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resumo Este texto pretende relatar o caso cutida...), de grupos “minoritários” ou “não
da apropriação de uma etnogra�a que �z sobre o hegemônicos” produzirem seus “antropólogos
exército brasileiro por parte da polícia militar de orgânicos” e suas respectivas etnogra�as.
São Paulo. Inesperadamente, fui convidado a assis- Também é notável que boa parte da discus-
tir uma representação de cadetes da PM sobre ele- são que envolve os “limites de uma auto-antro-
mentos desta, quando se colocou a idéia de que a pologia” (Strathern 1987; Rapport & Overing
etnogra�a acabara por servir como uma espécie de 2000: 18-28), raras vezes tenha se voltado a
“manual de instruções” sobre certos valores a serem pensar sobre grupos ou agentes tão ou mais
defendidos pela corporação. Tal apropriação me le- “centrais” ou “hegemônicos” que os próprios
vou a pensar como duas instituições com uma na- antropólogos1 – uma exceção é Latour (e.g. La-
tureza tão semelhante – exército e PM – puderam tour & Woolgar 1979). E, menos ainda, fala-se
ter leituras tão diferenciadas de um mesmo texto. de casos em que tais grupos ou atores fazem
Trata-se, assim, de pensar a natureza dessas insti- uso ou se “apropriam” de etnogra�as. Pode-
tuições no Estado, percebendo os matizes que não mos, obviamente, sempre supor que certos te-
necessariamente podem ser empacotados na emba- mas nas ciências sociais podem vir a ser mais ou
lagem comum da idéia de “monopólio legítimo da menos “interessados” – que uma sociologia da
violência”. arte sirva para legitimar elites emergentes, que
palavras-chave Etnogra�a. Exército. Polí- uma “antropologia da antropologia” venha a se
cia. Estado. esforçar para rede�nir o diagrama de forças no
campo acadêmico, que exista aquilo que Bour-
dieu chamou de “ciência de Estado” (Bourdieu
Introdução 1996); en�m, que uma elite possa até “com-
prar” um trabalho acadêmico, é algo possível,
Embora o tema das “apropriações de et- senão mesmo esperável. No entanto, à par des-
nogra�as” por parte de grupos seja algo já ses caminhos, também pode haver a possibili-
explorado metodologicamente (Gonçalves da dade de apropriações inusitadas de etnogra�as:
Silva 1991), é notável que ele tenha sido pou- aquelas que absolutamente fogem do controle
co estendido para a re�exão sobre a natureza dos antropólogos a partir do momento em que
dos grupos que então se utilizam desses meios. seus textos são publicados.
É um dado mais ou menos “natural” que tais Pois bem. O presente texto trata da descri-
esforços etnográ�cos muitas vezes se destinem ção da (1) apropriação involuntária de uma et-
aos grupos tidos como “periféricos” (Durham nogra�a (2) por parte de um grupo que pode
1988; Beviláqua & Leirner 2000), movimen-
to que inclusive culminou numa tendência,
1. E “centrais” para os próprios antropólogos, diga-se de
a essas alturas já consolidada (e pra lá de dis- passagem.
ser tomado como “central”: o�ciais da Polícia que então tive uma etnogra�a apropriada por
Militar do Estado de São Paulo2. Uma ressalva, tal grupo, que passou a usá-la como modelo
antes de tudo: é verdade que tal grupo difere para pensar em princípios que estruturam seu
bem no seu habitus (Bourdieu 1977) daque- próprio mundo? E mais: por que fui chamado
les, por exemplo, que poderíamos chamar de à Corporação para ver o resultado dessa apro-
“elites” da nossa sociedade3. Mas, também é priação? O presente texto trata, assim, desses
verdade, os o�ciais da PM estão bem longe de mecanismos de transferência que ocorreram a
se considerarem equivalentes sociológicos de partir de uma série de eventos que envolvem
operários, camponeses, mulheres pobres da pe- uma etnogra�a.Vamos, então, aos fatos.
riferia das grandes cidades brasileiras - aprovei-
tando o sentido assumido em Peirano (1996) Uma seqüência de eventos
– assim como tais segmentos, também, certa-
mente não os enxergam assim. Os fatos que me �zeram tomar ciência de tal
O inusitado da situação me parece residir apropriação remetem a �ns de 2002. Fui con-
no fato de que tal “grupo” – e provisoriamen- vidado por uma o�cial da PM de São Paulo a
te vamos tratá-los como um grupo4 – de�ni- comparecer à Academia do Barro Branco, onde
tivamente não necessita, à primeira vista pelo se formam os futuros O�ciais da corporação,
menos, de legitimações como aquelas que an- para uma solenidade que em parte se basearia
tropólogos podem, por ou sem querer, oferecer em dados retirados de minha etnogra�a sobre
(cf. também Sá 2002, que tem uma boa dis- o Exército Brasileiro (EB), publicada no ano
cussão sobre pesquisa de campo com a PM do de 1997, e que então havia sido incorporada
Ceará, e Castro 1990, que inaugura a análise no currículo de formação dos cadetes da PM5.
