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HELIO FERVENZA on Consideracées da arte que ndo se parece com arte RESUMO (artigo trata de textos e produces de artistas como Kazimir Malevitch, Allan Kaprow, Cildo Meireles, Robert Filliou e Lygia Clark, onde so discutidas algumas concepcées, valores e abordagens na relacio entre arte e ndo-arte, entre arte e cotidiano, entre arte e fecio. PALAVRAS-CHAVE ‘Arte endo-arte; arte e cotidano; arte efccio. EE eseorronmterowro atscrs3.ne23 nove a ete eet inna 2 pale profi pel aur d- tance o Cléui Internacional de Esti Estancia cn temparna, realizado em Po Me tre de O20 de seabed 2004 pela Universidade Esaual do Ha Grade eo Sul (UENGS pel Pr pana de Ps Gradeagio en filo ada UGS. CONSIDERAGOES DA ARTE QUE NAO SE PARECE COM ARTE “Tratarei nesta apresentagao de um pequeno conjunto de produg6es — incluindo af textos —de alguns artistas oriundos do campo das artes plésticas e visuals, onde, de uma forma muito especifica, so discutidas e propostas certas praticas, concepgées, valores evivéncias da arte’. Meu propésito, aqui, nao é 0 de desenvolver um relato exaustivo dessas priticas e pensamentos. Nem o de fazer a anidlise de uma certa situagao social no campo das artes plésticas como um todo. Mas o de indicar alguns momentos, detectar a emergéncia em algumas criagées realizadas em diferentes contextos histéricos € cculturais de um pensar e de um pensar como ago para além da arte. Estas produgées podem ser muito Giteis para ajudar-nos a entender como aarte atualmente se relaciona coma sociedade contemporiinea e os meios que ela utiliza nessa relagio. Pois, de fato, como a arte se relaciona com essa sociedade? No que pensamos ‘quando nos referimos & nogao de sociedade nos dias que corre? Seré que esta sociedade assim, singular e homogénea? E arte, entio, serd que é singular e homogénea? Quando pensamos em artes plasticas, no que pensamos exatamente? Serd que essa relacio entre arte e sociedade se dé somente através da realizacéo de imagens, pinturas ou esculturas? © campo de atuacio da arte deveria ficar restrito? Restrito a permanecer como algo separado das outras atividades sociais? A arte teria de ficar isolada, enquanto ficcao dessas outras realidades sociais? E essas realidades sociais seriam realmente reais? Seria possivel falar em ficcées sociais? Por outro lado, considerarmos a arte como um campo isolado e em conformidade ao socialmente aceito, no seria uma ficgao social? Qual a situacdo social da arte contemporanea? Para quem ela produz? E o que e como ela produz no seriam decisdes que afetam sua concepcio e, portanto, sua relacao com este social? Serd que as diferentes concepgées da arte afetariam nao somente essa relaco, mas a concepc4o mesma de sociedade, a percepgio de suas formas de vidae da economia de sua formacio? Serd que a mesma nogio de piblico ¢ igual e continuaem todos os lugares e situag6es? Mas, afinal, no que consiste uma parte importante da producio artistica nos dias de hoje? Posso listar de meméria, e de uma forma breve, algumas produgées artisticas realizadas a partir dos ilkimos trinta ou quarenta anos. Assim, por exemplo, um artista prope que participantes experimentem, vistam, movimentem-se ou dancem com alguns tipos de capas e objetos em tecido, criando sensagées e abrindo sentidos nessa NOFA contest sepa ‘experimentacao. Um outro conecta fios de cobre e zinco a alguns quilos de batata ‘transformando-as em baterias ou pilhas e fazendo funcionar um relégio digital. Um outro, ainda, interessa-se em inscrever mensagens em circuitos de circulaco de objetos, signos ou mercadorias. Outros artistas interessam-se pelo ato de caminhar, respirar ou cozinhar. Talvez abrir um restaurante. Alguns realizam viagens. Alguns escrevern, outros fazem livros, discos ou filmes. Alguns dedicam-se & a¢io politica ou’& educagio. Outros ainda so atraldos pelo campo, pela terra e pelas arvores. Um artista elaborou