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O NEGRO E A CONSTITUICAO DE 1824 Professor Pauto Epuarno CanraL Atentando-se que a primeira Constituigao do Brasil — de maior vigéncia até hoje, regea todo o perfodo no qual se deseavolveram as sucessivas medidas modificadoras da situagSo do negro (desde a lei de 7 de novembro de 1831, até a lei que aboliu a escravidio), justifica-se o exame da posigao do negro, sob @ enfoque constitucional, Essa anélise 6 possivel, partindo-se, principalmente, das omissées ou ambi- giiidades contidas na Carta, e nfo de referéncias explicttas ao negro, ‘Tal fato & conseqiiéncia de, na época, a grande maioria dos negros ser escrava, Dessa maneira, por ter-se eivado nos preceitos liberais em voga, seria incoerente nossa primeira Carta Magna apresentar os termos “escravo”, em um Titulo especial, ou “negro”, no Titulo dos Cidadios Brasileiros, de onde, os negros, parcela significativa de nossa populagao, terem sido postos quase que 4 margem do texto constitucional, Assim, 6 preciso buscar, nos artigos que expressam disposigdes gerais, os subsidios para nosso estudo. Aqui, deve anotar-se o estatuto juridica especial do escravo: a um tempo pessoa, a outro propriedade. Deve registrar-se, também, 70 REVISTA DE INFORMACAO LEGISLATIVA a extensa legislagdo reguladora da vida dos mesmos. Logo, ndo podemos perder de vista tais fatores. O Titulo If, referente 2 cidadania, no art. 6%, ao determinar quem é cidadio brasileiro, aborda diretamente o negro, quando, em seu § 19, dispée: “Qs que no Brasil tiverem nascido, quer sejao ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, huma vez que este nio resida por servigo de sua Nagio.” Encontramos um estigma considerivel ja neste caso. O “ingénuo” 6, segundo Moraes, o filho de liberto (+), Entiéo, o individuo preto, filho de pais livres, sendo conceituado por “ingénuo” ndo pode desvincular-se do passado de seus ancestrais escravizados. Ea escravidio, ainda que uma lembranga para o preto livre, estard sempre associada a ele. “Lihertos” sin os que, tendo nascida eseravos, de alguma forma obtiveram a liberdade (2). Cabe, neste ponto, uma ressalva: a Ord., L, 49, Tit. LXIIL, dispée sobre a revogagae de alforrias por ingratidao, quer por no cumprimento de cl4usulas estabelecidas para a doagio da liberdade, quer pelo fato de libertos causarem prejuizos a seus ex-senhores ete. E sabido que a alforria, concedida pelos senho- res, era a forma mais usual de os escravos obterem sua liberdade. Nesta medida, até 1871 (quando a Ord., L. 4°, Tit. LXII, foi derrogada pela Lei n? 2.040), o cidadio brasileiro preto liberto corria o risco de perder sua cidadania, a0 ser revogada sua liberdade. Assim, a incluso do liberto na categoria cidadio é, de certa forma, precdria, uma vez que nao havia garantias legais para a manutengdo- da liberdade concedida, HA outro Angulo da questio que deve ser examinado. Os negros nascidos fora do Brasil, embora libertos, nfo eram cidadios. Ora, o africano, ao ser esera- vizado, nao optava por seu destino. Uma vez fixado em torras brasileiras, como escravo, na auséncia de alternativas, arraigava-se ao lugar. Se, eventualmente, viesse a liberdade, esse africano nfo tinha direito a cidadania. Entretanto, sua permanéncia em nosso territério, ¢ sua integragdo a nossa sociedade, era quase inevitavel, fosse pela falta de recursos para sair do Império, fosse pela decultu- raglo que se tinka processado. Portanto, parece carecer de bases racionais 2 exclusio dos negros nascidos em Africa, da categoria de cidadios brasileiros. Evidencia-se, destarte, que 0 acesso