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Hoje vou falar sobre a crise instaurada pela vitória eleitoral do Bolsonarismo, a partir da perspectiva
da Teoria da História
o Hipócrates – doenças evoluem até a krisis, momento em que será definido a cura ou não – o
bom médico sabe identificar esse momento e agir oportunamente, ou seja, ele deve aproveitar
o kairós – o instante favorável à intervenção, o momento oportuno para a ação certa
o Kairós dura pouco cronos – trata-se de um instante breve, finito, mas carregado de
possibilidades para o acontecer da mudança, que produzirá efeitos que não teriam sido
possíveis em outro momento anterior ou posterior do cronos.
Crise também provém do verbo krino, que significa separar, dividir. O momento crítico separa o que
vem antes e depois dele, e suas consequências serão sentidas de uma maneira ou de outra, inclusive
se prevalecer a passividade dos sujeitos em não aproveitar o kairós.
Vale notar que o bolsonarismo se alimenta pela produção de divisões de cunho ideológico e moral
(cidadãos de bem X vagabundos; comunistas X patriotas...), com uma linguagem direta, beligerante e
vulgar, mas que lhe confere uma certa aura de “autenticidade”.
o Essa aparente sinceridade/autenticidade, travestida de “verdade”, abre ao bolsonarismo a
possibilidade de afirmar enfática e apaixonadamente a defesa de um dos lados da divisão
contra o outro – e daí o tom despudoradamente violento do discurso.
o O bolsonarismo não aposta na união e na convivência democrática, mas na polarização e no
enfretamento ostensivo a tudo que não coincide com ele. Ele visa a eliminação do outro.
Porém, nesse afã em polarizar, o bolsonarismo inevitavelmente deixa brechas, e é para elas que o
pensamento crítico deve se concentrar.
o Para identificar essas brechas, não se pode passar por cima da polarização, como se esta fosse
uma fantasia inventada por gurus e endossada pela burrice cega dos que a repetem.
o Os inimigos imaginários que polarizam o discurso bolsonarista (marxismo cultural, ideologia
de gênero, etc.) formam na verdade uma caricatura poderosa e útil para o enfrentamento de
um inimigo real, que o bolsonarismo vê como uma ameaça à sua existência: o pensamento
crítico e seu grande bastião, as Humanidades.
o Esse ataque, ainda que rasteiro e simplista, coloca as Humanidades em uma situação crítica,
na qual está em jogo o seu futuro. Este é um tempo de urgência para as Humanidades, e por
isso os cientistas humanos não poderão fugir da decisão que o momento exige; uma decisão
por si mesmas, reafirmar a sua importância e seu lugar como um bem comum, do qual não se
pode abrir mão.
A imagem de que tratarei aqui provém da África do Sul, no contexto da luta contra o apartheid. Ela
fala sobre um tipo especial de corte e divisão, que traz consigo a potência de superação de uma
experiência de crise.
o Para ouvir o que esse fragmento do passado tem a nos falar, é preciso estar aberto à sua
alteridade com relação ao presente que nos é atualmente dado. Só assim podemos liberar a
potência que ela carrega para desatualizar o hoje, ou seja, produzir um choque disruptivo
com o presente por meio da articulação histórica com essa imagem do passado.
***
Naquele ano, o governo segregacionista havia radicalizado as suas ações violentas de repressão, o
que também foi acompanhado pelos grupos violentos e não violentos da oposição. A África do Sul
encontrava-se em uma situação de iminente guerra civil.
Assim, o KD surgiu para intervir naquela realidade a partir de uma crítica dirigida não apenas contra
o regime proporamente dito (e as perspectivas teológicas que o justificavam), mas também contra as
posições ambíguas e fracas de muitas igrejas cristãs em relação ao apartheid.
o Por isso, o KD foi um marco histórico para que essas igrejas sul-africanas passassem a tomar
uma posição mais rígida e dura de condenação ao regime.
