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Capítulo convidado para integrar o livro Ciência como Instrumento de Inclusão Social (titulo provisório) a
ser publicado pela EMBRAPA.
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Engenheiro Agrônomo com Mestrado em Sociologia da Agricultura e Ph.D. em Sociologia da Ciência e
Tecnologia. É pesquisador das relações ciência-tecnologia-sociedade-inovação (CTSI), da EMBRAPA Algodão
<souza@cnpa.embrapa.br>, e Pesquisador Associado da Red Nuevo Paradigma para a inovação
institucional na América Latina <josedesouzasilva@gmail.com>
Introdução
A cada modelo de agricultura deve corresponder um paradigma que lhe é relevante. Nem sempre
foi assim. A emergência da ciência moderna a partir do século XVI institucionalizou uma visão
mecânica de mundo que homogeneizou a percepção da natureza e ativ idades humanas, incluindo
a agricultura e a própria prática científica. A partir da percepção científica do universo como uma
engrenagem precisa, regular e previsível, a metáfora do mundo-máquina estabeleceu uma visão
da agricultura como uma máquina de produzir alimentos e fibras, que também deve funcionar de
forma precisa, regular e previsív el. Nesta concepção mecânica da realidade, só deve existir um
tipo de agricultura, a agricultura moderna derivada da ciência moderna, que é a única forma
confiável para gerar conhecimento válido, com o aval dominante de uma única tradição filosófica,
o Positivismo, que aceitou contribuições das c orrentes racionalista e empirista de pensamento.
O fim do monopólio do paradigma clássico da ciência moderna foi determinado pela crise da
época histórica do industrialismo. A partir dos anos 60, a humanidade percebeu que a coerência
produtiva, simbólica e de consumo da sociedade industrial não está em correspondência com os
limites do planeta, e criticou a visão de mundo, valores, crenças, conceitos, teorias e modelos
constitutiv os desta sociedade (Attali et al. 1980). Mais além do paradigma clássico, com a época
histórica emergente surgem outras opções paradigmáticas—neo-racionalismo, neo-evolucionismo
e construtivismo—para lidar com a complex idade, diversidade, diferenças e contradições da
realidade. As referidas opções ratificam que, assim como nem todo tipo de agricultura valoriza a
dimensão social desta atividade, nem todo paradigma é inclusivo do cuidado com a referida
dimensão. Depreende-se daí que cada tipo de agricultura tem o paradigma que lhe corresponde,
sem a necessidade de imposição de um paradigma sobre um tipo de agricultura para o qual não
foi concebido. Este livro centra suas contribuições no caso particular da agricultura familiar, e
elege o principio da inclusão social como indicador do potencial da pesquisa agropecuária pública
para resgatar e promover a relevância da dimensão social da agricultura.
Para interpretar os significados dos capítulos 2-8 do livro, este capítulo: (i) contextualiza a
agricultura no mundo dos paradigmas científicos; (ii) faz o mesmo para o caso da agricultura
familiar no mundo dos paradigmas de desenvolvimento; (iii) sintetiza a atual mudança de época
histórica que condiciona a crise de paradigmas científicos e de desenvolvimento; e (iv) interpreta
3
Jean-Marie Domenach, em Domenach (1980:13)
2
o significado do giro epistemológico na ciência como conseqüência da mudança de época, na
pesquisa agropecuária e na EMBRAPA, com evidências da literatura e dos relatos dos capítulos.
A partir da publicação em 1962 do livro A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Khun,
o conceito de paradigma 4 ganhou popularidade ao transcender o imaginário técnico-científico
para invadir também o imaginário social. Em termos gerais, um paradigma é um marco de
referência que articula uma constelação de “regras” para condicionar a forma de ser, sentir,
pensar, fazer e falar de uma comunidade de atores. Um paradigma emerge de uma visão de
mundo. Uma visão de mundo articula um conjunto de premissas através das quais um individuo,
família, grupo social, comunidade, sociedade ou até mesmo uma civ ilização olha para a realidade
para compreendê-la e nela atua para transformá-la. Como uma premissa é uma crença, e uma
crença é uma verdade que não necessita ser demonstrada, uma visão de mundo—concepção de
realidade—é um regime de verdades sobre o que é e c omo funciona a realidade.
De acordo com Khun (1970), um paradigma científico 6 define os valores culturais a cultivar, os
temas relevantes a pesquisar, as perguntas críticas a responder, as teorias apropriadas a adotar,
4
É justo reconhecer que entre as duas guerras mundiais do século XX, Ludwik Fleck antecedeu Thomas
Khun na concepção filosófica do que depois seria institucionalizado como o conceito de paradigma, a partir
de uma análise do desenvolvimento dos fatos científicos, que ele considerava uma invenção e não uma
descoberta (Fleck 1981).
5
Nos referimos ao momento inicial em que um cientista ou grupo de cientistas propõe à comunidade
científica mais ampla um novo paradigma, que ainda não está disponível, não foi validado nem tem
seguidores fora do espaço dos que lhe estão desenvolvendo. O paradigma delineado na referida proposta
deve preencher alguns requisitos para a consideração, avaliação e aceitação da comunidade científica.
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Imaginemos, por exemplo, o antigo paradigma geocêntrico da Astronomia, cuja premissa-guía enunciava:
a Terra é fixa e é o centro do universo.
3
as regras metodológicas a seguir, os exemplos paradigmáticos de pesquisa realizada a emular e
até a natureza dos resultados de pesquisa a encontrar. Sob estas condições, ocorre o que Khun
denomina ciência normal 7 , quando a geração de conhecimento responde às premissas do
paradigma científico dominante, e a dinâmica do seu avanço é acumulativa. Mas a teoria de Khun
foi sobre o fenômeno de ascensão e declínio dos paradigmas científicos. Cedo ou tarde,
anomalias8 emergem contrariando premissas do paradigma, podendo inclusive determinar sua
crise 9 irreversível. Então ocorre uma revolução cie ntífica 10 provocada por outros modos—
estilos (a la Ludwik Fleck)—de pensamento, que terminam por conceber paradigmas que
competem entre si para substituir àquele que perdeu a confiança da comunidade científica.
Independente das debilidades da teoria de Khun que, por exemplo, concede excessiv a autonomia
à comunidade cientifica e pouca importância à influência da sociedade nas revoluções científicas,
sua conclusão é aceita até por seus críticos: os paradigmas científicos não são eternos. Isso é o
que ocorre com o ‘paradigma clássico’ da ciência moderna, que nas últimas quatro décadas
perdeu um monopólio de quatro séculos como única fonte confiável de geração de conhecimento
científico v álido. Originado a partir da visão mecânica de mundo concebida por cientistas
empiristas como Francis Bacon ( 1561-1626) e racionalistas como René Descartes ( 1596-1650),
sintetizada por pensadores mecanicistas como Isaac Newton (1643-1727) e aperfeiçoada por
positiv istas como Auguste Comte (1798-1857), o paradigma clássico viu o universo como uma
engrenagem e concebeu o mundo como uma máquina cujo funcionamento é preciso, regular e
previsível (Adas 1989). Já os evolucionistas sociais, como Herbert Spencer (1820-1903), viram o
mundo como um organismo, onde civilizaç ões e sociedades evoluem do estágio primitivo (hoje,
subdesenvolvido), ao estágio civilizado (hoje, desenvolv ido), através da competição, porque a
existência é uma eterna luta pela sobrevivencia, onde vence o mais forte, o mais apto ou, em
termos contemporâneos, o mais competitiv o. Porém, até o mundo científico já reconhece a
insustentabilidade do monopólio do paradigma clássico (Harding 1986; Rouse 1987; Restivo
1988), enquanto o mundo do desenvolvimento associa a atual crise de legitimidade da ciência
moderna a suas contribuições ao aumento de desigualdades na humanidade e à vulnerabilidade
do planeta (Leiss 1974; Morazé 1979; Attali et al. 1980; Haraway 1989; Dupas 2006).
Não por acidente, a maioria dos programas de pesquisa e desenvolvimento agrícola do século XX
define como seu objetiv o aumentar a produção e/ou a produtividade da agricultura (Busch 1994).
7
Imaginemos as comunidades científicas associadas à Astronomia gerando conhecimento científico a partir
da premissa-guía do paradigma geocêntrico.
8
Imaginemos os seguidores do paradigma geocêntrico da Astronomia, obtendo resultados em conflito com
o enunciado de sua premissa-guía, sugerindo que a Terra não é fixa nem o centro do universo.
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Imaginemos o paradigma geocêntrico da Astronomia perdendo a confiança de seus promotores,
seguidores e guardiões, de forma irreversível, pela obsolescência de sua premissa-guia, a verdade maior a
partir da qual toda a coerência do paradigma foi construída.
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Imaginemos a efervescência criativa e negociações políticas no processo de crítica ao paradigma
geocêntrico e de concepção de paradigmas candidatos à superação de suas deficiências e insuficiências.