antropológica de militares). Bem, talvez nada Soube, posteriormente, que tal incorporação
disso seja uma questão de necessidade; então, deveu-se ao contato de uma O�cial-Instrutora
digamos de outro jeito: tal grupo di�cilmente com o livro, a partir de uma indicação de uma
toma gosto por descrições etnográ�cas, quan- colega antropóloga que então ministrava a ela
to mais a seu próprio respeito (pelo menos foi um curso de pós-graduação lato sensu na Escola
isso que aprendi com seus colegas do exérci- de Sociologia e Política em São Paulo. Tratava-
to, em campo). A questão que me intriga: por se para mim de uma incógnita, pois fatos que
remetiam há anos atrás me levavam a crer que
minha etnogra�a não tinha sido bem recebida
2. Tive, como se verá adiante, contato com um grupo
em meios militares. Cabe assim esclarecê-los.
de o�ciais, e não com todos o�ciais da PM de SP. No,
entanto, dada a o�cialidade do evento, e as caracterís- Voltemos ao ano de 1995, quando estava
ticas hierárquicas da corporação (ver discussão infra), para defender o mestrado que originaria tal pu-
pode-se de certo modo tomar a parte pelo todo. blicação e me encontrava nos passos �nais de
3. Talvez sejam, antes, um “grupo” a serviço do “cen- elaboração da etnogra�a, mas ainda em conta-
tro”, mas nem por isso menos imbricado a este. to bastante próximo com o�ciais do exército.
4. Trata-se de uma corporação que tem mecanismos in-
tensos de socialização que visam, antes de mais nada,
inculcar em seus membros a idéia de que se trata de 5. Os cadetes da PM de SP entram para academia a par-
um grupo distinto do resto da sociedade, seguindo tir de processo seletivo realizado pela FUVEST – a
assim prescrições bastante semelhantes àquelas que mesma que seleciona os alunos da USP. Trata-se, até
Castro (1990) observou entre os cadetes e que obser- o ano de 2005, de uma das três carreiras mais concor-
vei (Leirner 1997a) entre o�ciais do exército. Voltare- ridas do vestibular em termos da relação candidato/
mos a isso. vaga.
Numa história que só vale a pena delinear de to” da instituição para futuras pesquisas. Jamais
forma bastante sintética6, entendi, após três soube exatamente o porquê, embora tenha es-
anos do que considerava uma seqüência de ten- peculado bastante. Provavelmente, embora a
tativas frustradas de realizar uma determinada hierarquia não constitua nenhum segredo (pelo
investigação com militares, que ao longo de meu contrário, usam e abusam dela), não se admite
contato com eles – períodos intermitentes que que ela seja o princípio de uni�cação do grupo
variaram de contatos de 1 dia a duas semanas, – por paradoxal que pareça, o que separa, uni-
totalizando cerca de duas dúzias – havia sido �ca... –, mas sim apenas a base para que outros
colocado cara a cara com um princípio central princípios – honra, disciplina, amor à pátria,
de sua cosmologia (algo semelhante ao gado etc., que julguei como cimentos ideológicos
nuer, à bruxaria azande ou ao milho araweté) do princípio hierárquico – tomados como as
sem perceber. Tratava-se da hierarquia, um fato verdadeiras motivações que unem o militar à
tão óbvio, tão onipresente na vida militar, que corporação, venham se manifestar. Seria algo
se apagou para o antropólogo e, também, para semelhante a tentar explicar a um trobriandês
o nativo que gostaria de entender o que esse que o hau é a troca em operação, com todos os
antropólogo gostaria mesmo de estudar. problemas que isso pode acarretar...
Essa mesma hierarquia que não via era o O fato é que à época também não dei bola
ponto que emperrava o que então buscava, a a uma categoria que os nativos usavam de ma-
chance de sincronizar o pensamento militar neira insistente, mas que anos depois fez sen-
com a questão amazônica a partir “de dentro”. tido. Diziam eles que tal país ou fulano era
Tinha como resposta um certo silêncio sobre o amigo ou inimigo do exército. Exatamente,
assunto, em contrapartida com uma série de en- trata-se de algo genérico o su�ciente para dar
sinamentos nativos sobre o “verdadeiro” ponto conta de uma pessoa ou de uma nação. Perce-
de vista (global, cosmológico, etc). Sinceramen- bi então que a inimizade era mais do que uma
te, a princípio pouco dei bola sobre esse “ponto simples palavra, tratava-se de uma modalidade
de vista”, que no meu entender descentrava a de relação ampla e profunda o su�ciente para
questão que gostaria de pesquisar. Contudo, in- tratá-la com um grau de abstração maior do
cidentes em campo aos poucos foram revelando que o uso corriqueiro a princípio poderia su-
que a hierarquia era um fato que permeava não gerir. Sem maiores divagações, imagino que ela
só as relações e dimensões “internas” da vida pode ser tomada como base para pensar a guer-
militar como também suas classi�cações “exter- ra, digamos, em um sentido “antropológico”7:
nas”, ou visão do “mundo exterior”. a guerra é uma relação, de inimizade, recíproca
Bem, o resultado disso se expressa em duas e generalizada.
