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Estrutura e funcionamento do Poder

Legislativo

José Afonso da Silva

Sumário
1. O poder. 2. Funções do Poder Legislativo.
3. A função de representação. 4. A estrutura do
Poder Legislativo. 5. Função legislativa. 6. Fun-
ção legislativa e processo legislativo. 7. Função
de legitimação governamental. 8. Função de fis-
calização e controle. 9. Função de juízo político.
10. Função constituinte. 11. Conclusão.

1. O poder
Queremos apenas levantar algumas
consideração sobre o Poder Legislativo, sua
estrutura, seu funcionamento.1 Poder Legisla-
tivo é manifestação do Poder. Diz-se que é
um dos Poderes do Estado. Por isso, gos-
taríamos de começar com algumas coisas
bastante conhecidas, a respeito da ideia de
Poder que é, como sabem, um fenômeno
cultural, um fenômeno que ocorre em qual-
quer sociedade, porque, ao se associar, ao
se inserir num grupo organizado, a pessoa
sabe que esse grupo, como um todo, pode
impor restrições, limitações à atuação de
seus membros, pode exigir certos tipos de
1
Este artigo foi composto para esta publicação
na Revista de Informação Legislativa. Não obstante,
nessa composição entraram passagens aproveitadas
de obras do autor, especialmente do Curso de Direito
Constitucional Positivo, 33a ed., São Paulo, Malheiros,
2010; Comentário Contextual à Constituição, 6a ed., São
Paulo, Malheiros, 2009, e Processo Constitucional de For-
mação das Leis, 2a ed., São Paulo, Malheiros, 2006, mas
José Afonso da Silva é Professor Titular só referenciados em casos específicos. Mas também se
aposentado da FADUSP. compõe de partes inteiramente novas e inéditas.

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condutas, em função dos fins sociais do de um único órgão, ela pode até estar, di-
grupo; e, se pode é porque tem tal faculdade, gamos, formal e abstratamente separadas,
tem um poder, é porque tem a capacidade de entregues a mais de um órgão, mas sob o
coordenar e impor decisões ao grupo todo à vista domínio de um deles que poderá até dissol-
de determinados fins, que assim se conceitua ver os outros à vontade, em verdade, não
o Poder. ocorre aí uma divisão de poderes. Para que
Sabemos que a sociedade, organiza- se verifique a separação de poderes, no sen-
da num Estado, tem um Poder especial, tido posto por Montesquieu, são necessá-
qualificado como Poder político, que é ma- rios dois elementos: especialização funcional
nifestação interna da soberania estatal, e, e a independência orgânica. Pela primeira as
como tal, detém algumas características, funções especializadas (legislativa, execu-
como a de unidade, de indivisibilidade e de tiva e jurisdicional) são entregues a órgãos
indelegabilidade. Por isso, toda vez que se separados, enquanto a segunda garante
fala em divisão de poderes, sempre surge a autonomia a esses órgãos separados (daí,
indagação: em que sentido se deve tomar falar-se em separação de poderes).
a expressão para que se harmonize com a Não se trata, logo se vê, de uma divisão
ideia de indivisibilidade do poder? Demais, de poderes abstrata, de uma divisão do
falar-se em divisão de poderes, sem mais poder do Estado em si mesmo considerada
explicação, dá a ideia de que há vários po- (que seria impossível), mas de uma divisão
deres. Em que sentido esse plural é correto? concreta, organizadora do Direito ou como
Em que sentido é correto dizer que o Poder forma de organização jurídica das manifes-
Legislativo é um dos poderes do Estado, sem tações do Poder.
que isso signifique a quebra da unidade do
Poder estatal, sem que isso queira dizer que
2. Funções do Poder Legislativo
a soberania estatal é múltipla? Se se disser
que o Poder Legislativo é um dos poderes É nesse contexto que se situa o Poder Le-
da soberania, já se aproxima da ideia de que gislativo, expressão que, na teoria de divisão
o Poder é uno, mas se manifesta por várias de poderes, exprime duas ideias necessa-
funções, um centro de que emanam fluidos riamente interdependentes: (a) poder legis-
de poder, fluidos de dominação, projeção de lativo no sentido de função legislativa, como
tarefas que incumbem ao Estado. Não fora está no art. 44 da Constituição de 1988 (O
isso, o Poder seria estático. É pelas funções Poder Legislativo é exercido pelo Congresso
que ele atua, realiza suas finalidades. Nacional; vale dizer: a função legislativa
Temos, por aí, a compreensão de que o é exercida pelo Congresso Nacional: aí a
poder político, o poder estatal, desenvolve especialização de função), e (b) Poder Legis-
três funções fundamentais: a legislativa, a lativo no sentido de órgão ou órgãos que
executiva e a jurisdicional, que podem ser exercem a função legislativa, e é o sentido
exercidas por um órgão só, e temos então que está no art. 2o da Constituição de 1988
a concentração de poderes, ou por mais quando declara que são Poderes da União
de um órgão, e podemos aí chegar até a o Legislativo, o Executivo e o Judiciário,
chamada divisão ou separação de poderes. independentes e harmônicos entre si (aí a
O que não devemos confundir é a distinção independência orgânica). Note-se que, no caso
de funções com a divisão de poderes. Se do Judiciário, há duas palavras, uma que
aquelas funções distintas (a de criar normas exprime a função jurisdicional, e outra que
gerais, impessoais etc, chamada legislativa, exprime o órgão judiciário.
a de executar e administrar e de solucionar Poder Legislativo é, pois, o órgão coletivo
conflitos de interesse) estiverem concen- (ou conjunto de órgãos coletivos) compos-
tradas num único órgão, ou sob o domínio tos de membros eleitos pelo povo destinado

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a exercer a função de legislar e outras que a 3. A função de representação
doutrina costuma destacar. Quando se fala
A ideia de representação foi, pois, o móvel
em funções do Poder Legislativo, está-se
que causou não só o surgimento mas tam-
pensando nas funções que se atribuem aos
bém a estrutura do Poder Legislativo. Este
órgãos desse Poder. Esquematicamente, po-
não existiu na antiguidade porque a ideia
demos dizer que as funções fundamentais
de representação não existia. Existiram,
do Poder Legislativo são a de representação,
sim, assembleias deliberantes como meio
a de legislação, a de legitimação da ação go-
vernamental, a de controle, a de juízo político de participação direta do povo no processo
e a constituinte. do poder: conselhos gentílicos, os comitia
Em verdade, se formos buscar no reces- (de lei; outros: judicial e eleitoral), assem-
so da história a explicação e os fundamen- bleias da plebe (Roma), a ecclesia (Grécia).
tos do Poder Legislativo, poderíamos até Essas assembleia não tinham caráter de
dizer que todas as suas funções são funções órgãos, mas eram apenas reuniões do povo
de controle, porque ele se desenvolveu para fins determinados.
como órgão de representação destinado a A antiguidade, enfim, não conheceu o
controlar o poder do soberano. Aí é que regime representativo, pois o povo exercia
se deve buscar resposta às perguntas: por por si mesmo o poder na forma de governo
que foi criado o Poder Legislativo? Por direto. Na Idade Média, desapareceram as
que o Poder Legislativo é assim, e não de assembleias do povo, em virtude da trans-
outro modo? Como chegou a ser como é? formação da estrutura social, que impedia
Que forças e ideias lhe deram causa? Tais toda ação governamental direta. Em seu
perguntas não de dirigem a causas empiri- lugar, surgiu a representação política. Forjam-
camente descritivas mas aos fundamentos se, aos poucos, no bojo da Idade Média,
reais, aos motivos concebidos a partir de as assembleias de caráter representativo.
contexto histórico. Carré de Malberg observa que as origens
A ideia de representação é que responde da representação se ligam à concepção
pela origem e desenvolvimento do Poder feudal, segundo a qual os vassalos devem
Legislativo. Mas, como disse Barbera, a assistência ao rei, que, de seu lado, é levado
ideia força da representação mostrou logo a consultá-los, a fim de obter seu assenti-
uma ambiguidade que se manterá intacta mento às prestações que ele pretende lhes
ao longo do tempo: de um lado a “porta impor. É em virtude desse liame feudal
aberta” para os setores sociais até então mútuo, conclui ele, que os reis de França
marginalizados na sociedade política; de convocavam assembleia de prelados e de barões
outro, a “barreira” a um poder de decisão para lhes pedir ajuda e conselhos (1922,
e de intervenção direta do corpo eleito- II/232). Foi uma assembleia de nobres
ral (1991, p. 74). O mesmo Montesquieu (barões) que impôs ao rei João Sem Terra
exprimira eficazmente tal ambiguidade: a assinatura da Magna Carta inglesa em
“Pois que em um Estado livre todo homem 1215. Mas o povo estava ausente, de sorte
que se reconhece uma alma livre deve ser que só se têm mesmo como as primeiras
governado por si mesmo, necessitaria que assembleias representativas aquelas que
o povo em corpo possuísse o poder legis- se formaram a partir da admissão dos
lativo; mas assim como isso é impossível membros das classes livres das cidades e
nos grandes Estados e é sujeito a muita vilas (burgueses, os ditos comuns, isto é,
desordem nos pequenos, ocorre que o povo gente sem nobreza) aos corpos políticos
faça por meio dos seus representantes tudo deliberantes, junto com os nobres e prela-
aquilo que não pode fazer por si próprios” dos. Na Inglaterra, uma assembleia assim
(Liv. XI, VI). se reuniu em 1295, formada por prelados,