um projeto para colorir nuvens no céu, nuvens reais e nao representagées pintadas de nuvens. Outros colocaram sua atencao nas cidades, para af intervir nas arquiteturas e ros fluxos urbanos ou descobrir e catalogar plantas consideradas “daninhas” encontradas em calgadas. Alguns artistas irdo utilizar a economia ou a sociologia, a cartografiae a aerondutica, a fisica ou a matemética, a genética ou a informatica, maquinas, produtos quimicos, lixo. Alguns trabalham utilizando processos de comunicacéo em rede. Outros intervém em grupos ligados por questées étnicas, econémicas ou sociais. Outros farao do didlogo seu motor, realizando propostas constru(das coletivamente numa comunidade, Nessas aces, atividades e producées que cito, no hé necessariamente uma especializacao. Elas podem também ser feitas alternadamente, sem que uma ‘tenha uma importéncia maior estabelecida a priori sobre as outras. Por vezes, nao ha de fato um autor, mas um grupo ou grupos. Por vezes, nao se trata de produzir um. objeto, mas uma experiéncia. Como, entéo, pensar a arte quando ela parece constantemente extravasar, ‘transbordar seus limites soctalmente estabelecidos? Como ela se pensa em constante expansio e deslocamento? Por que ocorrem esses deslocamentos e ao que eles correspondem? Hoje em dia, uma simples banca de revista, ou a televiséo, ou atelevisio a cabo, ou ainda a internet, possuem uma quantidade inimaginavel de imagens e informagées, conectveis com outras tantas imagens e informacées, as quais podem ser alteradas, transformadas, copiadas, transmitidas ou armazenadas. Desde a invencao da fotografia, pintores ou escultores perderam progressivamente aquilo que poderfamos chamar de monopélio na producio de imagens. Na atualidade, qualquer pessoa com uma simples cimera fotogréfica pode produzir ou manipular imagens. A partir da fotografia, passando pelo cinema, pela televisio, pelo video, pelo computador, essa producio e sua circulagdo cresceu e continua crescendo em proporgées astronémicas, impulsionada pela indistria e pelas possibilidades de reprodugao. Entre outras coisas, isso colaborou para um constante re-posicionamento daarte diante dessas mesmas imagens e, sobretudo, para um re-posicionamento da arte quanto as suas priticas, quanto as suas concepgées e suas relagées sociais. Além do advento da fotografia, devemos também considerar as revolugdes industriais e tecnolégicas ocorridas a partir de meados do século XIX ea maneira como REVISTA PORTO ARTE: PORTO ALEGRE V13,18°23, NOVEMBRO/2005 Thiery De Dave. Asoances do ‘readymade Nims: J, Cambor, 1985, p08, ecjanin HD. Buch. Conse (isi de septs. itce uel sealptre moder Paris Cenice Georges Pompidou - Huse Naina Mode, 1986, 9.28 jain HD. Buch. Cnstie (Cini de) wept. Oat ce ‘uel selptre dere? ats Cente Georges Pompidou - Huse aia tr Hadere, 186, 9.257 Margit Roel. Quest qu la scope made. 8, elas alteraram e deslocaram profundamente, desde ent, a posicio social do artista e suas condigdes de produgao, Essas circunstdncias encontraram importantes desdobramentos nas obras de alguns artistas a partir do inicio do século XX. Assim, o historiador da arte Thierry De Duve, em seu livro Ressonéncias do readymade, observa que Marcel Duchamp, por volta de 1912, percebe que a pintura muito possivelmente havia perdido sua significagio histérica: “Vocé faria outra coisa que ceder ao habito de um artesanato no fundo perfeitamente obsoleto? Pois, numa sociedade industrializada, o saber-fazer espectfico, que nés chamamos pintura, poderia muito bem ter se tornado indtil. A mecanizacao e a divisio do trabalho substitulram o arteso na maior parte de suas funcées sociais e econdmicas, por que poupariam eles o pintor?”