quem? Como está meu casamento? Meu
relacionamento? A relação com meus filhos?
Desenvolvi atividades em que haja
empregado habilidades conceituais?” (2000,
133).

O 8º setênio, de 48 a 56 anos, por sua vez, consiste


em um retorno ao período de aprendizado. Ele é simétrico ao
2º setênio e representa uma oportunidade para se rever os
valores e os conceitos que norteiam a vida.

Consegui encontrar um novo ritmo de vida?


Como está meu ritmo anual, mensal, semanal
e diário? Quais são os galhos secos de minha
árvore, quais têm de ser cortados para que
novos brotos possam aparecer? (2000, 143).
De 56 a 63 anos, no 9º setênio, há um período de
retorno a infância, ao primeiro setênio e aos mecanismos de
formação do ego. A família volta a ser o foco central de
desenvolvimento e de reflexão. A saúde do corpo e a morte
iminente também passam a fazer parte do cotidiano da pessoa
durante esse período.

O que consegui realizar? Há ainda tarefas


que eu gostaria de completar, ou há outras
para realizar? Como eu lido com minhas
limitações? Estou cuidando do corpo, da
memória, dos órgãos dos sentidos? Existem
relacionamentos que não foram absorvidos,
onde tenham ficado questões em aberto?
Como está a questão dos meus bens? Como
está a questão da aposentadoria? Tenho
momentos de graça, sentimentos de gratidão
e alegria? Sou capaz de perdoar? (2000,
151).

Não podemos detalhar aqui todo este sistema de


desenvolvimento biográfico, que tem várias aplicações
práticas e desdobramentos na própria Antroposofia. Para nós,
ele é importante como parte de nossa estratégia de
construção de parâmetros para elaboração de Mapas
Biográficos da Subjetividade, em que se possa visualizar as
crises e o desenvolvimento do biografado de 7 em 7 anos.

DIMENSÃO REPRESENTAÇÃO

OBJETIVIDADE Mapa do Contexto Social

SUBJETIVIDADE Mapas Biográficos por Setênio

INTERSUBJETIVIDADE Mapa de Relações Dialógicas

TRANSUBJETIVIDADE Entrevista performance

Recapitulando
Então, resumindo: para evitar que o estudo (auto)
biográfico da subjetividade caia no subjetivismo, prescreve-se
inicialmente um mapa do contexto social da biografia,
subdividido em cenários (histórico, familiar, geográfico,
educacional, etc) com seus fatores condicionantes
específicos. Esta primeira proposição corresponde a um
enquadramento social objetivo, 1º nível de interpretação
hermenêutica.

Em seguida, para investigar a dimensão psicológica


da subjetividade biografada propomos a adoção dos modelos
oriundos das psicologias tipológica e biográfica,
principalmente os mapas cronológicos de três fases
(formação, maturidade e sabedoria), cada um com três
setênios (sete anos). O objetivo deste procedimento é
estabelecer parâmetros biológicos comuns, universais para
todas as biografias, deixando assim ressaltadas as diferenças
subjetivas no desenvolvimento da personalidade. Este
procedimento corresponde ao 2º nível de interpretação
hermenêutica, o simbólico.

E para estuda a intersubjetividade, 3º nível de


interpretação hermenêutica, adotamos o mapa das relações
dialógicas de identidade, e fizemos algumas considerações
sobre o papel de interlocutor na organização de biografias.
Nesse texto, inverteu-se a ordem da apresentação do 2 o e 3o
procedimento para facilitar a exposição das ideias principais.
Na prática, os dois procedimentos metodológicos são
simultâneos e a ordem de aplicação não é relevante.

E o quarto passo, o arquetípico e hipertextual, a que


procedimento corresponde nesta metodologia de estudo da
subjetividade biográfica? A entrevista performance realizada a
partir do roteiro organizado a partir dos mapas anteriores. A
entrevista tanto pode ser clínica ou jornalística.

Para Cremilda Medina (1986) entrevistar é mais arte


que técnica. A entrevista é um texto dialógico, um gênero
literário escrito a dois, porque quando entrevistador e
entrevistado entram em sinergia criativa, chegam a
formulações em que seriam incapazes de elaborar sozinhos.

A entrevista jornalística especificamente, ao contrário


das entrevistas realizadas por sociólogos e/ou psicólogos, é
um texto escrito por três elementos, incluindo, além do
entrevistador e do entrevistado, a categoria de ‘público’, a
presença invisível de uma grande audiência anônima, distante
e desterritorializada. A 'presença do público' tem vários
desdobramentos: o discurso da entrevista torna-se mais
performático e espetacular; o aparecimento do ‘off’ (ou do que
é dito sem a presença do público) e até de uma pré-entrevista
(briefing) em que se combinam os limites da entrevista.

Cremilda diz a entrevista jornalística oscila entre o


polo compreensivo e o polo espetacular segundo a maior ou
menor presença do público dentro da entrevista. No entanto,
desconsidera que a existência da audiência estimula e, de
certa forma, dirige os interlocutores de uma entrevista
performance. Dependo do tipo de público, diferentes aspectos
ou modos de exposição de um mesmo fato surgem no diálogo
entre pesquisador e biografado, levando a diferentes
resultados.
Já na entrevista clínica, não há público nem registro
das falas dos interlocutores. O objetivo é reviver as feridas do
inconsciente e fechá-las. Entender o que pode ser mudado
imediatamente e o que não pode. Há várias possibilidades de
entrevistas clínicas usando o modelo biográfico: psicanálise,
regressão por hipnose, etc.

Tanto na versão clínica quanto na jornalística, deve-se


inicialmente fazer tudo o possível para distanciar a ideia de
público nas entrevistas biográficas. Mesmo que o trabalho vise
a publicação ou outra forma de exposição do material
pesquisado, é interessante, em um primeiro momento, que
haja uma fase de pesquisa em que a divulgação não exerça
nenhuma pressão sobre a produção de dados. Para tanto,
utilizam-se os mapas (do contexto social da biografia; das
relações dialógicas de identidade; e de biografia por setênio)
como roteiro para entrevista preliminar, sem gravador ou
câmera de vídeo. E, em um segundo momento, munido destes
dados, realiza-se a entrevista performance, em que os
acontecimentos são organizados a partir do presente por área
(casas, trabalhos, estudos, amigos, amores), etapas
(períodos) e eventos importantes.

Assim, de posse de toda informação biográfica


levantada na entrevista preliminar, o pesquisador poderá
desenvolver pelo menos três entrevistas performáticas
retrospectivas referentes a) às residências; b) às ocupações; e
c) às relações pessoais do biografado.

E o simples entrecruzamento desses três novos


parâmetros de organização da biografia a partir de uma ótica
retrospectiva, revelará significativos buracos e espaços vazios:
inimigos, frustrações, amores, momentos esquecidos, etc.
Caberá ao biógrafo ou terapeuta valorizar ou não essas novas
informações.

É claro que cada vida é única, aliás, a vida é um


processo de singularização individual e de multiplicidade
coletiva. Traçou-se aqui parâmetros e procedimentos
construídos através da auto-observação e aplicados em várias
biografias, tanto diretamente com entrevistas como também
indiretamente através do estudo de personalidades históricas
relevantes. No entanto, não cabe aqui apresentar estes
resultados dessas investigações, mas apenas lançar as
sementes para a organização futura de várias pesquisas
autobiográficas segundo estes parâmetros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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com histórias de vida de professores: a questão da subjetividade.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 11-30, 2002.
BURKHARD, Gudrun. Tomar a vida nas próprias mãos - Como
trabalhar a própria biografia o conhecimento das leis gerais do
desenvolvimento humano. São Paulo: Editora Antroposófica, 2000.
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LIEVEGOED, Bernard. Fases da Vida – crise e desenvolvimento da
individualidade. São Paulo: Editora Antroposófica, 1994.
MEDINA, CREMILDA. Entrevista - O diálogo possível. São Paulo,
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NÓVOA, António; FINGER, Matthias (Orgs.) O método
(auto)biográfico e a formação. Lisboa: Ministério da Saúde;
Departamento dos Recursos Humanos da Saúde/Centro de
Formação e Aperfeiçoamento Profissional, 1988.
OSHO: O AVATAR DA
REBELDIA
Uma homenagem crítica ao
papa do esoterismo pop

Um Avatar substituto
Para por em prática a
teoria dos Avatares, segundo a
qual um ser iluminado nascia
para salvar o espírito da humanidade há cada dois mil anos,
descrita na Doutrina Secreta de Madame Blavatsky, sua
principal discípula e sucessora na direção da Ordem
Teosófica, Annie Besant, se colocou a missão de localizar e
preparar a pessoa que seria novo Avatar. Encontrou um jovem
indiano e o levou para estudar na Inglaterra. Esse fato teve
como consequência imediata a dissidência aberta por Steiner:
a Antroposofia. Porém, poucos meses antes de assumir a
direção internacional de um verdadeiro império organizado em
sua volta, Krisnamurti desistiu de cumprir o destino para o qual
havia sido educado e iniciou uma cruzada a favor da
meditação e do desenvolvimento da consciência acima de
qualquer sistema de crenças e rituais.

Para o místico indiano Bhagwan Shree Rajneesh (na


verdade, Rajneesh Chandra Mohan Jain), Krisnamurti
fraquejou e não recebeu o espírito solar a que estava
destinado a incorporar. Assim, coube a ele, Rajneesh, o dever
de concluir essa missão e ser o Avatar da Nova Era, aquele
que uniria espiritualmente Ocidente e Oriente. E, a partir do
final dos anos 80, Rajneesh passou a se chamar de Osho -
um título originalmente de reverência concedido a certos
mestres na tradição Zen do Budismo.
Sem entrar no mérito das ideias de Rajneesh, nem de
sua pretensão de se chamar de Osho e se considerar o Avatar
da Nova Era, uma de suas contribuições mais importantes é
seu marketing de organização em rede – fato que geralmente
passa despercebida tanto aos seus críticos quanto aos seus
defensores. Além do Tantra como carro chefe, Rajneesh
relançou toda uma linha de produtos esotéricos de outras
correntes e tradições com sua grife (tarô do Osho, massagem
do Osho, danças do Osho, Reike do Osho, etc). Ao invés de
uma nova síntese dessas técnicas e práticas, Rajneesh criou
uma ‘franquia espiritual’, uma identidade transnacional de
extensão planetária em redes descentralizadas: a marca
OSHO.

Na mídia, Osho ficou conhecido como o guru do sexo


e dos ricos - em função de seu discurso contra a repressão
sexual e da frota de 93 Rolls-Royces que existiam em sua
comuna nos Estados Unidos, 'Rajneeshpuram' e que recebia,
no início dos anos 80, milhares de visitantes de todo o mundo.

Osho foi acusado, por parte do governo estadual do


Óregon de perversão, realização de lavagem cerebral e
evasão fiscal; seus discípulos se envolvem em caso de
envenenamento e fraude eleitoral. Foi preso e posteriormente
deportado dos EUA. Em julho de 1986, Osho volta à Índia e
instala-se novamente em Puna e funda uma multiversidade (e
não uma universidade) de estudos espirituais. Em novembro
de 1987, seus médicos diagnosticam envenenamento por
tálium, um metal pesado de efeito lento, progressivo e fatal.
Osho afirmou que o governo dos EUA o havia lentamente
envenenado durante os 12 dias em que ele estivera preso em
1985. Faleceu dia 19 de janeiro de 1990, em Puna, sua cidade
natal.

O pensamento de Rajneesh está exposto em mais de


1000 livros, embora ele nunca tenha escrito nenhum. Seus
livros são transcrições de excertos dos arquivos gravados de
palestras feitas em momentos e para públicos diferentes.
Textos que, com o passar do tempo, foram sendo reescritos
pelos seus seguidores. Desconfie-se, portanto, que o Osho
não é uma única pessoa, mas sim uma instituição. Nesse
sentido, a compilação póstuma Autobiografia de um místico
espiritualmente incorreto (2000) permite vislumbrar
claramente, mesmo sendo um texto editado de modo as
esconder as diferenças, três fases de Osho: antes, durante e
depois sua passagem pelos EUA. Nos últimos anos, ele
aprimorou suas meditações e ideias centrais. É o melhor de
sua produção.

Também há diferentes estratégias transversais


possíveis de leitura a essas três fases dos trabalhos de Osho.
Pode-se, por exemplo, observar seu discurso sobre as
diferentes tradições (budismo(s), zen, taoísmo, cristianismo,
islã). Outra estratégia interessante seria analisar seus livros
sobre práticas meditavas e terapêuticas (como O Livro
Orange ou a Farmácia da Alma) ou ainda estudar sua
interpretações de milhares de estórias, anedotas, lendas e
casos de que faz uso frequente para explicar suas ideias. Será
possível, a partir da análise discursiva de seus livros,
reconstituir uma concepção de mundo, uma doutrina ou
mesmo um conjunto coerente de ensinamentos e modos de
pensar? Sim, claro. Há temas recorrentes e uma filosofia
própria: anarquismo, relativismo, hedonismo e irracionalismo
com ênfase no instinto e na intuição8.

Esoterismo pós-moderno

Inicialmente é preciso observar que Osho faz parte de


um contexto internacional e de uma determinada época,
guardando vários pontos em comum com outros pensadores
esotéricos contemporâneos, como Castaneda e Gurdjieff. Ken
Wilber é quem melhor caracteriza o esoterismo da
contracultura como “um pluralismo relativista” (2000, 33). Para
esta forma de pensar não existem regras de raciocínio que
transcendam o que é aceito por uma sociedade ou época. O
valor de algo é o valor que as pessoas lhe atribuem e cada
pessoa tem o direito legítimo de lhe atribuir valor diferente. A
ação e o pensamento humanos são inerentemente locais,
enraizados em fatos variáveis da natureza e da história
humanas. Para Wilber, a principal característica do pluralismo
relativista é que ele não consegue perceber ou admitir que sua
forma de pensar também seja relativa a um contexto social e
histórico (se encaixando em um quadro de referencias
universais) e que ao excluir os universalismos e afirmar
radicalmente o relativo, está sendo absoluta.

No campo acadêmico, o descontrutivismo pós-


modernista, que acredita que todo comportamento é
culturalmente relativo e socialmente construído, é o principal
8
Escolheram-se aqui os textos ‘morais’ de Osho. Por ‘morais’ entenda-se os
textos prescritivos organizados nos dez livros da coleção ‘Dicas para uma
nova maneira de viver’ sobre diferentes temas éticos: liberdade, intuição,
criatividade, alegria, maturidade, coragem, intimidade, inteligência, compaixão
e consciência. É claro que Osho não gostaria de seus textos prescritivos
serem chamados de morais, pois ele não é um moralista no sentido
normativo, isto é, não estabelece regras de comportamento (2004, 127).
Todavia, esses textos sugerem procedimentos éticos de conduta para os que
desejam a liberdade espiritual. E isto também pode ser considerado ‘moral’.
representante do pluralismo relativista. E, no campo esotérico,
além de Osho, há também pensadores como Gurdjieff e
Castaneda, cujas características se aproximam muito do
pensamento pós-moderno, principalmente na recusa radical
ao platonismo da ‘Nova Gnose’ e a adoção de uma
perspectiva empírica e experimental, em oposição às crenças
impostas pelo condicionamento social (2004, 79). O
relativismo aqui é perceptivo (e não meramente discursivo):
não há uma realidade objetiva e que somos condicionados a
acreditar em uma miragem coletiva, uma Matrix da qual temos
que escapar para, um sonho do qual temos que acordar.

Esse caráter rebelde diante da sociedade é o principal


traço comum entre Osho e o esoterismo anti-gnóstico, mas há
também outras semelhanças importantes Principalmente em
relação a Gurdjieff, que é muito citado por Osho. Para Osho,
por exemplo, estamos todos dormindo em um estado de
inconsciência e automatismo, precisamos tomar um choque
para despertar a consciência (OSHO, 2001, 11). Os nossos
múltiplos ‘eus’ são como que ‘amortecedores’ que impedem
que os choques da vida nos acordem. Os ‘eu's’ dissipam
nossa energia (OSHO, 2004, 75), impedindo de nos tornamos
mais íntegros e conscientes. A ideia de que preciso
reorganizar e economizar a própria energia, principalmente a
energia sexual, também é comum a Osho, Gurdjieff e
Castaneda.

Tanto Osho como Gurdjieff e Castaneda são céticos e


hiper-realistas, focando-se quase que exclusivamente no
descondicionamento social da consciência individual. Eles
pensavam assim conseguir escapar no sistema de crenças.
Mas são as crenças que forjam as experiências, e essas, por
sua vez, que formam e reforçam as crenças. No caso de
Osho, a recusa em admitir as próprias crenças (como também
dos que cultuam a experiência concreta em geral) tem
resultado um relativismo subjetivista em que tudo é uma
questão de opinião.

E esse talvez seja o principal problema de


empreender uma crítica sistemática a Osho. Isto por dois
motivos. Da forma como coloca suas ideias, principalmente
antes de ser expulso dos EUA, é que Osho fala na condição
de iluminado, de alguém que já alcançou o nirvana e orienta
aqueles que desejam chegar lá aonde ele já chegou. Essa
superioridade ontológica, esse lugar privilegiado da fala e do
enunciador, de quem já experimentou a iluminação é que dá a
Osho uma autoridade discursiva de ser radicalmente subjetivo.

Outra ideia em comum é que “o tempo é horizontal e a


eternidade é vertical” (2005, 100-101; 2004, 202).
Horizontalmente, somos todos iguais, nivelados pela morte;
porém, há alguns que estão mais próximos da eternidade do
que outros. E esta verticalização tem dois desdobramentos
importantes: singulariza-nos como indivíduos no processo de
evolução espiritual, é a experiência da eternidade que nos
produz o desenvolvimento da consciência; e, estabelece uma
hierarquia espiritual, existem os que estão mais próximos da
eternidade e os que ainda estão distantes.

Osho se aproxima, assim, da tese defendida budista


(também defendia por Castaneda e Gurdjieff), para quem não
existe alma eterna e apenas com bastante esforço consegue-
se escapar da segunda morte. Ainda segundo Osho, o homem
que se move verticalmente é como um espelho (2005, 103),
em que os outros homens (que se movem exclusivamente na
horizontal) se veem. E isso ao mesmo tempo em que confere
uma autoridade natural sobre os homens indiferenciados, gera
também uma solidão e uma singularização ainda maior.

Outra dificuldade, conexa ao subjetivismo empirista de


Osho, é que ele advoga que tem direito de ter sua opinião da
mesma forma que seus críticos têm de discordar dele. Ele se
dá direito de, por exemplo, dizer que Nietzsche enlouqueceu
porque tinha inveja de Jesus Cristo (2006d, 114) ou que os
pais destroem a inteligência dos filhos para escravizá-los
(2007b, 123). É possível fazer um longo inventário de
achismos e bobagens retóricas.

Polêmico? Mais: provocador. Osho é sempre contra o


consensual e o senso comum, faz questão de remar contra a
maré e mostrar o outro lado de tudo: ele é contra o
cristianismo e a favor de Jesus, ele contra todas as religiões e
a favor de todas as formas de espiritualidade, etc.

Na verdade, Osho tem um vocabulário próprio,


inclusive há uma compilação chamada Osho de A a Z – um
dicionário do Aqui e Agora (OSHO, 2004), em que várias
palavras são redefinidas de acordo com sua forma de pensar,
algumas sendo supervalorizadas, enquanto outras sendo
desqualificadas. Por exemplo, Osho evita ao máximo as
palavras ‘Absoluto’ e ‘Abstrato’ (2004, 11); “Abstinência’, para
ele, é uma perversão; “nunca usa a palavra ‘renúncia’”
(2001,11; 2004, 154) não gosta da palavra ‘amigo’, nem
‘amizade’ (2006d, 84).
Há também vários temas – como medo, compaixão,
meditação e liberdade – permeiam todos os textos e por isso
são difíceis de precisar. Outros, secundários, necessitam de
uma redefinição – como é o caso das noções de
responsabilidade, disciplina, inteligência, maturidade. Existem
ainda temas paradoxais.

Mas, o próprio Osho aponta para alguns conceitos


chaves, como no caso dos 3 c’s (1999, 13): Consciência
(referente à existência e oposta à mente e ao ego),
Compaixão (referente ao sentimento e geralmente contraposta
ao medo) e Criatividade (referente ao campo da ação e oposto
à atividade política).

Consciência e Mente

“O mundo é o arco-íris; a mente, o prisma; e o ser o


raio de luz”. (2006c, 168). A mente é como se fosse um
invólucro da consciência; “uma é periférica, a outra está no
centro” (2001, 60). Somos como uma cebola de várias cascas
sobrepostas e “há diferentes níveis de consciência: do corpo,
dos pensamentos, dos sentimentos e a consciência da
consciência”, ou ‘o observador’ (2001, 13). Em outro livro
(2006c), a cebola tem seis camadas: “os sentidos, os
condicionamentos dos sistemas de crenças, as
racionalizações, o sentimentalismo, a repressão e a intuição
corrompida” (p. 117).

“A mente é a memória, você é a consciência” (2001,


112). Para Osho, a mente está no passado e a consciência é
sinônima de percepção presente. A consciência é a
‘lembrança de si’ (Gurdjieff) e a mente, o esquecimento. “A
mente é um depósito de amarguras” (2004, 86), ela coleciona
feridas e insultos. Segundo Osho: “O único pecado que existe
é a inconsciência, a única virtude é a consciência” (2001, 164);
“a meditação e o silêncio são os métodos para se calar a
mente e chegar à consciência” (2005, 155).

A ‘consciência’ para Osho não é a consciência moral


ou mental, mas sim percepção imediata do presente, sem
levar em conta os valores que a contextualiza, ela é “oposta
ao ego e à mente racional” (2001, 175). Osho prega o
caminho da iluminação instantânea, o despertar da
consciência para o presente em um único choque é o
‘caminho sem caminho’. “Há muitas doenças, mas um só
remédio: a consciência. Toda minha mensagem se resume
nisso: você precisa de consciência, não precisa de caráter”
(2001, 166). Aliás, ele cita que há duas palavras em inglês
para designar a consciência: consciouness e conscience
(2001, 171).

Uma de suas ideias fixas mais repetitivas é que não


se deve tentar ser uma pessoa melhor ou fazer qualquer
esforço no sentido do aperfeiçoamento. “Seja você mesmo ao
invés de tentar ser o que não é. Viva a gratidão do ser e não a
neurose do dever ser” (2004, 169) – afirma, sem explicar a
contradição de estar prescrevendo para pessoas que ‘querem
ser’ que apenas ‘sejam elas mesmas’. Este é um ponto
importante. É preciso Ser e não ‘tornar-se’. Para Osho, “ser
uma pessoa melhor é um desejo nefasto” (1999, 42). A pessoa
deve ser total em cada ato, procurar ser integral, espontâneo,
intenso, autêntico – imediatamente e a cada segundo. E
segundo Osho (2001, 182), o místico Mahavira afirma que
quarenta e oito minutos de meditação Vipassana perfeita, de
plena atenção contínua (de consciência) na respiração levam
à iluminação.