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barões e deputados dos condados, cidades A representação, então, se exercia me-
e burgos, constituindo uma representação diante um mandato imperativo, pelo qual o
completa de todos os estamentos sociais. representante ficava jungido a instruções
Em 1302, Philipe, o Belo, reuniu, pela pri- que recebia de seus eleitores. Ele vigorou
meira vez em França, em uma assembleia até a Revolução Francesa de 1789. Esta criou
plena, os nobres e prelados e também os o mandato representativo. A Lei de 22 de
representantes das cidades. Foi a origem dezembro de 1789 lhe dá definição precisa:
dos Estados Gerais. A assembleia do povo “os representantes nomeados pelos depar-
constitui o Terceiro Estado. A representação tamentos não poderão ser considerados
tinha assim uma estrutura estamental, em como representantes de um departamento
que dois órgãos se separavam em função particular mas como representantes da tota-
da natureza da representação: um represen- lidade dos departamentos, ou seja da Nação
tando os interesse da aristocracia (prelados inteira”.2 É um mandato, pois, geral, livre e
e nobres) e outro os interesse gerais do povo irrevogável (em princípio). Isso se modifi-
(burgueses, então). cou depois com o sistema de partidos que
Essas assembleias desapareceram com transformou o mandato em mandato político
o desenvolvimento da monarquia absolu- partidário com certa característica de man-
ta, que, a partir do século XVI, aboliu as dato imperativo, desde que o representante
cortes feudais, unificou o Estado, conver- fica na obrigação de cumprir o programa
giu a soberania para os órgãos centrais e partidário. Demais, aquela ideia da citada
criou a concepção de um Estado moderno lei estava vinculada ao princípio da sobe-
unificado, centralizado e despoticamente rania nacional, ao passo que hoje vigora o
governado. Só o Parlamento inglês conse- princípio da soberania popular.
guiu sobreviver e progredir, superando
o absolutismo monárquico. Além disso, 4. A estrutura do Poder Legislativo
dentro do processo de desenvolvimento do
Estado absoluto, foi-se forjando a antítese Essa questão, contudo, está ligada à es-
do status quo: a força da burguesia, detento- trutura do Poder Legislativo. Como vimos, a
ra da riqueza financeira da época, com sua ideia de representação se associava à ideia
ideologia de um Estado liberal. de interesses estamentais: nobres repre-
O Parlamento inglês perdurou com sua sentavam nobres, comuns representavam
estrutura estamental: Câmara dos Lordes, vi- comuns, cada qual com sua Câmara, o que
talícia, representativa da nobreza, e Câmara deu a estrutura bicameral do Poder Legisla-
dos Comuns, de representação popular. Seu tivo. Ora, o princípio da soberania nacional,
poder foi crescendo cada vez mais. A ideia segundo o qual o representante representa
de representação é que fundamentou as exi- a Nação e também o princípio da soberania
gências de que o monarca só poderia impor popular segundo o qual o representante
sacrifício ao povo com o consentimento de é mandatário de todo o povo, deveriam,
seus representantes. O Parlamento assumia, logicamente, resultar no unicameralismo. A
aos poucos, uma função autorizativa, que, sobrevivência do bicameralismo após o es-
no fundo, era uma função de controle do tabelecimento da democracia se deve a vá-
poder monárquico. Demorou muito até que rio fatores. Na França, o bicameralismo foi
o Parlamento passasse a exercer uma típica deliberadamente estabelecido para ensejar o
função legislativa. A sua função, nesse cam- controle de uma Câmara Alta conservadora
po, não era mais do que autorizativa, a de 2
Isso significava proibir o mandato imperativo.
dar o seu assentimento ou retirá-lo quando Curioso é que ainda hoje a Constituição francesa pro-
solicitações lhe eram submetidas pelo rei. A íbe o mandato imperativo, ao estatuir: “Tous mandat
função de legislar veio mais tarde. imperatif est nul” (art. 27, al. 1).

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sobre a legislação presumidamente precipi- renovável alternativamente de quatro em
tada, mal informada ou radical da Câmara quatro anos por um e dois terços.
Popular (Rodee, Anderson e Christol, 1959, O que caracteriza o bicameralismo não
I/129). Em geral foi isso que aconteceu. é tanto o fato de se terem duas Câmaras,
O bicameralismo, ou seja, a organização mas o fato de as duas Câmara exercerem
do Poder Legislativo em duas Câmaras, é funções idênticas. Isso se dá mesmo quan-
da tradição constitucional brasileira. A As- do se reconheçam algumas competências
sembleia Geral do Império compunha-se da privativas a cada uma delas como tem sido
Câmara dos Deputados, eletiva e temporária no Brasil (arts. 51 e 52). O certo é que as
(legislatura de quatro anos), e do Senado, funções básicas são idênticas. É a isso que
composto de Senadores vitalícios. Não era se chama bicameralismo paritário. Por certo
tipicamente uma câmara de nobres, mas era que isso não é essencial ao federalismo. A
aristocrática. A Constituição de l891, ado- Constituição de 1934 rompeu com esse tipo
tando o federalismo, consagrou o bicame- de bicameralismo. Embora tenha mantido
ralismo sob a ideia de que ele é essencial ao o Senado Federal, o poder legislativo era
sistema federativo, dogma que se formou exercido só pela Câmara dos Deputados,
quando da estruturação do Poder Legisla- composta de representantes do povo com
tivo do Estados Unidos em 1787, onde, na a colaboração daquele. Tanto que o Senado,
verdade, se organizaram duas Câmaras por composto de representantes dos Estados,
razões concretas, pois, inicialmente a ideia não foi previsto no capítulo do Poder Legis-
que predominava no seio da Convenção de lativo, mas no da coordenação dos poderes. Sua
Filadélfia era a da formação de uma Câma- competência foi diminuída, restringindo-se
ra só. Surgiu, então, um impasse, porque quase só à matéria vinculada à estrutura
os representantes dos Estados pequenos federativa. Nesses termos, o Senado cobra
queriam representação igualitária nessa sentido como órgão de equilíbrio do siste-
Câmara, enquanto os Estados grandes, ma federativo, ficando a Câmara popular
populosos, pleiteavam uma representação como órgão legislativo por excelência. Sob
proporcional à sua população. O impasse se certos aspectos, pois havia unicameralismo;
resolveu com a proposta de se criarem duas sob outros, bicameralismo. É o chamado
Câmara, uma composta de representantes bicameralismo desigual. Ou unicameralismo
do povo, que seriam eleitos proporcional- imperfeito. O bicameralismo da Alemanha é
mente à população dos Estados (Câmara um pouco assim. A tendência contemporâ-
dos Representantes), e outra composta de nea é realmente a de limitar as atribuições
representantes dos Estados-membros, com da Câmara Alta. Na Inglaterra, vigora de
representação paritária, lá dois por Estado fato o unicameralismo, já que a Câmara dos
(Senado Federal). Lordes perdeu, praticamente, todas suas
As Constituições brasileiras seguem funções legislativas.
esse dogma, como a de 1988, que adota a A questão do bicamealismo retorna ao
estrutura bicameral: poder legislativo exer- debate com frequência. No mínimo se dis-
cido pelo Congresso Nacional composto cute se é ainda pertinente um bicameralismo
de Câmara dos Deputados e do Senado igualitário ou paritário. Há muitos anos,
Federal, aquela composta de representantes pronunciei-me sobre o tema, condenando
do povo, eleitos pelo sistema proporcional, radicalmente o bicameralismo. Mas reco-
em cada Estado e no Distrito Federal, para nheço que o bicameralismo continua a ser
um mandato de quatro anos, e o Senado defendido, tanto para os Estados federais
composto de três representantes de cada como para os unitários. Como lembrei,
Estado e Distrito Federal eleitos pelo siste- então, são os seguintes os argumentos fa-
ma majoritário, com mandato de oito anos, voráveis ao bicameralismo: I – argumento