? ‘Além disso, 0 abandono da representacao nas obras dos primeiros artistas abstratos e as problematicas ai relacionadas vo ao encontro com a incluso progressiva dos contextos de produgio e apresentagio, Podemos verificar isto na concepgao e na constituicao das criagées de artistas como Alexandre Rodtchenko ou Marcel Duchamp. O espaco do objeto artistico era, de distintas maneiras, permedvel ¢ inseparavel de sua relacdo com 0 seu espaco contingente fisico e com os seus sentidos. Quer dizer, esses artistas, a producao e o pensamento a eles relacionados 1ndo so apenas alguns exemplos seminais de uma arte que nascia da interpenetragio entre espacos internos e externos ao objeto artistico, mas que se inseria cada vez mais ‘em espacos, objetos e situacées consideradas nao artisticas. A ago, num determinado contexto, gerava sentidos para além do objeto. Segundo © eritico Benjamin Buchloh, alguns aspectos religam certas obras do construtivista Rodtchenko a Marcel Duchamp, como o interesse pela transparéncia e pelo reflexo como um meio de revelar o “caréter contingente da escultura em relacéo 20 seu contexto. Contrariamente & nogio tradicional de espago auténomo da escultura, 1nésnnos confrontamos com construgées que se define numa relacao ternéria entre o objeto construido pelo artista, a interpretacao perceptiva desse objeto pelo espectador eas particularidades do espaco arquitetural””. Outro aspecto a ser considerado é 0 fato de que “Duchamp e os construtivistas mostraram-se também atentivos a especificidade material da escultura, preocupados em tornar visiveis seus métodos de producao, suas propriedades e suas funcées fisicas”’. No caso especifico do construtivismo, a historiadora Margit Rowell nos lembra também que este era “em teoria e na pritica, a expresso de um ideal politico profundamente utépico. Para os construtivistas, a sociedade do futuro chamaria uma nova linguagem artistica, desobstruida de simbolos ou ilus6es, a qual seria fundada sobre um principio de realidade: materiais ‘reais’ existindo num espaco ‘real’. Esses ‘materiais, assim como suas formas, seriam portadores de sentido em sua substancia mesma e na dindmica de suas relagoes concretas”® HeOKROCA cnitensadimaenioonnevciae EE Podemos evocar ainda outras experiéncias ocorridas nesse mesmo periodo das, primeiras décadas do século XX. Assim, antes de falar do trabalho de alguns artistas mals recentes, gostaria que nos detivéssemos sobre uma producao que merece certamente uma visita mais prolongada, fazendo-nos retroceder no tempo. Estamos em Leningrado, em 1923, e alguém que conhecemos hé pouco convida- nos para tomar ché. Sentamo-nos e, para nossa surpresa, os utensilios colocados na ‘mesa ndo se parecem com o que temos visto até entio, Dificilidentific-tos de imediato. Dificil descrevé-los. Imaginem ver o iquido furnegante escorrer do interior de um objeto branco © qual parece uma intersecao e um desdobramento de cilindros e cubos e cair ‘num outro objeto meio nave, meio lua. Eclipse de brancos. Pensem nessa experiéncia. “Tomar cha nunca serd a mesma coisa, nem arealidade imediata desse ato e, no entanto, trata-se de tomar ch, um ato relativamente simples inscrito no cotidiano. Os objetos em questo sdo xicaras e bule (Fig. | e Fig. 2) produzidos a partir de projetos do artista russo Kazimir Malevitch, pela entao chamada Fabrica do Estado de Petrogrado. Esses utensilios em porcelana foram uma tentativa de implementar sua cconcepgo de um suprematismo volumétrico *. Fig, | - Kasimir Malevich, Bule, 1923. Catélogo Kazimir Malevich Fig 2 - Kasimir Malevtch, Xicara, 1923. Catélogo Kazimir 11878-1935, State Russian Museum, Leningrad / Tretiakov ‘Malevich / 1878-1935, State Russian Museum, Leningrad / Gallery, Moscow / Stedelik Museum Amsterdam, 1988, p.254. Tretiakov Gallery, Moscow / Stedelik Museum Amsterdam, 1988, p.254. Pois bem, esses objetos sao utilizdveis, mas seriam eles de fato utiltérios? Por que um artista que se posicionavaa favor de uma dimensdo espiritual e contra. transformagio, da vida sob uma ética puramente materialista e funcional, a.um certo momento, produz objetos utiltérios? Mera circunstancia politica ou econémica? Seria