Em Iracema (1865) José de Alencar, ou por ter atingido a maturidade nos temas
indianistas, ou porque nessa obra não há a rigor nenhum compromisso com uma
afirmação nacional pela literatura, atinge seu romance mais bem estruturado, sob o ponto
de vista estético. Iracema é o exemplar mais perfeito de prosa poética de nossa ficção
romântica, belíssimo exemplo do nacionalismo ufanista e indianista, com o qual Alencar
contribuiu com a construção da literatura e da cultura brasileira.
A índia Iracema, que se entrega por amor a Martim, tem a função de simbolizar, no
romance, a presença do elemento nacional, da cor local, existente na criação de seus
traços físicos, que é feita por comparação com elementos da natureza. Embora
psicologicamente Iracema se assemelhe às heroínas românticas européias, constitui, nessa
fusão de elementos da cor local com elementos do romantismo europeu, um mito
fundador da pátria. De acordo com o romantismo europeu, Iracema pode ser
caracterizada como um exemplo de "mulher-anjo" - virgem, delicada, bela, capaz de se
sacrificar pelo homem que ama, Martim. Essa característica de Iracema mostra que
embora o narrador privilegie os seus sentimentos e pensamentos ao longo da história,
idealizando o índio, que ela representa, o seu ponto de vista ao contar torna-se o do
branco colonizador, na medida em que "europeiza" e "romantiza" Iracema.
Quanto à importância relativa das personagens, Alencar constrói uma obra inteiramente
distinta de O Guarani (e também do posterior Ubirajara, que data de 1874). Em
Iracema, a relação amorosa entre a jovem índia e o fidalgo português Martim domina
toda a obra.
Não é difícil encontrar as fontes principais em que se inspirou Alencar: Iracema é, num
certo sentido (não o da imitação, evidentemente), a transposição de Atala, de
Chateaubriand, autor que Alencar confessou ter lido bastante. Temos, pois, o caso de uma
composição homóloga, pois apresenta vários pontos em comum: o tema da felicidade
primitiva dos selvagens, que começa a se corromper diante da primeira aproximação do
civilizado; a idéia do bom selvagem; o amor de uma índia por um estrangeiro; a morte
das duas heroínas, o exótico da paisagem; enfim, nas duas obras de um conflito
fundamental representado pela oposição de índole dos dois mundos: o da velha
civilização européia e o Novo Mundo da América.
Elementos épicos
O texto é épico por ser narrativo. José de Alencar narra os feitos heróicos dos portugueses
na figura de Martim. Iracema, também, é transformada em heroína. O vinho de Tupã que
permite a posse de Iracema (presença do "maravilhoso"). Além disso, temos, também, a
presença dos deuses indígenas representando as forças da natureza.
Elementos líricos
O amor de Iracema por Martim: Iracema é a heroína típica do romantismo, que padece de
saudades do amante, que partiu, e da pátria que deixou. Ela se enquadra dentro de uma
corrente luso-brasileira cujo inicio data das cantigas medievais.
Toda a força poética do livro advém dessa relação amorosa. A ação é reduzidíssima, o
que dá ao livro o notável espaço lírico de que se valeu Alencar para escrever sua obra
mais poética: a desorientação inicial de Martim, jovem fidalgo português, que se perdera
nas matas... O surpreendente encontro com a jovem índia... A hospitalidade do selvagem
brasileiro... O ciúme do guerreiro... O amor entre os representantes das duas raças:
lracema e Martim... A morada dos dois, afastados da tribo e da civilização... A nostalgia
de Martim por sua terra natal, suas viagens e a tristeza de Iracema com a mudança
inesperada de seu amado... O nascimento de Moacir, filho da dor, e a morte de Iracema...
Essa é praticamente a síntese da fábula do livro.
Foco narrativo
Personagens
Iracema – (lábios de mel) – índia da tribo dos tabajaras, filha de Araquém, velho pajé;
era uma espécie de vestal (no sentido de ter a sua virgindade consagrada à divindade) por
guardar o segredo de Jurema (bebida mágica utilizada nos rituais religiosos); anagrama
de América. Forte, sedutora, mas submissa. Heroína trágica.
Martim Soares Moreno – guerreiro branco, colonizador europeu, amigo dos pitiguaras,
habitantes do litoral, adversários dos tabajaras; os pitiguaras lhe deram o nome de
Coatiabo ("guerreiro pintado" - "tinha nas faces o branco das areias, nos olhos o azul
triste das águas e os cabelos da cor do sol."
Moacir - Filho de Iracema e Martim, filho do sofrimento (Moaci = dor, ira = saído de).
Poti – herói dos pitiguaras, amigo – que se considerava irmão – de Martim. Personagem
histórico.