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As dimensões humana, social, cultural, ecológica e ética da agricultura (conceituada de forma
mais ampla) são ignoradas ou violadas, porque a máquina é insensível a considerações desta
natureza, já que numa máquina não há gente (só “partes” e “peças” da “engrenagem”), e dela
só se espera que seja “eficiente” na transformação de “recursos” (naturais, financeiros, materiais,
humanos) em “produtos”. Nesta perspectiva, só existe lugar relevante para uma agricultura, a
agricultura moderna derivada da aplicação da ciência moderna, cujo futuro é antecipado pelo
conceito de agricultura de “precisão”. T ambém existe apenas uma pesquisa agropecuária, aquela
que reproduz o paradigma clássico da ciência moderna (ex.; Molnar et al. 1992).
Então, se nesta perspectiva não há lugar relevante para a agricultura tradicional em geral, nem
para a agricultura familiar, indígena ou urbana em particular, a questão da inclusão social
tampouco preocupa à pesquisa agropecuária, que não deve trabalhar com problemas complexos
para a pesquisa senão apenas com problemas simples de pesquisa. O que não ex iste ou não é
relevante no contexto da pesquisa também não é relevante para a pesquisa do contexto. Em
conclusão, nesta perspectiva não ex iste lugar relevante para a pesquisa agropecuária praticante
de opções paradigmáticas situadas fora das premissas do paradigma clássico da ciência moderna.
Uma das evidências mais reveladoras da prevalência da visão mecânica de mundo nas ciências
associadas ao desenvolvimento da agricultura é a baixa presença (ou mesmo ausência) histórica
das ciências sociais e humanas na maioria dos institutos nacionais de pesquisa agrícola (INPAs).
Vista como máquina, a agricultura dispensa conhecimentos sociais e exige apenas c onhecimentos
sobre plantas, animais, solo, água, clima, praticas culturais, manej o de animais. Historicamente,
questões humanas, sociais, culturais, éticas, políticas, institucionais e filosóficas não têm lugar na
pesquisa agropecuária dos INPAs, para os quais é desnecessário investigar as relações CTSI, já
que estas ocorrem dentro de uma seqüência “natural”, dos que geram aos que transferem, e dos
que transferem aos que adotam. É, portanto, desnecessário problematizar este processo, já que
sua neutralidade de origem está assegurada pelo “método científico” que evita a interferência de
valores e interesses humanos.
5
A ciência moderna11 e a pesquisa agropecuária12 estão questionadas, bem como a agricultura
moderna13 que resulta de sua aplicação, em seu desempenho histórico 14 e no recente esforço de
intensificação de sua globalização 15 . Existem esforços de construção de opções paradigmáticas
para a ciência16 , a pesquisa agropecuária17 e a agricultura18 , inclusive a familiar 19 . Em síntese,
mudanças profundas na sociedade estão alterando as relações CTIS e a prática científica20 . O
capítulo revela uma bibliografia sobre críticas à ciência moderna e à pesquisa agropecuária dela
resultante, e sobre propostas para sua prática comprometida com as dimensões humana, social,
cultural, ecológica e ética. Mas uma revolução paradigmática está em curso também no mundo
do desenvolvimento, com implicações para a agricultura familiar e a pesquisa agropecuária.
11
Ver Leiss (1974), Dallmayr e McCarthy (1977), Restivo (1988), Haraway (1989), Díaz e Heler (1992).
12
Ver Lewontin e Berlan (1986), Kloppenburg (1988a, 1988b, 1991, 1992), Deo e Swanson (1991).
13
Ver Cleaver (1973), Hightower (1973), Merrill (1976), Berry (1977), Shi va (1992).
14
Ver Berlan (1991), Friedland et al. (1991), Friedmann (1993), Bonnano et al. (1994), McMichael (1995).
15
Ver Bonnano et al. (1994), McMichael (1994), Goodman e Watts (1998).
16
Ver Rouse (1987), Gleick (1993), Bentz e Shapiro (1998), Díaz (2000), Nowotny et al. (2001).
17
Ver Busch (1982, 1984, 1994), Kloppenburg (1988a, 1991), Bawden (1998), Röling (2000).
18
Ver Jackson (1980), Altieri (1987), Friedland et al. (1991), Röling (2003).
19
Ver Merrill (1976), Chambers (1989), Kirschenmann (1988), Flora (1991, 1992), Scheneider (2006).
20
Sobre as transformações nas relações CTSI e na prática científica, ver Harding (1991), Sobral et al.
(1997), Baugarten (2001), Wallerstein (2001), Nowotny et al. (2001), Nuñez-Jover (2002), Rodríguez-
Aguirre (2002), Walsh et al. (2002), De Souza Silva (2004b), Santos et al. (2004). Sobre estas
transformações na agricultura e pesquisa agropecuária, ver Figueiredo (1989), Kloppenburg (1991).
21
Ao lado do lema da Revolução Industrial, o paradigma clássico também incorporou e promoveu o lema
Ordem e Progresso da filosofia positivista de Auguste Comte, cujo impacto mundial no final do século XIX e
no início do século XX foi mais forte no Brasil, que ainda hoje ostenta o referido lema em sua Bandeira.
22
Em última instância, no discurso do capitalismo, progresso e desenvolvimento são sinônimos usados em
épocas distintas para camuflar seu verdadeiro significado e propósito: crescimento econômico, a qualquer
custo, para contribuir ao objetivo superior do sistema capitalista: acumular riqueza material de forma
crescente e constante (Attali et al. 1980; Domenach 1980; Sachs 1992; Escobar 1998; Dupas 2006).
6
reafirmada em 1962 por Walter W. Rostow em Etapas do Crescimento Econômico: Um manifesto
não-comunista para explicar desenvolv imento como sinônimo de crescimento econômico 23 . Nesta
evolução, do subdesenvolvimento ao desenvolvimento, as sociedades seguem cinco etapas
“naturais” que as classificam em: (i) sociedades tradicionais; (ii) sociedades com as precondições
para a decolagem; (iii) sociedades onde a decolagem já ocorreu; (iv) sociedades que, havendo
decolado, caminham para a maturidade do desenvolvimento; e (v) sociedades que alcançaram a
última fase caracterizada por um alto consumo de massa. A sociedade evolui do tradicional ao
moderno, do primitiv o ao civilizado, do subdesenvolvido ao desenvolv ido, do inferior ao superior.
Esta concepção evolucionista da história foi incorporada pelo paradigma clássico sob o discurso
eurocêntrico de que a Europa ocidental era um espelho para todas as sociedades (Dussel 2000).
Mas, segundo Arturo Escobar, “o problema do modo clássico de inovação não é necessariamente
sua origem européia senão o fato de que, sendo uma concepção particular, desenvolvida a partir
de certo lugar, por certos atores e em certo idioma, haja sido imposto a todos como o único
modo possível de inov ação. Sua nobre missão de reordenar a realidade global à medida da
ordem social que interessava à realidade européia era uma missão impossível: impor a falsa
premissa de que a realidade global é homogênea, ou que pode ser homogeneizada. A mesma
estratégia está em curso desde a Segunda Guerra Mundial quando os Estados Unidos emergiram
como potência hegemônica. Sua liderança epistêmico-ideológica não mudou a lógica da
superioridade de uns grupos, desenvolvidos, sobre outros, subdesenvolvidos” (Escobar 2005:8).
Durante a prevalência da época histórica do agrarianismo, o mundo era percebido como algo
vivo, divino e misterioso. Inicialmente, a agricultura não era percebida como uma máquina de
“produzir” ou como um negocio “lucrativo” senão como um modo de vida. Com o capitalismo
mercantil superando o feudalismo agrário, esta visão orgânica do mundo e da agricultura foi
lentamente alterada até que o capitalismo industrial mobilizou a ciência moderna para criar uma
justificativ a científica do mundo à conveniência dos interesses dos impérios da Europa ocidental
(Castro-Gómez e Grosfoguel 2007). Por isso o projeto da modernidade européia inclui sua outra
face, a colonialidade (Mignolo 2007), cuja expansão geopolítica ex igiu a adoção dos valores,
interesses e compromissos da Europa ocidental, como se estes coincidissem com os valores,
interesses e compromissos da humanidade (Pachón-Soto 2007). No entanto, a agenda oculta da
expansão colonial incluía a ampliação do acesso a mercados cativos, matéria prima abundante,
mão de obra barata, mentes dóceis—obedientes —e corpos disciplinados (De Souza Silv a 2008).
A expansão colonial (Brockway 1979, 1983, 1988) foi facilitada pela dicotomia superior-inferior
(De Souza Silva 2006). A partir da idéia de raça (Quijano 2007), na qual há raças superiores e
raças inferiores, a dicotomia serviu para a classificação social da humanidade em civilizados-
primitivos (Quijano 2007), e a atual hierarquização em desenvolvidos-subdesenvolvidos (Escobar
1998). Para ser como Eles, civilizados/desenvolvidos, é inevitável pensar como Eles (De Souza
Silva 2008). Hoje nossa educação continua influenciada pela pedagogia da resposta que forma
seguidores de caminhos, questionada por Paulo Freire que propõe a pedagogia da pergunta
(Freire 1986) para formar construtores de caminhos que ainda não existem, para que deixemos
de ser meros receptores de idéias, conceitos, teorias, paradigmas e modelos concebidos longe de
nosso contexto e sem nossa participação nem compromisso com nosso futuro. Sob a dicotomia
superior-inferior, a agricultura do Novo Mundo, tropical, foi considerada tradicional, inferior, e a
23
A Teoria do Crescimento Econômico de Walter W. Rostow foi amplamente criticada por diferentes
pensadores do mundo (Wilber 1973). Segundo seus críticos, sua perspectiva evolucionista simplifica,
despolitiza, normaliza e “naturaliza” a complexidade e diversidade de um processo histórico fortemente
condicionado pelo choque dialético de eventos e interesses, globais e locais, constitutivos das contradições
que emanam de relações assimétricas de poder que geram condições desiguais para diferentes atores em
distintos contextos, internacionais e nacionais. Esta debilidade teórica se deve ao fato de que, em plena
Guerra Fria, o “Professor Rostow [estava] menos preocupado em desenvolver uma teoria e mais em
escrever um manifesto não-comunista” (Baran e Hobsbawm 1973:48).