Há, portanto, dois caminhos (2004, 30): o caminho da


iluminação instantânea, o despertar da consciência para o
presente em um único choque (é o ‘caminho sem caminho’ -
ideia retirada do Zen que Osho repete constantemente) e o
caminho do auto aperfeiçoamento, que se dá através de
vários choques através dos quais a pessoa vai mudando seus
padrões energéticos e evolui, até chegar à ausência de
desejos inconscientes. Sobre esse segundo caminho, Osho
fala muito pouco e quase sempre de forma negativa. Para ele,
o importante é a presentificação imediata da consciência. Aos
que não alcançarem a iluminação instantânea (pessoalmente,
nunca tive notícias de ninguém), resta à espera:

A espera precisa ser pura. Desfrute da espera


em si, sem querer nada mais. Você não vê a
beleza que há em apenas esperar? A pureza,
a benção, a inocência? Apenas esperar, sem
nem mesmo saber o que virá. [...] Ao
descobrir que não há como imaginar o futuro,
não há como imaginar o desconhecido, então
aquilo que é conhecido cessa e todas as
ideias dentro da mente desaparecem: as
ideias sobre Deus, as ideias sobre samadhi,
iluminação, todas elas desaparecem. Nesse
desaparecimento está a iluminação [...] Mas
uma coisa é certa: a espera é infinitamente
bela, a espera é infinitamente cheia de
alegria. (OSHO, 2004, 69-70)

Em outros momentos, a consciência é oposta ao ego,


ao intelecto e à atividade racional. Para tanto, também se
redefine a ideia de Inteligência. Segundo Osho, ‘Inteligência’
não é a capacidade de sobrevivência do mais adaptado, mas
a capacidade solucionar novos problemas. Ela não é adquirida
culturalmente, ao contrário, o ser humano nasce inteligente, a
sociedade o emburrece (2007b, 33). A inteligência é uma
dádiva da natureza, é inata e intrínseca à vida. Somente o
homem é burro, o universo é inteligente. “Nascemos sem ego,
o ego é um espelho para nos vermos através dos outros
porque tememos olhar para nós mesmos, face-a-face” (2004,
62); “A inteligência verdadeira é intuitiva e vem do coração”
(2007b, 27). Ela é naturalmente rebelde, não aceita
adestramentos. Já a mente é externa e coletiva, um conjunto
de crenças adquirido pelo ego, que, por sua vez, foi
estruturado socialmente. O Conhecimento (intelectual) não é o
Saber (experiencial) da consciência.

Porém, o irracionalismo de Osho, às vezes, comete


exageros. Por exemplo: “a intuição não pode ser explicada
cientificamente porque é irracional” (2006c, 09). A intuição hoje
em dia é vista pela neurociência como um atalho cognitivo
entre neurônios, como uma sinapse criativa. Hoje em dia
explicamos a intuição cientificamente de forma inclusive a
confirmar as ideias de Osho sobre a atividade cognitiva.
Vários outros exemplos poderiam ser dados desses exageros
irracionalistas, utilizados para desqualificar outras formas de
pensar. Eis mais uma das contradições do Osho: ele é um
pensador que desqualifica o pensamento.

Por outro lado, Osho é bastante condescendente com


o uso de drogas pela juventude (2006a, 138; 2006c, 81-82;
1999, 124-125), que vê como uma tentativa selvagem da
juventude de destruição do ego para chegar à espiritualidade,
e considera que os computadores são ‘mentes artificiais’, que
poderão substituir a mente humana com várias vantagens. “O
computador permite que o homem medite. O computador
pode ser um grande salto quântico, uma ruptura com vários
dos condicionamentos do passado” (2007b, 156). Para ele, a
memória psicológica desaparecerá (2007b, 177) e a memória
factual se tornará mais precisa (1999, 151). Osho acredita
ainda que o “inconsciente não é natural”, é um subproduto da
civilização (2007b, 143).

E isto nos leva a um segundo par de conceitos


opostos.

Compaixão e Medo

“A Compaixão é a mais elevada forma de amor” (2004,


39). No entanto, ela não deveria se chamar com-Paixão, mas
sim contra-paixão, pois para Osho, é a qualidade para onde
vai a energia quando cessa o desejo. Compaixão é dar amor a
todos os seres, mas sem se compadecer deles. Osho defende
uma compaixão sem piedade, que ajuda os outros em
beneficio próprio. Para ele, a ideia de “caridade não passa de
enganação” (2004, 32). E “a verdadeira compaixão é uma
forma de amor universal não-altruísta” (2007a, 147-154).

O tema do medo (2004, 123) perpassa todo discurso


de Osho. Pode-se encontrá-lo como o oposto da compaixão e
do amor, como um instinto natural a ser respeitado, como um
mecanismo de controle da sociedade sobre a pessoa - “O
amor é um tipo sutil de servidão” (2005, 87); ou como um
desafio à superação dos limites, entre outros.

Para Osho, ‘coragem’ é a disposição para viver na


incerteza; confiança é a disposição para viver na insegurança.
“Não chame de incerteza – chame de assombro; não chame
de insegurança, chame de liberdade” (OSHO, 1999). Coragem
é enfrentar o desconhecido apesar do medo. Bravura contra
fóbica não é destemor. “O homem fica destemido aceitando
seus medos” (1999,153), pondo em risco o conhecido pelo
desconhecido. E mais: um homem destemido não apenas ‘não
tem medo de ninguém’, mas também não faz com que
ninguém o tema. Nessa lógica, o medo, quando aceito, vira
liberdade, o medo negado vira culpa. O único modo de
transcender o medo da morte é aceitá-la. Então, a energia
gasta com o medo vira liberdade.

“Todos têm medo. Mas por quê? Ninguém tem nada a


perder” (1999, 87). Segundo Osho, o medo atua na mente de
modo a manter todos sobre controle do sistema de crenças e
impedir o desenvolvimento natural do homem. Em
contrapartida, acredita também que, quanto maior o risco,
maior a possibilidade de crescimento pessoal e espiritual. E
nesse sentido, “o maior medo do mundo é o da opinião dos
outros” (1999, 113). Por um lado, todo mundo tem medo da
intimidade. Somos estranhos de nós mesmos e a intimidade
nos revela. Assim, por outro lado, todo mundo quer intimidade.
Não ter nada a esconder é aceitar-se. A simplicidade
despretensiosa que inspira confiança (2006b, 11-12). Osho
chama isso de ‘Vulnerabilidade’ (2004, 209).

Nascemos livres de condicionamentos, intuitivos e


confiamos naturalmente nas pessoas e em nós mesmos. E a
essa espontaneidade inata, ele chama ‘Inocência’. Ser
inocente é permanecer ignorante apesar do conhecimento e
confiar. “Não agir em função do passado, manter-se sempre
disposto a aprender e procurar a felicidade em pequenas
coisas” (1999, 119).
Mas, para que a inocência e a vulnerabilidade não
descambem na ingenuidade e na irresponsabilidade, Osho
desenvolve também a noção de Maturidade (2004, 120), que é
aceitar a responsabilidade de ser9 .

A sociedade destrói nossa autoconfiança e nos ensina


a confiar nas instituições (as crenças). E uma vez que se não
confia em si, não confia mais em ninguém e se passa a crer
em ideias abstratas, encaixando-se nas configurações sociais.
A própria sociedade nada mais é que uma crença que
depende de outras e toda sua estrutura é auto hipnótica
(2006b, 43). Com a socialização, a perda da confiança e a
adoção de crenças, também se elaboram máscaras para
esconder nossa intimidade dos outros. Ora, “tudo que se
esconde, cresce; e tudo que se expõe, se for errado,
desaparece” (1999, 163). Osho acredita que a vulnerabilidade
acaba com a falsidade do ego e permite retornar à inocência
original com maturidade. “Ser sincero é ser autentico” (2006b,
31), é ser verdadeiro consigo mesmo, “não há outra
responsabilidade” (2006b, 41). No momento em que você se
aceita, torna-se aberto, vulnerável e receptivo. Confiar se
tornar um verbo intransitivo. “Comece confiando em si mesmo,
confie então nos outros e um dia você confiará no
desconhecido” (2006b, 49) e “não precisará mais melhorar a si
mesmo” (2006b 125).

Outros temas éticos constantemente opostos à


questão do medo imposto pelo condicionamento do sistema
de crenças no discurso de Osho é a alegria. Alegria, para
Osho, é superior ao prazer e à felicidade (2004, 15). Para ele,
9
Osho resume a teoria biográfica dos ciclos de sete anos proposta pela
Antroposofia (2005, 41).
o prazer é biológico; a felicidade, psicológica; e a alegria,
espiritual. Alegria é transcendência espiritual, está além do
tempo e do espaço. Aceitar a alegria é seguir o fluxo dos
acontecimentos, sendo grato pela vida, desafios e
oportunidades, deixando de impor condições e de fazer
exigências. É viver sem medo a aventura do presente.
Reparem que Osho procede a uma reinterpretação rebelde de
vários importantes conceitos budistas: a felicidade, que se
torna mais psicológica; a compaixão, que fica impessoal e se
torna menos piedosa; e a aceitação (ou não reação budista),
que passa a não ser mais tão conformada e sim uma forma
rebelde de “dar a outra face”. Em relação à aceitação budista,
Osho distingue entre reagir (mecanicamente) e responder
(conscientemente). Em diversos momentos, ele afirma que a
aceitação total de si mesmo e da vida não implica em se
conformar com as desigualdades do mundo (2004, 23). Aliás,
a palavra ‘Responsabilidade’, na cartilha do Osho, significa
capacidade de responder criativamente à realidade e não o
respeito às obrigações e deveres impostos pela sociedade
(2006b, 173; 2004, 158).

Criatividade e Liberdade

Em relação à Liberdade, Osho faz uma interessante


releitura do Assim falou Zaratrusta de Nietzsche, enfatizando
os três diferentes tipos de liberdade que temos durante a vida,
segundo o grau de maturidade e de compreensão espiritual.

 O camelo (a ‘liberdade para’ fazermos algo). Em que


lutamos contra as regras e contra a autoridade. É a
liberdade política e objetiva, isto é: a ‘liberdade do não’ da
autonomia de decidir o que ser e fazer e não o que os
outros querem. Mas, de nada adianta a ‘liberdade para’
(cantar, por exemplo) senão temos a ‘liberdade de’ (a alegria
de cantar).

 O leão (a ‘liberdade de’ fazer o que quiser). Agora, a luta


pela liberdade é contra o próprio condicionamento, é o
aperfeiçoamento interior para se conseguir usufruir da
liberdade exterior. É a liberdade psicológica e subjetiva, a
‘liberdade do sim’ da aceitação da vida.

 E a criança (a liberdade do silêncio ou intransitiva). Aqui a


luta pela liberdade consiste em libertar os outros através do
exercício criativo da própria liberdade (quando, cantando,
mudamos sentimentos e situações). É a liberdade espiritual
da criatividade.
“A vida em si, não tem sentido, é preciso dar um
sentido à vida, isto é, criatividade” (1999, 193). E se você não
usar sua energia de modo criativo, usará de modo destrutivo.
Em relação a você mesmo e em relação à natureza. A
natureza dá energia criativa a todos, ela só se torna destrutiva
quando é obstruída. A criatividade é maior forma de rebeldia.
Para criar é preciso romper com o condicionamento do
passado. Os que dormem são mecânicos, de comportamento
coletivo, e não criam. O criativo é solitário e inconformista.

Osho considera a emergência da intuição e da


criatividade é resultante de um processo de desenvolvimento,
em que a pessoa se torna cada vez mais individual, singular e
livre das identidades sociais coletivas. Tudo começa com o
relaxamento que leva à economia de energia e à mudança
dos padrões destrutivos para padrões criativos. O instinto está
para o corpo assim com a intuição está para a alma: “quando
uma pessoa é completamente criativa, ela transcende o sexo
sem reprimi-lo” (2004, 172). Não há propriamente uma
repressão à sexualidade, mas sim a obstrução da energia que
deveria ser utilizada criativamente. A questão não é o sexo em
si, mas o uso que se faz dele. Osho tem uma posição
semelhante sobre a riqueza: “É preciso renunciar a
mentalidade dirigida pelo dinheiro e não ao dinheiro em si”
(2004, 57).

Um ponto muito importante é que Osho faz


constantemente em toda sua obra uma analogia estrutural
entre orgasmo e o nirvana, em vários níveis do discurso.
Como conteúdo, tanto se chega à iluminação através da
catarse, quanto o orgasmo é tratado de modo sagrado. Mas, a
analogia tem também um aspecto sutil na forma como o
discurso de Osho trata todo processo de desenvolvimento da
consciência.

"Quer ser uma pessoa infeliz? Então ignore as


necessidades de seu corpo e siga nos
desejos de sua mente. Quer ser feliz? Atenda
às suas necessidades biológicas e silencie
sua mente, fique apenas observando aos
seus desejos, sejam eles de aversão ou de
cobiça. Você ficará cada vez mais intuitivo,
mais criativo. E, continuando assim, um dia, a
iluminação explodirá dentro de você.” (2006c,
27-28).

Dito assim é fácil. Jejuar, dormir pouco, não manter


relações sexuais, não falar, ficar em posições estáticas – para
não falar de mortificações – são práticas comuns entre os
místicos cristãos, budistas, judeus, muçulmanos. E por que
será que todas as tradições religiosas, principalmente os
místicos, sempre preferiram a ascese, isto é, a privação dos
sentidos e das necessidades?

E que as religiões organizadas transformaram a


ascese voluntária dos místicos em repressão sexual para as
massas, dessacralizando a sexualidade e instituindo a culpa
como uma forma de controle social. E reinserindo o sexo
sagrado como prática espiritual no Ocidental no contexto de
liberação dos costumes da contracultura, Osho reinventou a
‘arte erótica’ do Oriente como uma nova terapia catártica (algo
bem diferente do Tantra tradicional) – o que é, sem sombra de
dúvida, um feito realmente criativo.

O tantra original é uma senda mística, vertical, em que


o objetivo principal é elevar o praticante à transcendência e à
Unidade com o Divino. O Tantra (2004, 186) do Osho dá muita
ênfase à afetividade, à relação horizontal com o Outro, a
superação de bloqueios e de problemas psicológicos. O
homossexualismo masculino no contexto tradicional é
condenado, uma vez que os polos energéticos são essenciais.
Já para Osho, o sexo dos parceiros tântricos é secundário
diante do sentimento e do afeto necessário ao
desenvolvimento da kundalini. Há, portanto, enfoques
bastante diferentes, resultantes de contextos históricos
diversos.

Na verdade, essa transformação de práticas


espirituais em terapias de catarse (ou seria o inverso?) é uma
característica das técnicas prescritas por Osho, tais como as
meditações dançantes - caótica, dinâmica, kundalini, a
meditação do falatório (tagalerar até o silencio) entre outras
menos conhecidas - e o processo iniciático conhecido como
Rosa Mística (uma semana de risos, uma semana de choro e
uma semana de plena atenção). Todas elas têm por objetivo,
acaba com a tensão do corpo e o relaxamento permite a
consciência: “É preciso colocar para fora o grande gorila que
há dentro de você” (2001,105).

E em oposição direta a esse redirecionamento da


energia sexual para criatividade e para intuição está o tema da
liberdade espiritual em oposição ao campo da política e da
dissociação entre as atividades mecânicas e ação consciente
(1999, 26). “Aproveite a vida para celebrar, não perca tempo
brigando ou lutando para mudar nada” (2006d, 112). Para
Osho, nascemos livres, mas a sociedade redefiniu com regras
a liberdade individual. Segundo ele, nenhuma sociedade até
hoje ajudou o ser humano a se realizar como pessoa. E só os
seres humanos precisam de regras; os outros animais, não as
seguem. Osho acredita que as regras sociais são contrárias à
evolução natural dos indivíduos e que novas formas de
coletividade surgirão a partir do desenvolvimento dos
indivíduos. Aliás, segundo Osho, a sociedade não existe
(2006d, 11-28; 2004, 178), ela é apenas uma palavra. Para
ele, o coletivo é uma abstração composta por indivíduos
concretos. Não cabe aqui duvidarmos da honestidade desta
opinião, ou seja, se Osho realmente acredita desta sandice
(que contraria toda história da sociologia) e porque os
indivíduos são menos (ou mais) abstratos que a sociedade. O
importante é observar que Osho faz política quando parece
condená-la.

“Sou um Anarquista de outra dimensão muito


diferente. Primeiro, deixe que as pessoas se
preparem, e então os governos
desaparecerão por conta própria. Não sou a
favor de acabar com os governos; eles estão
preenchendo uma necessidade. O homem é
tão bárbaro, tão vil, que, se não fosse
impedido pela força, toda sociedade seria um
caos.” [...] “Os governos evaporarão como
gotas de orvalho sob o sol da manhã.” [...]
“Não sou contra o governo, sou contra a
necessidade de governo.”, (2006d 96-98).

Outra opinião polêmica é a de que a família é a raiz de


todos os nossos problemas (2006d, 28) e está obsoleta
(2006d, 24). Ela surgiu com a propriedade privada (como
dizem Platão e Marx) me vai dar lugar à comuna (p. 25). Osho
nunca votou (2004, 63), diz “o que existe hoje não é
democracia” (2006c, 105) e é a favor de um governo mundial
(2007b, 43). Para ele, a diferença entre autoridade e
autoritarismo é que no primeiro caso a decisão vem de quem
obedece e no segundo é imposta (2006d, 35).

Síntese eclética

“Deixe a sociedade ficar com está. Não brigue com


ela” (2006d, 27). Osho nos conclama a ser um transformador
silencioso e não um revolucionário. No revolucionário, há uma
dissociação entre o ‘de’ e o ‘para’. No rebelde, a destruição e a
criatividade andam juntas. Pode-se definir rebeldia com
desobediência à autoridade constituída, às hierarquias sociais
impostas, como também se pode defini-la como a não
observância de regras negociadas e consensualmente
aceitas. A primeira é uma rebeldia vertical que gera o desejo
de uma liberdade ‘de’ quem nos obriga a fazer coisas que não
desejamos. A segunda é uma rebeldia ‘para’ com os outros e
com nós mesmos, horizontal, e nos coloca a questão da
disciplina.

Se alguém estabelecer uma diferença entre a rebeldia


contra as instituições sociais (na verdade, contra o
condicionamento do sistema de crenças) e a rebeldia como
indisciplina pessoal, indolência ou incapacidade de alcançar
os próprios objetivos estará demarcando uma fronteira clara
entre Osho e as tradições.

Para Osho, rebeldia é sinônimo de inteligência. “É


preciso aprender a dizer não de forma definitiva, pois somente
assim se atinge o ponto a partir do qual se pode dizer sim”
(2004, 152). E disciplina “significa apenas uma metodologia
para nos tornamos mais centrados, mais alertas, mais
receptivos [...]” (2004, 58) A palavra ‘disciplina’ vem da palavra
‘discípulo’ (1999, 129) e significa ‘capacidade de aprender’
(2005, 167-168). Para Osho, a obediência castra o
desenvolvimento da criatividade (2004, p. 133) e alivia o fardo
da responsabilidade, mantendo as pessoas na inconsciência.
A noção de ‘responsabilidade’, como vimos, é redefinida como
a “capacidade de responder”, sendo destituída de qualquer
conteúdo próximo às ideias de dever e obrigação. As
máquinas obedecem sem consciência. “Tudo que é feito em
nome do dever (e não da alegria) é feio” (2004, 55).

O discurso de Osho confunde rebeldia social com


indisciplina espiritual. Para Osho, os homens verdadeiros não
têm ideais (2006b, 39); viver na incerteza é viver na
simplicidade; é viver sem ideais (2007b, 141-142; 2004, 176).

Porém, às vezes, há uma confusão entre simplicidade


e simplificação. A simplicidade é profunda; a simplificação,
superficial. A ênfase excessiva no presente (e na
desconsideração das realidades históricas e sociais) leva a
um não aprofundamento das condições que estruturam a
pessoa no mundo. E a aceitação radical de si (desprovida de
responsabilidade social com os outros e adicionada à falta de
empenho de aperfeiçoamento ético) leva à acomodação de
alguns de seus leitores ainda em estágio pré-convencional.

E, mesmo com todas essas pequenas objeções,


impossível não reconhecer a importância das ideias de Osho
para o pensamento esotérico contemporâneo, a tal ponto, que,
várias de suas ideias e de seus temas ainda se confundem,
inconscientemente, com a forma de pensar das gerações
espiritualistas atuais.

Fica, então, aqui essa homenagem crítica deste


aplicado, digamos assim, anti discípulo do Osho. Como prova
de gratidão e de reconhecimento pela sua inestimável
contribuição ao nosso crescimento e, sobretudo, à nossa
liberdade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
OSHO Coragem – o prazer de viver perigosamente. Tradução
Denise de C. Rocha Delela. Coleção: Dicas para uma nova maneira
de viver. São Paulo: Cultrix, 1999a.
_____ Criatividade – liberando sua força interior. Tradução Milton
Chaves de Almeida. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver.
São Paulo: Cultrix, 1999b.
_____Autobiografia de um místico espiritualmente incorreto.
Tradução Melania Scoss. São Paulo: Cultrix, 2000.
_____ Consciência – a chave para viver em equilíbrio. Tradução
Denise de C. Rocha Delela. Coleção: Dicas para uma nova maneira
de viver. São Paulo: Cultrix, 2001.
____ Osho de A a Z – um dicionário espiritual do Aqui e Agora.
Tradução de Carlos Irineu Costa. Rio de Janeiro: Editora Sextante,
2004.
____ Maturidade – a responsabilidade de ser você mesmo.
Tradução Alipio Correia de Franca Neto. Coleção: Dicas para uma
nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2005.
_____ Alegria – a felicidade que vem de dentro. Tradução
Leonardo Freire. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver.
São Paulo: Cultrix, 2006a.
_____ Intimidade – como confiar em si mesmo e nos outros.
Tradução Henrique Amat Rego Monteiro. Coleção: Dicas para uma
nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2006b.
_____ Intuição – o saber além da lógica. Tradução Henrique Amat
Rego Monteiro. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver. São
Paulo: Cultrix, 2006c.
_____ Liberdade – a coragem de ser você mesmo. Tradução
Denise de C. Rocha Delela. Dicas para uma nova maneira de viver.
São Paulo: Cultrix, 2006d.
_____ Compaixão – o florescimento supremo do amor. Tradução
Denise de C. Rocha Delela. Coleção: Dicas para uma nova maneira
de viver. São Paulo: Cultrix, 2007a.
_____ Inteligência – a resposta criativa ao agora. Tradução
Leonardo Freire. Coleção: Dicas para uma nova maneira de viver.
São Paulo: Cultrix, 2007b.
WILBER, Ken. Espiritualidade Integral – uma nova função para
religião neste inicio de milênio. Tradução Cássia Nassser. São Paulo:
Alef, 2007.
Sistemas
Esotéricos
O Livro da
Transmutação
No início, era o
Tao. Uno,
indivisível,
absoluto e
eterno; o Tao é
o número 1.
Então, veio a
Terra.
Receptiva, magnética e aberta à vida; a Terra é o número 2.
Em seguida, surgiu o Céu e a luz das estrelas. Criativo, o Céu
é o número 3.
E com base nesses números, os antigos calcularam o valor
de todas as coisas. Contemplaram as mutações na escuridão
e na luz e de acordo com elas estabeleceram os hexagramas.
Provocaram movimentos no firme e no maleável, dando
origem, assim, às diferentes linhas. Colocaram-se em
harmonia com o Tao e a Vida estabelecendo, de acordo com
isso, a ordem do que é correto. Refletindo sobre a ordem do
mundo externo até as últimas consequências e explorando a
lei de sua própria natureza interna em seu núcleo mais
profundo chegaram à compreensão do destino.