ao exercicio da cidadania foi bastante limitado para o negro, durante u Inpério; apenas reduzida pacvela da populagio negra atingiu esse status, Observe-se, ainda, que, além dessas dificuldades, 0 (2) tnateso, = nahn, entre ow ltinos, orm ogo de pal Wow, ou, Cldaato Romano, Discos, Ho) de “Lineus “Portupueas, computio, D. Rafael Bluteau, © uccrescentade por ‘Bhvonto de Mornes w lve, Tasbou, 1760." (2 Lanerio 2 aa. do ‘tun Libertini, entre 98 romsnos,sntigoe, 9 tiho do Uberto; de saute, pile ae forma Paid, Teed. Vib, 38 JANEIRO A MARGO — 1974 n exercicio da cidadania era expressamente restringido para os libertos, simples yotantes, porquanto, mesmo auferindo a renda rogulamentar para eleitor, eram impedidos de serem eleitos a quaisquer cargos, conforme o § 2° do art. 04. Certamente, os temores do “haitianismo” embasavam a exclusio do liberto, egresso do cativeiro, das etapas decisivas do processo eleitoral e politico. Cabe aqui um paréntesis: segundo Francisco Ignacio de Carvalho Moreira, em nota & edigho comenteda (1855) da Constituigin, o use fez com que a renda individual, estabelecida pela Constituigg0 para a participagio nos virios niveis do processe eleitoral, ao invés de liqrida, fosse computada em bruto. Sem duvida alguma, essa pritica permitiu o aumento do numero de cidadios cons- tante nas listas de votantes ¢ elcitores, revelando uma intengio democratica embriondria. E Iieito, a partir dai, levantar-se a seguinte bipdtese: poderiam os ingemuos, por apresentarem tragos genot{picos negros, terem sido confundidos com os Hbertos e, pois, alijados igualmente do processo eleitoral? A Guarda Nacional oferece-nos ur exemplo préximo dessa situagio, conquanto “nio separando os corpos por sua cor e admitindo libertos € ingénuos.., além de permitir a sua eleigao para os postos de offclal” (#) mazes um passo em prol da democracia, inclusive racial. Todavia, “essa pratica foi de curta duragio e, apés o Ato Adicional, as Assembidias Provineiais adotaram... a substituigéo da eleigzo dos postos pela nomeagio provincial” (*), anulando todo o esforgo democritico inicial, e atingindo tanto os libertos como os ingenuos. Evidentemente, 05 limi- tes deste artigo nao pretendem abarear todas as possibilidades de investiga que o tema sugere. Entretanta, cremos ser aconselhavel o registro dessa hipotese. Dessa maneira, vimos as duas anicas men¢des explicitas ao negro, existentes na Constitaigio Politica do Império do Brasil, ambas referindo-se 20 negro enquanto pessoa. 114, contudo, outras disposigdes, de cariter geral, que o afeta- ram diretamente, como 2 do art. 145: “Todos os Brasileiros sdo obrigados a pegar em armas, para sustentar a Independéncia, ¢ integridade do Império, ¢ defende-to dos seus inimi- gos externos, ou internos.” Durante todo o periodo imperial, por diversas ocasides, desde as lutas na Banda Oriental do Uruguai até a Guerra do Paraguai, nos momentos de grande crise, fosse pela deserg&o ou pelas baixas que atingiam os contingentes militares, 0 eseravo era solicitado a cerrar filefras nos campos de batalhe. Ocorria, porém, (3) Jeanne Berrance de Castro — © Pove em Armas, Guarda Nacional — 1Bs1-180, Tese de Doutoramento apresentadn & Cadeira de Histérla da Civiliragio Brasiteia da Faculdade ae Piosonio, Olencias ¢ Letias da Universidade de S€o Paulo, — Sdo Paulo, 2988, 9. 