7
agricultura do Velho Mundo, temperado, foi considerada moderna, superior. A transformação da
agricultura tradicional para a agricultura moderna foi realizada com o apoio crítico da prática da
transferência de tecnologia agrícola dos superiores aos inferiores (De Souza Silva 1997, 2006).
O debate no Brasil sobre o agronegócio e a agricultura familiar (Valente 2008) revela elementos
deste esforço histórico para homogeneizar tanto a agricultura quanto a pesquisa agropecuária
que esta necessita, assim como elementos igualmente históricos de dissidência e resistência. No
debate, um dos lados defende que o país deve priorizar apenas um único tipo de agricultura, a
moderna representada pelo agronegócio exportador que aumenta a competitividade internacional
do Brasil. O outro lado está dividido em duas correntes. A corrente mais visível no debate propõe
que o esforço público deve ser concentrado apenas na agricultura familiar, porque esta contribui
mais do que a agricultura capitalista à segurança alimentar da sociedade, sustentabilidade de
fatores eco-ambientais e geração de emprego e renda. A outra corrente propõe a coexistência de
24
As primeiras viagens foram de conquistas, não de intercâmbio. Aí prevaleceu o simples saqueio de
tesouros tropicais, incluindo plantas tropicais (Crosby 1972, 1987; Brockway 1979, 1983, 1988; Juma 1989).
A transferência de tecnologia ocorre a partir das estratégias de ocupação, quando os impérios europeus
buscaram o apoio da ciência e seu potencial para a exploração e apropriação dos tesouros tropicais
(Kloppenburg 1988a, 1988b; De Souza Silva 1989, 1997, 2006). No início, o lócus do controle recaiu sobre
as próprias plantas tropicais, para facilitar o controle sobre seus produtos (Brockway 1979).
25
Ver Cleaver (1973), Merrill (1976), Brockway (1979, 1983, 1988), Busch e Sachs (1981), De Souza Silva
(1988, 1989, 2006), Kloppenburg (1988a, 1988b, 1991), Shiva (1992), Chambers (1989), Busch (1994).
8
múltiplos tipos de agricultura, incluindo a agricultura familiar, e que cada um deles tenha suas
peculiaridades e exigências atendidas por diferentes conjuntos de políticas de Estado, concebidas
a partir das diferenças e não a partir de um enfoque que trata estas agriculturas de forma
homogênea, privilegiando uma delas em detrimento da outra.
Como c onseqüência, cada uma destas correntes de pensamento percebe um papel diferente para
a pesquisa agropecuária. A primeira entende que a pesquisa agropecuária deve concentrar sua
capacidade no aumento da competitiv idade do agronegócio nacional, já que este é quem mais
contribui ao crescimento econômico, maior volume de exportações e entrada de divisas no país.
A segunda indica a sustentabilidade da agricultura familiar como o alvo preferencial da pesquisa
agropecuária pública, porque este tipo de agricultura é socialmente mais relevante do que o
agronegócio. A terceira defende uma pesquisa agropecuária capaz de usar distintos paradigmas
para os diferentes tipos de agricultura constitutiv os da realidade brasileira. Curiosamente, este
debate se restringe ao plano da agricultura, e pouco se questiona a ciência moderna em geral e
as ciências naturais e sociais constitutiv as da pesquisa agropecuária em particular. Quando estas
entram no debate, o fazem de forma passiv a, e passam a ser alvo de estratégias diferentes para
sua contribuição à competitividade da agricultura capitalista, ou à sustentabilidade da agricultura
familiar, mas raramente para fazer uma autocrítica profunda com implicações ontológicas,
epistemológicas, metodológicas e axiológicas, como é o caso do capítulo 7 deste livro.
O livro compartilha evidências sobre as características da agricultura familiar que justificam seu
tratamento diferenciado, inclusive o direito a uma pesquisa agropecuária comprometida com as
peculiaridades desta agricultura. Uma das distinções mais críticas entre as agriculturas capitalista
e familiar é que a primeira é percebida e tratada como um negócio lucrativo, a segunda como um
modo de vida. No primeiro caso, os atores sociais entram ou permanecem na agricultura como
uma opção de negócio. Porém, sua racionalidade econômica os leva à atitude de que, se este
negocio deixar de dar lucro, eles mudam para outro negócio. No segundo caso, os atores sociais
estão aí porque este é o modo de vida de suas famílias. O referido modo de vida inclui mas
transcende a dimensão econômica para incluir outras dimensões onde estes atores constroem
valores, c ódigos, rituais e significados culturais para dar sentido à sua existência e à ex istência de
tudo mais a sua v olta. Este modo de vida deve ser sustentáv el, e não apenas competitivo,
porque eles não podem mudar de negócio quando lhes convier. Por isso na agricultura capitalista
existe pouco compromisso com as dimensões humana, social, cultural, ecológica e ética,
enquanto as referidas dimensões são cruciais na agricultura familiar. N o capítulo, demonstra-se a
necessidade e possibilidade de uma pesquisa agropecuária orientada por paradigmas diferentes
do clássic o. Opções paradigmáticas (Kloppenburg 1991; Funtowicz e Ravetz 1993; Guba e Lincoln
1994; Bentz e Shapiro 1998; Busch 2001) emergem junto com o fenômeno da mudança de
época iniciada na década de 60 (Dicken 1992; Amin 1997; Albrow 1997; Hoogvelt 1997).
Estamos todos vulneráveis, do cidadão ao planeta. Desde a década de 1960, a humanidade está
experimentando uma mudança de época histórica (De Souza Silv a et al. 2006). O que caracteriza
uma época histórica é a ex istência coerente de um sistema de idéias para interpretar a realidade,
um sistema de técnicas para transformar a realidade e um sistema de poder para controlar a
realidade. Quando estes sistemas prevalecem sobre outros sistemas de idéias, técnicas e poder
durante um longo período da história, eles condicionam a natureza das relações de produção,
relações de poder, modos de v ida e cultura. Ao período em que prevalece sua influência, chama-
se época histórica 26 . Quando estas dimensões experimentam transformações qualitativas e
26
A humanidade está experimentando sua terceira mudança de época histórica. A primeira ocorreu do
extrativismo ao agrarianismo, a segunda do agrarianismo ao industrialismo. Desde a segunda metade do
9
simultâneas em suas características, isso significa que a humanidade experimenta uma mudança
de época histórica. A relev ância dos sistemas de idéias, de técnicas e de poder que prevaleceram
até então está sendo desafiada e superada em importância por outros sistemas de idéias, de
técnicas e de poder emergentes. I sso ocorre desde a década de 1960 (Castells 1996).
Mudanças qualitativ as e simultâneas nas relações de produção, relações de poder, modos de v ida
e cultura dominantes durante o industrialismo criam uma crise de legitimidade do paradigma
clássico que viabilizou a construção da sociedade industrial, cuja coerência produtiva, simbólica e
de consumo não está em sintonia com as potencialidades e limites do planeta (Carson 1962;
Capra 1996; Kovel 2002). Em um cambio de época, tudo muda, inclusive paradigmas científicos
(Nowotny et al. 2001) e de desenvolvimento (Sachs 1999). A partir da década de 1960, os
paradigmas vinculados ao paradigma clássico da ciência moderna que viabilizou a concepção,
implementação e consolidação da época histórica do industrialismo foram questionados por
movimentos étnicos e sociais que proliferaram na sociedade civil de todo o planeta. Já nos anos
70, alguns atores identificaram a crise do paradigma do industrialismo em particular (Bell 1999) e
da civilização ocidental em geral (Attali et al. 1980). Três rev oluções— tecnológica, econômica e
cultural—em curso condicionam a atual mudança de época histórica (Castells 1996, 1997, 1998).
século XX, segundo Castells (1996), a humanidade assiste o declínio do industrialismo e a ascensão do
informacionalismo (informação é insumo, produto e fator estratégico para a criação de riqueza e poder).
10
• Revolução cultural. Desde os anos 60s, movimentos étnicos e sociais proliferam
questionando premissas da civilização ocidental e v alores da sociedade industrial de
consumo. Na prática, cada um deles destaca a relevância de certa questão—direitos
humanos, autoridade patriarcal, participação da sociedade civil, vulnerabilidade
ecológica, desigualdade e exclusão social, equidade de gênero, modo de vida
indígena—cujo estado atual é criticado para justificar uma proposta de um futuro
melhor onde a referida questão é percebida e tratada de forma mais relevante. Em seu
conjunto, estes movimentos tentam resgatar e promover a relevância das dimensões
humana, social, cultural, ecológica e ética, justamente aquelas que foram ignoradas ou
violadas pelo paradigma da época histórica do industrialismo. Esta revolução inclui uma
critica à civilização ocidental e seus v alores, conceitos, teorias, modelos e paradigmas
cuja aplicação resultaram na coerência produtiva e de consumo da sociedade
industrial, que é incompatível com os limites do planeta (Capra 1982, 1996, 2003).