História

O I Ching, o livro das mutações, é resultante da


reflexão taoísta sobre as mudanças da natureza. Como
sistema complexo de relações, ele é um sistema de
representação de ‘momentos energéticos’, baseados na
combinação da energia criativa (yang) com a energia receptiva
(yin). Mais do que um simples oráculo, o I Ching é um livro de
sabedoria e está presente em toda cultura chinesa: na
arquitetura tradicional (Feng Shui), nas artes marciais (Tai Chi
Chuan e Kung Fu) e na medicina (acupuntura, Shiatzu, Do in)
taoísta.
Ele é formado por 64 hexagramas, diagramas de seis
linhas combinadas, que podem ser yin ou yang. Cada
hexagrama possui três tipos de texto: a Imagem, o Julgamento
e as linhas. No caso de uma consulta ao oráculo, o consulente
joga (através de moedas ou varetas) e chega a um
determinado hexagrama, representando a resposta do livro à
questão indagada. No texto da imagem, o consulente lerá a
situação em que se encontra diante da natureza; no texto do
julgamento, receberá conselhos de como agir em relação à
situação; e no texto das linhas, verá detalhada todas às
mutações do ciclo que o hexagrama representa.

Mas, esse formato é recente. O I Ching é um sistema


de três mil anos, composto por várias camadas sobrepostas
ao longo do tempo. O I Ching surgiu na pré-história chinesa
como um conjunto de oito Kua, figuras formadas por três (oito
trigramas) e seis linhas sobrepostas (os 64 hexagramas).

A origem dos 64 hexagramas (o texto da Imagem) é


atribuída a Fu Hsi, o criador mítico chinês. O tempo
obscureceu a compreensão das linhas, e no começo da
dinastia Chou (1150-249 a.C.) surgiram dois textos anexados:
o Julgamento, atribuído pela tradição ao rei Wên (em suas
meditações quando estava preso), e as Linhas, atribuídas a
seu filho, o duque de Chou, ambos fundadores desta dinastia.

Mais tarde, quando o significado taoísta desses textos


também começou a ficar obscuro, foram acrescentadas as
Dez Asas (2006, p. 154-283), atribuídas a Confúcio e a
Mêncio, no século VI a.C. O taoísmo e o confucionismo são
formas bastante diferentes de pensar.
O taoísmo é mais místico, holístico, ligado à natureza
e está ancorado na teoria dos cinco elementos (água, metal,
madeira, ar e fogo); enquanto o confucionismo é mais
pragmático, voltado para ética de conduta em sociedade e
para arte de governar.

O livro escapou ainda da grande queima de livros feita


pelo tirano Ch'in Shih Huang Ti. Nessa época, o I Ching era
considerado um livro de magia e adivinhação, e a doutrina
dualista do yin-yang foi sobreposta aos cinco elementos
mutantes e à visão holística do taoísmo.

Há duas grandes traduções do I Ching para o


ocidente: a do filólogo James Legge, a tradução comentada do
chinês para o inglês (1882), que ressalta o aspecto histórico e
científico, mas acaba reproduzindo interpretações mais
recentes do texto (o confucionismo e o dualismo entre yin e
yang); e a tradução do místico taoísta, Richard Wilhelm, do
chinês para o alemão (1923), com a supervisão do mestre,
Lao Nai Suan, que morreu na noite seguinte a ser concluída a
tradução.

Elementos e estrutura

O Criativo conhece através do fácil. O receptivo é capaz de


agir através do simples. Aquilo que é fácil; é fácil de conhecer.
Aquilo que é simples; é simples de seguir. Aquele que é fácil
de conhecer; conquistará lealdade. Aquele que é simples de
seguir; conseguirá trabalho. Através do fácil e do simples
pode-se aprender as leis do mundo inteiro. Na compreensão
das leis de todo o mundo; está a perfeição. Tachuan – o
grande comentário (2006, p. 217)

O Criativo é dinâmico. Através do movimento ele


consegue com facilidade unir o que está dividido. Ele,
portanto, está livre do esforço, pois atua sobre o infinitesimal,
orientando o movimento a partir desse estado mínimo.
O Receptivo é estático. Através do repouso o mais
simples torna-se possível no âmbito do espaço. Essa
simplicidade que surge da pura receptividade torna-se o
germe de toda multiplicidade existente no espaço.

O Criativo é o Céu, e por isso é chamado o pai. O Receptivo


é a Terra e por isso é chamada a mãe. Na união entre a Terra
e o Céu, nasceram seis filhos: três homens (o Incitar ou o
Trovão; o Abismal ou a Água; e a Quietude ou a Montanha)
e três mulheres (a Suavidade ou o Vento; o Aderir ou o
Fogo; e a Alegria ou o Lago). O Criativo é forte. O
Receptivo é maleável. O Incitar significa movimento. A
Suavidade é penetrante. O Abismal é perigoso. O Aderir
significa dependência. A Quietude significa imobilidade. A
Alegria significa contentamento.O Criativo manifesta-se na
cabeça; o Receptivo, no ventre; o Incitar, no pé; a
Suavidade, nas coxas; o Abismal, no ouvido; o Aderir (o
resplendor), no olho; a Quietude, na mão; a Alegria, na boca.
Shuo Kua (2006, p. 210)

O firme e o maleável sucedem-se uns aos outros no


interior dos oito trigramas. Assim, o firme torna-se maleável; o
maleável endurece, tornando-se firme. Desta forma os oito
trigramas se convertem uns nos outros numa sequência, e a
alternância periódica dos fenômenos se processa.

Ao arranjo de
trigramas em pares de filhos
chama-se Sequência do
Céu Anterior ou Pa Kua
Primordial. Esse arranjo
remonta a Fu Hsi e já existia
na época da compilação do
Livro das Mutações, durante
a dinastia Chou. Nesse
arranjo, o Criativo se localiza no sul (representado do lado de
cima) e o Receptivo no norte (representado no lado de baixo),
correspondendo ao verão e ao inverno, respectivamente.
Há duas direções de movimento: a progressiva,
crescente, no sentido horário; e a retroativa, decrescente, no
sentido anti horário.

A primeira parte do ponto mais profundo, o Receptivo,


terra do passado para o presente; a segunda parte do ponto
culminante, o Criativo, céu, do futuro para o presente. Por
exemplo: observando que uma semente do passado se tornou
árvore no presente (movimento progressivo), podemos prever
(regressivamente) que uma semente semelhante no presente
se tornará uma árvore semelhante do futuro.

Além disso, os trigramas em pares simétricos


(terra/céu, trovão/vento, água/fogo e montanha/lago) se
completam e se anulam, garantindo assim a ordem do cosmo,
acima de suas mutações e do acaso.

Céu e Terra determinam a direção. Montanha e Lago unem


suas forças. Trovão e Vento estimulam-se um ao outro.
Água e Fogo não se combatem. Assim, os oito trigramas se
interligam.
Shuo Kua (2006, p. 205)

Os ciclos do tempo
O Pa Kua do Céu Anterior vem de um tempo
imemorial, em que o taoísmo não era uma religião organizada,
mas sim uma forma de xamanismo, um culto às forças da
natureza. Nos últimos três mil anos, o Taoísmo se modificou e
apareceram outros esquemas de organização dos trigramas,
baseados na teoria dos cinco elementos, que são adotados na
arquitetura tradicional (Feng Shui) e na etnomedicina chinesa.
Por exemplo, o arranjo
de trigramas conhecido como o
Pa Kua do Céu Posterior ou
Ordem Interna do Mundo –
atribuído ao rei Wen e a
dinastia Chou. Nele, a
distribuição dos trigramas se
dá conforme as estações do
ano e há uma nova correspondência com os pontos cardeais.
Os trigramas são retirados de seu agrupamento em pares de
opostos e apresentados segundo a sequência temporal em
que se manifestam no plano fenomênico durante os ciclos
anual e diário. Também se estabelecem correlações novas
entre os pontos cardeais e os trigramas. Agora o polo sul será
o Aderir (fogo); e o norte, o Abismal (água).

Todos os seres surgem no Incitar, que se encontra a leste.


Eles chegam à plenitude na Suavidade, que se encontra a
sudeste. O Aderir é a luminosidade, na qual os seres
percebem-se uns aos outros, e está no sul. O Receptivo
significa cuidado, quando os seres se ajudam uns aos outros,
e está a sudoeste. A Alegria é o outono, que proporciona
contentamento a todos os seres, e está a oeste. Ele luta no
Criativo, quando o obscuro e o luminoso incitam-se um ao
outro, e está no noroeste. O Abismal significa o esforço a que
todos os seres estão sujeitos, e está no norte. A Quietude,
onde se consuma o começo e o fim de todos os seres, está
no nordeste. Shuo Kua (2006, p. 213)

O conceito de mutação
Mutação significa uma mudança de um estado para
outro: de um trigrama para outro ou de um hexagrama para
outro. O Livro das Mutações distingue três tipos de
fenômenos: o Tao imutável, a mutação cíclica e a mutação
não recorrente.
Toda mutação supõe um ponto de referência. O Tao
imutável é espaço permanente que torna possível a mutação.
Ele também é uma opção constante e uma decisão
permanente que estabelece um sistema de correspondências
que interliga todas as coisas. O mundo é um sistema de
referências integradas, um cosmos, não um caos; graças à
ideia do Tao imutável. A mutação cíclica consiste numa
rotação de fenômenos que se sucedem uns aos outros, até
que se chega de volta ao ponto de partida – seja no sentido
horário (evolutivo) ou anti-horário (involutivo).

Trigrama Natureza Direção Estação do Horário


ano

火 Fogo 麗 Aderir Sul 10:30~13:30


Verão
地 Terra 順 Receptivo Sudoeste 13:30~16:30

泽 Lago 悦 Alegria Oeste 16:30~19:30


Outono
天 Céu 健 Criativo Noroeste 19:30~22:30

水 Água 陥 Abismal Norte 22:30~01:30


Inverno
山 止 Quietude Nordeste 01:30~04:30
Montanha

雷 Trovão 動 Incitar Leste 04:30~07:30


Primavera
風 Vento 入 Sudeste 07:30~10:30
Suavidade

A mutação cíclica é a mudança periódica que se


produz na vida orgânica, enquanto que a mutação não
recorrente nunca retorna a seu ponto de partida. É uma
mudança irreversível, uma passagem de um estado para outro
fora das sequencias previstas. É uma mudança desconectada
das sequências dos ciclos e do condicionamento simultâneo
que as forças da natureza exercem sobre si e sobre o todo
universo.

A teoria dos cinco elementos

A teoria dos cinco elementos (Wu Xing) é


relativamente recente: foi estabelecida e sistematizada por
Tsou Yen (Zou Yan), entre 350 e 270 a.C 10., integrando
diferentes saberes tradicionais de forma filosófica.

Ao contrário da teoria dos quatro elementos do


ocidente, que acreditava que o fogo, a água, o ar e a terra
seriam elementos primários formadores do mundo material; a
teoria chinesa pensa seus elementos como 'estados'
intermediários entre as mutações, 'mediações', semelhantes
ao Pa Kua do Céu Anterior.

ESQUEMA DOS CINCO ELEMENTOS

Ciclo da Nutrição * Estrela da dominação


Madeira alimenta o Fogo Madeira domina a Terra
Fogo alimenta a Terra Terra domina a Água
Terra alimenta o Metal Água domina o Fogo
Metal alimenta a Água Fogo domina o Metal
Água alimenta a Metal domina a Madeira
Madeira

10
Wikipedia:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Cinco_elementos_(filosofia_chinesa)>
* Invertido, o Ciclo da Nutrição torna-se Ciclo da Destruição e a Estrela da
Dominação transforma-se na Estrela da Liberação.

A teoria segue a mesma lógica dos Pa Kua's, em que


há um movimento circular contínuo externo (nos dois sentidos)
representando as mutações cíclicas; e uma simultaneidade
interna, 'a Estrela da Dominação', que representa a interação
e controle recíproco entre os cinco elementos, determinando a
estabilidade do mundo em constante mudança.

A teoria dos cinco elementos interage diretamente


com o Pa Kua do Céu Posterior e estabele um conjunto de
analogias simbólicas (ou correspondências 'elementais') entre
objetos distintos, gerando matrizes de associação que são
utilizadas em diferentes áreas (etnomedicina, arquitetura,
artes marciais, etc).

Elemento Direção Clima Cor Gosto Emoção

Madeira Leste Vento Verde Azedo Raiva

Fogo Sul Calor Vermelho Amargo Alegria

Terra Centro Úmido Amarelo Doce Preocupação

Metal Oeste Seco Branco Picante Tristeza

Água Norte Frio Preto Salgado Medo

Etnomedicina chinesa

A medicina tradicional chinesa é a denominação


usualmente dada ao conjunto de práticas terapêuticas em uso
na China, desenvolvidas ao longo dos milhares de anos de
sua história. Ela é bem mais antiga que o I Ching e, antes
dele, se confundia com xamanismo taoísta arcaico do Pa Kua
do Céu Anterior, com o exorcismo de demônios e de espíritos
animais.
Com o Pa Kua do Céu Posterior, a medicina chinesa
passa a se fundamentar em uma estrutura teórica sistemática
e abrangente, de natureza filosófica. Ela inclui entre seus
princípios o estudo da relação de yin/yang, da teoria dos cinco
elementos e do sistema de circulação da energia pelos
meridianos do corpo humano.

A medicina chinesa acredita na auto cura do corpo


humano e só utiliza a fitoterapia e outros medicamentos como
seu último recurso para combater os problemas de saúde.
Para ela, o corpo humano dispõe de um sistema sofisticado
para localizar as doenças e redirecionar energia para curar os
problemas por si mesmo. Os procedimentos terapêuticos
externos devem sempre se focar em ajudar cuidadosamente
as funções de regeneração e resiliência do próprio corpo, sem
interferências. São sete os principais métodos de tratamento
da medicina tradicional chinesa: massagens; acupuntura;
moxabustão; ventosaterapia; fitoterapia; terapia alimentar; e
práticas físicas, como Tai Chi Chuan: exercícios integrados a
prática de meditação relacionada à respiração e à circulação
da energia. Tanto tratamento como o diagnóstico usa como
referência o sistema de correspondência baseado nos
seguintes princípios do I Ching: a relação de Yin/Yang; o
esquema dos cinco elementos; e os oito princípios do Pa Kua;
acrescentados os meridianos principais de energia espalhados
pelo corpo. Há 12 meridianos principais, seis yin e seis yang
entrelaçados entre si em pares opostos; sendo que dez estão
relacionados aos cinco elementos e dois (o do pericárdio e o
do triplo aquecedor) desempenham um papel mais geral de
supervisão e controle.
Sistema de meridianos dos órgãos - Yin

Meridiano Localização Elemento Planeta


Fígado Pés/tronco Madeira/yin Júpiter
Coração Tronco/mãos Fogo/yin Sol
Baço- Pâncreas Pés/tronco Terra/yin Saturno
Pulmão Tronco/mãos Metal/yin Júpiter
Rins Pés/Tronco Água/yin Vênus
Pericárdio Tronco/mãos O ‘grande yin’

Sistema de meridianos das vísceras - Yang

Meridiano Localização Elemento Planeta


Vesícula biliar Cabeça/pés Madeira/yang Marte
Intestino delgado Mãos/cabeça Fogo/yang Mercúrio/lua
Estomago Cabeça/pés Terra/yang Saturno
Intestino grosso Mãos/cabeça Metal/yang Mercúrio/lua
Bexiga Cabeça/pés Água/yang Lua/Saturno
Triplo aquecedor Mãos/cabeça O ‘grande yang’

Arquitetura tradicional

Feng Shui é a arte chinesa de organização espaço


temporal da energia, que estuda a relação do homem com o
meio ambiente, baseado na observação das estrelas, dos
fatores externos diversos; e da disposição interior dos móveis,
cores e objetos de cada local. Esse saber teve sua origem em
antigos mestres taoístas que estudavam a natureza e
entenderam como a energia se comporta e como pode ser
redirecionada para propiciar saúde e prosperidade.

Comparem-se os benefícios que o Feng Shui pode


proporcionar a um espaço aos resultados que a acupuntura
pode oferecer a um enfermo. Da mesma forma que o
acupunturista, diagnostica os bloqueios na circulação de
energia de um paciente e aplica agulhas em uma parte do
corpo para curar outra, o consultor de Feng Shui detecta as
influências em um ambiente e recomenda medidas em uma
área particular do imóvel que são capazes de alterar as
características da circulação de energia no todo.

As práticas de Feng Shui também são anteriores ao


aparecimento do texto do I Ching, influenciando e sendo
influenciadas por ele. Os mestres antigos constataram que o
ambiente era influenciado por duas forças fundamentais: vento
e água. Em um segundo momento, também consideraram as
estrelas da data de fundação do imóvel e do nascimento de
seus habitantes (em geral, pelo método dos quatro pilares:
hora, dia, mês e ano).

Com o passar dos séculos várias metodologias e


técnicas foram criadas e esquecidas. Além do estudo das
forças fundamentais do ambiente e das diversas técnicas
astrológicas, o Feng Shui passou orientar a escolha do local
em que a edificação deve ser construída; determinar o polo
norte através de uma bússola astrológica, Lu Pan,
associando-o sempre a entrada da casa; e, finalmente,
analisar e propor mudanças na organização interna do
ambiente de acordo com harmonia entre os cinco elementos.

As escolas de Feng Shui mais conhecidas na


atualidade são: a Escola da Forma, ou das Oito Casas (Ba
Zhai) linha taoísta mais tradicional; a Escola da Bússola, ou
das Estrelas Voadoras (Fei Xin) da tradição taoísta mais
contemporânea e complexa; e a Escola do Chapéu Preto,
linha norte americana derivada do budismo tântrico tibetano.

Boa parte do Feng Shui divulgado no ocidente deriva


dessa última escola, que simplifica consideravelmente a
tradição chinesa, eliminando sua referência macro-cósmica, e
dando mais ênfase a decoração interna de ambientes do que
a construção de casas. Os consultores de Feng Shui dessa
escola, de acordo com isso, analisam qual o elemento
dominante ou em desequilíbrio, e, conforme os dois ciclos,
adicionam ou retiram outros elementos harmonizando assim o
ambiente. O Feng Shui fica, assim, reduzido à harmonização
do ambiente interior através da teoria dos cinco elementos e
de seus dois ciclos.

Para as escolas taoístas, cada avaliação de Feng


Shui é única, relativa às influências magnéticas do local, da
edificação e de seus habitantes. A base para o entendimento
dessas influências é a orientação do imóvel em relação aos
campos eletromagnéticos em geral (pontos cardeais,
elementos, etc) e as características (históricas e astrológicas)
do momento em que foi construído. As escolas taoístas têm
metodologias e técnicas diferentes, mas não utilizam os cinco
elementos descontextualizados do meio ambiente no qual o
imóvel se encontra inserido.

Artes marciais

Embora segundo a versão oficial da República


Popular da China, o Tai Chi Chuan tenha sido foi criado por
Chen Wangting (1600-1680) na passagem da dinastia Ming
para a dinastia Qing; assim como a medicina tradicional e o
Feng Shui, as artes marciais chinesas interiores também são
anteriores ao texto do I Ching. E também se baseiam no
sistema de trigramas.

Durante séculos, assumiu várias formas e se inspirou


de diferentes modos no Pa Kua (Oito Trigramas), na relação
de yin e yang, nos cinco elementos e no sistema de
meridianos. As sequências de movimentos marciais mais
antigas conhecidas são parcialmente baseadas no Pa Kua do
Céu Anterior; em um segundo momento, os cinco elementos
inspiraram estilos de luta e movimentos miméticos dos cinco
animais (tigre-metal, dragão-água, urso-terra, macaco-
madeira, grau-fogo); e recentemente em sua versão
terapêutica, há movimentos direcionadas para o alongamento
e energização dos meridianos. Os criadores originais do Tai
Chi Chuan basearam sua arte na observação da natureza, na
observação dos animais e no estudo dos princípios da
interação entre os diversos elementos naturais.

Como arte marcial, o Tai Chi Chuan, em sua forma


atual, se baseia em treze conceitos fundamentais. Estas
posturas/movimentos são reconhecidas nas diversas formas
praticadas pelos diferentes estilos. Cada escola interpreta
estes treze conceitos com pequenas variações. Os treze
movimentos são conhecidas como "as oito portas” (associadas
aos trigramas do Pa Kua) e “os cinco passos" (relacionados
aos cinco elementos).

O uso oracular

Como oráculo, o I Ching tem algumas diferenças com


outros métodos. O Tarô, por exemplo, é formado por imagens
iconográficas do inconsciente e é interpretado por outra
pessoa. Os hexagramas não são ‘imagens do inconsciente’,
mas diagramas que representam ideias sobre as transições e
mudanças da natureza que governam nossas vidas.
E, o mais importante no livro das mutações, é o
próprio consulente que interpreta o oráculo, a partir dos textos
e de sua imaginação.

O I Ching nunca falha; quem pode falhar é o


consulente! Se a pergunta não foi clara e precisa, se a pessoa
não tem clareza sobre o que deseja saber, então não entende
a resposta. Há pessoas que, para focar a atenção na consulta,
rezam ou fazem rituais antes de jogar. Assim, o livro das
mutações, mesmo em seu uso oracular, é uma forma de
meditação sobre as mutações da natureza, sobre si mesmo e
sobre os contextos social e espiritual, em que se está inserida.
O I Ching, abrangendo o significado essencial das diferentes
situações da vida, dá ao homem condições de construir para
si uma vida significativa, realizando, em cada caso, aquilo que
a situação exige - segundo uma ordem e sequência perfeitas.