A escrita e publicação do KD foi promovida pelo ICT. A particularidade dessa corrente teológica
consiste em afirmar a centralidade do caráter contextual de todo discurso teológico. Ao contrário de
outras vertentes que aspiram alcançar o conhecimento de Deus desde uma perspectiva mais
sistemática, a teologia contextual prega que a historicidade deve ser considerada como um princípio
fundamental de toda investigação teológica, juntamente com a escritura e a tradição.
o Assim, a teologia não poderia passar por cima do contexto de sua emergência, mas deve
toma-lo como um princípio hermenêutico que origina o sentido, e para o qual este deve
retornar.
o Isso significa também que a teologia é sempre um conhecimento posicional e, portanto, o
teólogo deve sempre expor as suas posições éticas e políticas e participar dos conflitos
existentes no seu contexto.
o Pensar contextualmente a teologia significa, portanto, engajar-se nas questões e lutas de cada
momento histórico concreto, em vez de procurar transcendê-lo.
De acordo com o KD, a crise da cristandade sul-africana estava fundada na existência de uma divisão
entre igrejas brancas e igrejas negras.
o Essa divisão era supradenominacional. Ambos afirmavam pertencer a uma mesma religião, e
isso colocava em xeque a legitimidade do cristianismo na África do Sul.
Como o manifesto lida com essa divisão e introduz nela uma perspectiva kairológica?
o O KD não hesita em tomar partido dentro dessa divisão, mas o faz segundo uma estratégia
específica. Diante da separação entre igrejas brancas e negras, o manifesto introduz uma
outra separação, que não coincide, mas também não é exterior à primeira, a saber: a divisão
entre opressores e oprimidos.
Para entender isso, é necessário tratar da natureza dessas separações e o sentido da estratégia
empregada pelo KD.
O apartheid era um sistema baseado na separação racial instituída pela lei, que pretendia abarcar
todos os aspectos da vida social no país.
o Assim, a divisão racial possuía um caráter nomístico e totalizante, que era a forma como a
crise da cristandade sul-africa se apresentava
o É para esse princípio de divisão que o KD dirige a sua crítica, procurando desmontá-la a
partir de uma tomada clara de posição, mas operando um deslocamento desde o seu interior.
Em outras palavras, o KD introduz dentro da divisão fundada na lei (racial) uma segunda divisão,
fundada na opressão. Esta última aparece, portanto, como uma divisão em segunda potência, uma
divisão dentro da divisão anterior.
Para falar dessa divisão em segunda potência, Agamben recorreu a uma lenda contada por Plínio a
respeito de uma disputa entre dois pintores gregos sobre quem conseguia traçar a linha mais fina.
Primeiro Protógenes conseguiu traçar uma linha finíssima com seu pincel, mas a seguir, Apeles
conseguiu dividir essa linha com outra ainda mais sutil.
o Dessa história aparentemente banal, Agamben elabora um conceito: o “corte de Apeles” é um
princípio de separação que não possui um objeto determinado, mas sim uma operação que
divide as divisões anteriores, fazendo surgir nessa operação um resto.
o Esse resto, continua Agamben, já não é uma porção ou resíduo substancialmente positivo,
mas traz em si a potência de retirar das divisões o seu aspecto exaustivo e totalizante.
o O resto não é uma nova parte e nem um todo reconciliado; ele representa antes a
impossibilidade das partes e do todo de coincidirem consigo mesmos, um remanescente entre
toda identidade e ela mesma.
Com o conceito de “corte de Apeles”, podemos entender como o KD apreende a crise sul-africana. O
manifesto faz incidir dentro da divisão nomística/racial (fundamento da crise) uma outra separação,
que não é exterior mas também não coincide com ela, a divisão entre opressores e oprimidos.
o Esta última funciona como um corte de Apeles, cujo resultado não é a criação de uma nova
parte separada do todo, e nem um todo reconciliado, mas sim um resto, que guarda em si a
potência de superar as divisões.
o É neste sentido que devemos entender a seguinte passagem do manifesto:
“Seria bastante equivocado ver o presente conflito como simplesmente uma guerra racial. O componente racial está
presente, mas nós não estamos lidando com duas raças ou nações cada uma com seus interesses grupais próprios e
egoístas. A situação que estamos lidando é de opressão. O conflito é entre o opressor e o oprimido. O conflito é entre
duas causas ou interesses irreconciliáveis nas quais uma é justa e a outra é injusta ”
A divisão entre opressores X oprimidos não é exterior à divisão racial, como a passagem reconhece.