Apesar de que estes movimentos reiv indicam um mundo relevante para todos, eles
ainda não conseguiram apresentar à humanidade uma proposta, coerente e integral,
alternativa à proposta neoliberal que nos conduz todos à uma catástrofe anunciada,
até o final da primeira metade do século XXI, a menos que algo radicalmente distinto
da globalização “natural” em curso ocorra antes de 2030, para incluir mais de 70% da
humanidade que hoje estão excluídos da esperança de um futuro relevante para todos.
27
Ver Anexo-1 ao final do capítulo. O referido anexo sintetiza algumas premissas constitutivas das visões de
mundo em conflito na época histórica emergente.
28
Ver Anexo-2 no final do capítulo. O referido anexo sintetiza algumas premissas constitutivas dos
paradigmas de desenvolvimento em conflito na época histórica emergente.
29
O Anexo-3 distingue entre o ‘modo clássico’ de inovação e o ‘modo contextual’ que emerge a partir das
premissas da visão contextual de mundo e do paradigma construtivista de desenvolvimento.
11
agricultura, sem distinguir se esta é do tipo capitalista ou familiar. A questão da inclusão
social na agricultura não está em sua agenda; as dimensões humana, social, cultural,
ecológica e ética são invisíveis ou estão ausentes. A questão é desnecessária.
12
estabelecido entre suas prioridades, possibilidades e limitações para atender aos distintos
interesses e compromissos das diferentes agriculturas com as quais trabalha. Considerando a
história de exclusão da agricultura familiar pelas políticas públicas relevantes no Brasil, pois o
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF)30 é de criação recente, o
princípio da igualdade de oportunidades não é justo neste caso. Enquanto o agronegócio teve
oportunidades e apoio de políticas públicas para organizar-se e capitalizar-se, a agricultura
familiar foi excluída ou tratada como uma inconveniência inevitável, sem oportunidade nem apoio
relevantes para organizar-se e capitalizar-se. Assim, quando se trata da pesquisa agropecuária
pública, uma maior porcentagem do orçamento proveniente do tesouro nacional deve ser dirigida
à correção desta distorção histórica cujas conseqüências negativas prevalecem ainda hoje.
Não existe uma senão múltiplas ciências. Depois de quatro séculos de supremacia do paradigma
clássico da ciência moderna, nas últimas quatro décadas seu monopólio entrou em uma crise de
legitimidade (Dallmayr e McCarthy 1977; Harding 1991). Como conseqüência, emergem outras
opções paradigmáticas para a prática científica (Bentz e Shapiro 1998; Guba e Lincoln 1998; De
Souza Silva 2004b). O paradigma clássico fez contribuições inestimáv eis à humanidade, e suas
contribuições continuam imprescindíveis. Mas, ele já não tem o monopólio da interpretação da
realidade nem das intervenções para sua transformação. Existem outros ‘futuros’ possív eis e mais
relevantes do que aquele que resultaria da concepção mecânica oferecida pela ciência moderna
como a única concepção válida para gerar conhecimento relevante para a construção do futuro.
O giro epistemológico provocado pela mudança de época ocorre na ciência, incluindo as ciências
sociais, e na pesquisa agropecuária, inclusive no Brasil.
O paradigma clássico da ciência moderna está em crise. Concebido no século XVI, aperfeiçoado
nos séculos XVII e XVIII e consolidado no século XIX, ele está questionado desde a segunda
metade do século XX no mundo da ciência31 , ciências sociais 32 e pesquisa agropecuária33 , desde
30
Sobre o PRONAF, ainda que este represente uma conquista significativa, ainda está longe de solucionar as
questões relativas à agricultura familiar, porque, por exemplo, diante do persistente gargalo da a assistência
técnica e extensão rural, o crédito quando mal utilizado pode significar, em última instância, inviabilizar o
agricultor familiar devido seu crescente endividamento.
31
Ver, por exemplo, Husserl (1970), Khun (1970), Leiss (1974), Feyerabend (1975), Rosemberg (1976),
Morazé (1979), Domenach (1980), Merchant (1980), Japiassú (1981), Fee (1986), Harding (1986), Rose
(1986), Keller (1988), Haraway (1989), Aronowitz (1988), Rose (1994), Lubchenco (1998), Díaz (2000).
32
Ver, por exemplo, Ake (1978), Gouldner (1971), Smith (1987), Rouse (1987), Restivo (1988), Wallerstein
(1999a, 1999b), Röling (2000, 2003), Walsh et al. (2002), Castro-Gómez (2005), De Sousa Santos (2005),
Lander (2005), Castro-Gómez e Grosfoguel (2007), Restrepo (2007).
13
várias perspectivas e disciplinas. Já não podemos viver sem ele, mas sua hegemonia epistêmica
acabou. Na diversidade paradigmática emergente, a epistemologia da ciência moderna não é a
única e nem sempre a mais relevante. É apenas uma entre outras opções igualmente válidas.
No mundo da ciência moderna, tudo está questionado, principalmente sua concepção mecânica
de mundo, a principal fonte de inspiração para suas premissas ontológicas, epistemológicas,
metodológicas e ax iológicas (De Souza Silva 2004b). O questionamento se ramifica em todas as
esferas da ativ idade humana (Attali et al. 1980), principalmente no mundo do desenvolvimento
(Escobar 1998; Sachs 1992, 1999; Dupas 2006). A ciência moderna é acusada de, sob a lógica
evolucionista, usar o ambíguo conceito de desenvolv imento para reproduzir a dicotomia superior-
inferior (De Souza Silva 2006, 2008), que no passado classificou a humanidade em civilizados-
primitivos (Quijano 2007) e hoje nos hierarquiza em desenvolvidos- subdesenvolvidos (Escobar
1998). Nesta lógica, subdesenvolv imento não é o oposto do desenvolvimento senão sua fase
embrionária (Rist 1997). Existe um caminho único para o desenvolvimento que fará felizes a
todas as sociedades. A perfeição e a felicidade estão ao alcance de todos que adotem as idéias,
conceitos, teorias, paradigmas e modelos dos “desenvolvidos”, que já são perfeitos e felizes. Mas
o caminho é longo e ex ige sacrifícios. Os subdesenvolvidos nunca se graduam em desenvolvidos;
eles ganham adjetiv os para refletir sua posição na escala quantitativa do desenvolvimento.
Muitos já exibem a etiqueta de país “em desenvolvimento” e uns poucos a de país “emergente”.
E ficam satisfeitos e iludidos. Aspiram o diploma de “desenvolvido”, que não existe (Sachs 1992).
Enquanto no mundo das ciências físicas e naturais o giro epistemológico ocorre principalmente a
través da Teoria da Complex idade34 , nas ciências sociais oc orre uma revolução epistemológica de
outra ordem, apesar de que a Teoria da Complexidade também inspira cientistas sociais neo-
positiv istas que emulam o que acontece na Física e Biologia modernas (ex.; Reason 2000). Esta
teoria influencia campos do conhecimento fora de suas disciplinas de origem, como governo (Kiel
1994), Estratégia (Stacey 1993), mudança institucional (Bauer 1999), ciências das organizações
(Begun 1994) economia (Kelsey 1988), gestão (Lissack 1997) e comportamento humano (Munné
1995). São muitas as correntes de pensamento v inculadas a esta teoria. Todas assumem que a
realidade é constituída de relações; no cosmo tudo se relaciona com tudo, e a interdependência
entre todas as formas de vida exige a interação entre elas. Seus seguidores, neo-positiv istas—
neo-racionalistas e neo-evolucionistas transferem para as sociedades e suas instituições a lógica
da auto-organização que ocorre em fenômenos naturais, como em fenômenos climáticos (Lorenz
1963), e na organização de insetos sociais (Eder e Rembold 1987), para explicar a dinâmica
humana. Ignoram o papel dos significados culturais que os humanos constroem para dar sentido
à sua existência e à de tudo que os rodeia. Eles criticam as fronteiras epistemológicas e limites
metodológicos das teorias positiv istas e propõem a Teoria da Complexidade para transcender tais
fronteiras e limites. As exceções não-positivistas na Teoria da Complexidade são raras mas
excelentes (ex.; Morin 1984; Astley 1985; Varela 1999; Álvarez-González et al. 2005). Nelas, a
realidade é constituída de relações e significados entre diferentes formas e modos de vida,
porque estes autores assumem a premissa construtivista de que, da perspectiva dos humanos, a
realidade é socialmente construída e transformada.
Nas ciências sociais, o giro epistemológico ocorre de forma variada. Existem cientistas sociais
satisfeitos como meros receptores de conceitos que emergem da Física e da Biologia modernas,
através da Teoria da Complexidade (ex.; Bauer 1999; Reason 2000), e os que constroem
33
Ver por exemplo, Cleaver (1973), Hightower (1973), Oasa e Jennings (1982), Busch (1984, 1994),
Krimsky (1984), Marcus (1985), Lewontin e Berlan (1986), Kloppenburg (1991), McCourkle (1989 ),
Chambers (1989), Lockeretz (1990), Busch et al. (1991), Deo e Swanson (1991), Cajigas-Rotundo (2007).