teses sobre hierarquia militar, suas implicações Não cabe aqui desdobrar os porquês e as
para a construção do mundo interno e sua gra- conseqüências desse uso conceitual da guerra.
mática no interior daquilo que posteriormente Vale dizer por enquanto que alguém (do exérci-
entendi ser um “sistema da guerra” (Leirner
2001). Tal ponto não vem ao caso; o que talvez
7. Diferente portanto da noção usualmente citada nas
interesse é o fato de que dizer que a hierarquia ciências sociais, que aproveita a máxima de Clau-
é um “fato social total” para os militares teve sewitz de que a “guerra é a continuação da política
como contrapartida posterior um “fechamen- por outros meios”. Uma maior problematização sobre
o conceito de guerra na própria antropologia, e de
6. Narrativas mais detalhadas dessa “pesquisa de campo” como ele se aproxima de uma idéia de política, está
estão em Leirner (1997a; 1997b). em Leirner (2001).
to) me disse que havia deixado de ser um amigo nião, em que estavam presentes alguns co-
do EB; isto é, no mínimo, para pensar o melhor, mandantes de Armas: tropa de choque, polícia
não me adeqüei ao plano que inicialmente era rodoviária, bombeiros, polícia, da própria Aca-
esperado para nossa relação, qual seja: tornar- demia do Barro Branco, além de um juiz e, se
me uma espécie de elo de ligação entre milita- não me engano, de um promotor de justiça.
res e universidade, num momento em que essas Com a cordialidade habitual que militares têm
eram extremamente rarefeitas (estamos falando com seus amigos, fui muito bem recebido, elo-
de aproximadamente 1995, como relato em giado, indagado sobre o que estava fazendo
Leirner 1997b). Isso não aconteceu, tornei-me no momento, e, obviamente, prestado a ouvir
um antropólogo que os chamava de “nativos”, uma conversa sobre a importância de iniciati-
e isso talvez não tenha agradado alguém... vas que visam reconhecer o “verdadeiro” lado
Pois bem, vi-me aproximadamente 7 anos de corporações militares (isso também era uma
depois com um convite para comparecer, como prerrogativa para o EB). Depois dessa rápida
amigo da PM de SP a uma solenidade, que “sala de estar”, todos nos dirigimos ao que inte-
prestaria uma pequena homenagem justamen- ressava: uma sala, transformada em auditório,
te baseada na mesma pesquisa que anos antes onde seria realizado o esperado evento.
havia me colocado no ostracismo enquanto Tratava-se de uma dramatização ou, quase
pesquisador daquele “objeto” (lembre-se aqui dizendo assim, uma espécie de “psicodrama”
que ele tem bem mais poder para decidir quem da vida militar, baseada em meu livro. Era a
vai e quem não vai pesquisá-lo). Fui, então. reapresentação de uma encenação que ocorrera
Passei por um procedimento bastante co- como trabalho de �m de curso de um grupo de
nhecido. Alguém estava a minha espera, logo cadetes, que havia sido muito elogiada e reper-
na entrada da Academia, esta sustentada por cutira de forma muito positiva no comando da
duas grandes pilastras marmorizadas em esti- academia. Imaginei mesmo que se tratava de
lo que não me recordo se grego ou jônico. Tal algo de proporções mais intensas do que antes
pessoa me leva à responsável por toda opera- esperava, uma vez que a essas alturas já sabia o
ção – a instrutora que havia tido contato com que signi�cava a presença de comandantes de
meu livro – e esta me leva à sala do coman- Armas ou Tropas. O que aconteceu então?
dante. Este é um procedimento padrão em ins- À entrada, distribuíram-se crachás que os-
tituições militares: um subordinado o recebe, tentavam apenas as patentes – soldados, sargen-
transmite o convidado à parte responsável ou tos, coronéis, etc –, que se destinaram aos seus
interessada, esta faz as vezes com um superior portadores de forma aleatória (o que gerou um
– dependendo da importância do convidado, certo constrangimento, pelo que pude perceber:
é um alto superior ou alguém subalterno. No um coronel recebeu a patente de “soldado” e
caso, fui primeiramente à sala de um respon- deu uma risada nervosa; também recebi esta).