importante notar, por exemplo, que Malevitch, em 1915, mesmo ano da realizagio de seu “Quadrado negro” e apés abandonar a representacio, ird se referir EA Irae, “ecein’ catlge Ain Mlrih / 178195, Ste asian sea, ringer Galley, Moco / Stl Maso Asedan, 18, p30. BB] @snroomreromonsceviawra nomenon sini Mavic De ume fuurisme av suprématisme. Le nore ale pital. its, aprsetados or Andre Nak, Eis Gerd Leb 198,920. Ande Nak. Comenia sobre "icra (Maite las)” de Malevich, em fasine Malev, Ee dens Gea Leb 58, pm-2B, ani Malevich, Nos vos. epee pc ee Kak, is Gerad Lov, p24, a0 que poderia ser traduzido por realismo pictérico, e ndo a uma nogéo como a de abstracionismo, para falar de suas novas obras. O realismo de Malevitch nao deve ser considerado em termos de uma percepcao direta, objetivae funcional do mundo, mas ‘como uma tentativa de ultrapassar o mimetismo ilusionista e a ilusdo dos sentidos. Assim, no manifesto “Do cubismo e do futurismo ao suprematismo. O novo realismo. pictérico”, Malevich propée a realidade da cor, do plano e da superficie numa criagao nao-objetiva. Chamam a atengio outras passagens nesse texto, nas quais ele escreveu por exemplo: “Eu cheguei na superficie-plano e eu posso ainda chegar na dimensio do corpo vivo"?. Ao analisar alguns textos de Malevitch, escritos em 1918, o historiador Andrei Nakov faré o seguinte comentario: “A mutagao conceitual da qual procede Malevitch apéia-se sobre a visio dos diferentes estados da manifestagao energética da matériae sublinha sua relatividade, pois é 0 ponto de vista sob o qual se considera o mundo que constitui a imagem deste. Assim, o pensamento pictorico de Malevitch no tem mais necessidade de passar pelo visivel enquanto experiéncia cognitiva preliminar a toda mudanga; é reflexdo conceitual que precederd a partir de entao a realizacao pictérica”.® E notavel, na grande producio textual de Malevitch, o interesse por um enorme Jeque de assuntos, tais como arquitetura, poesia, educagio, economia, religido eamaneira como a criagéo poderia emergir em todas as atividades humanas no que fol o periodo revolucionério pelo qual passou a sociedade russa da época. Num dos manifestos de grupo UNOVIS, fundado por Malevitch, em 1920, e relacionado ao suprematismo, podemos ler a seguinte declaracao: “Nossos atelieres 1nd pintam mais quadros, eles constroem as formas da vida; ndo serao mais os quadros, ‘mas 0s projetos que tornar-se-do criaturas vivas”’, E importante referir aqui que os artistas desse grupo, a um certo momento, voltaram-se para uma arte que se realizasse fora dos limites do atelier, e, ao mesmo. ‘tempo, em acordo com 0 espirito revolucionério da época, empenhado na mudanca dos modos de vida. Por outro lado, o que hoje chamamos de desenho industrial estava iniciando, e 0 contexto politico e econdmico na Uniio Soviética, na época, era totalmente diferente do que é praticado hoje em dia numa sociedade de consumo. ‘Ao abandonar a representacdo da realidade, a arte, de uma certa forma, investia diretamente na realidade, tentando recrié-la ao mesmo tempo em que reinventava seus meios. Por limitadas que foram essas tentativas, elas parecer querer introduzir uma dose de subjetividade, ou de conhecimento subjetivo, como queria o suprematismo, nas atividades do dia-a-dia, na realidade da vida cotidiana. Essas experiéncias foram abruptamente interrompidas na Unio Soviética por razées politicas no inicio des anos 30. Posteriormente, grande parte da produgio de Malevitch foi fragmentada e isolada do contexto, das finalidades e do pensamento quea gerou, ¢ 0s ready-mades de Duchamp, apesar de serem objetos industriais, foram isolados dos outros objetos do mundo cotidiano HIEUO FERVENZA, Consierardes dare que nose parece comare eidentificados como arte a partir dessas circunstécias. Mas, na medida em que as escolhas © 0 interesses de alguns artistas foram avancando cada vez mais no espaco do mundo, houve urna maior