34
A literatura sobre a Teoria da Complexidade é vasta e não para de crescer. Ver, por exemplo, Lorenz
(1963), Prigogine e Stengers (1984), Waldrop (1992), Gleick (1993), Holland (1995), Prigogine (1996),
Byrne (1998), Tetenbaum (1998), Hock (1999), Capra (2003).
14
conceitos, teorias e paradigmas revolucionários, não-eurocêntricos 35 . Também há os que adotam
o paradigma construtivista na prática científica em interação com outras disciplinas das ciências
físicas e naturais, e com outros grupos de atores sociais e institucionais, como relata na Europa o
número especial de Science and Public Policy, Junho de 2000: “ciências sociais interativas”. 36
35
O eurocentrismo promoveu a superioridade genética, cultural, geográfica, militar, moral e tecnológica do
povo da Europa ocidental em relação aos outros povos do mundo, e em relação a suas principais
instituições, o Estado e a ciência modernos. Sao “eurocêntricos” os conceitos, teorias, paradigmas e
modelos inspirados em valores e crenças, idéias e ideais originados na Europa ocidental. Sobre o
eurocentrismo ver Amin (1989), Blaut (1993), Wallerstein (1996), Lander (2000).
36
Ver Caswill e Shove (2000a, 2000b), Gibbons (2000), Woolgar (2000), Shove e Rip (2000), Baldwin
(2000), Simmons e Walker (2000), Watson (2000) e Orme (2000).
37
Seus principais integrantes são o filósofo argentino Enrique Dussel, o sociólogo peruano Aníbal Quijano, o
semiólogo teórico cultural argentino Walter Mignolo, o filósofo colombiano Santiago Castro-Gómez, o
antropólogo colombiano Arturo Escobar, o sociólogo venezuelano Edgardo Lander, o antropólogo
venezuelano Fernando Coronil, o filósofo portoriquenho Nelson Maldonado-Torres, o sociólogo
portoriquenho Ramón Grosfoguel e a lingüista norteamericana naturalizada equatorina Catherine Walsh.
Para uma síntese do grupo e seu pensamento, ver Escobar (2003) e Pachón-Soto (2007). Para um acesso
direto ao pensamento do grupo, ver Castro-Gómez e Mendieta (1998), Castro-Gómez e Rivera (1999),
Lander (2000), Mignolo et al. (2001), Walsh et al. (2002, 2005) e Castro-Gómez e Grosfoguel (2007).
38
Nestes eventos, o Banco Mundial, o BID e alguns de seus seguidores apresentaram as “tendências da
globalização” através de um “discurso científico” que as promovia como se fossem paradigmas a ser
15
Não obstante, o giro epistemológico crítico na pesquisa agropecuária não tem origem no mundo
oficial do desenvolvimento global, nem é desenvolv ido por atores da “comunidade internacional”,
cujos interesses são servidos apenas com a reprodução da dicotomia superior-inferior que facilita
a renovação do acesso dos “desenvolvidos” aos mercados cativos, matéria prima abundante,
mentes dóceis e corpos disciplinados dos “subdesenvolvidos” (De Souza Silva 2008). Como na
ciência em geral e nas ciências sociais em particular, a revolução epistemológica nesta ativ idade
tem origem em questionamentos feitos por alguns movimentos étnicos e sociais que proliferaram
a partir da década de 1960. Eles desafiam as premissas da civilização ocidental e os v alores da
sociedade industrial de consumo, seu sistema capitalista e sua ciência ocidental, para resgatar a
relevância do humano, do social, do cultural, do ecológico e do ético, as dimensões ignoradas ou
violadas pelo paradigma da época histórica do industrialismo, por causa da lógica desumana,
anti-social e daninha ao ambiente da dicotomia superior-inferior (De Souza Silva 2008). 39
Entre outras conclusões, tanto Kloppenburg (1991) quanto De Souza Silva (2006) 41 , propõem
uma mudança paradigmática, do universal, mecânico e neutro, representado pelo paradigma
clássico, ao contextual, interativo e ético, representado principalmente (mas não exclusiv amente)
pelo paradigma construtivista, tanto na inovação tecnológica que transforma a realidade material
quanto na inovação institucional que transforma modos de interpretação e intervenção de
16
comunidades de atores sociais, econômicos, políticos e institucionais, inclusive nas ciências
agrárias (Fals-Borda 1990, 1998, 2000; Rahman e Fals-Borda 1991).
A partir de premissas distintas mas convergentes, Kloppenburg (1991) e De Souza Silva (2006)
concluem que (i) o desenvolvimento é contextual e não universal, porque a realidade não é
homogênea, (ii) a inovação relev ante emerge de processos de interação social, e não de forma
linear como quer o modo clássico no qual uns geram, outros transferem e o resto adota, (iii) o
conhecimento significativo é interativamente gerado e apropriado no contexto de sua aplicação
(dimensão prática) e implicações (dimensão ética), e não ignorando ou violando os saberes,
experiências, aspirações, sonhos, necessidades e histórias locais, (iv) é mais razoável aprender
inventando a partir do local do que perecer imitando a partir do global, e (v) as dimensões
humana, cultural, política, institucional e filosófica, e não apenas a ambiental, social e econômica,
são também imprescindíveis para a sustentabilidade da humanidade e o planeta.
Os capítulos deste livro não são suficientes para concluir sobre o giro epistemológico na pesquisa
agropecuária da EMBRAPA42 , apenas para anunciar sua—bem-vinda e alvissareira—presença.
Associados apenas à agricultura familiar, os poucos relatos compartilhados e examinados não
abrangem experiências com as revoluções técnico-científicas nas ciências físicas e naturais.
Assim, as afirmações enunciadas aqui se vinculam exclusivamente à natureza da amostra das
experiências relatadas. Então, limitado pela exígua amostra das experiências relatadas aqui, pela
variação na ênfase dada às dimensões filosófica, teórica e metodológica e pelos distintas formas
de expressão escrita de seus autores, este capítulo examina apenas os significados que os textos
geram para a interpretação da penetração do giro epistemológico na pesquisa agropecuária da
EMBRAPA. Para isso, foram eleitos quatro indicadores. Buscam- se ev idências (i) do giro
epistemológico, sej a na crítica ao paradigma clássico ou na adoção ou indicação de outras opções
paradigmáticas, (ii) da valorização do contexto (realidade) como referência tanto para inspirar
interpretações quanto para orientar intervenções, (iii) da interação como estratégia de atuação e
mobilização dos atores sociais para sua participação na pesquisa, e (iv) da ética como princípio
reitor condicionando o processo de inovação, da sua concepção à sua avaliação.
• Aceitação da premissa de que a ciência não é a única fonte válida de verdades sobre a
natureza e sua dinâmica, assim como de geração de conhecimento relev ante.
• Aceitação do recente fim do monopólio histórico do paradigma clássico—mecanicista,
reducionista, objetivista, positivista—da ciência moderna.
• Crítica explícita a premissas ontológicas, epistemológicas, metodológicas e axiológicas do
paradigma clássico da ciência moderna.
• Aceitação e adoção de outras opções paradigmáticas para a interpretação da realidade e
sua transformação.
42
Existem diferentes fontes de informação para observar o giro epistemológico na EMBRAPA. Por exemplo,
a existência do Marco Referencial em Agroecologia (EMBRAPA 2006) é um indicador indireto da sua
presença. Mas este capítulo se limita a usar os capítulos 2-8 deste livro como sua fonte interpretativa.
17
• Aceitação da existência e relevância de outras perspectivas, experiências e saberes,
principalmente de atores locais não necessariamente treinados formalmente.
• Consciência da crise da ciência moderna e a indicação explícita da adoção de outras
premissas epistemológicas, diferentes das do paradigma clássico.
43
Como a construção do paradigma construtivista iniciou antes da EMBRAPA ser criada, assume-se aqui que
o referido paradigma não é uma novidade para muitos cientistas da Empresa, e que alguns já o praticam,
conscientemente ou não, há muito tempo, como o autor deste capítulo.
18
socialmente relevante emerge de processos de interação com a participação daqueles que a
necessitam e serão por ela impactados. As principais evidências da valorização da interação são:
A ética implica no cultiv o das condições, relações e significados que geram, mantêm e dão
sentido à vida, de todas as formas de v ida, incluindo a humana sem pretensões antropocêntricas,
e também aos modos de vida destas formas de vida, como o modo de vida urbana, o indígena, o
rural. As evidências associadas à dimensão ética da pesquisa agropecuária são principalmente:
Os relatos das experiências revelam este tipo de evidência, embora alguns não são explícitos
sobre seu compromisso com esta dimensão da pesquisa. É possível identificar sua presença nas
menções à necessidade de espaços e oportunidades para o exercício da cidadania, capacitação
para a autonomia das comunidades, tratamento dos atores sociais como sujeitos e não como
objetos da pesquisa, preservação da identidade cultural de grupos de atores onde este aspecto
está erodido, estímulo aos jovens para valorização do conhecimento ancestral, preocupação com
a privatização do conhecimento tradicional, melhoramento da auto-estima dos grupos sociais,
imposição de modelos forâneos que fraturam a coesão social e práticas culturais locais, direitos
sociais e de cidadania, inclusão social, cuidado ecológico e não apenas viabilidade econômica,
inovações sociais e não apenas tecnológicas.