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tradicional relacionado com a estrutura fatos, mas ainda com a própria teoria do
do Parlamento inglês, dos Estados Gerais direito constitucional moderno. É certo
franceses e das antigas Cortes castelhanas que aquele velho raciocínio da unidade da
que, refletindo a estrutura estamental da soberania, com que alguns refutam o bica-
Idade Média, deliberavam por classes; II – meralismo, por entenderem que a unidade
maior efetividade do princípio representativo, do povo representado exige a unidade do
porquanto o sistema bicameral permite (a) órgão que o representa, não pode ser toma-
refletir mais adequadamente a constituição do como de valor concreto e preponderante
social de um povo, o que justifica a existên- em favor do unicameralismo. Mas basear-se
cia de uma segunda Câmara aristocrática; na tradição para sustentar o bicameralismo
(b) espelhar no Congresso a complexa es- é pretender a estagnação das instituições
trutura dos Estados federais; (c) estabelecer políticas. O fato de em certos momentos
a representação sobre um duplo regime de históricos uma instituição corresponder
sufrágio direto ou indireto, ou uma dupla à realidade vigente não é motivo para
base representativa (individual ou corpora- transformá-la num dogma absoluto.
tiva), ou um duplo sistema de representação Inegável é que, de modo geral – mesmo
(proporcional e majoritário); III – maior refle- nos Estados federais – o bicameralismo
xão na função deliberante: (a) o bicameralismo reflete um elemento conservador. Todos
assegura uma dupla discussão e, portanto, os argumentos em seu favor visam tolher
uma maior maturidade das resoluções ado- o progresso, a influência popular na for-
tadas em comum por ambas as Câmaras, mação das leis, contrariando o princípio da
pois, dizem, a existência de uma Câmara soberania popular. Boa parte da doutrina
de reflexão evita as medidas precipitadas reconhece que a democracia se acomodaria
ou apaixonadas; (b) se as Câmaras não melhor no sistema unicameral, na medida em
têm poderes iguais, ou seus membros têm que considera o bicameralismo uma institui-
origem diversa ou representação distinta, ção essencialmente destinada a canalizar e a
ou simplesmente foram eleitos em tempos temperar os elãs da soberania popular, que,
diversos, permitem matizar com maior dizem, se exprimiriam muito brutalmente
riqueza o contraste de pareceres, objeto numa Câmara única. Kelsen também sus-
da deliberação; (c) a existência de uma se- tentou que o unicameralismo corresponde
gunda Câmara permite o diálogo entre os melhor à ideia da democracia e, ao fazer,
membros de ambas as Câmaras; (d) no seio concessão ao bicameralismo, o fez em favor
da segunda Câmara podem figurar muitas de um bicameralismo desigual. In verbis:
pessoas de valor que, por razões diversas, “O sistema unicameral parece corres-
desejam estar à margem das lutas eleitorais ponder mais intimamente à ideia da
que normalmente têm eco na Câmara baixa, democracia. O bicameral, típico da
argumento este que justificou os Senadores monarquia constitucional e do Esta-
biônicos do regime militar, e também os do federal, é sempre uma atenuação
Senadores nomeados e vitalícios do sistema do princípio democrático. As duas
italiano; IV – sustentam que o sistema bica- câmaras têm que ser formadas de
meral exerce uma função moderadora do acordo com princípios diversos, a fim
Poder Legislativo, evitando a ditadura de de que uma delas não seja a supérflua
uma Câmara única ou de um líder podero- duplicação da outra. Se uma delas é
so, e impede que os órgãos do executivo se perfeitamente democrática, à outra
vejam deslocados a um segundo plano. tem que faltar-lhe em alguma medida
Pensamos que os argumentos favorá- esse caráter” (Kelsen, 1958, p. 354).
veis ao bicameralismo contêm elementos Diz-se que o bicameralismo é uma con-
contraditórios, não só com a realidade dos sequência lógica da estrutura federal, do

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princípio federalista; de um lado, o Estado “2. Cada Estado (Land) tem pelo me-
federal se apresenta como um bloco único, nos três votos, Estados como mais de
como uma só nação; de outro, ele aparece dois milhões de habitantes têm qua-
como formado de Estados-membros, que tro, os que contam com mais de seis
conservam larga autonomia, e o governo milhões de habitantes têm cinco, os
federal deve refletir esse duplo caráter. Isso que contam com mais de sete milhões
importa na separação do Poder Legislativo de habitantes têm seis votos.
em dois ramos: um emanado do povo con- “3. Cada Estado pode designar tantos
siderado no seu conjunto, na sua unidade; membros quantos votos tiver. Os
outro formado de delegados próprios de votos de um Estado só podem ser ex-
cada Estado-membro. pressos globalmente e por membros
A realidade contraria o argumento. Ora, presentes ou seus substitutos”.
no federalismo brasileiro, como no dos Aí temos uma situação bem peculiar de
Estados Unidos, os Senadores não são de- uma federação, em que a representação se
legados dos Estados. São eleitos pelo povo, faz por delegação dos governos estaduais,
através de partidos políticos, tal como os como era nos Estados Unidos no início de
Deputados. Exercem, portanto, um man- sua federação. a diferença é que nos Esta-
dato representativo partidário. Por isso, dos Unidos a representação sempre foi de
não raro os Senadores de um Estado são dois Senadores por Estado-membro, en-
opositores do governante estadual. Como quanto na República Federal da Alemanha
é que pode representar o Estado, sem estar ela é proporcional ao número de habitantes
de acordo com o governo estadual? Aquele do Estado.
princípio da lei francesa de 22 de dezembro Os dispositivos constitucionais transcri-
de 1789, segundo o qual o Deputado eleito tos confirmam aquilo que dissemos acima,
por um departamento (no Brasil, por um qual seja, o de que, em tal caso, a represen-
Estado) não representa o departamento, tação não é dos Estados-membros, mas dos
mas toda a Nação ou o povo todo, há governos estaduais, tanto que são eles que
muito perdeu sentido entre nós. Estamos nomeiam e destituem o representante. Em
aí assistindo ao grande debate sobre a verdade, é falsa a ideia de representação
desproporcionalidade da representação dos de área. Ninguém pode representar uma
Estados na Câmara dos Deputados, para área, um território. Nesse sentido, valem
mostrar que a realidade é que as bancadas as palavras de Harvey Walker:
estaduais defendem basicamente os inte- “A representação de áreas, ou apenas
resses de seus Estados. adição a elas, em vez de representa-
É verdade que, na federação alemã, os ção num corpo legislativo tem lugar
membros do Senado (Conselho Federal) são pequeno numa democracia; em ver-
delegados dos Estados-membros. Mas isso dade, não se pode representar uma
não significa representação dos Estados, área. Representa-se o povo que nela
mas do governo do Estado que designa o vive. Se eles são menor em número do
representante, como uma espécie de em- que os que são representados no mes-
baixador. Diz o art. 51 da Lei Fundamental mo corpo por um outro legislador,
Alemã: há desequilíbrio antidemocrático”.
“1. O Conselho Federal se compõe de (Silva, 2006, p. 78).
membros dos governos dos Estados Enfim, o bicameralismo igualitário consti-
(Länder), que os designam e desti- tui uma supérflua duplicidade de Câmaras,
tuem. Os membros do Conselho po- sem nenhuma vantagem para o princípio
dem fazer-se representar por outros representativo, que se realizará, talvez com
membros dos seus governos. mais fidelidade, no unicameralismo, nem