Mas esse corte de Apeles não reproduz os termos da separação racial, e nesse deslocamento abre-se
um novo espaço de sentido, que possibilita uma saída para a crise.
Ainda segundo o KD, o conflito entre opressores e oprimidos envolve duas causas irreconciliáveis,
sendo que apenas uma delas (oprimidos) é condizente com a visão de cristianismo pregada pelos
teólogos contextuais. Portanto, o oprimido excede a condição de uma parte, mas ao mesmo tempo
não é representável como uma totalidade, pois é ele mesmo resultado de um corte (de Apeles).
o O oprimido assume assim a consistência de uma não-parte e um não-todo, e é por essa
ambiguidade que os oprimidos assumem a figura de um resto.
o Esse resto (os oprimidos) se apresenta como o sujeito capaz de apreender e agir no instante da
decisão. Em outras palavras, a noção de resto possui a sua temporalidade própria, a qual se
apresenta como kairós.
Segundo esse manifesto, o kairós sul-africano não poderia ser apreendido se a crise fosse pensada
como o resultado de um confronto entre duas raças que seriam “iguais” quanto à essência e
“separadas” quanto à substância.
o Trata-se, ao contrário, de uma situação de opressão instituída por um regime tirânico (no
sentido de ser por princípio contra o bem comum).
o A opressão é o corte de Apeles que produz a não-identidade entre parte e todo, e que
configura a situação do agente histórico propriamente ativo e real no instante da ação
decisiva.
o Agamben tratou dessa noção de resto e procurou desenvolver suas implicações em termos
políticos:
“O resto permite situar em uma perspectiva nova nossas noções de povo e democracia, já antiquadas, embora talvez
não renunciáveis. O povo não é nem o todo nem a parte, nem maioria nem minoria. O povo é antes o que não pode
jamais coincidir consigo mesmo, nem como todo nem como parte, vale dizer, o que permanece infinitamente ou
resiste a toda divisão, e que – apesar daqueles que governam – não se deixa jamais reduzir a uma maioria ou
minoria. E esta é a figura ou consistência que o povo adquire na instância decisiva, e como tal é o único sujeito
político propriamente real”
***
Essa imagem do passado nos fala sobre crise, divisão e resto. Será que a ideia do corte de Apeles
poderia servir como uma possível estratégia para realizar a tarefa crítica de enfrentamento à ameaça
representada pelo bolsonarismo?
Pois o resto é aquilo que des-identifica o mesmo, desestabiliza as referências congeladas, e em seu
caráter de corte e ruptura, produz uma abertura para a diferença.
O resto surge de um corte que desloca o igual e aproxima o diferente, algo necessário para um tempo
no qual a tendência é falarmos apenas para as nossas próprias bolhas
o O corte de Apeles é a forma de separação que permite furar a bolha, romper os seus limites
em direção àquilo que é comum - que não pertence nem às partes nem ao todo, mas ao resto.
Este ensaio foi escrito sob a inspiração do movimento 15M, que foi uma resposta contra o “corte” no
orçamento da educação por motivação ideológica – tendo as Humanidades como o alvo de primeira
hora.
Mas o corte orçamentário na educação foi apropriado pela oposição para produzir um novo corte
pela educação. Um deslocamento que não reafirma os termos da divisão ideológica de que o
bolsonarismo depende e se alimenta, visto que os desloca.
O corte de Apeles não procede de um divisionismo inconsequente, mas cria as condições para o
acontecer da decisão e o aparecer de um resto. A tarefa crítica consiste, assim, em contribuir para a
produção desse resto.