Pode-se afirmar que o giro epistemológico está na EMBRAPA, mas sua penetração não resulta de
iniciativas institucionais deliberadas. Igualmente, pode-se concluir que a adoção de certas
premissas, de ordem principalmente metodológica, facilita a incorporação do princípio da inclusão
social na pesquisa agropecuária, mas não se pode afirmar que existe uma consciência axiológica
19
(ética) da necessidade entre os pesquisadores envolv idos com experiências similares, pelo menos
não explicitamente nos relatos compartilhados aqui. Mas, pode-se concluir que a EMBRAPA
necessita sensibilizar gerentes e pesquisadores para um esforço de desconstrução e reconstrução
de seus modos de interpretação e intervenção, esforço este no mundo da inovação institucional.
A forma como percebemos o mundo condiciona nossa forma de intervir nele. Um paradigma é
uma perspectiva—janela cultural—através da qual olhamos a realidade que queremos conhecer—
compreender —para controlar (neo-racionalismo), dominar (neo-ev olucionismo) ou transformar
(construtivismo). Mas nem toda janela mostra a mesma paisagem. Como ocorre com um
instrumento (Idhe 1993), sua concepção particular amplifica a relevância de alguns aspectos da
realidade enquanto reduz ou torna invisível a importância de outros. Como cada janela é
construída a partir de um ângulo particular, para enfocar certa parte do contexto, duas janelas
situadas em ângulos distintos e apontando para horizontes diferentes nunca mostram a mesma
realidade. Ainda quando dois objetos ou fenômenos em um mesmo horizonte visual são v istos de
janelas distintas, eles são percebidos diferentemente, pelas distintas lentes culturais dos
observadores situados em cada janela. Já Einstein reconhecia que o observador transforma o
objeto observado com seu método de observação. O caráter seletiv o dos paradigmas é o
indicador verificável de sua não-neutralidade. Portanto, principalmente nas organizações públicas
de ciência, tecnologia e inovação, é crític o (re) conhecer os paradigmas disponíveis nos campos
de interesse, para tomar decisões ético-políticas sobre quais entre eles são mais relevantes para
prevalecer na definição da hierarquia de valores e objetivos fins que servem de critérios para
subordinar as contribuições de paradigmas que tratam com os meios.
Conclusão
Não só de ciência vivem os humanos. Mas bem que esta pode ajudá-los a melhorar sua vida,
principalmente se a prática científica assumir o contexto como referência, a interação como
estratégia e a ética como garantidor do compromisso com a sustentabilidade de todas as formas
e modos de vida, o que implica na adoção do princípio da inclusão social, ou princípio do bem-
estar inclusivo 45 . Isso é o que se pode concluir a partir de uma análise de conteúdo dos casos
apresentados neste livro. Mas nem todos os paradigmas v alorizam estes aspectos da realidade.
Toda época histórica estabelece certos paradigmas de interpretação e intervenção que se tornam
hegemônicos entre outros paradigmas que coexistem no mesmo período. Isso é mais forte na
matriz institucional oficial do que se c onvenciona chamar “desenvolvimento”. Institucionalizados
como “normais”, estes modos de interpretação e intervenção servem de referência para definir
como “anormais” outros cujas premissas—verdades—estão em conflito e desafiam as v erdades
dos paradigmas dominantes. Por isso, durante o período de prevalência dos paradigmas de uma
época histórica, as iniciativas de mudança se concentram principalmente na mudança das
“coisas” e raramente no modo—estilo, a la Ludwik Fleck—de pensamento das “pessoas” que
mudam as coisas (De Souza Silva et al. 2006). Supõe-se que estas já adotam o estilo de
pensamento “normal” da época histórica. Neste caso, o que precisa mudar é apenas a realidade
e não as pessoas que mudam a realidade. Porém, numa mudança de época, como atualmente, o
modo “normal” de pensamento dominante está questionado e perde seu monopólio como fonte
explicativa da realidade e sua dinâmica, e pode tornar-se obsoleto. As rupturas paradigmáticas e
as mudanças qualitativas correspondentes geram novos e reconfiguram antigos problemas, e
geram novas contradições que influenciam a natureza e dinâmica das realidades emergentes,
44
Arturo Escobar, ¿Por qué innovar nuestra forma de innovar?; em De Souza Silva et al. (2005:9).
45
Diante de opções em conflito, este princípio pressiona a favor da opção que beneficia o maior número
possível de famílias, comunidade, grupos sociais, sociedades ou formas de vida, conforme o caso.
20
que não podem ser compreendidas e, às vezes, nem sequer percebidas, através da visão de
mundo—concepção de realidade—dominante na época histórica em crise. Porque, seguindo a
Albert Einstein, não se pode superar um problema complexo sob a mesma percepção—modo de
interpretação—e com o mesmo método—modo de intervenção—que o geraram.
Portanto, o antropólogo Arturo Escobar, citado ao início desta conclusão, está correto. Chegou a
hora de inovar nossa forma de inovar. Segundo um estudo global realizado pela Rede Novo
Paradigma para a inovação institucional na América Latina (De Souza Silva et al. 2006), chegou a
hora de valorizar a filosofia de inovação que muda as “pessoas” que mudam as coisas, porque a
filosofia de inovação que muda as “coisas” para mudar as pessoas está condicionando o fracasso
de 75% das iniciativas de transformação institucional no mundo, por parte de organizações que
tentam reconstruir sua sustentabilidade institucional fraturada pela mudança de época histórica.
A filosofia de mudar as “coisas” emergiu da visão mecânica de mundo concebida pela ciência
moderna. No mundo-máquina não há gente. Assim, muitas das propostas de mudança sugerem
apenas reconfigurar as “partes” e “peças” da “engrenagem”, dificilmente o modo de pensamento
da comunidade de atores que constituem a organização. Percebidos como “recursos”, os seres
humanos têm que se adaptar às coisas que mudaram, por conveniência mas não por convicção.
Seria muito diferente se fossem percebidos como talentos humanos (De Souza Silva 2007). A
EMBRAPA deve examinar qual é a filosofia de inovação in stitucional que prevalece na empresa.
Inferindo a partir apenas deste livro, o giro epistemológico na EMBRAPA é ainda incipiente e não
resulta de um processo institucional deliberado. Inclusive a maioria dos autores não parece estar
consciente que sua prática científica diferente já não responde aos ditames da ciência moderna
senão aos do paradigma construtivista da época histórica em construção desde os anos 60, como
os seguidores da etnobiologia. Por isso, ex iste uma variação na forma de relatar suas respectivas
experiências, independente de como estas ocorreram na prática. Com exceção do relato do
capítulo 7, que é interpretativo, os demais relatos são essencialmente descritivos, o que revela a
pressão da premissa do objetiv ismo do paradigma clássico da ciência moderna. O objetivismo
assume que existe uma realidade fora de nós (out there) que é concreta e independe de nossa
percepção. Como a realidade é como é, o principal papel da ciência “normal” é descobrir e
descrever a realidade como ela “realmente” é. Para isso, deve descobrir as leis “naturais” e, por
isso, mecânicas, imutáveis, universais, para predizer e controlar seu comportamento. Portanto,
muitos dos autores dos relatos estão sob o efeito da lógica da mudança de época histórica. Por
um lado, já praticam premissas de certos paradigmas emergentes enquanto, por outro lado,
ainda são reféns de certas premissas de paradigmas em declínio.
21
fonte inicial de inspiração e orientação do debate sobre o tema na EMBRAPA e SNPA. O
documento incluiria (i) o marco contextual da relevância do tema; (ii) o marco conceitual
mínimo para compreensão do tema; (iii) um marco histórico-crítico das relações CTSI
constitutivas da emergência da agricultura tropical e pesquisa agropecuária desde 1492;
(iii) uma síntese das transformações nas relações CTSI como conseqüência da mudança
de época histórica atual; (iv) um esboço dos cenários emergentes para as relações CTSI
e sua gestão; e (v) elementos—critérios, princípios, premissas, estratégias—inspiradores,
indicativos e orientadores de iniciativas por parte da EMBRAPA abrangendo o SNPA.
3. Criar um programa, área ou linha de estudos e pesquisas das relações CTSI para inspirar
e orientar o aperfeiçoamento da governabilidade e relev ância da EMBRAPA e do SNPA,
através da introdução de inovações institucionais para a gestão destas relações.
Em última instância, estas três sugestões têm como objetiv o epistemológico/axiológico ampliar o
número daqueles que na EMBRAPA e no SNPA pensam a ciência filosoficamente. Como ativ idade
humana transformadora da realidade, a ciência influencia os imaginários técnico e social, assim
como outros futuros relevantes para a humanidade e o planeta. Na prática, as relações CTSI
devem ser pensadas eticamente porque, no processo dialético de suas mútuas influências, seus
impactos não são neutros na realidade que transformam. No mundo e no Brasil, cotidianamente,
milhões de atores humanos e não-humanos têm sua existência afetada negativ a e positivamente
pela prática científica. Já não é política nem socialmente aceitáv el que cientistas e gerentes das
relações CTSI ignorem a natureza filosófica e a magnitude ética de sua profissão, porque os
cientistas não têm o direito de decidir o que deve ser feito apenas porque sabem como fazê-lo.