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para a função de legitimação e talvez menos rio responder às necessidades das massas
para a função de controle. Propus certa vez populares e que isso só se alcança pela
o abandono do bicameralismo, mas, a rigor, intervenção do Estado na vida econômica,
revendo minha proposta hoje, verifico social e cultural da nação, trouxe à Admi-
que também não pleiteio o unicameralismo nistração Pública uma soma de encargos
perfeito. tão grande que os trabalhos legislativos
De fato, num texto de mais de quarenta aumentaram fabulosamente. A mudança
anos, apresentei uma proposta, que, em sín- das condições sociais requer modificação
tese, consistia em abandonar-se o bicame- das regras de governar a sociedade que
ralismo e, em seu lugar, adotar um Poder se volta, cada vez mais, para os serviços
Legislativo unicameral, fundindo-se Sena- públicos, buscando resposta às suas ne-
do Federal e Câmara dos Deputados numa cessidades e reivindicações, de onde se
Câmara Federal única, reestruturando-a alarga, mais e mais, o escopo da atividade
internamente, de modo a separar suas fun- legislativa, desde que é somente através
ções política, fiscalizadora ou de controle, da ação legislativa que se podem ajustar
de sua função legislativa, conferindo esses as organizações governamentais para o
dois aspectos de sua atividade a órgãos in- desempenho de seus encargos.
ternos distintos: Plenário e Comissões (Silva, Ora, o Congresso Nacional bicameral
1964, pp. 291s). De lá para cá, convenci- funciona mal. Por um lado, porque man-
me, no entanto, de que a ideia de Senado tém, para um Estado agigantado, uma es-
Federal, nas nossas instituições, está tão trutura parlamentar do Estado liberal, onde
arraigada que pretender sua eliminação é a função legislativa era mínima. Por outro
bater-se na abstração. Continuo convenci- lado, por uma perversa herança do regime
do de que o bicameralismo precisa sofrer militar que desprestigiou as instituições
profundas transformações. No mínimo, representativas. O duplo centralismo do
deveríamos refletir sobre o bicameralismo regime gerou distorções no funcionamento
da Constituição de 1934, onde o Senado do Congresso, como certa vez lembrou Nel-
tinha uma função predominantemente de son Jobim. Por um lado, o Poder Executivo
controle. Talvez pudéssemos pensar num centralizava a formulação e as decisões da
bicameralismo diferenciado em que a Câmara política nacional. O Congresso foi posto à
tenha predominante função legislativo e o margem desse processo. De outro lado, o
Senado predominante função de controle centralismo financeiro da União, em de-
(Barbera, 1991, p. 119). trimento de Estados e Município, criava
dependência econômico-financeira destes
àquela. Estados e Municípios, assim, se
5. Função legislativa
deram conta de que não havia necessidade
A Ciência Política sempre se debruça de mandar para o Congresso formuladores
sobre o sistema de funcionamento do Poder de política nacional. O que era necessário
Legislativo em todo o mundo, reconhe- era que o Deputado e o Senador fossem
cendo a existência de crise profunda na capazes de transacionar transferências de
atividade legisferante, crise que decorre do recursos a eles. O parlamentar não tinha
incremento da função legislativo do Estado que estar na Câmara ou no Senado para as
contemporâneo, cuja missão se ampliara decisões legislativas, de resto puramente
muito, para satisfazer as necessidades co- homologatórias da vontade do Presidente
letivas. O reconhecimento, enfim, de que militar. Ele tinha era que estar na ante-sala
democracia não há de ser uma palavra vã dos Ministérios para conseguir recursos
e vazia de conteúdo social, de que, para se para sua região, sob pena de não se ree-
poder chamar assim um regime, é necessá- leger.

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O bicameralismo, por sua vez, contribui Mas o funcionamento do Congresso
para emperrar a legislação. Nele, as Casas requer ainda organização interna apro-
do Congresso funcionam separadamente. priada de cada uma de suas Casas, que, no
Para tanto, cada qual elabora seu Regimento respectivo regimento, estabelece os órgãos
Interno, dispõe sobre sua organização, fun- destinados a executar os trabalhos legisla-
cionamento, polícia, criação, transformação tivos. A Constituição, contudo, já dispõe
ou extinção dos cargos, empregos e funções sobre a formação e competência básica de
de seus serviços e fixação da respectiva seus principais órgãos internos: a Mesa e as
remuneração. Criam elas assim suas leis in- Comissões.
ternas que disciplinam seu funcionamento
sem interferência uma na outra ou de outro
6. Função legislativa e
órgão governamental.
Há casos, porém, em que as duas Casas
processo legislativo
do Congresso funcionam em sessão conjun- A função legislativa tem por objeto a
ta: para inaugurar a sessão legislativa, re- formação das leis, sobre as matérias que
gular a criação de serviços comuns às duas a Constituição submete ao princípio da
Casas, receber compromisso do Presidente legalidade. É uma função que o Poder
da República, para conhecer do veto e sobre Legislativo exerce com a colaboração do
ele deliberar (CF, art. 57, § 3o) e, também, Poder Executivo, como se vê do art. 48 da
para apreciar projetos de lei relativos ao Constituição: Cabe ao Congresso Nacional,
plano plurianual, às diretrizes orçamen- com a sanção do Presidente da República,
tárias, aos orçamento anual e aos créditos dispor sobre todas as matérias de competência
adicionais (CF, art. 166). Para regular o da União, especialmente as ali enumeradas.
funcionamento em conjunto, o Congresso O Poder Executivo colabora na feitura da
elabora o Regimento Comum. lei, não só pela sanção, mas também pela
É no campo da formação das leis que iniciativa e pelo veto.
a superfluidade da duplicação cameral se Não cabe, no âmbito desta exposição,
revela claramente. Tome-se um projeto de aprofundar a problemática da lei, mas
lei iniciado na Câmara dos Deputados - e convém realçar a sua relevância no Estado
nisto ela tem primazia; aprovado aí, é re- contemporâneo, não apenas quanto ao
metido ao Senado; este o aprova sem emen- seu conceito formal de ato jurídico abstrato,
das, aprova-o com emendas ou rejeita-o; geral, obrigatório e modificativo da ordem ju-
no primeiro caso, prova que a Câmara de rídica existente, mas também quanto à sua
revisão era desnecessária; no segundo, o natureza de regulamentação fundamental
projeto emendado volta à Câmara, que e importante, produzida segundo um
poderá acolher as emendas do Senado, processo constitucionalmente qualificado.
no que reconhece a colaboração deste, ou Ela é, ainda, o ato oficial de maior realce
rejeitar as emendas, valendo dizer que o na vida política. Ato de decisão política
pronunciamento da segunda Câmara foi por excelência, é por meio dela que o po-
inútil; no terceiro caso, o veto do Senado der estatal propicia ao viver social modos
tem valor relativo, porque a matéria pode predeterminados de conduta, de maneira
constituir objeto de novo projeto, na mesma que os membros da sociedade saibam, de
sessão legislativa, por proposta da maioria antemão, como pautar-se na realização de
absoluta dos membros de qualquer das seus interesses individuais.
Casas do Congresso Nacional (CF, art. 67), Mas não é ainda aqui que se manifesta
e fora da sessão legislativa até por iniciativa sua maior relevância. É na sua função no
individual, e por iniciativa do Presidente da Estado contemporâneo que se ressalta seu
República a qualquer tempo. relevo. Pois, o Estado democrático de direi-

Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 145


to, o Estado benfeitor, o Estado repartidor, Daí se vê a importância do processo legis-
na terminologia de Christian Stark, não lativo, que é o conjunto de atos coordenados
pode ficar limitado a um conceito de lei, destinados a produzir a lei, tais como o
como o que imperou no Estado de direito ato de iniciativa legislativo, o de emendas,
clássico. Pois tem que estar em condições de votação, sanção, veto, promulgação e
de realizar, mediante a lei, intervenções publicação.
que impliquem diretamente uma altera- A iniciativa legislativa é, talvez, o ato de
ção na situação da comunidade. Significa maior relevo no processos legislativo, pois
dizer que a lei não deve ficar numa esfera não se resume no direito de apresentar
puramente normativa, mas deve influir na projetos de lei ao Poder Legislativo. Este
realidade social. Isto é, não pode ser sim- é um momento instrumental da iniciativa,
plesmente lei de arbitragem, lei que arbitra, porque o projeto de lei é mero instrumento
simplesmente, os conflitos interindividuais formal da atuação do poder de iniciativa
ou intersubjetivos, como ocorria no Estado legislativa, que é um momento culminante
liberal, apenas visando à manutenção da da atuação do poder político no processo
ordem. Há, também, que ser lei de transfor- de formação das leis. É aí que se dá a inter-
mação, lei destinada a interferir na direção ferência do poder na predeterminação das
da economia e realizar o desenvolvimento normas jurídicas, na formação escrita das
nacional. Ela é, por isso, reconhecida como regras de conduta e envolve uma escolha
o instrumento institucional de maior im- das vias possíveis difusas no viver social.
portância no controle social. Se a lei é um meio de transformação de
Mas não é só como técnica de organiza- interesses da ordem social em interesses da
ção social, porque é um instrumento tam- ordem jurídica, bem se vê a importância da
bém de dominação política. Essas caracterís- inciativa das leis, do poder que se reconhece
ticas da lei crescem de relevo na medida em a alguém ou a algum órgão de submeter
que a expansão das tarefas estatais solicita projetos de leis ao Legislativo. A iniciativa
cada vez mais a interferência do legislador legislativa, então, aparece como poder de
no preparo da via necessária para que o escolha de interesses sociais a serem tutela-
Governo atinja os objetivos de um progra- dos pela ordem jurídica. E daí sua conota-
ma político, de onde é fácil compreender a ção de ato político, pois só à função política
importância da ideologia política predomi- cabe escolher livre e discricionariamente as
nante no processo de formação da lei. vias a serem seguidas.
Ressaltemos ainda duas funções rele- Daí, a íntima relação entre a ideologia
vantes que poderá desempenhar a lei em política e a formação das leis, quando o
relação a uma Constituição que se abre às conteúdo dos atos legislativos reflete o con-
transformações econômicas e sociais. Aí, a teúdo ideológico dominante, representado
lei, como primeira expressão do direito po- pelos detentores do poder. É certo que nos
sitivo, se elevará de importância na medida grandes instantes históricos, nos quais se
em que se manifesta como desdobramento sente estar-se vivendo uma sociedade em
necessário do conteúdo da Constituição. transformação, há uma antítese fundamen-
Nesse caso, pode até ser considerada como tal entre a ideologia da classe detentora do
um instrumento de uma Constituição de- poder e da classe postuladora de mudança
mocrática, exercendo função transforma- da qualidade das relações sociais. Estabele-
dora da sociedade, alterando-lhe o controle se, então – se pudermos assim dizer – uma
social, impondo mudanças sociais, ainda lide política, que se concebe como um
que exerça também a função conservado- conflito ideológico qualificado por uma
ra, garantindo a sobrevivência de valores pretensão social resistida pelos detentores
socialmente aceitos. do poder.

146 Revista de Informação Legislativa


Mas, além disso, a iniciativa legislativa é a lei daí resultante. Se não concordar com o
um ato que põe em movimento o processo projeto, vetá-lo-á no todo ou em parte, no
legislativo. Sem iniciativa, os órgãos in- prazo de quinze dias úteis, comunicando
cumbidos do poder de legislar não podem ao Presidente do Senado Federal os mo-
exercer a sua função. Quem tem o poder tivos do veto, em quarenta e oito horas.
de iniciativa detém o domínio do processo O veto será apreciado pelo Congresso em
de formação das leis. E mais, define que sessão conjunta dentro de trinta dias, só
interesses devam ser tutelados pela ordem podendo rejeitá-lo pelo voto da maioria
jurídica. É certo que esse domínio pode ser absoluta dos Deputados e Senadores, em
abrandado, onde o processo legislativo pos- escrutínio secreto. Se o veto for rejeitado,
sibilite o exercício desembaraçado do poder a lei considera-se feita, sendo remetida ao
de emenda parlamentar. É a possibilidade Presidente da República para promulgação
de emendar e de modificar os projetos de e publicação, em quarenta e oito horas. Se o
lei que permite aos parlamentares alterar Presidente não o fizer, fá-lo-á o Presidente
a escolha dos interesses manifestados na do Senado, em igual prazo; se este não o
iniciativa. fizer, o Vice-Presidente do Senado deverá
O processo legislativo, hoje, é dominado fazê-lo.
pelo Executivo, precisamente porque a ele
cabe a iniciativa de leis praticamente sobre
7. Função de legitimação governamental
todas as matérias, mas, sobretudo, porque
ele detém a iniciativa exclusiva sobre ma- Temos que examinar previamente em
térias da mais alta relevância, como são as que sentido o Poder Legislativo exerce uma
arroladas no art. 61, § 1o, e as do art. 166. função de legitimação governamental, de que
Ressalvada a iniciativa exclusiva dos Tribu- fala parte da doutrina, como se pode ver
nais e do Procurador-Geral da República, as em Barbera (1991, pp. 88s). Não se trata
demais hipóteses são de iniciativa também aqui de discutir a legitimidade do poder,
de Deputados, Senadores, Comissões das porque, neste, também estará envolvida a
Casas do Congresso e dos cidadão pela legitimidade do próprio Poder Legislativo.
iniciativa popular na forma prevista no art. Poder legítimo, como se sabe, é aquele que
61, § 2o. Ocorre ainda, em favor do domínio emana da soberania popular. O consenso
do Executivo, o fato de que a Constituição é o seu fundamento. Assim, um primeiro
restringe o poder de emenda parlamentar problema que se nos antepõe é o de saber
nos projetos de leis de iniciativa exclusiva se legitimidade e legitimação são conceitos
do Presidente da República. sinônimos. Se lermos uma passagem de
Aprovado um projeto numa das Câma- João Maurício Adeodato, vamos ver que
ras – a iniciativa predominante é na Câmara são expressões de sentidos diferentes:
dos Deputados, o projeto vai à revisão da “Como o monopólio da produção de
segunda Câmara (geralmente o Senado) normas jurídicas, a ascensão da lei e
que, se acolhê-lo sem emendas, o remeterá à a positivação do direito, a legitimida-
sanção do Presidente da República, se o mo- de faz-se legitimação, o que significa
dificar, volverá à Câmara iniciadora, para transferir a questão de fundamento
apreciar as modificações, aprovando-as para uma ação legitimadora por parte
ou rejeitando-as. Em qualquer hipótese, o do Estado e do ordenamento em
projeto se terá por aprovado, como ou sem geral” (1989, p. 55).
as alterações, e será submetido à sanção Por aí se poderia dizer que a função de
presidencial. O Presidente, por seu lado, legitimação governamental exercida pelo
pode simplesmente aquiescer ao projeto, Poder Legislativo está na produção da lei,
sancionando-o, promulgando e publicando mas aí a função de legitimação se confundi-

Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 147


ria com a função legislativa. A legitimidade dente da República; o Governo é composto
é um atributo que confere adequação do do Presidente do Conselho e dos Ministros
exercício do poder com o esperado por seus e depende da confiança das duas Câmaras
destinatários (Adeodato, 1989, pp. 1 e 19). do Parlamento (arts. 92 e 94).
Dizer que o governo tem legitimidade é re- É nessa situação que se pode falar em
conhecer que ele recebeu da fonte primária função de legitimação governamental por
do poder o atributo que lhe possibilita atuar parte do Poder Legislativo, mas com as
no interesse público. A legitimação é um transformações por que vem passando o
processo pelo qual se atribui legitimidade a parlamentarismo pode-se dizer que essa
quem não há tinha. Pense-se na legitimação função, nos termos postos acima, está em
de um filho ilegítimo pelo processo de seu crise, tanto quanto o parlamentarismo clás-
reconhecimento. Assim também alguém sico. A função de legitimação do governo foi
adquire legitimidade para o exercício do formulada pela doutrina constitucional in-
governo por algum processo de legitima- glesa do séc. XIX, fundada especialmente no
ção. Esse processo é, primariamente, o conceito de soberania do Parlamento e da
eleitoral. É por via de eleição que se confere formação do Governo dele dependente.
o poder de governar. O Poder Legislativo Acontece que, no sistema inglês de hoje,
mesmo só será legítimo na medida em que o chefe do Governo é praticamente eleito
seus membros adquiriram a qualidade de pelo povo, porque o Primeiro Ministro é
legislador conferida pelos eleitores. sempre o chefe do partido que venceu as
Então, agora, podemos voltar ao tema, eleições. A soberania do Parlamento, de
para saber se é certo ou não que o Poder acordo com a qual o Parlamento tinha o
Legislativo exerce função de legitima- poder absoluto da fazer o que quisesse,
ção governamental. Isso ocorre, sim, no fazer e desfazer governo; então, se dizia
parlamentarismo, em que a constituição que essa soberania só não tinha a capacida-
e permanência do governo depende do de de transformar mulher em homem ou
Parlamento. Nesse caso, a investidura de homem em mulher. Assim, o Parlamento
alguém nas funções governamentais de- controlava o Governo. Mas essa situação
pende da aprovação do Parlamento. Essa se transformou ao longo do tempo. “Com
função é tanto mais caracterizada naquelas o desenvolvimento de partidos políticos
Repúblicas em que também o Presidente da organizados e disciplinados, a posição re-
República é investido no cargo por eleição verteu-se de sorte que hoje, de modo geral,
do Parlamento, como na Grécia e na Itá- é o governo que controla o Parlamento em
lia. O art. 30, n. 1, da Constituição grega vez de o Parlamento controlar o governo”
declara que o Presidente da República é (Bogdanor, 2009, p. 15).
eleito pela Câmara dos Deputados para um É certo que os partidos políticos têm
mandato de cinco anos, notando-se que o importante papel na legitimação gover-
Poder Legislativo na Grécia é unicameral namental, na medida em que funcionam
(art. 20, 1); o Governo é constituído por como organizadores, coordenadores e
um Conselho de Ministros (art. 81); sua canalizadores da vontade popular, mas
formação depende da confiança da Câmara não foram só eles que interferiram na
dos Deputados, que pode retirá-la por uma soberania do Parlamento inglês.3 Vários
resolução em consequência da aprovação 3
Bem o diz Hermann Finer: “o povo e o Parlamen-
de uma moção de censura (art. 84). Assim se to são organizados e dirigidos pelos partidos políticos
passa também na Itália, onde o Parlamento e que é difícil, portanto, descobrir a diferente atividade
é bicameral porque se compõe da Câmara desses três organismos. No sistema de governo bri-
tânico a trindade vem a ser um unidade de sentido”
dos deputados e do Senado da República (Cf. Teoria y Practica del Gobierno Moderno, Madrid,
(Constituição, art. 55), o qual elege o Presi- Tecnos, 1964, p. 705).