Para o jogador recorrente, o essencial passa a ser


como dar à sua vida uma forma que corresponda a essas
ideias, de modo a que a própria vida se torne um com as
mutações – ou melhor: uma transmutação. Nesse sentido, o I
Ching, ao invés de se subintitular o Livro das Mutações, deve-
se ser chamado de O Livro da Transmutação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
WILHELM, Richard. I Ching: o livro das mutações / tradução do chinês para
o alemão, introdução e comentários Richard Wilhelm; prefácio C. G. Jung;
introdução à edição brasileira Gustavo Alberto Corrêa Pinto; tradução para o
português Alayde Mutzenbecher e Gustavo Alberto Corrêa Pinto. São Paulo:
Pensamento, 2006.
O ENEAGRAMA COMO
SISTEMA COMPLEXO
Círculos Viciosos e Virtuosos
Os livros estão caros
porque existem poucos leitores e
existem poucos leitores porque os
livros são caros; estou doente
porque não tenho qualidade de vida
e não tenho autoestima porque estou doente; os biscoitos não
vendem porque são velhos e estão velhos porque não foram
vendidos. A vida é cheia de Círculos Viciosos, isto é: de ciclos
de recorrência em que os fatores causais se condicionam
mutuamente impedindo o desenvolvimento ou o
funcionamento regular do sistema em questão.
Em contrapartida, também existem os Círculos
Virtuosos, ou ciclos de excelência, em que os fatores causais
se retroalimentam determinando uma crescente otimização do
sistema: muitos leitores = livros baratos = mais leitores;
qualidade de vida = saúde = autoestima; biscoitos fresquinhos
= boas vendas = novos biscoitos fresquinhos.
Então, essa é a questão central de que me coloco
(tanto do ponto de vista teórico como do existencial) há algum
tempo: como transformar os ciclos viciosos em ciclos
virtuosos? E mais: como e porque a ordem dos fatores
causais altera o resultado do sistema? Quais os fatores da
excelência comuns a um 'sistema ótimo' e à vida criativa? É
possível estabelecer uma teoria centrada no desenvolvimento
pessoal?
Os estudiosos apontam a antiga Mesopotâmia como o
provável berço do símbolo do Eneagrama. Ele teria sido
preservado misteriosamente a várias civilizações, chegando
aos nossos dias através dos sábios sufis, os místicos do Islã.
O Eneagrama, neste contexto, era um sistema combinado de
nove virtudes e nove paixões. Teria sido com eles que o
místico armênio G. Gurdjieff (OUSPENSKY, 1980) aprendeu o
símbolo e os fundamentos de seu ensinamento. Gurdjieff
utilizava o modelo do Eneagrama como uma síntese do
Universo e do Homem, visto como um processo de três níveis
em três etapas. A aplicação deste modelo ao corpo humano
resultava na teoria das três oitavas (ou eneagramas
secundários) e da associação das atividades biológicas de
alimentação, respiração e percepção através de vibrações
audiovisuais como os três principais processos da máquina
humana a serem desautomatizados. Esses processos, por sua
vez, seriam interdependentes dentro de uma grande oitava (ou
Eneagrama principal).

Gurdjieff Input Output Feedback

Alimento Fezes Biosfera


1ª Oitava
Líquido Urina Hidrosfera

2ª Oitava Oxigênio Gás carbônico Atmosfera

3ª Oitava Luz e Som Ideias Noosfera

Esta bio-máquina tinha três entradas e três saídas,


produzindo três ciclos cibernéticos de reatroalimentação
intricados em um mesmo processo. E realizar a grande oitava
através da desmecanização das três oitavas menores, para
Gurdjieff e seus seguidores, é a principal finalidade humana
no ecossistema, nossa missão fotossintética e espiritual: a
produção do hidrogênio número um11. O Eneagrama, neste
contexto, era uma estrutura geral do universo visto como um
processo de três níveis e três etapas – tanto no micro como no
macrocosmo. O sistema do Eneagrama, assim, aparece o
entrecruzamento de três centros cognitivos ou “inteligências” -
o mental, o sensível e o motor – com três campos ou esferas –
a biosfera, a atmosfera e a ionosfera. Nessa época, os nove
pontos de fixação do Eneagrama não se constituíam em uma
tipologia própria. O Eneagrama era um diagrama-síntese da
idéia matemática da oitava musical como modelo de
desenvolvimento universal.
Tipologia psicológica
O 'Eneagrama da Personalidade' e a aplicação do
símbolo do Eneagrama especificamente ao estudo do caráter
só vai surgir nos anos 70 com Oscar Ichazo e a Escola de
Arica. Porém é com o trabalho do psicólogo Cláudio Naranjo
(1986) que o Eneagrama chegará a se constituir como uma
tipologia psicológica rigorosamente fundamentada.
Segundo ele, em algum ponto da vida, nos fixamos
em um dos nove pontos da circunferência e, a partir deste
ponto, construímos nossa personalidade. A cada ponto de
fixação (ou recorrência cognitiva), há uma paixão (ou
motivação de deficiência) correspondente. Paixão e fixação se
retroalimentam, então, formando um tipo de personalidade do
Eneagrama e nos afastando de nossa essência, de nosso
verdadeiro Ser. Nessa lógica, durante o desenvolvimento
11
Nesta lógica, aqueles que não conseguem chegar a estágios de
consciência superiores, capaz de produzir essa refinada substância alquímica
(muitas vezes comparadas aos sentimentos nobres como o amor) terão seus
espíritos fatalmente reabsorvidos pelo universo. Gurdjieff pensava que apenas
através do desenvolvimento pode o homem escapar da morte eterna.
humano haveria, em algum momento traumático, uma perda,
uma limitação, um fracasso no crescimento do potencial pleno,
uma fixação do ego em relação à circulação de energia
psíquica. A personalidade funciona como uma forma para
perpetuar a inconsciência a partir de 'um ponto cego', em que
a canalização energia se daria de forma desequilibrada, em
que "a percepção está cega da própria cegueira".
Assim, personalidade e inconsciência também formam
em um círculo vicioso: a personalidade condicionada conduz à
uma interferência específica no organismo biológico
(reforçando o ponto de fixação); essa interferência no
organismo causa uma perda da experiência (da totalidade) do
Ser; e, finalmente, a perda da experiência de Ser alimenta à
paixão dominante e à perpetuação da personalidade
condicionada.

Fixação ou recorrência Paixão ou motivação


Tipo Personalidade
cognitiva de deficiência
1 Perfeccionista A ordem Raiva
2 Prestativo O outro Orgulho
3 Bem-sucedido A imagem Vaidade
4 Individualista As formas Inveja
5 Observador O saber Avareza
6 Questionador A autoridade O medo
7 Sonhador A palavra Gula
8 Confrontador A justiça Luxuria
9 Pacifista O corpo Preguiça

Neste sistema tipológico, o primeiro passo consiste


em descobrir qual o centro cognitivo predominante em si: o
mental, o emocional ou o motor. A partir daí, observar a
predominância de um ego introvertido, extrovertido e
ambivalente.
EXTROVERTIDO AMBIVALENTE INTROVERTIDO

MOTOR 8 9 1

EMOCIONAL 2 3 4

MENTAL 7 6 5

E o segundo passo, nesse sistema, é descobrir qual


centro que negligenciamos e definir em qual dos nove pontos
do Eneagrama estamos fixados.

Tipo Centro Principal Centro Secundário Centro Reprimido


1 MOTOR EMOCIONAL MENTAL
2 EMOCIONAL MOTOR MENTAL
3 EMOCIONAL - EMOCIONAL
4 EMOCIONAL MENTAL MOTOR
5 MENTAL MOTOR EMOCIONAL
6 MENTAL - MENTAL
7 MENTAL MOTOR EMOCIONAL
8 MOTOR MENTAL EMOCIONAL
9 MOTOR - MOTOR

O Perfeccionista (tipo 1): tipo com preferência pelo centro motor


(introvertido) que negligencia o centro mental. Fixação: Estabelece
fronteiras claras em relação aos territórios físicos e mentais,
acreditando que é possível controlar todas situações através da
organização. Paixão: Quando as coisas não saem segundo seus
planos ou ordens, explode em raiva irracional.
O Prestativo (tipo 2): tipo com preferência pelo centro emocional
(extrovertido) que negligencia o centro mental. Fixação: Identifica-se
com os problemas e com desejos alheios, tendo dificuldade de dizer
'não' quando se trata de ajudar alguém. Paixão: Porém essa empatia
afetiva não é desinteressada, faz parte de uma estratégia de
manipulação que tenta fazer com os outros dependam de si. Em
compensação, cuidam tanto dos outros que se esquecem de si e não
se atem as suas próprias necessidades, desejos e anseios.
O Bem Sucedido (tipo 3): tipo com preferência pelo centro
emocional (ambivalente) que negligencia o próprio centro emocional.
Fixação: Quer ser admirada a qualquer custo e vê tudo em função
dessa disputa neurótica pela admiração e pelo reconhecimento. Tem
facilidade em disfarçar seus sentimentos verdadeiros, usando várias
máscaras (uma para cada ocasião). Paixão: a 'Vaidade' ou
capacidade emocional de falsificar a verdade a partir de realidades
relativas e subjetivas, transferindo a responsabilidade de seus erros
para os outros.
O Individualista (tipo 4): tipo com preferência pelo centro emocional
(introvertido) que negligencia o centro motor. Fixação: Gosta de ser
especial, única e singular, cultivando gostos diferentes e estranhos.
Prezam o status social e tem carência de atenção; porém, ao mesmo
tempo, que sentem superior aos outros, sofrem devido ao
isolamento. Paixão: Têm uma tendência à depressão e à melancolia.
Desejar é mais importante que possuir, pois tão logo conseguem o
objeto de seus desejos, normalmente sentem-se frustrados. Por isso,
a 'Inveja' é seu pecado capital.
O Observador (tipo 5): tipo com preferência pelo centro mental
(introvertido) que negligencia o centro motor. Fixação: Gostam de se
isolar para solver o conhecimento aprendido e detestam quando
usurpam-lhes o tempo ou a liberdade com detalhes ou tarefas
pequenas. Paixão: a Avareza. Porém, não se trata simplesmente de
dinheiro, mas, sobretudo de tempo e de conhecimento.
O Questionador (tipo 6): tipo com preferência pelo centro mental
(ambivalente) que negligencia o próprio centro mental. Fixação: são
pessoas que procuram ficar mentalmente ocupadas para não pensar.
Paixão: O medo. Os ' número seis' são pessoas muito
questionadoras e ao mesmo tempo dependentes e inseguras, que
precisam sempre de um referencial (um chefe, uma instituição) como
sustentação. Dividem-se em fóbicos (ou covardes assumidos) e
contrafóbicos (aparentemente destemidos).
O Sonhador (tipo 7): tipo com preferência pelo centro mental
(extrovertido) que negligencia o centro emocional. Fixação: São
pessoas sempre entusiasmadas e alegres, mas que alimentam
muitas ilusões e fantasias. O tipo número 7 evita entrar em contato
com qualquer sofrimento, só observando o lado bom da vida. São
oradores muito loquazes e manipuladores. Paixão: A gula, não
apenas de alimentos, mas de pessoas, informações e aventuras. Os
'número 7' têm gula de qualquer coisa que lhe dê prazer.
O Confrontador (tipo 8): tipo com preferência pelo centro motor
(extrovertido) que negligencia o centro emocional. Fixação: Pessoas
que vêm o mundo em relação à justiça e poder, e se consideram
capazes de dirimir e vingar suas injustiças. E muitas vezes cometem
absurdos em nome dos desprotegidos que pretendem defender.
Paixão: Buscam o confronto como forma de impor sua supremacia.
Gostam de conquistar mais e mais territórios e de serem vistos como
pessoas fortes, capazes de proteger aqueles que os ajudarem. A
princípio, são sempre contrários a qualquer novidade.
O Pacifista (tipo 9): tipo com preferência pelo centro motor
(ambivalente) que negligencia o próprio centro motor. Fixação: Este
tipo se caracteriza por evitar os conflitos a todo custo. Ao contrário
dos outros tipos motores (1 e 8) tem uma relação democrática em
relação aos territórios físicos e mentais, tanto invadindo como
deixando invadir seus domínios. Paixão: A Preguiça. Mas não a
simples preguiça do ócio em relação ao trabalho. Trata-se aqui de
uma indolência mental, de uma 'preguiça de ser', muitas vezes oculta
sobre a capa de muitas atividades não essenciais.
Os tipos eneagramáticos são modelos ideais,
generalizações abstratas de pessoas concretas e singulares,
de uma gama gigantesca de fatores e traços culturais de
várias épocas e locais. Podem-se ainda destacar três grandes
contribuições de Naranjo ao Eneagrama da Personalidade: a
abordagem terapêutica, uma teoria da neurose e os subtipos
instintivos.

A - A abordagem terapêutica e o papel de não-interferência do


ministrante. Enquanto Gurdjieff interagia instintivamente com
seus discípulos através da confrontação, apresentando provas
e exercícios segundo suas fixações; Oscar Ichazo se utilizava
da técnica para diagnosticar o tipo de seus alunos e clientes.
Naranjo defende o autodiagnóstico, ou seja, cada um deve
descobrir seu tipo no sistema de classificação supervisionado
por simples coordenador. O papel de ministrante do
Eneagrama evoluiu do guru espiritual para o psicólogo e deste
para o facilitador terapêutico.
B - Uma teoria da neurose meta-instintiva, baseada em
estratégias gerais de adaptação. Estabelecendo analogias
entre a Protoanálise de Oscar Ichazo e outras tipologias
psicológicas em uma única taxonomia científica, Naranjo
construiu uma engenhosa ‘teoria da neurose e da degradação
da consciência’. Freud construiu sua teoria da neurose a partir
da ideia de repressão da vida instintiva, principalmente da
sexualidade: a neurose era uma forma de sublimação
patológica de nossos desejos. Para Naranjo, a neurose (ou a
fixação em um ponto de recorrência) também se origina em
uma experiência traumática a partir da qual se fixa uma
reação obsoleta (um mecanismo de defesa recorrente) aliada
à perda da capacidade de agir criativamente.
C – Naranjo, no entanto, reconhece a importância da vida
instintiva sobre a formação das personalidades neuróticas e
adiciona ao sistema do Eneagrama a ideia de que,
independentemente do eneatipo, somos marcados por uma
das três formas específicas de restrições instintivas que
sofremos: a sexual (Freud), a relacional (Lacan) e a
sobrevivência (Marx). Instintos desenvolvidos em relação ao
Outro (e à natureza), aos outros (aos grupos) e ao próprio a si
mesmo como indivíduo diante da sociedade.
Por mais consistente e interessante que seja a
tipologia de Naranjo12 e o Eneagrama visto como um sistema
de compulsões dos vícios e virtudes do ego, a tipologia
psicológica fez com que o símbolo perdesse sua fluidez
original e em seu conjunto cognitivo (a exemplo do que
aconteceu também com a astrologia, com os orixás e outras
mitologias tradicionais que se tornaram tipologias psicológicas
modernas). Assim, não somos um único tipo. 'Estamos' um,
sete ou três – dependendo da época, do local e das pessoas
com as quais interagirmos. É comum, a pessoa ter um ponto
de fixação no trabalho, outro em casa, um terceiro com os
amigos.
Para recuperar a essência do Eneagrama é
necessário retornar ao simbolismo original. Assim, retomando
as idéias de Bennett (1999) e as recolocando em um contexto
científico contemporâneo, desenvolvemos a noção de 'Bússola
Complexa', como um modelo de sistema complexo, levando
em conta tanto os aspectos dinâmico/sincrônico como os
objetivo/subjetivos.13

Sistema e processo circular

Bennett volta ao modelo gurdjieffiano de Eneagrama,


anterior ao modelo tipológico, regido por duas leis: a lei dos
12
Naranjo estabele ainda 3 subtipos para cada eneatipo e asas (possibilidade
de fixação intermediária entre os pontos, criando tipos mistos) para diversificar
seu sistema.
13
As ideias de Bennett & Blake sobre o Eneagrama, a Sistemática, v. em:
<http://duversity.org/>
três e a lei dos sete (ou lei da oitava).
A Lei dos Três (ciclos externos). Pela teoria do
Eneagrama devemos observar o movimento externo de um
determinado acontecimento em três etapas sucessivas.
Seguindo nosso exemplo de um Eneagrama cognitivo: caso
este movimento seja centrífugo e agregue energia ao sistema,
teremos o padrão motor-emocional-mental, produzindo
sentimentos; caso seja centrípeto, teremos um padrão em
que o mental se antecipa ao emocional, gerando emoções.
Os sentimentos brotam do corpo para o campo afetivo ou
‘coração’ (a tristeza, a alegria, por exemplo), enquanto as
emoções são sempre racionalizações perniciosas, em que as
imagens e os pensamentos antecedem o campo afetivo,
porque drenam a energia e poder pessoal do guerreiro. Assim,
não só emoções negativas (a raiva, o orgulho, a inveja, a
vaidade), mas, sobretudo, a ideia de uma identidade
interpretante do ego (a auto importância) deve ser combatida.
A Lei dos Sete (ciclos internos). Seguindo o mesmo
modelo circular de rotações opostas, o Eneagrama também
descreve a ordem dos movimentos internos ao sistema
aparentemente caóticos através da divisão da unidade pelo
número sete e pela dízima periódica 1428571 ... E as somas
sucessivas de sétimos reproduzem esse padrão complexo,
mas começando com algarismos diferentes, correspondendo
aos pontos internos do Eneagrama. Cada fração representa
um dos pontos secundários do Eneagrama e o movimento
entre eles, tanto no sentido horário como no anti-horário.

FRAÇÃO NÚMERO NOTA

7/7 = 1 DO
1/7 = 1428571 ... RÉ

2/7 = 285714 ... MI

3/7 = 428571 ... FÁ

4/7 = 571428 ... SOL

5/7 = 714285 ... LÁ

6/7 = 857142 ... SI

A esse padrão complexo, Gurdjieff chamou de 'Lei da


Oitava', em uma comparação explícita com as escalas
musicais ascendentes e descendentes. Essas propriedades
vistas em conjunto (a circularidade dos três pontos externos e
o movimento interno das suas oitavas) formam o símbolo do
Eneagrama. Ao contrário, muitas vezes a tendência à
conservação de energia de um sistema é reacionária em
relação às mudanças, enquanto os fatores caóticos e o ruído
demandam uma desorganização necessária ao crescimento.
De modo que, além dos ciclos Virtuoso e Vicioso de
três fatores exteriores e objetivos, o modelo do Eneagrama
apresenta ainda a possibilidade de representação dos
elementos subjetivos de diferentes agentes em cada ponto do
processo, tanto no sentido horário como no anti-horário. É
claro que, na prática, a realidade se constitui simultaneamente
de tendências centrípetas e centrifugas.
Bennett tratava apenas de processos em que o fator
tempo fosse contado de trás para frente, como um
cronômetro, empresas de produto diário, por exemplo,
padaria, bancos, jornais, em que os processos sequenciais
sejam orientados pela contagem regressiva do tempo, em
processos cíclicos. Um exemplo clássico da aplicação do
Modelo do Eneagrama como um sistema é o da 'Cozinha em
funcionamento'.

TIPO SEQÜÊNCIA EXTERNA RELAÇÕES INTERNAS OITAVA

9 Cozinha Três e Seis Ciclo I

1 Cozinha pronta para funcionar Quatro e Sete Ajudante

2 Cozinha funcionando Quatro e Oito Ajudante

3 Alimentos crus Seis e Nove Ciclo II

4 Preparação da comida Dois e Um Cozinheiro

5 Cozinhar os alimentos Sete e Oito Cozinheiro

6 Os Comensais Nove e Três Ciclo III

7 Servir a refeição Cinco e Um Comensal

8 Comer a refeição Cinco e Dois Comensal

Na 'cozinha pronta para funcionar' (ponto 1), atividade


preliminar de organização de todas ferramentas necessárias
para o início do processo, temos que antecipar o que vamos
preparar (ponto 4) e como vamos servir (ponto 7). Já com a
'Cozinha em funcionamento' (ponto 2), mantemos nossa
atenção no que estamos preparando (ponto 4), mas
deslocamos nosso imaginação do aspecto formal da
apresentação da comida para seu sabor, seu tempero, como
ela será degustada (ponto 8). A introdução dos Alimentos
(ponto 3) corresponde ao início de uma nova oitava, além de
dar sequência ao ciclo já iniciado. Do mesmo modo a
'Preparação da comida' (ponto 4) é diretamente condicionada
pela organização (ponto 1) e funcionamento (ponto 2) da
cozinha; o cozimento dos alimentos implica em sua aparência
(ponto 7) e sabor (ponto 8); e a introdução dos Comensais
também nos remete ao início de um novo ciclo e na
continuação dos ciclos precedentes. Aliás, é importante
ressaltar que a Cozinha (ponto 9), os Alimentos (ponto 3) e os
Comensais (ponto 6) são elementos externos fundamentais.
Eles tanto representam a sucessão cronológica dos eventos
como os diferentes agentes no processo (ciclo dos ajudantes,
ciclo dos cozinheiros, ciclo dos comensais) cada um guarda
uma autonomia interna de processo, simbolizado por três
oitavas secundárias).
Assim, além do ciclo objetivo dos elementos
exteriores, o Eneagrama apresenta assim a possibilidade de
representação dos elementos subjetivos de diferentes agentes
em cada ponto do processo. Pensemos, por exemplo, que ao
ver e comer a refeição (pontos 7 e 8), os Comensais imaginam
o trabalho dos cozinheiros (ponto 5) e dos ajudantes (ponto 1
e 2) da cozinha; e, a partir desses elementos subjetivos,
reconstituem todo processo objetivo.
Além dessas relações externas cronológicas e seus
insights circunstanciais, existe ainda uma grande oitava,
representando o processo mental de planejamento geral de
tudo que será executado. Esse ciclo é representado pela
dízima: 1758241, ou seja, organizar a cozinha (1) pensando
em servir a refeição (7); cozinhar os alimentos (5) pensando
em comer a refeição (8); colocar a cozinha em funcionamento
(2) pensando em preparar a comida (4); e, finalmente, limpar e
arrumar novamente a cozinha (1).
Mas, o Eneagrama é uma ferramenta, não apenas
para medir a organização (a conservação de energia), mas,
sobretudo, para localização do ruído e da entropia.
Representamos esses fatores caóticos, que surgem tanto no
ciclo objetivo quanto nos subjetivos, pelo movimento circular
centrípeto. No aspecto ternário objetivo, equivaleria aos
Comensais (ponto 6, fator mental) serem introduzidos no
processo antes dos Cozinheiros (ponto 3, fator emocional),
que chegaram atrasados. Esta inversão dos fatores mental e
emocional sempre caracteriza objetivamente o círculo vicioso.
No aspecto subjetivo, o pensamento de um pessimista
crônico seguiria o modelo 1428571, ou seja, uma organização
inadequada na cozinha (1) atrapalha a preparação da comida
(4); isto certamente também prejudica o funcionamento correto
da cozinha (2) e a própria refeição (8); uma vez que atrasa o
'cozinhar os alimentos' (5) e o 'servir a refeição' (7). Depois de
tanta bagunça resta ainda limpar tudo e arrumar novamente a
cozinha (1).
Neste exemplo, Bennett elabora todo um jogo de
relações que podemos retomar agora para um modelo de
Eneagrama como um sistema complexo e não apenas como
uma análise sistemática de processos circulares.