102 44) Tid, p. 196. bid REVISTA DE iINFORMAGAO LEGISLATIVA que © escravo era pessoa e propriedade, por isso destituido de cidadania; conseqiientemente, nfo era brasileiro (mesmo sendo crioulo, isto é, nascido em territério nacional); portanto, nao tinha qualquer obrigagdo ou compromisso em relago & defesa do Império. Dai, em virtude do art. 145, muitos escravos tomaram-se cidadaos, obtendo suas Iiberdades, concedidas por seus senhores (em troca de titulos honorificos), ou compradas pelo Governo, com a cléusula de servirem no Exército ou na Armada. A Constituigao garantia, também, certa abertura em matéria religiosa, segun- do demonstra o art. 5% “A Religiio Catholica Apostolica Romana continuaré a ser a Religiio do Imperio, Todas as outras Religi6es serfo permittides com seo culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo.” € 0 art. 179, § 59; “Ninguem pode ser perseguido por motivo de Religifio, huma vez que respeite a do Estado, ¢ nao offenda « Moral Publica.” # evidente que a roligiio oficial deveria merccor de todos 0 respcito necessério, nfo sé por motivos espirituais, mas por toda a interdependéncia entre Ipreja e Estado, entéo existente. Porém, a flexibilidade da Constituigao, ne que lange a esse particular, se faz sentir, especialmente quando, ao proibir perseguigdes religiosas, fa-lo sem exceg6es, pols “Ninguém” implicaria tanto os cidad4os como os escravos ¢ estrangeiros. Em que pesem essas consideragies, seria arriscado afirmar que o espirito da Constituigio tenha realmente regido as relagdes sociais concernentes religiio, mormente quando envolviam negros, Uma disposigéo, tendente a reforgar o sentido paternalista da atuagio do Imperador e, por decorréncia, o cardter patriarcal da organizagie social, encon- tra-se no art. 101, § 8%: “O Imperador exerce o Poder Moderador, Perdoando ¢ moderando as penas inpostas aos Reos condemnados por Sentenga.” Um numero significativo de negros, durante os anos de vigéncia desta Carta Magna, viu-se envolvido em processos criminais, havendo entre oles considerével proporgiio de escraves condenados & morte. O Poder Moderador era a dltima instancia recorrivel, e 0 pedido da “Imperial Cleméncia” tornou-se praxe, sobre- tudo apés a campanha abolicionista, Dessa forma, muitos tiveram suas penas comutadas ou diminuidas, ¢ a concesséo, ou recusa de cleméncia, serviu para auxiliar na preservagio da ordem patriarcal instituida. JANEIRO A MARCO — 1974 73 Analisemos agora alguns aspectos atinentes ao negro enquanto propriedade de outrem, via de regra, cidadao. O art. 71 aborda a questo de maneira genérica: “A Constituigdo reconhece e garante o direito de intervir todo o Cidadao nos negécios da sua Provincia, e que sio immediatamente relatives 2 seus interesses peculiares.” Ora, em sendo 0 escravo parte do patriménio de seu proprietario, necessa- riamente est4 incluido na esfera imediata de seus interesses; por decorréncia, verifica-se que os protestos contra quaisquer medidas tendentes a afetar esses interesses encontram guarida na Constitnigao. Por outro lado, ao determinar as responsabilidades dos Ministros de Estado, no art. 133, § 5°: “Peto que ahrarem comtra a Tiherdade, segnranga, on propriedade dos Cidadéios.” fica implicita a legitimagio e defesa da propriedade escrava, Todavia, ao fixar © que é constitucional, no art. 178: “He 6 constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuigdes respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadios. Tudo, 0 que nfo he constitucional, pode ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordindrias.” 