148 Revista de Informação Legislativa


fatores relevantes atuaram, nesse sentido, a consequência natural de que a função de
com destaque para o ingresso da Grã- legitimação governamental por parte do
Bretanha na Comunidade Européia (1973) Parlamento também foi enfraquecida.
que abriu a possibilidade de o Parlamento Essas transformações são tão relevantes
ser limitado por decisões de uma ordem que até se divide a história constitucional
legal mais elevada; uma consequência que inglesa entre The Old Constitution e The New
se manifestou em 1994 no caso Factortame, Constitution.4
em que a Câmara dos Lordes, na sua qua- Essa função não existe no presidencialis-
lidade de corte de última instância, decidiu mo, a não ser apenas pela produção da lei
desaplicar parte de uma Lei do Parlamento, que tem, certamente, uma função de legiti-
por violação de diretivas da União Euro- mação da ação governamental, na medida
péia. Tal foi o impacto dessa decisão que o em que a lei se revela como fundamento de
Times comentou que a Grã-Bretanha, pela validade das tarefas governamentais, mas
primeira vez em sua história, podia ter uma isso é decorrência da função legislativa,
corte constitucional. (Bogdanor, 2009, p. menos do que da função de legitimação.
57). Outro fator foi o referendum de 1975. É certo que há muitos atos governamen-
Até então nunca tinha havido participação tais que exigem prévia autorização do Po-
popular no processo político inglês, porque der Legislativo, entre os quais os de maior
isso era incompatível com a soberania do significação, por serem fundamentais, são
Parlamento; o mais importante é que o os atos referentes à despesa pública, que se
referendo decidiu pela permanência do revelarão ilegítimos se não atenderem as
Reino Unido na Comunidade Européia, regras orçamentárias que hão de ser apro-
de certo modo por cima do Parlamento. vadas pelo Poder Legislativo. Pode-se mes-
Fator fundamental foi a a expressa adoção mo dizer que os Parlamentos se firmaram
de uma declaração dos direitos humanos como um poder autônomo por meio de sua
para a Grã-Bretanha (The Human Rights atuação financeira; primeiro, autorizando o
Act of 1998), transformando, em sistema levantamento de subsídios especiais para
legal, direitos que eram ínsitos na Common despesas do rei; segundo, pela autoriza-
Law; isto tinha que ter fortes consequências ção para o lançamento de tributos; enfim,
na constituição inglesa; primeiro, porque, pela aprovação do orçamento da receita
com isso, se incorporou, ao sistema inglês, e da despesa, sem o que o rei não podia
a Convenção Europeia de Direito Huma- arrecadar recursos nem realizar despesas
nos; segundo, o Ministério, com isso, ao (Jennings, 1962, pp. 146s). Assim, os atos de
apresentar projeto de lei no Parlamento, declaração de guerra e celebração da paz,
tem que conferir sua compatibilidade com como a celebração de tratados e acordos
a Convenção; terceiro, os Tribunais ingleses internacionais entre outros dependem, para
ficaram com a obrigação de interpretar toda terem validade, da autorização prévia ou
legislação tendo em vista sua compatibili- aprovação do Congresso Nacional. Mas,
dade com a Convenção; finalmente, o que em verdade, nesses casos, já estamos na
é mais relevante, os Tribunais passaram a fronteira da função de controle que cabe ao
poder emitir declaração de incompatibili- Poder Legislativo, ainda que controle com
dade de leis do Parlamento com a Conven- efeito legitimador.
ção. Enfim, tudo isso significa que agora há
coisas que o Parlamento não pode fazer, 4
Isso está claro até no título da obra citada de
o que significa ter sido quebrado ou, no Vernon Bogdanor (Professor of Government, Oxford
Uniersity), ou seja: The New British Constitution, mas
mínimo, enfraquecido substancialmente o especialmente na distribuição da matéria do livro em
princípio de sua soberania (Bogdanor, 2009, Part I: The Old Constitution; Part II: The New Constitu-
pp. 57-60 e 173s). Isso tem, por outro lado, tion; Part III: Beyond the New Constitution.

Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 149


8. Função de fiscalização e controle da administração indireta (art. 49, X); (d)
tomada de contas pela Câmara dos Deputa-
A função de controle pelo Poder Legisla-
dos, quando o Presidente não as prestar no
tivo cresce na proporção em que aumenta
prazo que a Constituição assinala, ou seja,
o domínio do Poder Executivo sobre o pro-
dentro de sessenta dias após a abertura
cesso legislativo. Já nos referimos acima ao
da sessão legislativa, então até 15 de abril
poder financeiro do Poder Legislativo por
(arts. 51, II, e 84, XXIV); (e) controle sobre a
meio dos instrumentos da anualidade dos
nomeação de certas autoridades em que o Se-
orçamentos e o controle das contas públicas nado Federal desempenha papel relevante
(Fix-Zamudio, 1994, p. 21). nos termos do art. 52, III e IV; (f) controle
Não precisamos descer a pormenores, da dívida pública em que o Senado também
basta uma indicação genéricas dos funda- exerce papel importante (art. 52, V, VI, VII
mentos e dos atos pelos quais se realiza a e VIII); (g) finalmente, comissão parlamentar
função de fiscalização e de controle, nas de inquérito.
quais entram as atribuições deliberativas As comissões parlamentares de inquérito,
prevista no art. 49 da Constituição e outras bastante restringidas no regime militar, fo-
que o esquema seguinte destaca. ram prestigiadas pela Constituição vigente,
1) Atribuições de fiscalização e controle me- a ponto de receber poderes de investiga-
diante atividade meramente deliberativas, ção próprios das autoridades judiciárias,
envolvendo a prática de atos concretos, de além de outros previstos nos regimentos
resoluções referendárias, de autorizações, das respectivas Casas. Não há limitação
de aprovações, de sustação de atos, de fi- à sua criação. A Câmara dos Deputados e
xação de situações e de julgamento técnico, o Senado Federal, em conjunto ou separa-
consignados no art. 49, o que é feito por via damente, poderão criar tantas comissões
de decreto legislativo ou de resoluções, se- parlamentares de inquérito quantas julga-
gundo procedimento deliberativo especial rem necessárias. Essa liberdade de criação
de sua competência exclusiva, vale dizer, de comissões parlamentares de inquérito
sem participação do Presidente da Repúbli- depende, contudo, do preenchimento de
ca, de acordo com regras regimentais; três requisitos: (a) requerimento de pelo
2) Atribuições de fiscalização e controle, que menos um terço de membros de cada Casa,
exerce por vários procedimentos, tais como: para as respectivas comissões, ou de ambas,
(a) pedidos de informação, por escrito, enca- para as comissões em conjunto (comissão
minhados pelas Mesas aos Ministros ou mista); (b) ter por objeto a apuração de fato
quaisquer titulares de órgãos diretamente determinado; (c) ter prazo certo de funcio-
subordinados à Presidência da República namento. O Regimento do Senado Federal
(art. 50, § 2o, redação da ECR-4/94), im- (art. 146) declara, a nosso ver com razão,
portando em crime de responsabilidade não serem elas admissíveis sobre matérias
a recusa, ou o não-atendimento no prazo pertinentes: à Câmara dos Deputados; às
de trinta dias, bem como a prestação de atribuições do Poder Judiciário e aos Esta-
informações falsas; (b) controle externo dos. Podemos acrescentar nem pertinentes
com auxílio do Tribunal de Contas e da ao Senado Federal e aos Municípios.
Comissão mista a que se refere o art. 166, Um dos problemas mais sérios das
§ 1o, que compreenderá toda a gama de comissões parlamentares de inquérito
medidas constantes dos arts. 71 e 72, cul- consistia na ineficácia jurídica de suas
minando com o julgamento das contas que conclusões, normalmente dependentes de
anualmente o Presidente da República há apreciação do Plenário da respectiva Casa
de prestar (art. 49, IX); (c) fiscalização e con- ou do Congresso Nacional, que, não raro,
trole dos atos do Poder Executivo, incluídos os as enterrava nos escaninhos das injunções

