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"Dopamina" (Colômbia), de Natalia Imery Almario

Por Marcelo Miranda

A dopamina é um neurotransmissor que atua no cérebro estimulando


ações fundamentais para os movimentos, o aprendizado, as emoções e
a memória. É também o nome do filme da colombiana Natalia Imery
Almario no qual ela revolve lembranças de infância e tenta
reconfigurar a relação com a família, em especial o pai, que sofre de
uma doença degenerativa. Natalia coloca a si mesma como
protagonista dessa jornada íntima que tem como maior obstáculo
encarar o pai. Ele resume, no corpo e no passado, as contradições
típicas de uma realidade política latinoamericana.

Pois esse pai e essa mãe foram atuantes militantes políticos na Cali dos
anos 1970 e 80. Lutaram por pautas da esquerda progressista, por
liberdade e contra a opressão sociopolítica. A certa altura, decidiram
por formar família e deixaram a luta em prol da criação pelo que o
filme aponta -, ficaram naquele tempo anterior e não acompanharam
o bonde da história.

Natalia é gay e feminista. Com pouco mais de 20 anos de idade, fala


articuladamente sobre inclusão, preconceito, direitos das minorias e a
importância das bandeiras contemporâneas que não estavam tão
abertamente na agenda de seus pais. E, ainda que a amem, eles não
sabem lidar com a filha que têm. Como bons militantes atentos,
criaram uma filha questionadora, inquieta, defensora das causas
afirmativas. E, contraditoriamente, não se sentem confortáveis com ela
nem com algumas de suas posturas.

A intimidade familiar tratada por Natalia Imery Almario ilustra o


abismo que surgiu entre as militâncias de ontem e de hoje. A defesa
dos direitos humanos não é uma única defesa, e sim várias, nem
sempre compatíveis com a singularidade das crenças e da moral de
cada indivíduo. É isso que "Dopamina" tenta captar no registro de
longos minutos de conversa entre Natalia, seus familiares, sua
companheira. Entre os exercícios do pai, as tardes de mesa com a mãe
e a cama com a namorada, a diretora/personagem transita entre
mundos, muitas vezes colocando-os em contato direto uns com os
outros e levantando as questões que a levaram até ali. A existência do
filme é, por definição, o enfrentamento de suas contradições, tanto
quanto a celebração de memórias que podem se perder com a
degenerescência mental do pai.

O impasse das questões mais urgentes no século 21 não são


necessariamete relevantes para uma geração ainda entre nós, que
acredita ter lutado o bom combate e muitas vezes se sente
desprestigiada pelas escolhas da juventude. Ao mesmo tempo, a nova
geração não compreende (e muitas vezes não aceita) que a geração
anterior não atualize suas questões de urgência. Um choque sem
vitoriosos, aqui tratado pelas vias do afeto de uma câmera de intensa
generosidade no trato com esses corpos e essas mentes que vêm do
passado e habitam um presente ainda em busca de algum tipo de
futuro no qual se possa sonhar.

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