permeabilidade nessa relacdo entre o espaco artistico eo espago nao attistico, fazendo com que essas disting6es tornem-se mais complexas. © espace fisico do museu ou da galeria nao coi Jia e no coincide com sua abrangéncia institucional ou econémica. Na atualidade, um exemplo claro disso so exposigées, como a diltima Documenta de Kassel, onde produgées de artistas participantes ocorreram na internet, na rua ou em outras cidades. Por outro lado, 0 ‘espaco das produgées artisticas também nao coincide necessariamente com 0 espaco, ‘as concepg6es e os valores estabelecidos por instituigées e mercados. Essa ndo-coincidéncia foi o que permitiu a riqueza de priticas que temos hoje em dia e nao 0 contrério, Isso & o que nos mostra em parte a histéria da arte ao longo de todo 0 século XX se soubermos ver isso. Nessa histéria, posigdes minoritarias nao séo ‘excegées, como podem tentar nos fazer crer setores mais refratarios. Além disso, essas posices se deslocam constantemente. Isto quer dizer que as concepgSes e producées artisticas so muito mais diversas e abrangentes que o espaco institucional ou econémico tradicionalmente voltado a arte ou a um certo tipo de arte. Elas so como pensamento que flui, ou como tempo que faz. Isto quer dizer, também, que produces em acordo ‘ou que se instalem mesmo que temporariamente dentro de um campo hegeménico da arte terao uma certa forma de circulagao social e econémica. Outras producées que se interessam por uma atuagio em situagdes e espacos fora dessa posi¢ao terdo outro Circuito, ou outra forma de circulagao, outros desenvolvimentos ou relacées sociais. (Outras formas de produgio poderdo abrir outros espacos e outras formas de vivencid- las, as quais nao existem a priori nem sao identificéveis como tais. Se elas nao existem pode ser necessério crié-las, e isto 6 uma realidade. Nesses casos, a propria idéia de Circuito da arte, dito assim no singular e utilizada no sentido de sistema de veiculacao da arte, talvez no seja a melhor nogéo ou forma de pensarmos a atuacao da arte, compreendida aquino sentido dese yensamento, de suas priticas e de suas experincias Veiculagao e experiéncia podem ser noces inter-relacionadas e gerar situagées afins, mas elas nao necessariamente se confundem ou coincidem. A préprianogao de dentro e fora depois de um trabalho como Caminhando, de Lygia Clark, pode ser instrutivo nesses ‘casos. Afinal, o que est dentro e o que esté fora do campo da experiéncia da arte? Como, determinar isso com exatidao? ‘Até que ponto uma parcela abrangente da arte que se produz hoje ainda é identificével como arte? Sera que o artista é ainda reconhecivel e identificavel? E com o que exatamente? Uma boa introdugao & resposta seria colocar a seguinte situacao: importante e imensamente significativo que muito do que de melhor se produziu em arte no século XX, ndo parece arte. Assim, o porta-garrafas de Duchamp, é um ready-made, um objeto HB re snrorronmerorronscrvinnen noon ‘lan Karon, vos Part. anal fap Pais, metre 19,25. Nix Karo La able pene ‘an, Car fi cand Pi Cane Gers Pompe, Cleo Supplies, pE THREE AQUEOUS EVENTS Fig. 3 - George Brecht, Tits eventos industrial e ndo-artistico produzido aos milhares. Do ponto de vista de sua constituigao formal, nada o distingue de um outro porta-garrafas. Algumas misicas no parecem midsica, como em algumas composicées de John Cage. O poético de alguns poemas ndo ser poético, nem parecerem poemas. Por outro lado, na sociedade do espetaculo em que vivemos, muito do que se considera poético é assim compreendido pela aplicacéo de convengées com efeitos culturalmente condicionados. Aproximadamente cingiienta anos depois que Malevitch realizou seus pratos suas xicaras, um outro artista do outro lado do mundo prepara um cha gelado. Ele coloca um recipiente no fogo para aquecer a 4gua e observa quando esta comega a ferver, sente 0 calor eas nuvens de vapor que se formam. Depois derramao liquide