150 Revista de Informação Legislativa


políticas. A Constituição deu remédio para cionalidade se efetiva por meio de processo
esse mal, ao dizer: sendo suas conclusões, se abstrato, ou seja, num processo em que não
for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, se discute uma relação concreta de direito
para que promova a responsabilidade civil ou material, pois nele se ataca a lei em tese, ou
criminal dos infratores – significando que seja, ataca a lei sem levar em conta seu con-
as conclusões de comissões parlamentares teúdo. O “abstrato” se refere ao processo de
de inquérito são decisões definitivas, cuja controle, não ao objeto a ser controlado. A
executoriedade independe de apreciação lei de efeito concreto não foi excluída da
ou aprovação de outro órgão. Nada im- apreciação na via direta, porque a Consti-
pede que a comissão, por si, submeta suas tuição não distinguiu. O ato administrativo
conclusões ao Plenário, solicitando-lhe individual de efeito concreto foi excluído,
aprovação e providências de sua alçada porque a Constituição só mencionou, para
(Silva, 2010, pp. 515-516 e 520-521). tal efeito, o ato administrativo normativo,
Importante instrumento de que se ser- distinto da lei em si.
ve o Poder Legislativo para o exercício da
função de fiscalização e controle são as leis
9. Função de juízo político
autorizativas; leis que não editam regras de
fundo, mas permitem ao Poder Executivo A função de juízo político é um processo
produzir validamente certos atos (Avril pelo qual se apura a responsabilidade do
e Gicquel, 1996, p. 137). Uma discussão Governo. No parlamentarismo a respon-
sobre elas é importante, para saber se elas sabilidade do Governo, como vimos, não
se submetem ou não ao juízo abstrato de é propriamente um juízo político. Vejamos
inconstitucionalidade. um exemplo. Segundo o art. 20, alínea 1, da
As leis autorizativas, em geral, são de Constituição francesa: “o Governo determina
efeito concreto, são individuais porque au- e conduz a política da nação”, e a alínea 3 ajun-
torizam ou aprovam a prática de determi- ta: “Ele é responsável diante do Parlamento nas
nados atos, e se esgotam nessa autorização condições e segundo os procedimentos previstos
ou aprovação, mas, diferentemente do que nos artigos 49 e 50”. O primeiro afirma, na
ocorre com o ato administrativo individual, alínea 1: “O Primeiro Ministro, após delibe-
as leis de efeito concreto vinculam uma ração do Conselho de Ministros, empenha a
situação para o futuro, e, se contrariarem a responsabilidade do Governo sobre seu progra-
Constituição, não há outro modo de corrigir ma ou eventualmente sobre uma declaração de
o vício senão por via de sua declaração de política geral”; o segundo declara: “Quando
inconstitucionalidade por ação direta. Dir- a Assembleia Nacional adota uma moção de
se-á que existe a via indireta. Acontece que censura ou quanto ela desaprova o programa ou
essas leis, especialmente as que outorgam uma declaração de política geral do Governo, o
benefício pessoais (como as que autori- Primeiro Ministro deve submeter ao Presidente
zam doações, as que concedem pensões da República a demissão de seu Governo”. Dis-
a determinadas pessoas não vinculadas cutimos esse processo antes considerando-
à previdência), por regra não geram um o como de legitimação governamental.
conflito que suscitem legitimidade para Autores franceses, contudo, o têm como
sua impugnação na via incidental. Não nos um procedimento de controle. (Avril e
parece procedente o argumento de que, Gicquel, 1991, pp. 221s) Poderíamos dizer
sendo abstrato o controle, só há de recair que, ontologicamente, se trata do exercício
sobre normas. Mas não é esse o sentido da função de legitimação governamental
do “abstrato” da expressão, ou seja, não com efeito de controle. Essa interpenetração
significa que o objeto do controle há de ser entre as funções do Poder Legislativo é da
abstrato, mas que o controle de inconstitu- sua própria natureza. As leis são resultado

Brasília a. 47 n. 187 jul./set. 2010 151


do exercício da função legislativa, mas têm A decisão do Senado se limita à decre-
efeitos de legitimação e também de controle tação da perda do cargo (a decisão decreta o
da ação governamental. impeachment), com inabilitação, por oito
O juízo político de apuração da respon- anos, para o exercício de função pública. A
sabilidade do Presidente da República, no ideia subjacente era a de que “com inabilita-
presidencialismo, tem natureza diferente ção” importava uma consequência advinda
do engajamento da responsabilidade do da decretação da perda do cargo. Mas o
Governo no parlamentarismo, porque Senado Federal, no caso “Collor de Mello”,
se trata de um processo que visa julgar deu outra interpretação ao texto, de onde
o Presidente nos chamados “crimes de proveio a compreensão de que a renúncia
responsabilidade, conforme disposto nos ao cargo durante o processo de julgamento
arts. 85 e 86 da Constituição de 1988. No não implica sustação deste, porque ele deve
Presidencialismo o próprio Presidente é prosseguir para confirmar a inabilitação
responsável, ficando sujeito à sanção de pelo prazo indicado. Deu-se à perda do car-
perda do cargo por infrações definidas go pela renúncia o mesmo efeito da perda
como crimes de responsabilidade, apuradas por decisão do juízo político. Note-se que
em processo político-administrativo realizado a inabilitação decorre necessariamente da
pelas Casas do Congresso Nacional. pena de perda do cargo, pois o sistema atual
Os “crimes de responsabilidade” dis- não comporta apreciação quanto a saber
tinguem-se em infrações políticas – atentado se cabe ou não cabe a inabilitação. “Com
contra a Constituição, contra a existência da inabilitação” é uma cláusula que significa
União, contra o livre exercício do Poder Le- decorrência necessária, não precisando ser
gislativo, do Poder Judiciário, do Ministério expressamente estabelecida nem medida,
Público e dos poderes constitucionais das pois o tempo também é prefixado pela
unidades da Federação, contra o exercício própria Constituição. No caso “Collor de
dos direitos políticos, individuais e sociais, Mello” o Senado teve que se pronunciar
contra a segurança interna do país (art. 85, precisamente, porque a renúncia se dava
I-IV) – e crimes funcionais – como atentar justamente no momento do julgamento, e
contra a probidade na administração, a lei cumpria verificar, à falta de precedentes, se
orçamentária e o cumprimento das leis e o processo se encerrava ou se prosseguia o
das decisões judiciais (art. 85, V-VII). julgamento para concluir pela aplicação da
O processo dos crimes de responsabilidade pena de inabilitação para a função pública
e dos comuns cometidos pelo Presidente da pelo prazo de oito anos. A decisão foi no
República divide-se em duas partes: juízo sentido de que o julgamento prosseguia; e,
de admissibilidade do processo e processo e prosseguindo, concluiu, como não poderia
julgamento. A acusação pode ser articulada ser diferente, pela inabilitação, conside-
por qualquer brasileiro perante a Câmara rando esta uma pena autônoma. Contudo,
dos Deputados. Esta conhecerá, ou não, da não tem ele autonomia para, aplicando-se
denúncia; não conhecendo, será ela arqui- a pena de perda do cargo, deixar de impor
vada; conhecendo, declarará procedente, ou a inabilitação. Aí ela decorre, por força de
não, a acusação; julgando-a improcedente, consequência, da norma em análise (Silva,
também será arquivada. Se a declarar proce- 2009, pp. 490 e 494).
dente pelo voto de dois terços de seus mem-
bros, autorizará a instauração do processo (arts.
10. Função constituinte
51, I, e 86), passando, então, a matéria (a) à
competência do Senado Federal, se se tratar É a função mediante a qual o Poder
de crime de responsabilidade (arts. 52, I, e 86); Legislativo, no nosso caso, o Congresso
(b) ao STF, se o crime for comum (art. 86). Nacional, por meio da elaboração de emen-