9 Governo mantém a questZo do elemento servil em aberto, uma vez que, em momento algum, alude a ela diretamente. Assim, fica-fhe garantida total liber- dade de agao, sendo as providéncias tomadas de acordo com as necessidades de cada momento. Logo, em muitas situagées, foi feita vista grossa para deter- minados artigos da Constituigio. Prova cabal 6 o art. 179, § 19: “Desde {4 ticdo abolidos os agoites, a tortura, e a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis.” Apesar dossa “aboligio”, o negro escravo foi submotide tegalmente a esses castigos até 1886, quando foi sancionada a Lei n? 3.310, de onde se evidencia a oscilagao da politica governamental, diante do bindmio pessoa/propriedade. Constata-se, pois, a posigao marginal do negro no texto da primeira Constituigao, em vista da omissio deliberada dessa parcela da populugde, de um lado problematica, ao configurar toda uma ordem de contradigdes do sistema escravo~ crata, mas de outro pujante, ao se constituir em esteio de nossa economia, em construtora de nossa riqueza. A hipétese de que a omissao dos negros foi deliberada, apdia-se, principal- mente, no fato de o texto constitucianal ter sido caleado no Projeto Anténio 4 REVISTA DE INFORMACAO LEGISLATIVA Carlos, cujo contetdo foi quase que inteiramente preservado {quanto aos artigos analisados), havendo tio-somente a preocupagio de uma forma mais refinada. © nao aproveitamento dos arts. 254 ¢ 265 do Projeto Anténio Carlos “Tera a Assembléia igualmente cuidado de crear estabelecimentos para a cathequese e civilizagdo dos indios, emancipagae lenta dos negros, e sua educagio religiosa e industrial. A Comsliluigao revonliece us contractus entre us senlores, @ escravos, © 0 governo vigiard sobre 2 sua manutengdo.” indica 0 objetivo de no se levantar o problema da escravidio. Como fica demonstrado, os dois artigos anulam-se reciprocamente, pots, enquanto © pri- meiro refere-se & “emancipagao Jenta dos negros”, 0 outro “reconhece os con- tractos entro senhores e escravos". Todavie, essa alterndncia de avangos € recuos foi conservada no texto definitive. A exchisio desses artigos, que, combinados, tornam-se indcuos, revela a perspicdcia do grupo que elaborou a Constituigao, porque, omitindo o problema, viabilizou melhores condig6es para os Poderes Legislative e Executivo tratarem da matéria, Foi, sem duvida, uma faca de dois gumes que, se fez concessdes aos escravocratas até 1850, por outro lado, facilitou também a campanha abolicionista ¢ a extinglo da escravidio, Em virtude de todos os esquemas mentais herdados pela geragéo que fez a Independencia, seria impossivel outro tratamento ao negro, que io esse. O Jongo passado escravista do Brasil impossibiliton que o negro fosse plenamente respeitado como pessoa, prevalecendo a sua condigao de coisa, e como tal perma- neceu durante todo o periodo em que a Constituigdo vigorou. A extingfo do direito de propriedade sobre o homem quase coincide com a revogacdo de nossa primeira Carta Magna, que, talvez, ateste que ela esteve perfeitamente ade- quada, e atendeu satisfatoriamente 4s necessidades do periodo histérico do qual emergizr e a0 qual servin. BIBLIOGRAFIA BENEVIDES, JM. Corten de BA ¢ — Analyse da Constituigdo Politica do Impérta 40 Brasti, ‘880 Paulo, Xin, 1890. CASTRO, Jeanne Berrence de — 0 Povo em Armas, Guarda Nacional 1891-1850, Tene de Douto~ rarento aptesenteds & Cadelre de Hlstéria de Civllizagto Brasileira da FFCL da CSP, 580 Paulo, 1968. MBLLO, F.1. Marconden Homem de — Rycriptos Historteos ¢ Literérios, Rio de Jenetzo, Bausrdo ‘& Henzique Laemmert, 1868, MOREIRA, P.T. de Carvalno ~ Constituigto Polittea do Imptrio do Brastt seguida do Acto ‘Addicionat Let de Sua Iuterpretagco ea Let do Conseiho de Estadc, Augmentata, Ro de Janeiro, — Eduaree # Henrique Leemmert, 1635. PORTELLA, Jonquim P. 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