Conclui-se, pois, que a pesquisa agropecuária deve ser pensada filosófica, ética e historicamente.
Filosófica e eticamente pelo já exposto, e historicamente porque foi condicionada por um
processo cuja variante tropical resultou de relações CTSI globais desiguais, onde prevaleceu o
poder assimétrico entre seu s criadores e disseminadores da Europa ocidental e seus seguidores
no resto do mundo (Brockway 1979, 1983, 1988; Busch e Sachs 1981; De Souza Silva 1989,
2006). Porém, a conclusão institucional mais ampla pode ser sintetizada assim: se 75% dos
processos de inovação institucional para construir sustentabilidade institucional fracassam, se
este fracasso está associado a modelos de mudança institucional inspirados na filosofia de
inovação que muda as “coisas” para mudar as pessoas, e se as mudanças globais em curso
transformam as relações CTSI em organizações de ciência e tecnologia agropecuária, a EMBRAPA
deve iniciar um processo de debate destas mudanças nas referidas relações para revisar antigas
e formular novas políticas e estratégias de sua gestão na EMBRAPA e no SNPA.
Neste tipo de situação, as organizações investem um tempo excessiv o para responder à pergunta
se há ou não vantagens em um processo de debate visando mudanças. Nós sugerimos outro tipo
de exercício mais desafiante e geralmente mais frutífero: imaginar as implicações de não fazê-lo.
No mundo, muitas instituições já debatem estas mudanças há décadas, e algumas iniciaram
processos para incorporar suas implicações, como conseqüência de suas reflexões críticas sobre a
atual mudança de época histórica. Igualmente, na EMBRAPA, alguns cientistas já refletem há
décadas sobre o momento contemporâneo e suas implicações para as relações CTSI. Mas isso
ocorre de forma asistemática, fragmentada, dispersa. A EMBRAPA ainda não iniciou um debate
generalizado e organizado para construir uma nova compreensão das relações CTSI e derivar
critérios, políticas e estratégias para lidar com suas implicações. Até quando? A que custo?
22
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Anexo-1: Visões de mundo em conflito na época histórica emergente
Visão cibernética Visão mercadológica Visão contextual
Metáfora guia: mundo-rede [uma Metáfora guia: mundo-mercado [um Metáfora guia: mundo-trama [uma
“máquina cibernética” que funciona agrega do de arenas comerciais e trama de relações e significados entre
como um sistema de informação auto- tecnológicas onde a importância de diferentes formas e modos de vida.
regulado; um mundo constituído de tudo é reduzida a sua função Esta é uma realidade caórdica (caos +
redes cibernéticas, onde tudo é econômica. Nós não somos cidadãos ordem) que hoje está vulnerável por
reduzido a informação e todos são senão provedores, clientes, causa de problemas antropogênicos—
percebidos como consumidores, produtores, processadores, criados pela ação humana, e cuja
processadores e “produtores” de competidores, investidores, sustentabilidade é uma propriedade
informação, que é o fator estratégico consumidores, exporta dores, etc. Até emergente da interação humana que
emergente mais crítico para a criação a natureza—a vi da—é passível de ser permite a construção coletiva de
de riqueza e poder] vendida e comprada] modos de vida sustentáveis]
Os seres humanos são “recursos Os seres humanos são “capital Os seres humanos são “talentos
humanos”, peças da engrenagem, humano”, porque tudo que entra no humanos”; o mundo tem
porque tudo que entra na máquina é mercado é percebido como “capital”: potencialida des naturais, humanas,
percebido como “recurso”: recursos capital natural, capital financeiro, etc. Nossa imaginação nos permite
naturais, recursos financeiros, capital social, capital humano, capital criar mais além da experiência atual e
recursos humanos, etc. intelectual, etc. do conhecimento prévi o.
As organizações são “redes” As organizações são “provedores” de As organizações são “facilitadores” de
inovadoras: consomem, processam e bens e serviços demanda dos pelo mudança , inspiradas nos desafios
produzem informação, que é mercado, que é a principal fonte de (necessidades, realidades e
transformada em bens e serviços a referência para a inovação. A aspirações) do contexto onde ocorrem
ser ofertados. A organização organização sustentável é a a aplicação e as implicações de suas
sustentável é a organização eficiente; organização competitiva; quanto contribuições. A organização
quanto maior é sua eficiência maior é maior é sua competitividade maior é sustentável é a organização
o seu grau de sustentabilidade. A seu grau de sustentabilidade. A maior cambiante, que inova e muda junto
eficiência produtiva é seu objetivo. competitividade é seu objetivo. com seu contexto cambiante.
As inovações importantes são As inovações importantes são As inovações relevantes “emergem”
“produzidas” por organizações de “ofertadas” por organizações de de processos de interação social, com
ciência e tecnologia que dependem da ciência e tecnologia, que interpretam a participação dos que as necessitam
inteligência racional de seus cientistas. os sinais do mercado como a melhor e que são impactados por seu uso. A
Para a “máquina de inovar”, a fonte de inspiração. O “provedor de interação social é imprescindível: os
interação é desnecessária; os inovações” interage com os “clientes” “expertos” não têm o direito de definir
cientistas sabem o que é melhor para para conhecer suas “demandas”, pois sozinhos o “que deve ser feito” só
a sociedade e o planeta. estes são os únicos atores relevantes. porque sabem “como fazer”.
A “gerência da eficiência” é restringida A “gerência da competitividade” é A “gerência na turbulência” exige que
ao mundo dos meios , e se move sob restringida ao mundo do mercado, e fins e meios sejam negociados juntos,
os ditames da racionalização: a busca assume (i) a oferta e a demanda para que os fins sirvam de critério
da eficiência, predição, precisão, como suas leis, (ii) o lucro máximo para subordi nar a contribuição dos
velocidade, controle, quantificação, como seu critério, e (iii) a acumulação meios. Os excluídos emergem de
etc. O Estado trata “a questão social” como seu objetivo. O mercado é o juiz relações assimétricas que forjam
com políticas sociais compensatórias: que premia aos competitivos e castiga processos desiguais para a criação,
os excluídos são os ineficientes da aos não-competitivos: os excluídos acesso, apropriação e uso de
sociedade. são os não-competitivos da sociedade. informação, riqueza e poder .
O desempenho da “or ganização-rede” O desempenho da “or ganização- O desempenho da “or ganização-
é dependente da qua ntidade dos provedora” é dependente do gra u de facilitadora” de mudança emerge da
meios disponíveis, da eficiente gestão sua conectividade com as demandas interação entre seus subsistemas, e
destes meios e da alta produtividade de seus clientes, de seu conhecimento entre estes e seu contexto relevante.
de sua transformação em bens e das tendências do mercado e do valor Isso implica em coerência (interna)
serviços a ser ofertados. A econômico agrega do a seus produtos para uma melhor eficiência, e
organização requer administradores y/o serviços. A organização é melhor correspondência (externa) para sua
eficientes e tecnologicamente administrada por economistas ou maior relevância entre os atores do
atualizados, capazes de “alinhar” os profissionais que percebam o mercado contexto. Os gerentes devem ser
diferentes tipos de “recursos” com os como a fonte de solução para os competentes, criativos, contextuais,
“objetivos” e “metas” a serem problemas atuais; a existência é uma conceituais e éticos; na
alcançados, sob os ditames da luta pela sobrevivência através da interdependência, a sustentabilidade
“razão”, sem lugar para a emoção. competição. emerge da solidariedade.
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Anexo-2: Paradigmas de “desenvolvimento” em conflito na é poca histórica emerge nte
Paradigma neo-racionalista Paradigma neo-evolucionista Paradigma construtivista
Conhecer para controlar Conhecer para dominar Compreender para transformar
Metáfora-guia: O mundo-rede Metáfora-guia: O mundo-mercado Metáfora-guia: O mundo-trama (de
(“máquina cibernética”) (arenas comerciais e tecnológicas) relações e significados)
O desenvolvimento é um processo O desenvolvimento é um processo O desenvolvimento é um processo
racional, linear e cumulativo para um natural de destruição criativa para um contextual de criação de felicidade e
progresso tecnológico aonde a crescimento econômico onde a bem-estar inclusivo, gerando bens e
felicidade e o bem-estar chegam com felicidade e o bem-estar chegam com serviços e construindo significados
a possessão de bens e acesso a o consumo de bens materiais e culturais e espirituais que dão sentido
serviços: civilização do ter/do acesso. culturais: sociedade de consumo. à existência: civilização do ser.
Existe uma realidade simples e Existe uma realidade complexa mas Existem múltiplas realidades
objetiva, independente de nossa objetiva, independente de nossa dependentes das diferentes
percepção, traduzível à linguagem percepção, traduzível à linguagem do percepções dos distintos grupos de
matemática, e que se pode descobrir, mercado, e dependente do processo atores sociais em seus diferentes
descrever, predizer e controlar para de evolução natur al e da dinâmica das contextos; são realidades socialmente
manejá-la, Segue leis universais. leis da oferta e da demanda. construídas e transformadas.