CICLOS Virtuoso Vicioso e/ou Criativo

OBJETIVO 9-3-6-9 9-6-3-9

SUBJETIVO 1-7-5-8-2-4-1 1-4-2-8-5-7-1

Quando os fatores causais resultarem em uma


concentração de energia do sistema diz-se que eles giram
para dentro, no sentido horário; em contrapartida, quando os
fatores causais se retroalimentarem de forma a provocarem
expansão e a crescente perda de energia do sistema, dizemos
que eles giram para fora, no sentido anti-horário.
Chama-se de Círculo Virtuoso todos os ciclos
centrípetos que se aperfeiçoam que buscam a excelência,
dentro de determinadas regras e situações dadas; e de
Círculo Vicioso (ou de Círculo das Paixões), aqueles ciclos
centrífugos que não se desenvolvem dentro das condições
determinadas e que permanecem em condição de
estagnação.
Os Círculos Criativos, ou auto-poéticos, são os ciclos
centrífugos que, ao invés de simplesmente aceitar ou negar as
condições pré-estabelecidas, as modificam, instituindo assim
uma nova ordem a partir do ruído.
A diferença entre a Sistemática de Bennett e a
abordagem complexa é que qualquer processo é passível de
análise e que se passa do contexto da engenharia mecânica
para um paradigma preocupado com a dissipação de energia.
Também é importante compreender que nem sempre
fatores restritivos e entrópicos são maléficos e fatores
sinérgicos, benéficos. Ao contrário, muitas vezes a tendência à
conservação de energia de um sistema é reacionária em
relação às mudanças, enquanto os fatores caóticos e o ruído
demandam uma desorganização necessária ao crescimento.
Mas, feitas essas observações, transpostos os
cenários dos tempos da sistemática para o da complexidade,
voltemos ao foco cognitivo do Eneagrama, representando os
dois ciclos contrários de ordem e ruído pelos nomes de:

O Caminho dos Sentimentos – Ciclo centrípeto ou de


conservação de energia: OBJETIVO (9-3-6) e SUBJETIVO
(1-7-5-8-2-4-1). No movimento centrípeto há um caminho
ético - em que a relação consigo mesmo, com o corpo e com
o meio ambiente (ou ‘o lado de fora’ - 8, 9 e 1), desperta a
relação com o Outro (ou ‘o lado de dentro’ - 2, 3 e 4) e com
os outros (ou as ‘formas discursivas’ - 5, 6 e 7).
O Caminho das Emoções – Ciclo centrífugo ou de
dissipação de energia: OBJETIVO (9-6-3) e SUBJETIVO (1-
4-2-8-5-7-1), subdividindo esse último em emoções reativas
e criativas, pois, além de seu caráter destrutivo, o ruído e
suas desorganizações são essenciais para mudanças de
padrões e para o desenvolvimento de autonomia. Nesses
dois tipos de movimento centrífugo há um caminho moral,
em que a relação com o(s) grupo(s) antecedesse a relação
com o Outro no sentido individual. Sendo que, nesse caso, o
comportamento reativo é se observar o lado de fora através
de um filtro cultural, enquanto o criativo confronta seus
sentimentos diretamente com o mundo e compreende o
universo das formas discursivas a partir deste embate.
Ambas as atitudes são morais, pois o subjetivo antecede o
objetivo.

A diferença entre os círculos viciosos e os criativos


está em se estar consciente das emoções (modo criativo) ou
vivê-las (na verdade, sofrê-las) involuntariamente (modo
reativo). Na medida em que se está consciente dos processos
recorrentes, as dificuldades tornam-se aprendizado e a busca
de alternativas de vida.
A adaptação do Eneagrama à tipologia por Idacho e
Naranjo é uma grande contribuição para psicologia, como um
mapa de autoconhecimento e do conhecimento dos outros.
Porém, sua utilização como sistema integrado complexo de
processos recorrentes, como fazem Bennet e outros, é ainda
mais importante.
Hoje, a física teórica trocou o movimento circular pelo
elíptico, com dois focos internos, e o modelo matemático do
Eneagrama praticamente só é conhecido de forma tipológica.
No entanto, seus cálculos e referências podem ser
adaptados, abrindo a possibilidade de melhor compreensão
dos ciclos (aparentemente) aleatórios dos ciclos virtuosos e
viciosos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS

BENNETT, J. G. O Eneagrama - um estudo pormenorizado do


eneagrama usado Gurdjieff para simbolizar o trabalho da
consciência tanto na vida diária como nos níveis esotéricos.
São Paulo: Ed. Pensamento, 1999.
CHABRENIL, P. & F. A Empresa e seus colaboradores - Usando o
Eneagrama para Otimizar Recursos. São Paulo: Editora
Madras, 1999.
GOMES, Marcelo. Um mapa, uma bússola – Hipertexto,
Eneagrama e Complexidade. Rio de Janeiro: Mileto, 2000.
NARANJO, C. Os Nove Tipos de Personalidade - Um estudo do
caráter humano através do Eneagrama. Rio de Janeiro, Editora
Objetiva, 1996.
OUSPENSKY, P. D. Fragmentos de um ensinamento
desconhecido - Em busca do milagroso. Coleção Ganesha.
São Paulo: Pensamento, 1980.
______Psicologia da Evolução Possível ao Homem. São Paulo:
Pensamento, 1986.
PALMER, H. O Eneagrama: compreendendo a si mesmo e aos
outros em sua vida. São Paulo: Edições Paulinas, 1993.
A AYAHUASCA COMO
SISTEMA DE
CUIDADOS

1. Definição

A medicina da
Ayahuasca (ou do
Ayahuasca, como seria
mais correto) não é
apenas o consumo
ritualístico de uma bebida
- feita do cipó do Jagube
ou Mariri (Banisteriopsis
caapi) e da folha da Rainha ou Chacrona (Psycotria viridis),
mas contempla também todo um sistema completo de
cuidados e de desenvolvimento pessoal. E a definição desse
sistema implica não apenas no uso ritualístico da bebida com
alguma periodicidade, mas também, simultaneamente, no
consumo terapêutico de outras substâncias (rapé de tabaco e
pau pereira, o veneno da rã Kambô, o colírio da Sananga,
para citar os mais conhecidos) e em um conjunto de dietas
alimentares, sociais e sexuais. A Ayahuasca enquanto
medicina implica na adoção de uma série de práticas
pessoais, de mudanças de hábitos de consumo, que em seu
conjunto formam um sistema complexo de cuidados, de
tratamento e de desenvolvimento humano.

Esta definição ampliada permite não apenas


compreender a medicina da Ayahuasca dentro de um quadro
de referências xamânicas e antropológicas mais abrangentes,
como também entender a especificidade das religiões e cultos
que se organizaram em torno dela. O Santo Daime, a União
do Vegetal e a Barquinha são ‘leituras’ da medicina da
Ayahuasca, interpretações teológicas e poéticas de um
sistema de práticas pessoais anterior.

2. História

Os registros mais antigos que conhecemos vêm dos


Incas. O uso da Ayahuasca como bebida sacramental era
restrito a família imperial inca, descendente de Inti, o rei Sol.
Conforme relatos históricos, o príncipe Atahualpa se rendeu
aos invasores espanhóis e acabou assassinado. Segundo a
lenda, o príncipe seu irmão, Huascar, se refugiou na floresta
amazônica. Lá divulgou a bebida, que recebeu o seu nome e
se difundiu entre várias tribos indígenas, como as dos Kampas
e dos Kaxinawás, perto da fronteira com o Peru e a Bolívia.
Ingerindo a bebida, os índios tinham experiências psíquicas
incomuns: telepatia, acesso a vidas passadas, contatos com
os mortos, presciência e visão à distância. Há relatos
etnográficos de xamãs usavam a bebida para descobrir qual
era a doença de seus pacientes e saber como tratá-la.

O uso da Ayahuasca foi, durante séculos, utilizado por


várias tribos indígenas da região. No início do século XX, com
o intercâmbio cultural entre índios e seringueiros, a Ayahuasca
passou a ser conhecida e usada pelos nordestinos que
colonizaram a Amazônia ocidental. Destes contatos surgiram
vários grupos sincretizaram o seu uso com o catolicismo
popular, normatizando doutrinas de grande penetração
urbana.
Raimundo Irineu Serra (1890/1971) foi um dos que
realizou trabalhos com a Ayahuasca, criando uma estrutura
ritual absolutamente brasileira, por ele rebatizada de "Santo
Daime". Fundou, em 1930, o Centro de Iluminação Cristã de
Luz Universal (CICLU) em Rio Branco, Acre.

Logo surgiram outras ramificações, sendo a principal a


comunidade denominada Centro da Fluente Luz Universal
Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS), fundada pelo Padrinho
Sebastião Mota de Melo, responsável pela expansão nacional
e internacional da bebida e do culto. Outro culto
ayahuasqueiro acreano importante é o da Barquinha Fundada
em 1945, também em Rio Branco, por Daniel Pereira de
Mattos, esta igreja mistura elementos da religião afro-brasileira
Umbanda e do Santo Daime. A União do Vegetal foi fundada a
21 de Fevereiro de 1961, em Porto Velho Rondônia, por um
seringueiro chamado José Gabriel da Costa. Quando
trabalhava num seringal na Bolívia, José Gabriel conheceu
índios nativos que o apresentaram à ayahuasca na própria
selva. O crescimento e difusão dos diversos grupos religiosos
que utilizam a Ayahuasca geraram resistências nos setores
conservadores da sociedade, que pressionaram o Conselho
Federal de Entorpecentes (CONFEN) para embargar o
funcionamento destas instituições nos grandes centros
metropolitanos.

No entanto, depois de acuradas investigações, o


Conselho decidiu liberar a utilização do chá para fins religiosos
em 1992. Ficaram estabelecidos vários limites e critérios
através do diálogo entre as entidades religiosas e os
pesquisadores de várias especialidades.
E, finalmente, o Conselho Nacional de Políticas sobre
Drogas (CONAD), órgão do Ministério da Justiça, publicou no
Diário Oficial da União do dia 25 de janeiro de 2010, resolução
regulamentando o uso religioso da Ayahuasca. A resolução
estabeleceu regras para que a bebida não seja comercializada
ou utilizada fora do contexto religioso.

LINHA DO TEMPO
Século O uso da bebida sacramental era restrito a família imperial inca,
XIII descendente de Inti, o rei Sol.
O príncipe inca Atahualpa se rende aos invasores espanhóis e acaba
1533 morto. Seu irmão, Huascar se refugia na floresta amazônica e a
Ayahuasca é introduzida em as várias tribos indígenas da região.
1616 O uso da Ayahuasca é condenado pela Inquisição.
A Harmalina é isolada da planta Peganum armala em laboratório na
1840
Europa.
O botânico Richard Spruce, o biólogo Alfred Russell Wallace e o
1849
naturalista Henry Walter Bates fazem os primeiros estudos sobre a
1858
bebida.
1905 Zerda e Bayon chamam o alcaloide do "yajé" de "telepatina".
O primeiro terreiro de Umbanda de Porto Velho, Rondônia, é aberto
1917 por Chica Macaxeira, maranhense da tradição do Tambor de Mina. É
usada a Ayahuasca nos rituais.
Os irmãos Antônio Costa e André Costa fundaram um centro
1920
chamado Círculo de Regeneração e Fé (CRF), em Brasiléia, Acre.
Fundação do Centro de Iluminação Cristã de Luz Universal (CICLU)
em Rio Branco, Acre, por Raimundo Irineu Serra (1890/1971) com a
1930
Ayahuasca, com uma estrutura ritual absolutamente nova, por ele
rebatizada de 'Santo Daime'.
A DMT (Dimetiltriptamina) é sintetizada e identificada como outro
1931
alcaloide da Ayahuasca.
Fundação da Barquinha, por Daniel Pereira de Mattos, em Rio
1945
Branco, Acre.
Hochstein e Paradies chamam de 'efeito ayahuasca' à combinação
1957
de Harmina e a Harmalina com a DMT.
Fundação da União do Vegetal (UDV), por José Gabriel da Costa em
1961
Porto Velho, Rondônia.
O cientista Robert Gordon Wasson propõe o termo "enteógeno"
1972
substituto para alucinógeno.
1975 Fundação do Centro da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra
LINHA DO TEMPO
(CEFLURIS), fundada pelo Padrinho Sebastião Mota de Melo,
responsável pela expansão internacional da bebida e do culto.
O crescimento e difusão dos diversos grupos religiosos que utilizam
a Ayahuasca geraram resistências nos setores conservadores da
sociedade, que pressionaram o Conselho Federal de Entorpecentes
1985
(CONFEN) para embargar o funcionamento destas instituições nos
1992
grandes centros urbanos. No entanto, depois de acuradas
investigações, o Conselho decidiu liberar a utilização do chá para fins
religiosos em 1992.
2010 O CONAD regulamenta o uso religioso da Ayahuasca no Brasil

Atualmente, com a expansão do Daime e da UDV


para outros países, surgiram questões jurídicas internacionais
referentes à utilização e ao transporte da bebida. Mas, a
globalização da Ayahuasca passou a ser uma realidade,
desencadeando vários tipos de simbiose com outras culturas
espiritualistas.

3. A pesquisa transdisciplinar sobre Ayahuasca

“A Ayahuasca amplifica a capacidade


psicossomática de responder a gradações
mais sutis de estímulos além de muitas vezes
integrar as diversas faculdades sensoriais em
processos sinestésicos. Esse efeito de
aumentar a capacidade de experienciar, de
avaliar e apreciar por si mesmo, é central para
a compreensão do seu significado. Esta
amplificação, como uma lupa, permite uma
(re)visitação intensiva e absorta dos
conteúdos mentais - recordações, ideias,
fantasias, pensamentos, emoções, medos,
esperanças, sensações em gerais. (...) O
grande valor da Ayahuasca, trazidos à nossa
atenção pelas sociedades indígenas, é que
ela dissolve os limites da mente inconsciente;
ela dá acessos aos conteúdos reprimidos e
esquecidos. Ela possibilita o reconhecimento
das configurações universais da psique, os
arquétipos de humanidade, junto com um
leque mais abrangente de conhecimentos e
maneiras de conscientizar, até eventualmente
a vivência dos diversos aspectos da união
mística. Na medida em que o indivíduo
consegue ver as coisas de uma maneira não
distorcida, vendo claramente não apenas o
seu passado mais também a presunção e
cegueira da sua própria cultura e grupos de
referencias, ele necessita, além de tolerar a
decepção e o sofrimento, superar sentimentos
de desamparo. Nem sempre é fácil ter de ver
e aceitar que não somos assim tão vítimas,
mas sim responsáveis pelas nossas vidas;
aceitar ser capaz, reconhecer o seu potencial
e a responsabilidade que isso requer implica
coragem e determinação.” (BARBIER, 2002)

Os estudiosos da Ayahuasca também podem ser


subdivididos em três grupos:

a) os pesquisadores que dão ênfase ao efeito da DMT (N, N-


dimethyltryptamine ou C12H16N2) no cérebro, geralmente
pesquisadores da área de saúde orientados para o estudo
do tratamento de dependência química;
b) os pesquisadores que dão ênfase aos sistemas de
crenças, em geral, antropólogos, historiadores e psicólogos
mais concentrados na questão do condicionamento social
dos usos da bebida; e
c) os pesquisadores que, considerando os dois aspectos,
elaboram um novo sistema de crença, mais universal e
objetivo.
Vejamos cada um desses grupos de pesquisadores.

Para os que dão ênfase à DMT, como Ralph Miller


(2000), por exemplo, o importante é o papel psicoativo da
bebida:

A Pineal irá produzir DMT em grandes


quantidades em pelo menos dois momentos
das nossas vidas: no nascimento e na morte.
Talvez ela prepare a chegada e a partida da
alma. Pessoas que experimentam "situações
de quase morte" – vendo luzes fortes, portais,
ícones religiosos – relatam efeitos
semelhantes aos das experiências com DMT.
As moléculas de DMT são similares às
moléculas da Serotonina e se encaixam nos
mesmos receptores do cérebro. Isto é
extraordinário porque, assim como a
Serotonina, a DMT é uma chave específica
que naturalmente se encaixa nesta "trava" do
cérebro. Assim, você tem a DMT se
encaixando aos receptores do cérebro, o que
produz visões, enquanto as propriedades pró-
Serotonina e pró-Dopamina do chá criam um
estado de alerta e receptividade.

Strassman (2001) diz o corpo produz naturalmente


DMT na hora da morte para favorecer a lembrança dos
momentos marcantes da vida. A DMT permite a utilização
consciente da memória visual através do lado direito do
cérebro, em oposição à nossa memória discursiva ordinária
organizada através da fala.

É a fala que transforma a memória em narrativa, se


simplesmente contarmos nossa estória, oscilaremos entre os
papéis de vítima e de herói. É o hemisfério esquerdo do
cérebro que acessa a memória e quer comunicar a lembrança
resgatada a alguém. Com a DMT, ao contrário, feita em estado
de silêncio interior, sem interlocutor ou escuta analítica
externa, as lembranças emergem objetivas, permitindo a
reintegração emocional dos momentos vividos com
distanciamento, vistos de fora, como em um filme narrado por
outra pessoa.

E essa pode ser a principal aplicação terapêutica da


DMT em um futuro breve: fechar (reviver e superar) as feridas
emocionais que jorram do inconsciente. O acesso consciente
à memória visual também pode ser colocada sob a forma de
‘sonhos lúcidos’, isto é, a ocorrência de estado de
funcionamento cerebral de alto desempenho - o sono REM
(rapid eye moviment) – que normalmente acontece enquanto o
sujeito está dormindo, durante o estado de vigília.

Para Strassman, há quatro estágios progressivos do


efeito do DMT: o estado eufórico, o ‘caleidoscópio colorido’, o
estado de diálogo com as entidades e a transcendência do
ego. Para isso, ele teria que trabalhar suas dosagens cada
vez maiores de DMT. A experiência, no entanto, comprova que
o mero aumento de dosagem química não basta para se
alcançar estados de percepção mais profundos e intensos, é
preciso também ter treinamento em alguma técnica ou ritual.
Aliás, quando maior a capacidade mental de alteração o
estado de percepção, menor a dosagem necessária – como
pode ser comprovado pela maioria dos adeptos mais antigos
dos cultos. E, certamente, as imagens psíquicas, sejam elas
arquétipos universais ou lixo subconsciente, pouco ajudam ou
enriquecem a experiência da DMT. O importante é
compreender o contexto das relações em que se está inserido.
A ideia de ‘miração’ ou ‘sonho lúcido’ (e de diferentes estágios
progressivos do transe quimicamente induzido) não pode ser
desvinculada do sistema de crenças do sonhador14.

Há grandes diferenças entre as distorções cognitivas


provocadas por entorpecentes e o uso ritual de plantas de
poder. Quando utilizado com finalidades de autoconhecimento,
o uso de substâncias psíquicas é chamado de ‘enteógeno’ em
oposição ao termo ‘alucinógeno’ – utilizado para caracterizar o
efeito alienante e a distorção perceptiva. Mas, os argumentos
de ‘ambiente’ e ‘intenção’ raramente são suficientes para
convencer leigos (e cientistas fixados no fator neuroquímico)
da grande diferença cognitiva entre a experiência enteógena e
a viagem alucinógena.
14
O modelo de estágios progressivos de estados de consciência de
Strassman tem seu valor, mas é preciso perceber que ele também se baseia
em um sistema de crenças, mesmo que sejam crenças científicas céticas. Eu,
por exemplo, prefiro um modelo de quatro paradigmas diferentes sobrepostos
e simultâneos no trabalho espiritual com DMT: o paradigma da luta do bem
contra o mal; o paradigma de ajuda aos sofredores; o paradigma de
diálogo/conflito do Eu com o Outro; e, finalmente, o paradigma da Consciência
da Divindade.
Atualmente, várias pesquisas investigam a utilização
de medicamentos a base de DMT para tratamento químico de
depressão, neuroses, fobias, síndromes neurológicas, bem
como seu uso como potencializador da consciência em
processos terapêuticos.

Como dissemos antes, existem também pesquisas


que dão mais ênfase ao contexto que ao aspecto psicoativo.
Enquanto os pesquisadores das áreas clínicas e biológicas
dão um enfoque enquadrado particularmente aos efeitos
químicos da DMT no cérebro, os pesquisadores das áreas
antropológicas e psicológicas estudam a mudança nos
estados de consciência e de percepção, distribuindo sua
atenção em três fatores: a bebida, o ambiente (setting) e a
intenção (set). A hipótese, denominada em inglês de 'set and
setting', formulada inicialmente por Timothy Leary com LSD
nos anos 60, afirma que o conteúdo de uma experiência com
substancia psicoativa é uma resultante da interação desses
três fatores básicos.

Charles S. Grob fez a mais ampla revisão bibliográfica


sobre a Ayahuasca na área da psicologia clínica e neuro
psiquiatria (METZNER, 2002, p. 195) e considera a hiper
sugestionabilidade como um dos efeitos psico químicos,
detalhando o aspecto ambiental (setting) em vários fatores (o
papel do líder, do grupo, do local). Ele é um dos
pesquisadores que concluem que “o contexto, o roteiro e o
propósito” são mais importantes do que os efeitos químicos de
substâncias psicoativas (nos processos de “cura” e de
autoconhecimento propiciados pela bebida).
Em relação às características dos estados de
consciência quimicamente alterados pela Ayahuasca, Grob
aponta:

a) Diminuição ou expansão da consciência reflexiva, com


alterações de pensamento, mudanças subjetivas na
concentração, na atenção, na memória e no julgamento
podem ser induzidas voluntariamente em vários níveis de
uma mesma experiência.
b) Aumento da imaginação visual. Grob também identifica,
dentre as experiências de milhares usuários entrevistados,
várias recorrências psicológicas durante o transe: medo de
perder o controle; resistência do ego (bad trip) e
transcendência para estados místicos (entrega); aumento da
expressão emocional - tristeza, alegria, desespero, fé; entre
outras menos frequentes.
Outra grande contribuição ao estudo psicológico da
Ayahuasca é o trabalho de Benny Shanon, O Conteúdo das
visões da Ayahuasca (2003), em que além de trabalhar um
levantamento das imagens das mirações e da hipótese de
aceleração e desaceleração da percepção do tempo durante o
transe, se discute também a pesquisa da mente através da
Ayahuasca (e não mais o efeito da Ayahuasca na mente
humana).