sável pelo curso e depois fomos todos à sala Todos se sentaram, ocupando os cantos de uma
do comandante (cabe notar que nesse circui- sala de aproximadamente 80 m2, obedecendo
to sempre se passa por corredores, onde se é à disposição hierárquica (dos crachás), como é
apresentado à maioria das pessoas por quem se de praxe nas corporações militares: o mais gra-
passa, e a partir daí por ante-salas, onde um duado senta-se no centro, em oposição à porta,
ajudante ou encarregado trata de anunciá-lo ao e os subalternos vão se distribuindo em ordem
chefe de seção). decrescente um a um, à direita e à esquerda de
Quando conduzido à sala, notei uma reu- seu superior imediato, em forma respectiva. Ao
meio das cadeiras, em posições estratégicas de viedade. Mas não era, de novo me enganei, e o
modo a preencher espaços simétricos da sala, es- pior, me enganei a partir de meu próprio tra-
tavam em pé pessoas vestindo um manto enca- balho! Todos se dispersaram, o circuito inverso
puzado e segurando velas, dando um certo tom se fez de novo: me dirigi à sala do comandante,
de mistério e uma aura de religiosidade à cena. ouvi agradecimentos pelos serviços prestados;
Sentados todos e em silêncio, abre-se uma desci às instalações da academia, onde me foi
porta, onde um jovem aparentemente encena, colocado como “tudo nesse lugar é absolutamen-
sob o som de uma música (não me recordo ago- te igual lá no exército”. Coloquei-me a pensar:
ra, acho que era Beethoven), algo que represen- se de fato é igual, por que tamanha diferença
taria a série de etapas por que um cadete passa na recepção de minha etnogra�a? Como posso
durante os anos de academia: a chegada assus- ser amigo aqui e inimigo lá?
tado; os trotes; o companheirismo de turma; a
rotina de estudos; o duro treinamento físico; a Conclusão, se é que é possível...
socialização. Tal etapa durou algo como 5 mi-
nutos. Foi o preparativo para o ápice: �nalmen- De fato, responder essa pergunta só é ple-
te, quando a aluno está para sair da academia, é namente possível em um tom algo especulati-
amarrado ao seu corpo, por uma corrente, duas vo. Pre�ro enunciar uma pista, a partir de uma
colunas de mármore que replicam justamente conversa que tive na saída da Academia. Per-
aquelas que sustentam a entrada do saguão da cebi, passando pelo hall de entrada, que junto
Academia: tratava-se da miniatura batizada às colunas havia um pan�eto, que justamente
de... Hierarquia e Disciplina! dizia algumas coisas do curso, e, mais especi�-
Eis que o jovem cadete entra na sala, ar- camente, da disciplina cuja atividade que aca-
rastando as colunas com extrema di�culdade, bara de assistir. Uma coisa me chamou muito
simulando choro e sinais de forte emoção, aos a atenção, uma transcrição de um trecho de
gritos de frases como “não agüento mais”, “não meu livro, sem citação, mas que eu sabia ser
posso mais”, “preciso desistir”. À chegada ao um apud de um trecho selecionado da célebre
centro da sala, no momento mesmo em que “Introdução à Obra de Marcel Mauss”, de C.
ele ameaça livrar-se das correntes, os encapu- Lévi-Strauss (1974 [1950]). Tratava-se do se-
zados que se situavam de pé pela sala retiram guinte:
seus mantos, revelando que por baixo deles há
um representante de cada comando: polícia ro- “Que o fato social é total não signi�ca apenas
doviária, choque, bombeiros, etc. Esses se diri- que tudo o que é observado faz parte da obser-
gem ao jovem, seguram-no, erguem-no junto vação, mas também, e principalmente, que em
com as colunas, libertam-no das correntes, e uma ciência em que o observador é da mesma
o fazem perceber que, no fundo, essas colunas natureza que seu objeto, o observador é, ele mes-
sustentam sua vida no interior da corporação (“ mo, parte de sua observação.” (Lévi-Strauss 1974
e essas colunas são o meu alicerce daqui para a [1950]: 16).
frente”...). Acaba a encenação.
Quando se acendeu a luz, percebi uma cena Por que aquela frase encontrava-se solta, em
de comoção no ambiente; o que certamente me meio a outras como “Saber, Ética e Conduta”?
assustou, pois novamente me vi diante daquela Lembrei-me de que sempre vi coisas assim no
situação que achei que essa história de hierar- EB, frases pregadas em paredes, inscrições soltas
quia e disciplina tratava-se de uma grande ob- na paisagem. Um ex-o�cial me disse que isso
Recebido em 25/05/2006
Aceito para publicação em 25/06/2006