num bule e coloca folhas de cha. Uma vez resfriada a infusdo ele acrescenta cubos de gelo. Ele sente o frio desses sélidos e observa seus gestos ao manipulé-los. Ele faz.cha, observa, ese observa. ‘O artista é 0 norte-americano Allan Kaprow, e a preparacao dessa bebida surgiu ‘como uma resposta ao que ele considerou ser uma sugestao contida num dos textos de Events (Eventos) de George Brecht. Esses textos eram extremamente sucintos e foram impressos em pequenos cartées entre 1959 e 1962. Eles podem ser compreendidos como partituras destinadas a serem utilizadas em diferentes situacées. A maneira de ‘como elas deveriam ser utilizadas permanece em aberto de uma forma ambivalente. ‘Assim, 0 texto no cartao pode ser percebido apenas como uma lista de nomes ou como uma instrugéo ou sugesto para uma aco, diante de um ptiblico ou sozinho no espaco privado. O cartéo escolhido por Kaprow intitula-se Trés eventos aquosos (Fig. 3) e abaixo do titulo estava escrito apenas gelo, dgua, vapor. ‘Amaneira como ele considerou essas palavras e de como isso 0 levou a fazer um ché tem a ver com sua concep¢éo da arte. Para este artista co-ato de prestar atencao e estar consciente da realizacao de atividades cotidianas, como preparar ché ou amarrar os cordées dos sapatos, podem ser mais fundamentais do que produzir objetos convencionalmente identificados como artisticos. Ao comentar 0 periodo em que essas mudancas comecaram, Kaprow escreve: ““Supunha-se que as pequenas coisas da vida cotidiana poderiam servir para contrabalangar as abstracdes em que os ‘grandes’ problemas se transformam quando Ihes damos um nome”'®, No artigo de sua autora intitulado “A verdadeira experimentacéo”", Kaprow estabelece uma distinggo entre “arte que se parece com arte” e caquosos, 1961. Catlogo Blam! the “arte que se parece com a vida": “a arte parecida com aarte considera que explosion of pap, minimaism, and aarte é separada da vida e do restante, enquanto que aarte parecida coma performance, 1958-1964, Barbara Haskell, Whitney Museum, New York, 1984, p. 56. Vida considera que a arte est4 em ligagao comavvidae com orestante”. Aarte ‘quese parece comarte constituira uma priticainscrita dentro da “principal HELO FERVEVZA, Consderagsescaarte que nso separece comate [EN corrente da tradicio da histéria da arte ocidental, onde o espirto & separado do corpo, 0 individuo da coletividade, a cultura da natureza, e onde cada arte é separada da outra’”. Por outro lado, a arte que se parece com a vida “no esté interessada pela grande tradi¢ao ‘ocidental, pois ela tende a misturar as coisas: corpo e espirito, individuo e coletividade, cultura cenatureza, eassim por diante” da mesma forma como pode misturaras categorias da arte ou evité-las totalmente. Para Kaprow foram os sucessivos deservohimentos eaprofundamentos domodernismo que conduziram aartea dissolver-se em suas fontes no mundo real. As diferentes percepobes cdo mundo e a subjetividade nas abordagens, bern comioa possibilidade de agir sobre diferentes contextos nao artistcos, gerar gestos e comportamentos, estariam presentes em artistas e producées desde as primeiras décadas do século XX. “Nos dias de hoje”, nos dizele, “ser um artista significa conhecer-se, conhecer-se significa esquecer-se (0 que seja a imagem que se faz de ‘si mesmo’), Esquecer a arte (0 ‘si mesmo!) significa ter uma claridade ou uma realidade. E ter essa claridade significa reduzir a distancia tentre si mesmo e todos os fendmenos”” ‘Amaneira como arte que no se parece com arte se relaciona com sociedade passa pela tengo a qualquer aspecto das formas, meios e situaces de vida dessa sociedade. A atuacéo desse tipo de arte se produz através da vida social. Aproximadamente no mesmo periodo em que Kaprow fazia ché gelado, um outro artista num outro pais e num outro contexto bem diferente, ocupava-se também com uma bebida. Desta vez néo era uma bebida feita em casa, mas produzida e engarrafada