Shanon já havia escrito sobre a Ayahuasca como


instrumento de investigação da mente (in LABATE, 2002; pág.
631), através dos parâmetros teóricos da psicologia cognitiva.
Para ele, há questões fenomenológicas de primeira ordem (o
que está sendo experimentado?) e de segundo ordem (Há
uma ordem e um sentido no que está sendo experimentado?).
Em relação às questões fenomenológicas de primeira ordem,
Shanon distingue as questões de conteúdo das de domínio e
de estrutura. Assim, felinos, pássaros e répteis são as
imagens mais recorrentes nos transes, seguidos de perto
pelos palácios, tronos e imagens arquitetônicas celestiais. A
pesquisa destaca que as imagens são ‘universais da mente’
(semelhantes aos ‘arquétipos’ de Jung), pois surgem em
indivíduos culturalmente diferentes.

Esses conteúdos podem surgir de diferentes domínios


e o encadeamento dessas formas com estes conteúdos forma
estruturas narrativas paralelas aos rituais. E Shanon entrevê,
através deste sistema cognitivo de conteúdos/domínios, os
parâmetros estruturais da consciência e destaca pelo menos
quatro aspectos relevantes em relação ao efeito da
Ayahuasca: a percepção do pensamento como uma cognição
coletiva, a indistinção entre o interior e o exterior, as
experiências des-indentificação pessoal e de tempo não-linear.
Sob o efeito da DMT os pensamentos não são individuais,
mas sim ‘recebidos em rede’ (a mente como um rádio); que
não existe a distinção entre o sensorial e o sensível; podem se
transformar em animais (jaguares e águias são frequentes) ou
em outras pessoas; e finalmente percebem o transcorrer do
tempo de forma desigual, em que alguns segundos demoram
séculos e horas se sucedem rapidamente e em que alguns
momentos se experimentam a simultaneidade (ou a sensação
de eternidade) temporal.

Desses quatro aspectos relevantes o mais


interessante é o que trata de nossa percepção do tempo.
Quando as pessoas bebem Ayahuasca, percebem que seus
pensamentos não são individuais, mas sim ‘recebidos em
rede’ (a mente como um rádio); que não existe a distinção
entre o sensorial e o sensível; podem se transformar em
animais (jaguares e águias são frequentes) ou em outras
pessoas; e finalmente percebem o transcorrer do tempo de
forma desigual, em que alguns segundos demoram séculos e
horas se sucedem rapidamente e em que alguns momentos
se experimentam a simultaneidade (ou a sensação de
eternidade) temporal. Quando baixamos arquivos no
computador, pode-se perceber que alguns segundos demoram
mais que outros, em função do peso do arquivo e da
aceleração da conexão da internet. O que Shanon suspeita é
que o mesmo acontece com a mente, mas só é perceptível
sob o efeito da Ayahuasca. A DMT nos recoloca novamente
dentro da simultaneidade.

Com base nessas pesquisas pode-se dizer que a


experiência de ‘mirar’ ou ter ‘sonhos lúcidos’ se aproxima
muito mais de uma super cognição (envolvendo os dois
hemisférios cerebrais simultaneamente) do que de uma
alucinação ou de apenas ilusões visuais. Super cognição que
permite à consciência enraizada no presente ativar as
memórias do passado com objetividade visual e prever (ou até
mesmo influenciar) acontecimentos futuros, “resolver
problemas”, conseguir reverter as relações de conflito,
submissão ou enaltecimento que se apresentem na própria
'miração'.

4. Etnofarmacologia e sistema de cuidados

Com Terence McKenna (1993, 1994, 1995 e 1996) a


pesquisa sobre enteógenos chega ao patamar da
Etnofarmacologia, isto é, ao estudo simultâneo dos contextos
culturais e das substâncias químicas em um novo quadro de
referências.
McKenna estabelece uma associação estratégica
entre duas hipóteses diferentes até então, que se tornaram os
cânones do movimento enteógeno: em primeiro lugar, a
hipótese de que foi através da ingestão de substâncias
químicas psicoativas que os macacos se tornaram
conscientes de si, dando início à evolução da espécie
humana. Nesta hipótese, sugere-se que toda nossa
experiência com o sagrado derivou originalmente do consumo
de substâncias químicas. E depois, a hipótese de Gaia (James
Lovelock e Lynn Margulis) segundo a qual a biosfera da Terra
é na verdade um organismo vivo. Para McKenna, mais do que
dispositivos para o controle social (as drogas), as substâncias
psicoativas teriam como função primordial a re-ligação dos
homens com a consciência do planeta.

Mas, o que realmente chama atenção nas ideias dos


irmãos McKenna é a compreensão das plantas enteógenas no
contexto de uma “grande simbiose”. Nesta perspectiva, a
simbiose entre as plantas e os animais na biosfera da terra
não se limita à troca de oxigênio por gás carbônico ou à
produção recíproca de alimento e proteção, mas, sobretudo, a
um projeto maior, no qual as plantas enteógenas cumprem um
papel estratégico modificando o comportamento humano em
relação ao meio ambiente.

E esta é questão que norteia a pesquisa de Metzner


(2002). Para ele, a experiência emergente da espiritualidade
da medicina da Ayahuasca transborda os limites de todas as
tradições religiosas que a utilizam. Segundo Metzner, a
Ayahuasca é um veículo de uma mensagem do reino vegetal
– e a DMT, uma mensagem química da floresta para nosso
cérebro - para reverter o processo planetário de
autodestruição do homem e da vida orgânica.

Também é a partir da noção de Etnofarmacologia,


nessa perspectiva de troca e comunicação com as plantas
criada por McKenna e desenvolvida por Metzner, que é
possível entrever um sistema de cuidados, um conjunto de
práticas pessoais convergentes oriundas do xamanismo.

A noção de sistema de cuidados é uma categoria


proveniente da enfermagem para explicar e prescrever um
conjunto de práticas preventivas e terapêuticas, que levem a
uma ‘otimização’ crescente da saúde (SOUZA, 2006). Um
sistema pode ser definido como um complexo de elementos
em interação mútua. No sistema de cuidados, os elementos
são práticas pessoais, que se reforçam e complementam, em
uma agenda pessoal. A categoria pode ser utilizada de vários
modos: sistema de cuidados da saúde da mulher, sistema de
cuidados para recuperação de dependentes químicos; e assim
por diante. Aqui, a ideia é utilizar essa categoria para
descrever alguns aspectos da medicina da Ayahuasca,
definida como um conjunto de práticas xamânicas de
desenvolvimento.

Se a Ayahuasca é uma mensagem de vida para o


cérebro; é possível dizer que o veneno do Kambô é uma
mensagem de morte para diversos órgãos do corpo, um alerta
químico que ativa a defesa de vários sistemas vitais do
organismo. E o uso conjugado da Ayahuasca com Kambô, em
intervalos de tempo alternados, pode ser considerado os dois
principais fatores dinâmicos deste sistema de cuidados
xamânicos, que foi se construindo a partir da experiência.
A rã verde - Phyllomedusa bicolor, apelidada de sapo
Kambô, é a maior espécie do gênero da família Hylidae,
encontrada no sul da Amazônia. Também se chama de Kambô
a resina retirada dessa rã e à sua aplicação medicinal. Essa
resina contém substâncias peptídeas analgésicas (a
dermorfina 15
e a deltorfina ) e de fortalecimento do sistema
16

imunológico que provocam a destruição de microrganismos


patogênicos. As substâncias da secreção têm propriedades
antibióticas, de fortalecimento do sistema imunológico através
da produção de anticorpos pelo organismo contra o veneno.

A reação da vacina dura cinco minutos. Nesse tempo,


o coração dispara, o sangue corre acelerado nas veias, a
pressão cai ou sobe muito, a pessoa fica tonta ou nauseada.
Algumas pessoas veem tudo branco, como se o mundo
estivesse coberto por uma névoa difusa, ou caem no chão,
sem forças. Há também relatos de sensação de correntes
elétricas epidérmicas formigando pelo corpo. Muitos usuários
incham, ficando com a aparência semelhante a um sapo.
Então, de repente, o organismo reage ao mal-estar e põe tudo
para fora. Vômito forte e diarreia são as respostas mais
comuns. Só então, aos poucos, os sentidos voltam ao normal.
A pessoa se sente leve, limpa, disposta, de bem com a vida.
Depois de 30 minutos da aplicação, a pessoa já está apta para
suas atividades normais.

15
Dermorfina é um opiácio que atua como analgésico 300 vezes mais potente
que a morfina. Além do sapo phyllomedusa bicolor, essa substância só é
encontrada na urina de crianças autistas.
16
Deltorfina pode ser aplicada no tratamento da Isquemia - um tipo de falta de
circulação sanguínea e falta de oxigênio, que pode causar derrames.
Porém, o principal efeito do Kambô é que ele
estabelece um ‘choque de gestão’ na vida das pessoas, um
marco de reorganização orgânica e psicológica a partir do qual
a pessoa muda de atitude e altera seus padrões futuros de
saúde. É efeito ao mesmo tempo oposto e complementar ao
uso da Ayahuasca, tendo sido concebido e elaborado,
segundo as lendas a ele associado, no contexto da medicina
da Ayahuasca justamente como uma forma de destravar os
complexos processos de transformação pessoal
desencadeados pela bebida.

Também existem ainda várias práticas profiláticas


agregadas a esse sistema de cuidados xamânicos, como o
uso de rapé de tabaco/pau pereira e do colírio de Sananga. O
rapé tem notáveis efeitos ansiolítico e antidepressivo, podendo
apresentar tanto experiências prazerosas como
desagradáveis. O colírio previne o glaucoma, corrige miopias
e hipermetropias e regenera o globo ocular. E é extremamente
doloroso.

O consumo terapêutico conjugado desses elementos


(rapé, Sananga e Kambô) implica em um significativo aumento
no consumo de água e, em função disto, de sincronia (mesmo
que involuntária) com os ciclos lunares e com as marés. E, no
caso das mulheres, com o ciclo menstrual. Dessa forma, o
praticamente do sistema de cuidados se torna mais integrado
ao meio ambiente.

Tais insumos também têm contrapartidas restritivas.


Tome-se como exemplo a questão das dietas. Muitas pessoas
pensam que a restrição às práticas sexuais, ao álcool e ao
consumo de carne vermelha; três dias antes e três dias depois
ao consumo da Ayahuasca é uma exigência moral dos grupos
religiosos que trabalham com a bebida. A dieta sexual no
consumo de Ayahuasca é uma restrição praticamente
universal no universo do xamanismo. Não se trata de regras
institucionais ou normas doutrinárias, mas sim um preceito
extraído da experiência prática de um sistema de cuidados.

Para os usuários de longo prazo da Ayahuasca, essas


restrições pontuais vão se tornando ‘cuidados’ sistemáticos.
Não é raro, que, nos seus processos de desenvolvimento,
esses usuários intensifiquem e prologuem estes cuidados
pessoais, modificando todo seu consumo alimentar e de bens
simbólicos. O uso do álcool e das atividades recreativas dele
derivadas é um excelente exemplo. A grande maioria dos
usuários de longo prazo de Ayahuasca é abstêmia, tendo
transformado uma restrição pontual em uma atitude
permanente. O consumo de carne vermelha e de produtos
industrializados também pode ser citado, uma vez que esses
alimentos têm substâncias incompatíveis com a ingestão de
enzimas MAO17, presentes na bebida. Há também toda uma

17
Para o uso oral de DMT é necessário uma quantidade equivalente de
MAOIs, ou seja, inibidores de monoamina oxidase. No caso da Ayahuasca, o
cipó contem harmina e harmalina. O maior problema com a alimentação para
quem usa Ayahuasca é o consumo de alimentos que sejam ricos em tiramina.
Com a MAO inibida, a tiramina presente em diversos alimentos alcança a
corrente sanguínea e pode causar sérias crises de hipertensão, inclusive
alguns tipos específicos de hemorragia, como hemorragia intracerebral.
Segue uma lista de alimentos a serem evitados, com concentrações diversas
de tiramina: Abacate, amendoim, azeite, refrigerantes, bebidas alcoólicas,
bebidas fermentadas, berinjela, cafeína, carnes, casca de banana, castanha
de caju, caviar, chocolate, ervilha, espinafre, favos, frutos-do-mar, ginseng,
grão de bico, iogurte, molho de soja, noz-de-côco, passas, patês, peixes,
pizza, queijos (à exceção de requeijão e ricota), repolho-azedo, salame,
salsichas, suplementos proteicos, tâmaras, tomate e vagem.
Há ainda os sulfitos (dióxido de enxofre, bissulfitode sódio, metabissolfito de
sódio e potássio) muitos usados na conservação de alimentos
industrializados.
gama de medicamentos que não devem ser consumidos 18,
fazendo com que se busquem alternativas naturais de
tratamento dentro do próprio sistema de cuidados
etnofarmacológico. Não apenas de outros produtos medicinais
amazônicos (copaíba, andiroba, sangue de dragão), mas
também de chás de ervas, tinturas e óleos de uso popular de
outras regiões, alternativos aos remédios laboratoriais.

5. Conclusão

Segundo Calávia Saez (in LABATE & GUIMARÃES,


2008), quando os Yaminawa tentam explicar o que a
Ayahuasca é para eles, usam comparações como o ‘cinema
do índio’, a ‘televisão’ do índio e até ‘o avião do índio’. A
Ayahuasca é o que permite uma visão ao longe e media o
modo de ver o universo em seu conjunto. Todavia, além de ser
uma tecnologia de transcendência do tempo/espaço, a
Ayahuasca teve (ou tem) outra função menos evidente: criar
uma linguagem xamânica comum entre grupos étnicos
diferentes.

O que eram praticas xamânicas muito diferenciadas


tem se transformado, talvez nos últimos 100 anos, numa
espécie de ecúmene indígena organizada em volta do uso da
ayahuasca e dos cantos que acompanham esse uso. O

18
Remédios que inibem a recepção e o metabolismo da serotonina: a)
Antidepressivos ISRS. b) Xaropes que contenham Dextrometorfano (DXM) ou
Demerol; Antiasmáticos; Anti-hipertensivos: Guanetidina; Metildopa;
Reserpina, Buspirona, Levodopa Simpatico miméticos: Cocaína e derivados.
c) Anfetaminas; Metilfenidato; Metaraminol; Adrenalina; Noradrenalina;
Efedrina; Fenilpropanolamina; Isoproterenol. d) Descongestionantes nasais,
Medicação para febre do feno MDMA (Ecstasy), MDA e MDE. e) Inibidores de
apetite e Opiáceos: Heroína, Morfina, Ópio, etc. O uso dessas substâncias em
conjunto com a Ayahuasca pode levar a perigosos níveis de serotonina no
cérebro, podendo resultar na síndrome de serotonina. Sintomas da síndrome
de serotonina incluem náusea, desmaios, perda de memória, vômitos e
aumento na pressão sanguínea e na frequência cardíaca.
xamanismo dos Shipibo-Conibo, dos Kokama, dos Kaxinawa,
dos Yaminawa, dos Kampa, não são mais xamanismos locais,
étnicos, pertencentes a pequenos grupos etnolingüísticos. Há
muito tempo que esse xamanismo se transformou numa
linguagem comum, num mundo extremamente comunicado
onde as canções da ayahuasca se transmitem de um grupo a
outro. Enfim, a Ayahuasca tem contribuído de modo muito
importante para dar forma a um xamanismo que, apesar
pensarmos que é extremamente antigo, provavelmente
adquiriu a sua forma atual com a expansão, através da
comunicação, da tradução facilitada pelo uso desse veículo,
da Ayahuasca.

E o mais importante: a medicina da Ayahuasca, como


um sistema de cuidados que inclui outros procedimentos e
restrições universais, ainda está sendo construída nesse
processo, incorporando diversas influências.

Em primeiro lugar, apresentamos a definição da


medicina da Ayahuasca como um sistema integrado de
cuidados. Em seguida, procedemos a um breve resumo
histórico do uso da bebida.

Depois detalhamos os três tipos de investigação – a


pesquisa da DMT; o debate sobre a relação mente/contexto;
e, finalmente, a hipótese de simbiose orgânica do movimento
enteógeno.

Também descrevemos algumas das práticas


xamânicas associadas ao uso da Ayahuasca, bem como os
fatores restritivos, derivados do seu consumo de longo prazo.
Ao conjunto desses fatores dinâmicos e restritivos, ou dessas
práticas complementares recorrentes, chamamos de ‘sistema
de cuidados’ – ressaltando que se trata de um sistema aberto,
ainda em construção.

A pesquisa da Ayahuasca não é apenas um campo


interdisciplinar ou multidisciplinar, e sim um ‘espelho
transdisciplinar’ porque implica em autoconhecimento: as
informações científicas só fazem sentido se enquadradas em
um sistema de crenças. Assim, a pesquisa da Ayahuasca é
uma via de mão dupla: questionando as crenças em relação à
objetividade científica; e, no sentido inverso, repensando
culturalmente a modernidade (e o saber objetivo) a partir da
experiência cognitiva da bebida.

A noção de sistema de cuidados está no vértice desta


contradição. Por um lado, ajuda ao cientista a descrever e
prescrever procedimentos terapêuticos complexos a partir da
etnofarmacologia; de outro, permite a orientação e o
entendimento do atual buscador espiritual, em uma
perspectiva neo-xamânica.
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publicado no site: <http://www.panhuasca.org.br >
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revolutionary research into the biology. Rochester: Park Street
Press, Inner Traditions, 2001.
Complexidade e
Espiritualidade
Integral
PARADOXO E
SIMETRIA
O presente texto é
formado por dois
movimentos distintos. Em
primeiro momento, expos-
se aqui a questão da
simetria cognitiva, de como
a realidade é vista de forma dupla e até paradoxal. Em
seguida, apresenta-se a fenomenologia dos estados de
consciência segundo Timothy Leary e Robert Anton Wilson,
acrescida de ideias de autores pós-modernos.

1. Fenomenologia dos estados de consciência

Homem, Mulher; Luz, Trevas; Vida, Morte - vivemos


em um universo de polaridades opostas. Mas, interpretamos
essas polaridades de diferentes formas 19. Algumas tradições
mais antigas tratam as polaridades de opostos de uma forma
ainda mais diferente e, aparentemente, incompreensível para
o pensamento científico: o Paradoxo. O deus Abraxás de
Creta antiga, Janus dos Romanos e o par Tonal/Nagual nas
Américas são exemplos de deuses de "duas faces"
paradoxais, isto é, de uma concepção em que a polaridade de

19
Quando uma polaridade de opostos irreconciliáveis forma uma unidade,
uma síntese resultante do conflito dos extremos, então a polaridade será
chamada de Contradição Dialética. Se, no entanto, a polaridade não tiver uma
unidade e não produzir um terceiro termo sintético, mas simplesmente oscilar
entre os extremos irredutíveis, aperfeiçoando-os sem unificá-los, então o par
de opostos será uma Oposição Dialógica. Pode-se ainda falar de Alternância
Binária, quando os opostos de uma polaridade não coexistirem, o presente de
um implica na ausência do outro. De forma que, dependendo dos conceitos,
um mesmo conjunto de polaridades pode ter diferentes interpretações. O Livro
das Mutações (I Ching), por exemplo, é todo construído a partir da polaridade
Yin-Yang e comporta duas leituras diferentes dentro das tradições chinesas: a
taoísta (mais holística e dialética) e confucionista (mais dialógica e binária).
opostos que dá origem a vida e ao universo que não comporta
nenhuma forma de totalização ou unificação globalizante.
Aliás, talvez algumas de nossas polaridades dialéticas e
dialógicas (Vida/Morte, Bem/Mal, Ser/não-Ser) sejam também
paradoxos que nos recusamos a aceitar.

Nas mitologias pré-colombianas, os deuses gêmeos


também desempenham um papel central. Para os toltecas
mais do que deuses, o tonal e o nagual são princípios
cognitivos e realidades paralelas.

Três mil anos atrás havia um ser humano,


que vivia perto de uma cidade cercada de
montanhas. (...) Um dia, enquanto dormia
numa caverna, sonhou que viu o próprio
corpo dormindo. Saiu da caverna numa noite
de lua nova. O céu estava claro e ele
enxergou milhares de estrelas. (...)
Olhou para suas mãos, sentiu seu corpo e
escutou sua própria voz dizendo: “Sou feito de
luz; sou feito de estrelas.” Olhou novamente
para o alto e percebeu que não eram as
estrelas que criavam a luz, mas sim a luz que
criava as estrelas. “Tudo é feito de luz”,
acrescentou ele, “e o espaço no meio não é
vazio.” (...)
Então, ele compreendeu que, embora
fosse feito de estrelas, ele não era essas
estrelas. “Sou o que existe entre elas”,
pensou. Assim, chamou as estrelas de tonal
e o espaço entre os dois nagual, e percebeu
que a harmonia e o espaço entre os dois
eram criados pela Vida ou Intento. (RUIZ;
2005, 13 e 14.)

O tonal é o mundo conhecido, a realidade que


apreendemos pelos sentidos; o nagual é o mundo dos sonhos,
o desconhecido. Mas, não se trata de um dualismo
fundamental, de uma dialética ou de uma oposição dialógica.
Os princípios opostos seria, nesta concepção, um paradoxo
entre dimensões contrárias, sem totalização ou perspectiva de
uma síntese unificante. Um é irredutível ao outro.
Há sempre uma dupla realidade, uma simetria entre o
lado de dentro e o de fora do universo, o micro e o
macrocosmo. No campo filosófico há, para Platão, um mundo
sensível-concreto e outro inteligível-abstrato; uma cidade dos
homens e uma cidade de Deus para Santo Agostinho; para
Descartes, coisas extensas e objetos virtuais. Com Kant, há
uma inversão de perspectiva: a realidade deixa de ser uma
percepção e passa a ser uma interpretação. O mundo externo
se torna uma projeção estruturada do sujeito, a simetria torna-
se um reflexo invertido.

No campo religioso também há simetria, mas é o


metafísico que se reflete no físico: “assim em cima, como
embaixo” - expressão presente não apenas nas Tábuas de
Esmeralda de Hermes Trimegisto, mas presente em todas as
grandes tradições, como a chinesa (céu e a terra), a indiana (o
universo-templo e o corpo-templo), e a ocidental (o homem
como a imagem e semelhança de Deus). No renascimento, ou
melhor: no humanismo iluminista, há cruzamento desses dois
modos de representação simétricos, o filosófico e o tradicional,
em que o homem ocupa o lugar central (como na tradição
judaico cristã), mas o universo externo que enquadra e
determina a experiência subjetiva (como crê a modernidade).

Assim como Foucault derrubou o sujeito


antropomórfico das ciências humanas, Osho, Gurdjieff e
Castaneda instauram um novo paradigma no esoterismo, em
que o homem não é mais o centro do universo, mas apenas
um ser que vive em universo povoado por outros seres, em
outras ordens de evolução. É apenas um bicho entre outros
bichos e outras formas de vida, inorgânicas, que ele nem ao
menos consegue perceber. Esta consciência pós-
antropocêntrica desloca a questão da simetria para além do
homem.