152 Revista de Informação Legislativa


das Constitucionais (art. 60), cria normas mento da atuação do poder de reforma
constitucionais. Esse processo formal de configura limitações formais, que podem ser
mudança constitucional significa que a assim sinteticamente enunciadas: o órgão
mesma Constituição se considera mutável do poder de reforma (ou seja, o Congresso
por via de emendas elaboradas pelo Poder Nacional) há de proceder nos estritos termos
Legislativo ordinário.5 Se a Constituição há expressamente estatuídos na Constituição.
de ser um instrumento de realização de va- A doutrina costuma distribuir as limita-
lores fundamentais de um povo, e se esses ções do poder de reforma em três grupos:
valores, dada sua natureza histórica, são (a) as temporais, (b) as circunstanciais e (c)
mutáveis, intuitivo e compreensível será as materiais (explícitas e implícitas). As
que a obra do constituinte originário, que temporais ocorrem quando a Constituição
retira do povo cambiante a seiva legitima- estabelece que emendas só podem ser
dora de seu produto, seja também suscetível apresentadas dentro de certo tempo. Não
de mudanças. Lembra-se que o poder consti- têm interesse aqui, porque a Constituição
tuinte de um dia não pode condicionar o poder não as previu.
constituinte de amanhã. O que, traduzido em Finalmente, a nós nos parece inadmissí-
outros termos, significa que a Constituição vel a dupla revisão, sustentada por parte da
não poderá nem deverá entender-se como doutrina, segundo a qual as regras sobre
uma lei eterna. É isso mesmo que decorre limitações material ao poder de reforma
das disposições de seu art. 60, que autoriza são revisíveis como as demais. Essa tese
modificações constitucionais. Mas também quer dizer que as chamadas cláusulas pé-
não tem sentido a instauração de processos treas podem ser modificas por meio de um
de mudanças constitucionais sem razões processo de dupla modificação: primeiro,
profundas que justifiquem objetivamente emenda-se o § 4o do art. 60 da Constituição,
a reforma da Constituição, porque, se ela para retirar dele a proibição de emenda nas
não deve ter-se como eterna, também não condições estabelecidas; segundo, retirado
deve ter-se como algo banal, que se altera ao o obstáculo, modifica-se a disposição cons-
sabor de interesses ou dificuldades momen- titucional que era resguardada pela cláusu-
tâneas, não deve ser como um boneco de la eliminada na primeira modificação.6
cera que os detentores do poder o amolde A Constituição, como se vê, conferiu
a seu bel prazer, como está acontecendo ao Congresso Nacional a competência para
entre nós. Emenda-se a Constituição ao elaborar emendas a ela. Deu-se, assim, a
sabor de interesses menores, o que a vem um órgão cons­tituído o poder de emendar
retalhando e retaliando em prejuízo de seu a Constituição. Por isso se lhe dá a de-
poder normativo. nominação de poder constituinte instituído
Discute-se em doutrina sobre os limites ou constituído. Por outro lado, como esse
do poder de reforma constitucional. É inques- seu poder não lhe pertence por natureza,
tionavelmente um poder limitado, porque primariamente, mas, ao contrário, deriva
regrado por normas da própria Consti- de outro (isto é, do poder constituinte
tuição, que lhe impõem procedimento e originário), é que também se lhe reserva o
modo de agir, dos quais não pode arredar, nome de poder constituinte derivado, embora
sob pena de sua obra sair viciada, ficando, pareça mais acertado falar em competência
mesmo, sujeita ao sistema de controle de
constitucionalidade. Esse tipo de regra- 6
Para uma discussão mais aprofundada sobre a
tese da dupla revisão, cf. Virgílio Afonso da Silva, Ulis-
5
Sobre toda essa temática amplamente, cf. José ses, as Sereias e o Poder Constituinte Derivado sobre a
Afonso da Silva, Comentário Constextual à Constituição, inconstitucionalidade da dupla revisão e da alteração
“Comentário ao art. 60”, especificamente pp. 440, n. no quorum de 3/5 para aprovação de emendas consti-
1, e 441, n. 4. tucionais”, em RDA 226: 11-32, out./dez. 2001.

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constituinte derivada ou constituinte de se- e a democracia encontra nelas o primeiro
gundo grau. Trata-se de um problema de sinal de sua existência e de sua vivência.
técnica constitucional, já que seria muito
complicado ter que convocar o constituinte
originário todas as vezes em que fosse ne- Referências
cessário emendar a Constituição. Por isso,
o próprio poder constituinte originário, ao Adeodato, João Maurício Leitão, O Problema da Legi-
estabelecer a Constituição Federal, instituiu timidade, no rastro do pensamento de Hannah Arndt, Rio
um poder constituinte reformador, ou poder de Janeiro, Forense Universitária, 1989.
de reforma constitucional, ou poder de emenda Avril e Gicquel, Pierre e Jean, Droit Parlementaire, 2a
constitucional. ed., Paris, Montchrestien, 1996.
No fundo, contudo, o agente, ou sujeito Barbera, Augusto, Um Riforma per la Repubblica, Roms,
da reforma, é o poder constituinte originário, Editori Riuniti, 1991.
que, por esse método, atua em segundo Bogdanor, Vernon, The New British Constitution, Ox-
grau, de modo indireto, pela outorga de ford, Hart Publishing, 2009.
competência a um órgão constituí­do para,
Fix-Zamudio, Hector, “La Función Actual del Poder
em seu lugar, proceder às modificações Legislativo”, na obra coletiva, El Poder Legislativo
constitucionais, que a realidade exige (Sil- en la Actualidad, México, Câmara dos Deputados/
va, 2010, pp. 64 e 65). UNAM, 1994.
Kelsen, Hans, Teoría General del Derecho y del Estado,
11. Conclusão 2a ed., México, Imprenta Universitaria, 1958, trad. de
Eduardo García Maynez.
Ao fechar este texto, lembramos que em
Malberg, R. Carré de, Constribution a la Théorie Générale
certo momento do seu desenvolvimento (no de l’État, T.II, Pariz, Recueil Sirey, 1922.
7) dissemos que, no fundo, todas funções do
Poder Legislativo são funções de controle. Montesquieu, De l’Esprit des Lois, Liv., XI, VI, Paris,
Garnier, sd.
Nota-se, pelo menos, uma interpenetração
entre as funções, de sorte que, não raro, a Rodee, Carlton Clysmer, Anderson, Totton James e
Christol, Carl Quimby, Introdução à Ciência Política, T.
doutrina emprega umas pelas outras. É
I, Rio de Janeiro, Agir, 1959, trad. de Maria da Glória
perceptível, no entanto, uma caracterização Nin Ferreira.
ontológica que lhes dá a distinção neces-
Silva, José Afonso da, Princípios do Processo de Formação
sária. Por outro lado, não mencionamos a
das Leis no Direito Constitucional, São Paulo, Revista
função política do Poder Legislativo, porque dos Tribunais, 1964.
não é normativamente estabelecida, mas
Silva, José Afonso da, Processo Constitucional de Forma-
ela é de suma importância, porque é por
ção das Leis, 2a ed., São Paulo, Malheiros, 2006.
meio dela que as instituições parlamentares
funcionam como caixa de ressonância das Silva, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional
Positivo, 33a ed., São Paulo, Malheiros, 2010.
aspirações populares. O mais importante,
além do mais, é que os Parlamentos, os Silva, José Afonso da, Comentário Contextual à Consti-
Congressos, Assembleias Legislativas, os tuição, 6a ed., São Paulo, Malheiros, 2009.
órgãos parlamentares enfim, são imprescin- Silva, Virgílio Afonso da Ulisses, as Sereias e o Poder
díveis à vigência dos princípios democráti- Constituinte Derivado sobre a inconstitucionalidade
cos. Por isso, não é sem razão os golpes de da dupla revisão e da alteração no quorum de 3/5 para
aprovação de emendas constitucionais”, em RDA 226:
Estado, os governos autoritários em geral, 11-32, out./dez. 2001.
atingem, antes de tudo, as instituições par-
The Times, 5 de março de 1994.
lamentares. As ditaduras não as apreciam

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