Uns inovam, outros transferem e A inovação útil deriva da interação A inovação relevante emerge de
muitos adotam as inovações entre expertos e clientes, ou tem sua processos de interação social, com a
“produzidas” por expertos racionais demanda criada pela publicida de com participação dos que a necessitam
que sabem o que é melhor para o apoio de ciências do e/ou serão por ela impactados. A
todos. As máquinas estão no comando comportamento. O mercado está no sociedade está no comando do mundo
do mundo da inovação, sob uma comando do mundo da inovação, sob da inovação, sob uma racionalidade
racionalidade instrumental: todos os uma racionalidade econômica, onde comunicativo-relacional, onde os
problemas são reduzidos a questões os problemas são reduzidos a problemas antropogênicos são
técnicas; a solução lógica resulta em questões de oferta-demanda , sempre resolvidos pela interação humana ,
mais ciência, tecnologia e gestão. com solução de mercado. através da aprendizagem social.
O conhecimento racional— O conhecimento útil—demandas —é O conhecimento significativo—
informação—é neutro, e é “produzido” neutro, e é “produzido” no mundo dos compreensão—é gerado e apropriado
no mundo dos expertos; a expertos/clientes; a participação de no contexto de sua aplicação e
participação dos atores do contexto é outros atores do contexto é uma implicações; a participação é
desnecessária. A ciência é a única via inconveniência. O conhecimento imprescindível. Os saberes—científicos
aceitável para “produzir” científico e de mercado são os únicos e tácitos —são válidos se são
conhecimento válido. necessários e válidos. localmente relevantes.
A aprendizagem para o A “aprendizagem para o A aprendizagem para a inovação é
desenvolvimento se dá por repetição, desenvolvimento” se dá por imitação, contextual, e exige formar
e exige adestramento dos inferiores— e exige a capacitação dos inferiores— construtores de caminhos , que
subdesenv olvidos —pelos superiores— subdesenv olvidos —pelos superiores— aprendem em interação com o
desenvolvidos —para fechar a brecha desenvolvidos —para o mimetismo dos contexto, inventa ndo a partir das
de informação entre ambos. Sob a casos exitosos dos últimos. Sob a histórias e saberes locais, para não
“pedagogia da resposta”, para ser “peda gogia da resposta”, para ser perecer imitando a partir dos
como os desenvolvidos, os como os desenvolvidos, os “desenhos globais” criados em outros
subdesenv olvidos devem seguir subdesenv olvidos devem seguir os lugares. Não há desenvolvidos nem
instruções criadas para forjar exemplos compartilhados para forjar subdesenv olvidos: todos fomos,
seguidores de caminhos já existentes. seguidores de caminhos já existentes. somos e seremos “diferentes”.
A vulnerabilidade institucional resulta A vulnerabilidade institucional resulta A vulnerabilidade institucional resulta
da perda de eficiência, que se deriva da perda de competitividade, que se da perda de relevâ ncia: perda de
da perda de coerência produtiva deriva da perda de correspondência correspondência com o contexto e
interna. A solução dos problemas de com o mercado. A solução requer seus atores significativos. A solução
eficiência requer apenas melhores apenas melhores tecnologias de exige interação, negociação e
tecnologias de produção e gestão. produção, comércio e gestão. (re)construção de significados.
O desenvolvimento sustentável resulta O desenvolvimento sustentável resulta A sustentabilidade exige cultivar as
da gestão eficiente dos “recursos”, da gestão competitiva do “capital” condições, relações e significados que
naturais, financeiros, materiais, natural, financeiro, social, humano, geram e sustentam a vida; isso
humanos, para aumentar a eficiência intelectual, para aumentar a emerge da interação huma na, para
produtiva. Sustentabilida de é uma competitividade tecnológica e mobilizar a imaginação, capacida de e
questão de melhor tecnologia de econômica. A sustentabilidade é uma compromisso para a promoção do
produção, organização produtiva e questão de melhor tecnologia de humano, do social, do ecológico e do
gestão dos meios, sem incluir produção, comércio e gestão, e de ético. Somos interdependentes, como
dimensões subjetivas, como a social, competição individual como estratégia anjos com uma asa, que não voam se
a ética, a cultural e a espiritual. de sobrevivência para a existência. não o fazem abraçados.
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Anexo-3: Modos de innovação, clássico e contextual
Modo clássico—positivista Modo contextual—construtivista
Propósito: conhecer para controlar Propósito: compreender para transformar
Visão mecânica de mundo: o mundo é uma máquina Visão contextual de m undo: o mundo é uma trama
precisa, regular, previsível, controlável, manejável e complexa de relações e significados entre diferentes
traduzível à linguagem matemática. formas e modos de vida.
Existe uma realidade objetiva que é independente de nossa Existem múltiplas realidades, todas dependentes das
percepção e é traduzível à linguagem matemática diferentes percepções dos distintos grupos de atores
(objetivismo—positivismo ontológico). O único que se pode sociais em seus diferentes contextos (contextualismo—
fazer com a realidade é conhecê-la para descrevê-la, construtivismo ontológico). A realidade é socialmente
predizê-la, controlá-la e manejá-la para explorá-la . construída e pode ser socialmente transformada.
É relevante conhecer as “leis naturais” que regem o É relevante compreender os processos de interação social
funcionamiento da realida de, para permitir conhecê-la, através dos cuais diferentes grupos de atores sociais
descrevê-la, predizê-la, controlá-la e manejá-la para constróem suas distintas percepções da realidade, além de
explorá-la em benefício de todos. Somente os “aspectos entender a natureza e dinâmica dos processos físicos,
tangíveis” da “realidade concreta” são importantes, porque químicos e biológicos que funcionam de forma
podem e devem ser medidos e comparados. independente da interpretação e intervenção humana .
O todo é constituído de partes; para conhecer o todo é O todo é dinâmico e diferente do conjunto de suas partes;
preciso desmontá-lo para conhecer suas partes para compreender sua natureza e dinâmica é necessário
constituintes, incluindo a menor de todas onde está sua compreender a trama das relações e significados
essência—reducionismo. cambiantes que o constituem—holismo.
O método científico afasta o “pesquisador” do “objeto” da O melhor método permite a interacción entre pesquisador
pesquisa para suprimir a intervenção de valores e e atores do contexto, que também são intérpretes de sua
interesses humanos (neutro), e afasta o “objeto” da realidade; o contexto é a chave para compreender os
pesquisa do seu “contexto” (não-contextual) por que este significados dos fenômenos (contextual) e o sentido da
contém muitas variáveis que não são relevantes para a existência (valorativo). Sem interação não há compreensão
relação causa-efeito. As alianças, quando inevitáveis, nem inovação relevantes, e sem compromisso coletivo não
devem ser seletivas. A interacción social é desnecessária. há capacidade social para superar problemas complexos.
O método científico é neutro porque assegura a não- A prática científica é uma atividad humana impregnada de
intervenção de valores e interesses humanos. A razão é a valores e interesses; é necessário negociar os valores
fonte da ação; o fator humano não intervém na éticos e estéticos que devem prevalecer na intervenção. A
constituição da realidade objetiva, que existe independente emoção (os desejos, valores, motivos, paixões, sonhos,
da vontade humana . A ciência não necessita mudar as frustrações) é a fonte da ação, não a razão; a razão é
“pessoas” que mudam as coisas, senão apenas mudar as apenas um regula dor da ação. É imprescindível mudar as
“coisas” para mudar as pessoas, racionalmente. “pessoas” que mudam as coisas, por convicção.
Uns inovam, otros transferem e muitos adotam; é A inovação emerge da interação. As inovações socialmente
necessário criar (separadamente) orga nizações de relevantes emergem de complexos processos de interação
“pesquisa” que geram conhecimento e tecnologias e social, com a participação daqueles que a necessitam e
organizações de “transferencia” que extendem isso aos serão por elas impactados. As “organizações de inovação”
“usuários”, que finalmente adotam tudo que foi gerado. A atuam holística e interativamente no seu contexto
inovação é uma dádiva da ciência para a sociedade. relevante, sem separar pesquisa-transferência-adoção.
O conhecimento científico é o único conhecimento válido, e Conhecimento socialmente relevante é gerado de forma
é suficiente para conhecer, descrever, predizer, controlar e interativa no contexto de sua aplicação e implicações. A
manejar a realidade par a explorá-la em benefício de todos. interpretação e transformação da realidade depende do
Não há outros “saberes” válidos; só o conhecimento diálogo de “saberes”, entre o conhecimento científico e
científico descreve a realidade como ela “realmente” é. outros “conhecimentos tácitos” dos atores locais. Uma
Uma ciência para a sociedade, que é intermediada pela ciência da sociedade, que não tem intermediário porque é
tecnologia (ciência sem consciência). interactiva (ciência com consciência).
O problemas importantes são problemas simples de Os problemas relevantes são problemas complexos do
pesquisa, que só os cientistas estão capacitados para contexto para a pesquisa. Um problema complexo para a
identificar e resolver. O contexto e sua complexidade não pesquisa revela muitos problemas de pesquisa. O contexto
são relevantes para a pesquisa. e sua complexidade sao relevantes para a pesquisa.
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