Advoga-se aqui que a hipótese de que a simetria entre


a Cognição Ordinária e a Cognição Extraordinária é um
paradoxo insuperável para o qual não existe totalização ou
unificação globalizante. O Mundo e a Consciência são termos
irredutíveis desta simetria da cognição humana entendida não
como uma contradição dialética ou uma oposição dialógica,
mas sim como um paradoxo absurdo.

Isto significa reconhecer a incapacidade de solucionar


definitivamente a duplicidade da percepção e a hipótese de
sua simetria. Para as tradições, a simetria é dada como certa
(o mundo material é um desdobramento denso dos universos
sutis); para modernidade, a simetria é parcial e invertida (o
subjetivo reflete a realidade); para os pós-modernos, não há
simetria alguma (nem reflexividade entre dimensões
ontológicas paralelas: os objetos é que são duplos construídos
intersubjetivamente em plano imanente; mas, a verdade é que
não compreendemos nossa dupla cognição).

E para investigar a probabilidade desta simetria entre


o que vivemos e o que sonhamos, definimos três
demonstrações: estabelecer alguns modelos para uma
fenomenologia dos estados de consciência ordinária e
extraordinária; resumir o pensamento integral de Ken Wilber,
que sintetiza diferentes modelos teóricos e cartografias
tradicionais em uma abordagem holística; e traçar um mapa
para esta simetria hipotética entre as cognições, sem encerrá-
la em um sistema fechado.
Para pensar uma fenomenologia dos estados de
consciência partimos de uma comparação entre o atual
conhecimento científico e algumas ideias de pensadores, que
intuíram vários aspectos importantes do funcionamento
cerebral da subjetividade. A teoria dos oito cérebros, de
Timothy Leary (1961), recentemente atualizada por Robert
Anton Wilson (1987), como oito circuitos neurocerebrais.
Essas teorias dividem a cognição em duas categorias:

A Cognição Ordinária ou "o lado esquerdo do Cérebro" 20,


responsável pela cognição atual do mundo, formada por
quatro circuitos integrados: o circuito da sobrevivência (ou
a Consciência), o circuito das emoções (ou o Ego), o
circuito da linguagem (ou Mente) e o circuito sócio-sexual
(ou a Personalidade). Esta cognição é comum a todas as
pessoas e, em parte, é consciente de si e de seu contexto.
A Cognição Extraordinária ou "o lado direito do Cérebro",
formado por funções ainda adormecidas que
correspondem às nossas possibilidades de evolução: o
circuito neurosomático, o circuito neuroelétrico, o circuito
neurogenético e o circuito neuroatômico. Também é
chamada, por vários, autores, de Individualidade, em
oposição à Personalidade.

2. Cognição Ordinária

A Consciência equivale neste sistema à percepção


sensorial da realidade, que remonta à cognição dos
invertebrados, ao 'cérebro réptil' ou à capacidade de agir
instintivamente. A neurociência atual considera que essa
consciência-percepção é produzida pelo 'Arqueocortex'.

"Este cérebro invertebrado foi o primeiro a


evoluir (faz de 2 a 3 milhares de milhões de

20
Para saber tradicional, em que o (sujeito) observador é o (objeto)
observado, o racional é o lado direito e o esquerdo, o lado mais emotivo. Para
o saber científico, em que o observador é externo, a relação é invertida: o lado
esquerdo é que é o racional; e o direito, o emotivo.
anos) e é o primeiro a ativar-se quando nasce
uma criatura humana. Programa a percepção
numa espécie de codificação dividida em
coisas 'boas e nutritivas' (para as que se
sente atraído) e 'perigosas e tóxicas' (as que
evita ou ataca)." (WILSON, 1987, 1)

Assim entendida, a consciência não é algo


transcendente ou metafísico mas apenas um circuito de
informações instintivas essenciais à sobrevivência. Pode-se
dizer que a consciência é o 'ser-no-mundo'. Ela não é um
fenômeno em si, mas o espaço em que os fenômenos
acontecem, uma clareira em meio a um universo sombrio,
uma abertura pela qual vemos a realidade. É ‘Ser-aquele-que-
é’, a consciência contínua da percepção imediata do presente.
A consciência, o Ser, é a ‘lembrança de si’, como dizia o
místico armênio George Ivanovitch Gurdjieff (OUSPENSKY,
1980, 53). O Ego está sempre no passado e no futuro, a
consciência é, ao menos parcialmente21, a percepção contínua
do momento presente.

O Ego, por sua vez, corresponde ao circuito das


emoções e a uma estruturação de identidade espacial e de
uma relação de poder, de propriedade em relação ao meio
ambiente e a outros egos (alter-egos). O ego é uma estrutura
identitária territorial, em que o animal se apossa do espaço.

"Este segundo e mais avançado


biocomputador se formou quando apareceram
os vertebrados e a competição pelo território

21
Digo ‘parcialmente’ porque a Consciência além da dimensão perceptiva tem
também uma dimensão abstrata e deve levar em conta os valores que a
contextualiza. Ser consciente não é exatamente a mesma coisa que perceber-
se no mundo, mas ser no mundo e do mundo, referenciar a percepção em
valores construídos culturalmente. Alguns filósofos chamam de consciência
fenomenal à experiência da percepção, e de consciência de acesso ao
processamento das coisas que vivenciamos durante a experiência. O
desenvolvimento perceptivo da consciência se dá através do treinamento da
Atenção. O desenvolvimento ético da consciência só é possível através de
sucessivas mudanças pessoais de valores.
(talvez uns 500.000.000 A.C.). No indivíduo
este enorme túnel de realidade é ativado
quando as cintas mestras do DNA disparam a
metamorfose do arrastar-se ao andar. Como
sabem todos os pais, o menino que começa a
caminhar já não é uma criatura passiva
orientada a sobrevivência biológica, mas um
mamífero político, cheio de exigências
territoriais físicas e psíquicas, rápido em
intrometer nos assuntos familiares e nos
objetos de decisões." (WILSON, 1987, 1)

Assim, enquanto a Consciência corresponde à


sensação de estar aqui e agora em corpo orientado para a
sobrevivência animal; o Ego orientado por afetos e desafetos
é o segundo circuito sensorial mamífero do status (atualidade-
não atualidade) no grupo ou tribo. Para a neurociência é o
Paleocortex ou "cérebro límbico".

Atualmente, à identificação/negação da consciência


com as formas do mundo estrutura o que chamamos de Ego.
Dentro dessa definição, há duas formas de compreender o
ego: a oriental e a ocidental. A oriental deseja que ele seja
transcendido pela consciência. Um belo exemplo atual dessa
forma é a de Eckahart Tolle:

“O ego é um conglomerado de formas de


pensamento recorrentes e de padrões
emocionais e mentais condicionados que
estão investidos de uma percepção do Eu”
(2002, 52-53).

Para Tolle, o Ego é o eixo do tempo/horizontal (uma


sucessão de momentos – mas o passado só existe quando
nos lembramos e o futuro só existe quando nós o
imaginamos); a consciência (ou a presença, a sensação
pessoal imediata) é o eixo místico agora/vertical.

A forma ocidental (ou psicanalítica) é ternária e


descende da ideia de que temos um demônio pessoal (o eu
inferior, o instinto animal, a criança interior) e um anjo da
guarda (o eu superior, a intuição espiritual, a centelha divina);
e sua grande vantagem consiste em colocar o ego como
observador tanto em relação aos impulsos instintivos como às
demandas espirituais. Nesse modelo ternário, o Ego é um
mediador externo e não há a oposição radical entre ego e
consciência da tradição oriental.

FREUD MÉTODO PATCHWORK XAMANISMO HAVAIANO

Eu Inferior (corpo instintivo ou Unihipili


ID
criança ferida). (criança/subconsciente)

EGO Ego (auto imagem idealizada) Uhane (mãe/ consciente)

SUPER Aumakua
Eu Superior (Centelha Divina)
GO (pai/superconsciente).

A Mente, neste sistema, representa a organização do


circuito da linguagem. Ela se formou quando os hominídeos
começaram a se diferenciar dos demais primatas (uns 4-5
milhões A.C.) e é ativado quando o menino, já maior, começa
a administrar utensílios e a linguagem de forma própria.

Para Wilson, a ...

(...) "impressão desses três circuitos


determina, aproximadamente à idade de três
anos e meio, o grau e o estilo básicos de
confiança/desconfiança que coroaram a
'consciência', o grau e estilo de
truculência/sujeição que determinaram o
status do 'ego', e o grau e estilo de
perícia/deselegância por meio do que a
'mente' manejará instrumentos ou ideias."
(1987, 2)

E, assim, do ponto de vista evolutivo, a Consciência é


basicamente invertebrada, flutuando passivamente para a
alimentação e a proteção do perigo; o Ego é mamífero,
sempre lutando pelo status dentro da ordem tribal do grupo; e
a Mente é paleolítica e formadora da cultura humana e
confrontando-se com a vida através de uma matriz de
instrumentos e de simbolismos. A neurociência chama de
'Neocortex' à porção de 85% da massa cerebral que
desempenha essas funções. Pode-se dizer que o ego é
formado pela fala e a mente, pela escrita (pelo pensamento
abstrato, descontextualizado). Osho usa uma metáfora
interessante, dizendo que a Mente é um espelho, coletivo e
externo, e o Ego é nosso reflexo, circunstancial e efêmero,
neste suporte no qual nos vemos indiretamente, uma vez que
nos recusamos a olhar frente e a frente para nós mesmos
(OSHO, 2004, 62). Ambos, no entanto, mente e ego, são
estruturas identitárias construídas por nós (por nossa
consciência) através dos outros.

A 'Personalidade adulta' ou 'quarto cérebro' é, para


Leary/Wilson, a estrutura psíquica que organiza o circuito
sócio sexual, é típico do Homo Sapiens.

Este quarto cérebro se formou quando os


grupos de hominídeos evoluíram para
sociedades e programaram comportamentos
sexuais específicos para seus membros, uns
30.000 a.C. É ativado na puberdade, quando
os sinais de DNA desencadeiam a liberação
glandular de hormônios sexuais e se inicia a
metamorfose ao estado adulto. Os primeiros
orgasmos ou experiências de acoplamento
imprimem um rol sexual característico que,
novamente, é gerado de forma bioquímica e
permanece constante durante toda a vida, a
menos que alguma forma de lavagem de
cérebro ou reimpressão bioquímica o altere
(1987, 3)

Não existem, na neurociência atual, estudos científicos


sobre uma parte do cérebro específica em que este tipo de
atividade psíquica se desenvolva. Aqui se considera que a
Personalidade é um circuito de sinapses cerebrais que
coordena as relações entre a Consciência, o Ego e a Mente. A
personalidade assim entendida é também uma máscara, uma
persona, atrás da qual se esconde uma individualidade
psíquica formada pelos circuitos da cognição extraordinária.

Nos meios esotéricos chama-se de Personalidade a


este ‘eu falso’, construído a partir do medo e das exigências
da socialização, e de Individualidade ao ‘eu verdadeiro’. A
função da Personalidade é interpretar a Individualidade e não
a esconder ou reprimir. É como uma vitrine que apresenta ao
conteúdo da loja, não adianta quebrá-la ou subtraí-la, é
preciso reorganizá-la. Atores e atrizes de teatro costumam ‘se
trabalhar’ escolhendo personagens semelhantes aos de suas
personalidades, como uma forma de reinterpretá-los e superá-
los, além de lapidar a própria individualidade.

Também se pode pensar na Personalidade como os


40% da identidade pessoal que pode ser modificada (as
sinapses móveis entre os neurônios) e na Individualidade
como o que não se pode mudar (os circuitos cerebrais fixos,
que se formam ao longo da vida).

De toda forma, a Personalidade é uma estrutura


identitária construída por nós (por nossa consciência) através
do medo dos outros (o Ego) e de um espelho para nós vermos
através dos outros porque tememos olhar para nós mesmos,
face-a-face (a Mente).

3. Cinema e percepção

O místico Ramana Maharshi (1972) desenvolve uma


analogia entre cinema e percepção, em que se observa o
processo cognitivo no sentido descendente, isto é, do aspecto
mais abstrato para o concreto.

DIMENSÃO
CINEMA PERCEPÇÃO
COGNITIVA
A luminosidade acessa
A consciência
ou ausente.
A CONSCIÊNCIA
A lâmpada no interior do O Eu superior, self ou
equipamento esfera luminosa.
A lente diante da
A mente pura (sattvic) A MENTE
lâmpada
A lente, a luz que a A mente, sua iluminação e
atravessa e a lâmpada o eu superior, formam O EGO
formando a luz em foco juntos o observador ou jiva.
A luz do eu superior
A luz que atravessa a emerge da mente através
A PERSONALIDADE
lente e ilumina a tela dos sentidos e ilumina o
mundo
O fluxo das imagens A LINGUAGEM
O filme, os fotogramas
narrativas, símbolos. SIMBÓLICA
Varias formas e nomes, que
Os vários tipos de A REALIDADE
surgem como objetos
imagem na tela HOLOGRÁFICA
percebidos a luz do mundo.
REALIDADE
Projetor de filmes Corpo
EXTERIOR

Em um primeiro momento, a consciência é a


percepção. Representa a luz que sera projetada sob
diferentes objetos. Se prestarmos atenção ao que vemos, os
olhos se iluminam; se buscarmos perceber os sons, a
consciência se focara em nossa capacidade auditiva; e assim
por diante. Nesta analogia, a consciência e um brilho que se
desloca segundo nossa percepção seletiva.

Assim, como a luz é produzida por uma lâmpada, a


consciência é produzida por um suporte, de uma esfera
luminosa, o Self, Eu superior ou centelha divina. Chama-se
aqui, esse suporte de Cognição Extraordinária. E esta é o
segundo momento da comparação de Mararshi.

O terceiro momento desta analogia consiste na lente


que a luz da lâmpada transpassa na projeção de um filme e a
mente coletiva e externa por onde consciência do Self passa
ao perceber as diferentes dimensões (racional, sentimental,
sensorial) da realidade. A mente aqui não é individual, e sim
um filtro social, culturalmente construído. Os fotogramas do
filme projetado no cinema correspondem às variadas formas
mentais (arquétipos, memorias, imagens) que formam o
pensamento – na quarta etapa da analogia. Aqui surge o Ego,
a interpretação individual do pensamento coletivo e externo ao
processo cognitivo, a narrativa do passado e as esperanças
futuras.

No quinto passo da analogia de Maharshi, no entanto,


surge a comparação entre a projeção do filme e o
"Observador", isto e, um eu-foco formado para observar o
pensamento, a mente e as percepções da consciência.

Este observador é um determinado enquadramento


autoconsciente que criamos para nos tratar na terceira pessoa
e existe em várias meditações. Nesse ponto também se pode
localizar a Personalidade – uma vez que apenas uma minoria
observa ao próprio filme, preferindo simplesmente projetá-lo.
Portanto, desenvolver um 'Observador' ou uma Personalidade
vai depender do descondicionamento da consciência em
relação ao Ego e à Mente.

No sexto nível da analogia percebe-se que realidade


é semelhante a projeção das imagens na tela do cinema. A
diferença e apenas no modo de representação: no cinema as
imagens são projeções bidimensionais; e a realidade é
holográfica e solida. Mas, também, tanto no cinema como na
percepção, há vários tipos de imagens segundo uma
variedade de fatores. As imagens de referencias externas
(sensoriais, mentais, emocionais); há imagens produzidas pela
memoria, outras pela imaginação. O sétimo nível da
percepção, então, é a interpretação seletiva das imagens, em
que classificamos involuntariamente os diferentes itens de
nossa percepção.

E finalmente, há o mecanismo responsável pela


projeção das imagens, a máquina ou o corpo. Este
mecanismo recebe as imagens automaticamente e não tem
consciência plena de seu significado. Chama-se aqui essa
instância de espaço exterior.

O importante nessa analogia entre cinema e


percepção é visualizar o processo cognitivo ordinário (e seus
quatro elementos) em seu conjunto.

4. Cognição extraordinária

Esses modelos são apenas algumas das várias


fenomenologias dos estados de consciência possíveis.
Estudando várias tradições religiosas diferentes, Ken Wilber
(2006, 272-273) oferece um modelo de analogia universal das
fenomenologias quaternárias, a partir das categorias de corpo,
mente, alma e espírito. Também há estruturas ternárias de
cognição, que são um pouco menos 'platonizadas'.
Gurdjieff afirma que a personalidade é construída
horizontalmente através do tempo e a individualidade, pela
experiência vertical da eternidade.

Horizontalmente, somos todos iguais, nivelados pela


morte; porém, há alguns que vivem o presente de modo mais
profundo. Os animais vivem suas vidas horizontalmente,
apenas alguns homens, ao entrar em contato vertical com a
eternidade, adquirem uma alma (OUSPENSKY, 1980, 89).
Nessa perspectiva, o homem só constrói uma individualidade
quando ativa os circuitos neurocerebrais da cognição
extraordinária. Conhecendo a si mesmo, "somos mais e mais
capazes de acelerar nossa própria evolução" - acredita
Wilson, propondo que enquanto os quatro circuitos do lóbulo
esquerdo (Consciência, Ego, Mente e Personalidade) contêm
as lições aprendidas de nossa biografia e presentes (pessoal
e coletivo); os quatro circuitos do lóbulo direito
(Neurosomático, Neuroelétrico, Neurogenético e
Neuroatômico) é um verdadeiro anteprojeto evolutivo de nosso
futuro.
O circuito neurosomático entra em atividade quando
o sistema nervoso percebe sua capacidade de lúdica e
compreensiva. Este "quinto cérebro" surgiu faz uns 4.000 anos
nas primeiras civilizações do ócio. Quando ativado, este
circuito produz uma conexão hedonista, uma diversão
extática, um desapego de todos os anteriores mecanismos
compulsivos dos primeiros quatro circuitos. Leary achava que
essa sensação, no momento evolutivo adequado,
desencadearia uma mutação neurosomática ou uma
desprogramação nos mecanismos de manutenção da
Cognição Ordinária. Também se pode associar esta auto
percepção somática como um estado propiciar de
regeneração orgânica, quando entramos em um estado de
consciência que "nos cura" através da compreensão e da
adaptação às situações.

Já o circuito neuroelétrico entra em atividade quando


o sistema nervoso descobre sua função de meta
programação, atuando como um tradutor universal das
linguagens ao um padrão binário de uma linguagem primária.
Enquanto o circuito neurosomático havia uma mudança de
comportamento pela adaptação passiva, a cognição
neuroelétrica é propositiva e há uma mudança existencial por
reprogramação ativa. Para Leary ...

" (...) o sexto cérebro consiste no sistema


nervoso sendo consciente de se mesmo,
independentemente dos mapas de realidade
impressos cognitivamente (circuitos I-IV), e
até mesmo independentemente do êxtase
corporal (circuito V) e suas características (...)
são: a simultaneidade, a eleição múltipla, a
relatividade e a fusão instantânea de todos os
sentidos em universos paralelos de
possibilidades alternativas."
O circuito neurogenético é ativado quando o sistema
nervoso começa a receber sinais do interior da genoma
individual, por meio do diálogo DNA-RNA. Aqui o Ser se torna
consciente de seu Destino. Para Leary, esta mutação leva a
diferentes tipos de experiências "fora do corpo": "recordações
de vidas passadas", "projeções astrais", etc. Wilson associa
esse circuito ao "inconsciente coletivo" de Jung e ao
"inconsciente filogenético" de Groff e Ring.

E o circuito neuroatômico é ativado quando o sistema


nervoso é percebe sua fonte de energia quântica, a luz e a
idéia de espaço-tempo são eliminadas. A barreira einsteiniana
da velocidade da luz é transcendida e escapamos da
realidade eletromagnética das coisas e dos objetos para viver
em um universo relacional. Para Leary, a "consciência
atômica" é a conexão explicativa máxima do homem, que no
futuro unirá a parapsicologia e a metafísica na primeira
teologia científica, empírica e experimental da história. E para
Wilson, "o 'cérebro' cósmico inteiro micro-miniaturizado na
hélice do DNA, é a inteligência local guiando a evolução
planetária." Ou como disse Lao-tse: 'O maior está dentro do
menor'.

Neste modelo quaternário, portanto, a cognição


ordinária é composta por quatro circuitos neurológicos
(Consciência, Ego, Mente e Personalidade) e a cognição
extraordinária é construída, hipoteticamente, por quatro
circuitos sinápticos (neurosomático, neuroelétrico,
neurogenético e neuroatômico). E cada circuito extraordinário
corresponde ao desenvolvimento de um circuito da cognição
ordinária.
O modelo esboçado a partir das ideias de
Leary/Wilson é semelhante ao modelo biográfico da
Antroposofia de Rudolf Steiner (BURKHARD, 2000), em que a
Personalidade se forma no primeiro período (0-21),
geralmente se mantem equilibrada com a Individualidade no
segundo (22-42) e começa a ser desconstruída no terceiro
período (43-63). Aos 42 anos, há a possibilidade de construir
uma alma imaginativa (ou manas) a partir do corpo astral (ou
de reconstruir os aspectos emocionais da personalidade
construídos na adolescência); aos 49 anos, há possibilidade
de desenvolver uma alma inspirativa (ou buddhi) a partir da
mente (ou de repensar os aspectos morais adquiridos dos
sete aos 14); e aos 56, há possibilidade de formar uma alma
intuitiva (ou atma) a partir do corpo vital (ou de reviver os
aspectos mais profundos da formação da personalidade,
moldados durante a primeira infância). Há um espelhamento
dos três aspectos (motor, mental e emocional) da
Personalidade entre a primeira e a última das etapas da vida.

Ao invés do desabrochar potencial de várias almas a


partir dos diversos corpos esotéricos, pensa-se agora em
termos de desenvolvimento de circuitos cerebrais da
consciência e da reforma da Personalidade. Mas trata-se
apenas de uma diferença de linguagem.