aos rmilhares industriaimente. Mais precisamente, ele questionava sua distribuicdo, os signficados por ela veiculados e sua onipresenca econémica e cultural, Ao mesmo tempo, indagava-se sobre o sistema de circulagao que tornava isso posstvel. Este se constitufa na venda, no consume da bebida e na devolucao de sua embalagem. Assim, produzia-se um ciclo, um circuito: a embalagem safa da indéstria para o distribuidor, do distribuidor para o consumidor e depois, num movimento inverso, este o devolvia ao distribuidor que a fazia retormar &indéstria para ser de novo reutilizada. O artista percebe que pode inserir nesse sistema outras informagées as quais seriam veiculadas pelo préprio circuito. Quer dizer, utlizar 0 préprio sistema de distribuicao como vvelculo de outras proposicées que o abram a uma percepgio ea uma atuagao critica. O artista em questao é o brasileiro Cildo Meireles. A esses atos de inse informagées em determinados meios de circulagao, ele chamou de “Insergdes em Circuitos Ideol6gicos”. No caso especfico das inserg6es em garrafas, ele chamou de “Projeto Coca-Cola” (Fig. 4) e foi levado a cabo a partir de 1970. Cildo utilizava, aqui, decalques sobre a garrafa, impressos com tinta branca vitrficada, onde se lia, além do titulo do projeto, a seguinte proposta: “Gravar nas garrafas, opinides criticas e devolvé- las a circulagao”. Embaixo via-se as inicias C.M. e a data. Quando a garrafa esta vazia do se percebe o texto, somente contra o fundo escuro da bebida. a Alaa Karo, Galioe Fart. Kanal cope, Pais” ies 19, p26 BE cenronomreromonscre vis wea ncremoras Fig - Cio Meieles, Insergdes em Crcuts leolgces -Projeto Coca-Cola, Em relagio as “Insergdes", existe um depoimento de Cio Meireles, registrado por — ee ‘Anténio Manuel para sua pesquisa “Ondas do Corpo", © qual é muito importante para entendermos essas agéese suas crcunstincs. [Nese depoimento,Cido dz segunte:"Eume lembro que em 1968-69-70, porque se sabia / que estivaros comecando a tangenciar © que f \ interessava jo trabahavamos com metiforas (representacées) de situacdes. Estava-se j trabalhando com a siuacio mesmo, real. Por ‘outro lado, 0 tipo de trabalho que se estava j | fazendo, tendia a se volatiizar ~ e esta jd era outra caracterstica. Era um trabalho que, na verdade,ndotinha mais aquele cuto do objeto, i puramente;as cas exstam em fungio do que I \ poderiam provocar no corpo social” artista sublinha.fato de que os crcuitos e de veiculagio de mereadorias ou informagées carregama propaganda ideol6gica do produtor, €¢ que seria fungéo da arte tornar conscentes 1870, Catdlogo Gide Meieles, Rio de janeiro, FUNARTE, [98] essas priticas, em oposigao‘afuncio anestesiante (la Maes, Cbg Are Sasi: 1 Contnparine Kin ji: FUNATE, 18, 924, (Gd Mies, Cali re rile: 1a Conteapordnea. ie de ane UMAR, 8, p24 (ld Mies. Cir do sa ‘ITO, fre VEN FLKO, Fale, O msn ¢ 0 conenpart 20 (0s 0 ote sr de oir: FUNARTE, 1980, p28. dos circuitos industriais numa sociedade capitalsta, Para Cildo, as “Inserées” visavam atingir umn némero indefinide de pessoas, um piblico no sentide mais amp do terme endo imitar ousubstnir essa nocio pela de consumidor, a qual éligada ao poder aquisitivo. Elas sé teriam sentido enquanto fossem praticadas por ‘outras pessoas numa possiblidade real de transgressao. Conforme o que ele diz: “Nao mais. ‘trabalhar com a metifora da polvora —trabalhar coma polvora mesmo", Essasua preocupagso com umaarte que se construa no mundo vé-se laramente rfletida num outro texto, também de 1970, intitulado “Cruzeiro do sul”, onde na conclusdo ele declara: “Quero algum dia que cada trabalho sejavsto no como um objeto de elucubragées esterlizadas, mas como marcos, como recordacées e evocagées de conquistas reais e visivels”™, ‘Antes de terminar gostaria de deter-me, mesmo que brevemente, nasidélas e produgbes de dois outros artistas: Robert Filiou e Lygia Clark. Pensei em Robert Fillou pela maneira como ele criou