Irapuã - chefe dos tabajaras; apaixonado por Iracema. Ciumento e corajoso. Seu nome
significa "mel redondo".
Caubi – índio tabajara, irmão de Iracema. Não guardou rancor de Iracema, indo visitá-la
no exílio.
Jacaúna – chefe dos pitiguaras, irmão de Poti. Seu nome significa "jacarandá preto".
Enredo
Durante uma caçada, Martim Soares Moreno, personagem histórico responsável pela
colonização do Ceará, se perdeu dos companheiros pitiguaras e se pôs a caminhar sem
rumo durante três dias.
No interior das matas pertencentes à tribo dos tabajaras, encontra-se com Iracema, filha
do pajé Araquém, da tribo dos Tabajaras, "os senhores das montanhas".
Ao deparar-se com Martim, surpresa e amedrontada, a índia o fere no rosto com uma
flechada. Ele não reagiu. Arrependida, a moça correu até Martim e ofereceu-lhe
hospitalidade, quebrando com ele a flecha da paz. Martim, por quem Iracema se
apaixona, vai visitar a sua tribo. Lá encontra Irapuã, o chefe, um rival. Entretanto, o duelo
entre ambos é interrompido pelo grito de guerra dos Pitiguaras, "os senhores do litoral",
liderados por Poti (Antônio Felipe Camarão, personagem histórico), amigo de Martim.
Nas entranhas da terra, magicamente abertas por Araquém, Iracema esconde-se com
Martim e torna-se sua esposa, traindo o compromisso de virgem vestal, sacerdotisa da
tribo e portadora do segredo da jurema, o segredo da fertilidade dos Tabajaras.
Durante o sono da tribo propiciado por Iracema, que a leva aos bosques da Jurema, onde
os guerreiros podem sonhar vitórias futuras, há o reencontro entre Martim e Poti, que
fogem guiados por Iracema. Ela não revela a Martim o que houve entre ambos o
himeneu, enquanto o jovem iniciava-se nos mistérios de Jurema, só o fazendo depois da
fuga.
Iracema, Martim e Poti chegam ao território Pitiguara, de onde viajam para visitar
Batuirité, o avô de Poti, o qual denomina Martim Gavião Branco, fazendo, antes de
morrer, a profecia da destruição de seu povo pelos brancos.
Iracema engravida e, acompanhada de Poti, pinta o corpo de Martim, que passa a ser
Coatiabo, "o guerreiro pintado", que às vezes tem momentos de grande melancolia, com
saudades da pátria.
Martim e Poti voltam vitoriosos; Martim sente mais saudades da pátria; Iracema profetiza
a própria morte que ocorrerá com o nascimento do filho. Enquanto Martim estava
combatendo, Iracema teve sozinha o filho, a quem chamou de Moacir, filho da dor. Certa
manhã, ao acordar, ela viu à sua frente o irmão Caubi, que, saudoso, vinha visitá-la,
trazendo paz. Admirou a criança, porém surpreendeu-se com a tristeza da irmã, que pediu
a ele que voltasse para junto de Araquém, velho e sozinho.
De tanto chorar, Iracema perdeu o leite para alimentar o filho. Foi à mata e deu de mamar
a alguns cachorrinhos; eles lhe sugaram o peito e dele arrancaram o leite copioso para
voltar a amamentar. A criança estava se nutrindo, mas a mãe perdera o apetite e as forças,
por causa da tristeza.
No caminho de volta, findo o combate, Martim, ao lado de Poti, vinha apreensivo: como
estaria Iracema? E o filho? Lá estava ela, à porta da cabana, no limite extremo da
debilidade. Ela só teve forças para erguer o filho e apresentá-lo ao pai. Em seguida,
desfaleceu e não mais se levantou da rede.
Morre Iracema. Suas últimas palavras foram o pedido ao marido de que a enterrasse ao pé
do coqueiro de que ela gostava tanto. O sofrimento de Martim foi enorme, principalmente
porque seu grande amor pela esposa retornara revigorado pela paternidade. O lugar onde
se enterrou Iracema veio a se chamar Ceará.
Martim retornou para sua terra, Portugal, levando o filho. Não consegue permanecer lá.
Quatro anos depois, eles voltaram para o Ceará, onde Martim implantou a fé cristã. Poti
se tornou cristão e continuou fiel amigo de Martim. Os dois ajudaram o comandante
Jerônimo de Albuquerque a vencer os tupinambás e a expulsar o branco tapuia. De vez
em quando, Martim revia o local onde fora tão feliz e se doía de saudade. A jandaia
permanecia cantando no coqueiro, ao pé do qual Iracema fora enterrada. Mas a ave não
repetia mais o nome de Iracema. "Tudo passa sobre a terra."