O importante é a consciência das etapas e fases da


vida, das crises etárias e possibilidades de mudanças pelas
quais todos passam. E, é claro, das estratégias de
desenvolvimento e objetivos de vida que traçamos para cada
situação.
Personalidade Individualidade
(Cognição Ordinária) (Cognição Extraordinária)
o circuito da sobrevivência (ou a o circuito neuroatômico
Consciência) Corpo Físico Espírito
o circuito das emoções (ou o Ego) o circuito neurogenético
Corpo Vital ou duplo etéreo (00-07) Alma Intuitiva ou Atma(56-63)
o circuito da linguagem (ou Mente) o circuito neuroelétrico
Veículo Mental (07-14) Alma Inspirativa ou Buddhi (49-56)
o circuito sócio sexual (ou a o circuito neurosomático
Personalidade) Corpo Astral (14-21) Alma Imaginativa ou Manas(42-49)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BURKHARD, Gudrun. Tomar a vida nas próprias mãos - Como
trabalhar a própria biografia o conhecimento das leis gerais do
desenvolvimento humano. São Paulo: Editora Antroposófica, 2000.
LEARY, Timothy. As sete línguas de Deus. New York: Thompson
and Brothers,1961.
TOLLE, Eckhart. O Poder do Agora – um guia para iluminação
espiritual. São Paulo: Editora Sextante, 2002.
OUSPENSKY, P. D. Fragmentos de um ensinamento
desconhecido - Em busca do milagroso. Coleção Ganesha. São
Paulo: Pensamento, 1980.
OSHO Osho de A a Z – um dicionário espiritual do Aqui e Agora.
Tradução de Carlos Irineu Costa. Rio de Janeiro: Editora Sextante,
2004.
RUIZ, Miguel. Os Quatro compromissos. Rio de Janeiro: Best
Seller, 2005.
WILBER, Ken. Espiritualidade Integral – uma nova função para
religião neste inicio de milênio. Tradução Cássia Nassser. São
Paulo: Alef, 2007.
WILSON, Robert Anton. Os sete cérebros de Leary. Fragmento de
texto na internet, tradução anônima, original datado de 1987.
O MODELO WILBER

O pensamento integral de Ken


Wilber representa um passo a frente,
tanto em relação ao movimento holístico,
quanto do pluralismo relativista
intersubjetivo dos pensadores pós-
modernos, sejam eles acadêmicos (como
Foucault e Deleuze), ou esotéricos (como Castaneda, Osho e
Gurdjieff).

1. Complexidade holoquarquica

O ponto de partida de Ken Wilber é a necessidade de


um único modelo teórico que dê conta de todos os fenômenos:
a teoria de tudo. Porém, de uma perspectiva diferente da dos
físicos, que, na verdade, aspiram a construir uma 'teoria do
todo' monológica e não uma teoria de tudo, capaz de descer a
cada domínio específico do conhecimento humano sem perder
a visão de conjunto.

Aliás, para Wilber, não há um único universo subdivido


em partes conexas, nem uma complexidade múltipla sem
totalização ou síntese possível, mas um Kosmo (com 'k' em
uma referência a noção dos gregos) formado por vários
'holons' (todos-partes) hierarquizados, com uma totalidade
sendo parte de outra totalidade em uma escala superior: holon
atômico, holon molecular, holon orgânico, holon planetário. A
essas hierarquias sistêmicas, Wilber chama 'Holoquarquias' e,
ao conjunto dessas redes ontológicas, “a grande Cadeia do
Ser e do Saber”.
Para cartografar as holoquarquias, Wilber elabora um
complexo castelo de conceitos, cruzando várias teorias e
abordagens de diferentes domínios. É um modelo complexo
que combina diferentes teorias e outros modelos. Wilber o
considera um mapa e lembra que “não devemos confundir o
mapa com o território”, que o modelo é apenas uma tentativa
de enquadrar e pensar a realidade como uma fisicalidade
complexa, que sempre nos escapa.

O modelo de Ken Wilber ou IOS (do inglês Integral


Operating System) surge do cruzamento e analogia de vários
outros modelos e abordagens, e são focados nos vários
aspectos da psicologia do desenvolvimento. Os elementos do
modelo são os seguintes:

a) Os Estados de consciência são realidades subjetivas. A


vigília, o sonho e o sono profundo. Wilber acredita que o
desenvolvimento desses três estados universais da
consciência humana corresponde, em várias mitologias
tradicionais, estados de consciência superiores (à
experiência dos corpos físico, sutil e causal) e acrescenta
ainda a experiência de um quarto estado de consciência
superior: a não-dualidade.
b) Níveis são “qualidades emergentes relevantes em modo
discreto”. Wilber estabelece três: pré-convencional (ou
egocêntrico), o convencional (ou etnocêntrico) e o pós-
convencional (ou globocêntrico). Os níveis são graduações
em uma escala vertical que podem ser subdivididos em
unidades menores. No sistema de chackras, por exemplo,
os três primeiros (alimento, sexo e poder) correspondem ao
egocêntrico; os dois centrais (a comunicação e o 'coração'),
ao convencional; e os dois superiores (o psíquico e o
espiritual), ao globocêntrico.
c) Os níveis são detalhados nos Estágios (ou vMemes) da
Espiral Dinâmica (ou Spiral Dynamics Integral – SDI), um
modelo em que os diferentes estágios de desenvolvimento
psicológico, formando um espectro da consciência. Esse
modelo (baseado nos trabalhos de Clare Graves, Don Beck
e Richard Cowan) adota as cores como fundamento de
diferenciação entre os estágios de desenvolvimento pessoal,
para evidenciar seu caráter transitório, não-fixo.
Além dos Estados (horizontais) e dos Níveis/Estágios
(verticais), seja da SD ou de outras escalas, o modelo de
compreensão do desenvolvimento da consciência proposto
por Wilber têm uma terceira dimensão, as Linhas (ou
profundidade).

d) Há ainda várias Linhas de Desenvolvimento (ou


inteligências múltiplas do sentido de Gardner), em que
Wilber adota várias abordagens específicas, incorporando
diferentes abordagens e autores: moral, afetiva,
interpessoal, de necessidades, estética, psicossexual, de
valores, espiritual e cognitiva (2006, 133).
e) A categoria de Tipo ou de tipologias horizontais é adotada
por Wilber para diferenciar a percepção individual do mundo,
e pode ser utilizada de vários modos. Pode-se utilizar os 9
tipos do eneagrama, os 16 tipos de Jung ou 4 de Myers-
Birggs. Wilber ressalta a clivagem por gênero. Mas também
se podem considerar as clivagens sociais de faixa etária,
classe social, nível de escolaridade, renda, etc.
f) O mais importante elemento do castelo teórico de Ken
Wilber é a noção de Quadrantes. O Modelo dos Quadrantes
consiste em tomar as coisas simultaneamente em quatro
dimensões analíticas: o individual subjetivo ou 'eu' (a
mente); o individual objetivo ou 'ele' (o cérebro), o coletivo
subjetivo ou 'nós' (a cultura); e, finalmente, o coletivo
objetivo ou 'eles' (a sociedade).

Assim, se tomarmos um determinado holon como


objeto, a família x, por exemplo, teremos que enquadrá-la em
quatro perspectivas: as pessoas (a história individual) e os
papeis que desempenham (pai, mãe, filho, etc) – primeiro
quadrante; o aspecto genético e a estrutura hereditária –
segundo quadrante; a relação da família x com outras famílias
semelhantes em diferentes aspectos – terceiro quadrante; e,
finalmente, as relações econômicas, políticas e sociais da
família x: como esse holon famíliar se encaixa na sociedade
como um todo, o holon hierarquicamente superior.
Essa perspectiva quádrupla, ou ‘perspectiva integral’,
reduz bastante a possibilidade de enfoques reducionistas e
tem várias vantagens, em relação às perspectivas tradicionais,
modernas e pós-modernas. A abordagem integral pretende
integrar a metafísica subjetiva das tradições à objetividade
moderna e à contextualização interpessoal pós-moderna em
um único enfoque. Além disso, o modelo dos quadrantes
também coloca a questão da assimetria entre o individual e o
social.

Assimetria em dois sentidos.

Primeiro: se aplicarmos as linhas, estágios ou níveis a


cada quadrante, se observam que as diferentes etapas de
desenvolvimento dos indivíduos não correspondem às etapas
de desenvolvimento das sociedades, grupos ou outros
coletivos, ou que, as abordagens que fazem essas
associações, ressaltam os aspectos parciais e simplificam
processos complexos em função da analogia.

Mas, também existe uma assimetria entre singular e


coletivo, resultante da aplicação do modelo dos quadrantes a
ele mesmo. Nesse caso, Wilber apresenta a distinção entre o
Quadrante simples, a perspectiva do sujeito, e o
Quadrivium, perspectiva de onde se olha o objeto. “Apenas
os holons individuais têm ou possuem quatro quadrantes; mas
tudo pode ser visto através ou a partir de quatro quadrantes
(que, então, são denominados quadrivia).” (2007, 316)

Segundo Wilber, os holons individuais passam por


estágios obrigatórios (como a Espiral Dinâmica), os holons
sociais, não. Também não há uma cognição centralizada nos
holons sociais. Em um ‘sistema-organismo’ (holon individual)
há um mônada dominante, e nos holons sociais há, no
máximo, um discurso dominante (ou um modo predominante
de ressonância mútua).

É a conhecida crítica do Nickas Luhmann a Umberto


Maturana e Francisco Varela (p. 189): “a sociedade não é um
sistema”. O 'Nós', a cultura, é uma subjetividade coletiva, mas
não é um super eu coletivo – nem no homem, nem em outros
animais gregários. Um exemplo interessante é o de Gaia (a
terra vista como ecossistema) não é um único organismo, é
um clube (p. 223) ou um conjunto de redes de seres orgânicos
e inorgânicos. Tal concepção dá destaque (como Luhmann) à
ideia de comunicação, como o fator constitutivo dos sistemas
cognitivos sobre os quais os holons sociais se estruturam.

Todo castelo conceitual construído por Wilber é um


mapa da complexidade, um modelo para localizar e
compreender fenômenos de múltiplos aspectos e perspectivas
da psicologia do desenvolvimento.

Por exemplo: Wilber cruza as Linhas com os Níveis,


obtendo um psicográfico de desenvolvimento com cinco linhas
cognitivas (afetivo, cinético, lógico abstrato, moral e
linguístico) e três estágios de desenvolvimento
(preconvencional, convencional e posconvencional). Assim,
um determinado indivíduo pode se encontrar em um nível pré-
convencional do ponto de vista afetivo (imaturidade) e
linguístico, e em um nível pós-convencional do ponto de vista
de seu desenvolvimento lógico abstrato.
Ou ainda, o cruzamento entre Estados e Estágios. Os
estágios de consciência são permanentes, marcos do
desenvolvimento em uma escala vertical (“o sujeito de um
estágio se torna objeto do estágio seguinte”) e, como vimos,
podem ser representados de várias formas. Os estados de
consciência são 'horizontais'. Quando se trata de estados de
consciência comuns, são cíclicos e os estados de consciência
superiores são eventos passageiros. Pode-se, assim, ser uma
pessoa culturalmente atrasada (preconceituosa, moralista) e
se alcançar estados elevados de consciência mística; como
também se pode ser uma pessoa bastante desenvolvida em
vários aspectos éticos e cognitivos; e não se conseguir
experimentar transes espirituais.

Em nosso caso em particular, estamos interessados


em observar como a metodologia integral nos ajuda a
entender a simetria cognitiva.

2. A simetria elevada ao quadruplo

Uma das vantagens do modelo dos quadrantes é uma


reinterpretação dos esquemas tradicionais, que colocam o
mundo material como “um reflexo dos mundos superiores” (a
mente, a alma e o espírito são anteriores ao corpo). Para
Wilber, a “matéria é exterior e não inferior” às dimensões
subjetivas. Para as tradições, a simetria não é hipotética, mas
sim metafísica; e Wilber tenta inverter essa predominância do
subjetivo sobre o material, estabelecendo sua equivalência e
diferenciando suas dimensões individual e coletiva. Coloque-
se, por exemplo, a questão da simetria cognitiva como um
conflito entre a realidade sensorial e o sonho.
O xamã mexicano Don Miguel Ruiz (2005), no
entanto, diz que sonhamos o tempo todo. Quando estamos
acordados, nosso sonho tem um enquadramento perceptivo, a
realidade, mas nossos pensamentos e sentimentos, todo
sistema de crenças de nossa sociedade, fazem parte da
atividade onírica, sendo que de forma coletiva. Segundo Ruiz,
há, assim, dois sonhos em desenvolvimento: o sonho coletivo
que chamamos de realidade – “o tonal, a primeira atenção,
sonho do inferno ou o sonho da vítimas” – e o sonho dos
guerreiros, um sonho alternativo de realidade - “o nagual, o
sonho da segunda atenção”, o invisível.

Para Miguel Ruiz (em consonância com os autores do


esoterismo pós-moderno: Osho, Castaneda, Gurdjieff), somos
“domesticados através do medo”, nos tornamos escravos das
expectativas alheias e de nossas próprias exigências. Medo
não simplesmente de ser punido ou morto, mas principalmente
de ser rejeitado, de não ser amado. A sociedade destrói nossa
autoconfiança e nos ensina a confiar nas instituições e no
sistema de crenças. A própria sociedade nada mais é que uma
crença que depende de outras e toda sua estrutura é auto
hipnótica. Com a socialização, se perde a confiança, se adota
crenças e se elaboram máscaras para esconder nossa
intimidade dos outros.

E mais: o sistema de crenças é uma estrutura parasita


de energia. Para ele, vivemos em um sonho coletivo que nos
aliena de nossas vidas e nos mantêm cativos em uma
realidade virtual. Somos prisioneiros uma ‘Matrix’ formado por
nossas crenças e valores.
Para Ruiz, é preciso retomar nossa capacidade de
sonhar, libertando nosso sonho pessoal do sonho coletivo do
medo de exclusão, sonho de domesticação social engendrado
pela sociedade humana; e também é necessário, em conjunto
com outros sonhadores consciente, compreender e
transformar esse sonho social de destruição planetária, dando
um salto evolutivo de grandes proporções para consciência
humana. O sonho do medo coletivo só poderá ser
transformado com grande número de sonhadores que
desejem a liberdade pessoal. Ruiz acredita que podemos
romper com o sonho social de medo tecendo um novo sonho:
“o paraíso ou o sonho da segunda atenção”.

Transpondo essas ideias para a linguagem de Wilber,


poderiamos dizer: vários novos sonhos individuais e subjetivos
(do primeiro quadrante) podem alterar o sonho coletivo e
objetivo (do quarto quadrante)? Ou ainda, afirmar na
linguagem de Leary/Wilson que quando um número
significativo de consciências se perceberem como luz (circuito
neuroatômico), a relação de nossa espécie com o planeta e
com a vida (o sistema neurosomático humano com o meio
ambiente) se modificará.

SUBJETIVO OBJETIVO

1. Consciência - eu
INDIVIDUAL 2. Ego - circuito neurogenético
quântico

3. Mente - circuito 4. Personalidade - circuito


COLETIVO
neuroelétrico neurosomático

Se o modelo teórico integral de Wilber, por sua


abrangência e complexidade, permite encontar pontos comuns
entre diferentes autores, ele também aponta diferenças e
recoloca a questão da simetria em termos de uma inversão
interior/exterior do esquema tradicional: para Ruiz, o
pensamento xamanico e as tradições em geral, a “Verdade
está na segunda atenção, no nagual”; enquanto para
Leary/Wilson e o pensamento científico, a cognição
extraordinária é apenas uma possibilidade virtual de
desenvolvimento.

No modelo Leary/Wilson, o 1º quadrante representa a


Consciência (a percepção do universo material) e a
possibilidade de desenvolvimento de um circuito
neuroatômico, ou uma Consciência Quântica (percepção do
universo como energia). Esta oposição corresponde também
às noções de Tonal (mundo dos objetos e das coisas, em que
a matéria é uma partícula) e Nagual (universo de energia, em
que a matéria é uma onda). O 2º quadrante representa o Ego
(a identidade estruturada a partir do Outro) e a possibilidade
de desenvolvimento de um circuito neurogenético (e de
reeducação das tendências genéticas e hereditárias). O 3º
quadrante representa a Mente e a possibilidade de
desenvolvimento de circuito neuroelétrico (o que significa
mais autonomia interpessoal). E, o 4º quadrante representa a
Personalidade e a possibilidade de desenvolvimento de um
circuito neurosomático (o que equivale à relação da espécie
humana com a vida orgânica e com o meio ambiente).

Posta no quarto quadrante, a Personalidade não é


apenas a identidade cognitiva mais externa, mas também,
uma estrutura coletiva, uma tipologia produzida socialmente. A
personalidade é produto social. E a reforma da personalidade
e o despertar de uma identidade neurosomática implicam na
combinação de esforços coletivos, individuais, objetivos e
subjetivos.

3. O salto quântico

Assim, o modelo de Wilber aponta que esse salto


evolutivo da consciência para centelha divina (no primeiro
quadrante) e do papel da humanidade em relação ao planeta
(no quarto quadrante) implica também em mudanças
estruturais em nossa cultura intersubjetiva (na formação do
ego no segundo quadrante) e na ampliação responsável da
individualidade objetiva (da reprogramação coletiva da mente
no terceiro quadrante).

Investigando simultaneamente os quatro quadrantes,


Wilber considera que estamos fazendo a passagem do nível
convencional para o pós-convencional, baseado na
coordenação não arbitrária das relações, em que seja possível
uma desregulamentação, em que as diferenças e as
pluralidades possam ser integradas em fluxos naturais
interdependentes. O nível convencional é democrático,
comunitário, ecológico. Chega a decisões através do
consenso em debates intermináveis. Valores fortemente
igualitários, anti hierárquicos e pluralistas, construção social
da realidade, diversidade, subjetivismo, multiculturalismo,
sistemas de valores relativistas; esta visão do mundo é
designada por Wilber de ‘pluralismo relativista’.

No nível pós-convencional, o igualitarismo é


complementado com graus naturais de hierarquia e de
excelência. O conhecimento e a competência devem tomar o
lugar do poder, do estatuto ou da sensibilidade grupal. As
principais prioridades são a flexibilidade, a espontaneidade e a
funcionalidade. A grande dificuldade da passagem do nível de
relacionamento convencional para o pós-convencional é a
questão da autoridade. No paradigma convencional, a
autoridade é eleita e, no paradigma pós-convencional, ela é
natural e técnica (embora reconhecida por todos). A
dificuldade em distinguir as hierarquias sociais impostas das
hierarquias naturais (ou holarquias, como chama Wilber) é que
nos impede de entrar em um nível pós-convencional.

Além dos níveis, Wilber analisa a escala dos estágios


(a SDI) nos quatro quadrantes e chega algumas observações
interessantes. A SDI é um processo emergente, oscilante e
marcado por uma progressiva subordinação de sistemas de
comportamento mais antigos e de ordem inferior a sistemas
mais recentes, de ordem superior, que ocorrem à medida que
os problemas existenciais se alteram. Ela tanto serve para
humanidade como um todo (no sentido evolutivo e no sentido
de estrutura social atual) como para o desenvolvimento
individual (biográfico e de níveis de percepção). E cada um
dos quadrantes tem agentes em diferentes estágios da escala.
Por exemplo: há pessoas no estágio amarelo em países no
estágio laranja.

Wilber faz projeções sobre quantas pessoas se


encontram em cada estágio atualmente: no estágio arcaico
(bege) 0,1%; no estágio animista (púrpura) 10%; no
imperialismo feudal (vermelho) 20%; no estágio mítico (azul)
40%; na modernidade (laranja) 30%; e no estágio pós-
moderno (verde) 10%.
Estágio Aprendizado Pensar Valores Motivação

Bege Ambiente Instintivo Sobrevivência Imediata

Purpura Tribal Mágico Étnicos Segurança

Vermelho Grupal Egocentrico Poder Dominação

Azul Social Absoluto Universais Verdade

Laranja Cultural Materialismo Científico Riqueza

Verde Comunitário Relativo Cooperação Liberdade

Amarelo Existencial Integral Aceitação Autonomia

Coral Complexo Holístico Espiritual Integração

Nesta perspectiva, as ondas bege e púrpura


representam comportamentos 'egocêntricos pré-
convencionais', avessos às regras e instituições sociais; as
ondas vermelha e azul representam (60% da população
mundial) os dois comportamentos 'etnocêntricos
convencionais', de imposição e conformidade com as regras; e
as ondas laranja e verde (30%) correspondem a aos
comportamentos 'mundicêntricos pós-convencional'
consciencioso e individualista.

Segundo Wilber (2002, 20-24), estamos em um


momento de crescimento da onda verde e próximo de salto
para um pensamento de segunda ordem, a onda amarela.

O pensamento esotérico pós-moderno (o estágio


verde) se localizam principalmente no primeiro e quarto
quadrantes, priorizando a consciência-percepção, o
descondicionamento e a atitude ecológica como fatores para
um 'salto quântico'; e, consequentemente, secundarizando o
segundo e terceiro quadrantes ou os fatos de que para
reformar o Ego é preciso reestruturar nossa memória genética
sobre medo e sobrevivência (por exemplo: como educar as
crianças? Se as domesticamos através do medo, porque não
a educação? O pensamento pós-moderno prefere culpar a
estrutura familiar e não a instituição escolar. Como também,
para modificar a Mente coletiva, é preciso entender o papel
estratégico das drogas (das substâncias psicoativas) e das
redes de computadores na sociedade contemporânea. Só
compreendendo esses dois pontos é possível produzir
indivíduos e grupos com mais autonomia sistêmica e menos
dependência entre si e tornar o salto quântico da consciência
uma realidade.

O pensamento tradicional, ao inverso do esoterismo


pós-moderno, se enraizava justamente no segundo e terceiro
quadrantes: a) na formação do ego pela educação religiosa
como uma mediação entre o instinto e o espírito; e b) nas
imagens e narrativas míticas como mediações das
comunidades com o sagrado. Em contrapartida, as tradições
neglicenciam o primeiro e o quarto quadrantes: a liberdade
pessoal e a justiça social (no sentido, de aceitar e promover
mudanças estruturais históricas voltadas para diminuição das
desigualidades sociais). Nada mais lógico, do que o
pensamento esotérico contemporâneo se coloque e
desenvolva justamente nesses espaços negligenciados pela
tradição. Porém, a ocupação destes espaços negligenciados
teve como consequência, a rebaixamento dos quadrantes
onde a tradição era mais forte: a educação e a cultura.
Agora, no entanto, chega a hora do pensamento
contemporâneo ocupar os quatro quadrantes
simultaneamente, entrando no 'estágio amarelo'.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LEARY, Timothy. As sete línguas de Deus. New York: Thompson
and Brothers,1961.
RUIZ, Miguel. Os Quatro compromissos. Rio de Janeiro: Best
Seller, 2005.
WILBER, Ken. Espiritualidade Integral – uma nova função para
religião neste inicio de milênio. Tradução Cássia Nassser. São
Paulo: Alef, 2007.
____O Paradigma Holográfico e Outros Paradoxos. São Paulo:
Cultrix, 1991.
____O Espectro da Consciência. São Paulo: Cultrix, 1996.
____Transformações da Consciência. São Paulo: Cultrix, 1999.
____O Projeto Atman: Uma Visão Transpessoal do
Desenvolvimento Humano. São Paulo: Cultrix, 2000.
____Uma Breve História de Tudo. São Paulo: Via Óptima, 2002.
____Psicologia Integral: Consciência, Espírito, Psicologia,
Terapia. São Paulo: Cultrix, 2002.
____Teoria de Tudo – uma visão integral para os negócios, a
política, a ciência e a espiritualidade. Tradução Denise de C.
Rocha Delela e Rogério Tadeu Correa de Leão Lima. São Paulo,
Cultrix, 2003.
WILSON, Robert Anton. Os sete cérebros de Leary. Fragmento de
texto na internet, tradução anônima, original datado de 1987.

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