certas propostas a parti de uma relagio com a economia, como, por exemplo, seus “principios de economia poética’. Sua idéia da “Verdadeira Taxa de Troca’”, onde ele diz que “nés temos todos as mesmas diferencas ‘eque é isso precisamente que nés temosem comum”, Ele propde entio que para chegarmos “a uma otimizacio do nivel social, seria necessario uma situacéo onde adiferenca de um em NRUO FERED Cosdoartesceare qe ndosepacceccmare ER relacio a diferenca do outro fosse guala zero” 6 Fillourinventa também o.conceito de "Criagso Permanente Principio de Equivaléncia: Bem feito, Mal feito. Nao-Feito”,em que, segundo ee, ‘0 segredo residiria na formula “sea o que for que fizeres, faz outra coisa, seja o que for que pensares, pensa outra coisa”, Para ele, a "Arte & uma fungao da Vida mais Ficglo, a fiogdo tendendo zero’ Pensei também em Lygia Clark por sua énfase nas proposicées, como quando, por ‘exemplo, ela afrma em 1968: “somos 0s propositores: nossa propasi¢éo € 0 didlogo"”. Nese sentido, interessa-me sua relagéo com certos gestos, entre os quals adquire uma grande intensidade a proposta de execuco do “Caminhando” de 1964. Para Lygia,“otnico sentido dessa experiéncia reside no ato de fazé-a. Aobraéo seuato™®, ‘As produces que nos interessarn neste estudo, comionos exernplos enfocadosa partir de ‘Allan Kaprow e Cildo Meireles, extravasam constantemente as préticas rtisticas tradicional ‘0u © espaco de uma concepeio circunscrita da arte. Elas so desviantes. Elas produzem movimentos, um deslocamento constante evitando posigées fas e 0 isolamento de outras atividades e conhecimentos. Elas evitam posicées identificivels de uma forma unfvoca, a0 recair sobre situagSes nao consideradas como artisticas numa sociedacle marcada pela dvisio do trabalho. Ela sao propositvas no sentido ern que néo ha um objeto artstico pronto para ser apreciado, mas antes um processo. A frase de Duchamp “aqueles que olham so 0s que fazem os quadros” parece estar de alguma maneira ainda relacionada a uma separagio entre produtor e observador. Em outras palavras, existe alguém que produz um objeto e alguém que produz um certo olhar sobre esse objeto apresentado. Ela supée, num certo sentido, uma ogo de piblico, como no teatro oune cinema, Nas propostas e nasagbes das quals nos fala Kaprow ou Cildo Meireles nao hi um pablico,ndo hd ninguém assistindo, ro he testerunhas oculares, Dessa forma, ocorre aquialgo que podertamos chamar de auto-opresentacéo. Aquele ue toma parte nesse processo incui-se como alguém que produz uma experiéncia de fazer e ‘bre uma experincia de sentir e pensar, ou pensar, sentir, fazer: os termos encontrando-se inter-relacionados e nao necessariamente numa ordem estabelecida. Essas produces ou proposigées possuem também em comum uma énfase nas relagées e investem sobre 0 mundo, af inscrevendo possibilidades de critica ou autoconhecimento, subjetividades e questionamentos. Els so meios e no fins, formas de pensar, de viver ede agit om HELIO FERVENTA artista plistco, doutorem Artes lista na Université Pai anteon-Srdonne( 1995). € professor do Instituto de Artes da UFRGS -DAV/ PPG, pesquisador do CNPq, Coordenao grupo de pesquisa Hculas da Arte Desenvove atividaes juno a programa FPES- Perdis Epa ao Projet Areal Rutor do iro O + és Escritras Edita, Séo alo, 2003, Partpa como co-2tor os ios tara no processs arcs conteparneos SHC Eto da UFRGS, Porto Alegre, 2004, e Granda —Ensaiosem marratias ius Editora da UFRGS, Porto Alegre, 200. aber Filion. Temp. I: spacer Miaschs ~ Robert iio ego Chis DAMA, nme 45, oil, 198, p38 7 Aber Flo, La wee de a Espces Mranchs~ bert fio, coli Chis DAMA, mimeo 45, Peal 18, p37 Aber Flo, La vee de a paces Manchis~ be Fillo, coli Cais DAE, nim 45, Peal 198%, 937 yp Car, Cli de Brasilia Conemporine. Ki de Janeiro UNAMTE, 180, 931 a yg lath Colao dt Brasilia Conremporsne. Wiad Janeiro FUWATE, 1980, p2s.

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