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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

O SAMBA NA MÚSICA POPULAR INSTRUMENTAL BRASILEIRA


DE 1978 A 1998

MARCELO SILVA GOMES

São Paulo
2003
ii

MARCELO SILVA GOMES

O SAMBA NA MÚSICA POPULAR INSTRUMENTAL BRASILEIRA


DE 1978 A 1998

Dissertação apresentada à Universidade


Presbiteriana Mackenzie para obtenção parcial
do título de Mestre em Educação, Artes e
História da Cultura.

ORIENTADOR: Dr. ARNALDO DARAYA CONTIER

São Paulo
Junho de 2003

Dedico este trabalho a minha tia,


Maria Aparecida de Moraes.
iii

RESUMO

O presente trabalho é uma investigação bibliográfica e fonográfica, que


propõe ferramentas diferenciadas para a análise das estruturas rítmicas do samba.
Constitui-se em um projeto interdisciplinar que envolve as áreas de Educação, Artes
e História da Cultura.
Educação, na medida em que pretende legitimar a oralidade como processo
de ensino-aprendizagem para a transmissão e preservação de certos conteúdos
musicais. Artes, pois todo o trabalho é construído sobre uma expressão artística
fundamental à humanidade, a música.
História da Cultura, entendendo que diferentes culturas produzem diferentes
estruturas sonoras. Sociedades complexas, tal qual o Brasil, possuem formas
musicais constantemente re-inventadas a partir de elementos de origens diversas.
Contemplando a linha de pesquisa “História da Cultura, da Educação e das
Artes: abordagens interdisciplinares”, o trabalho está dividido em três capítulos. O
primeiro visa compreender quais foram os diálogos e atravessamentos que tornaram
a música popular brasileira possível.
O segundo capítulo propõe as ferramentas para que se analise o conjunto
específico de estruturas rítmicas do samba. E o terceiro, utilizando como premissa
os capítulos anteriores, realiza efetivamente algumas análises.
O objetivo é o de perceber que os ritmos são um tesouro escondido, ansiando
por ser descobertos e valorizados de acordo com seus próprios paradigmas.
iv

ABSTRACT

This research, a bibliographic and phonographic investigation, presents


distinct tools to approach the samba rhythmic structures. As an interdisciplinary
project it involves areas such as Education, Arts and Culture History.
The Education, which is concerned about the oral knowledge, as a process of
teaching-learning to transmit and preserve some musical contents.
The Arts, the reason for having all this work built on one of the most
fundamental expressions of humanity, music.
The Culture History, which considers that different cultures produce different
sound structures. Complex societies, such as the Brazilian, have musical forms
constantly reinvented based on elements from different origins.
This work is split up into three chapters considering the lines of research
“Cultures History, Education and Arts: interdisciplinary approaches”. The first chapter
aims at the understanding of the dialogs and crossovers that made the Brazilian
popular music possible.
The second one presents the tools to analyze the samba specific group of
rhythmic structures. And the third uses the previous chapters as spring boards to
carry out some analysis.
The main objective of this work is to realize that rhythms are like a hidden
treasure, concerning being discovered and evaluated according to their own
paradigms.
v

O SAMBA NA MÚSICA POPULAR INSTRUMENTAL BRASILEIRA


De 1978 a 1998

Sumário

Introdução

A- tema 1
B- hipótese central 6
C- objetivos 7
D- critérios teórico-metolodógicos 9
E- debate sobre a produção científica 18
F- corpus 28

Capítulo 1. Samba e Cultura, 29

1.1. As culturas e a história 31


1.2. A África no Brasil 35
1.3. Os processos de trocas e sínteses culturais 39
1.3.1. Os conceitos: biombos e mediadores 39
1.3.2. O músico, esse re-inventor 42
1.3.3. Os diálogos musicais 45
1.4. A Casa da Tia Ciata 49
1.5. Ritmo e gesto 53

Capítulo 2. Premissas musicais para a análise do ritmo 56

2.1. Simultaneidade e polirritmia 59


2.2. A contrametricidade como regra no emprego da síncopa 60
2.3. O sentido cíclico dos ritmos 65
2.4. A não linearidade como forma musical 70
2.5. As conseqüências da oralidade na transmissão dos signos musicais 72
2.6. A concepção de compasso na música ocidental 75
2.7. Autoria e criação coletiva: temas em debate 76
2.8. A Ginga e a questão da oralidade 78
vi

Capitulo 3. Estruturas rítmicas do samba: algumas análises 83

3.1. Samba Antigo? 85


3.2. Samba Novo? 89
3.2.1. A linha grave 90
3.2.2. As semicolcheias 91
3.2.3. A “time line” 93
3.3. A síncopa por ela mesma 95
3.4. O atravessamento pelo Partido Alto 101
3.4.1. Bateria Nota 1000 106
3.4.2. Paulinho da Viola 107
3.4.3. Tom Jobim 108
3.4.4. Terra Brasil 110

Conclusão 113

Bibliografia 114

Anexo I: Upa Neguinho 116


Anexo II: Samba Quente 119
Anexo III: Tamborins 137
Anexo IV: Atravessou 139
Anexo V: Gravações 141 (16’29’’)

Faixa 1: Capoeira 1’02’’


Faixa 2: Miragem do Porto 1’39’’
Faixa 3: Samba Quente 1’43’’
Faixa 4: Pandeiro 0’55’’
Faixa 5: Tamborins 1’00’’
Faixa 6: Partido Alto 1’04’’
Faixa 7: Atravessou 3’54’’
Faixa 8: Brasil Nativo 3’48’’
Faixa 9: Swing Paulista 1’00’’
1

Introdução

A) Tema

O samba é uma expressão artística fundamental ao País, ativa musicalmente


em inúmeras manifestações, sendo cultivado nos terreiros, nas escolas de samba,
em redutos da bossa nova e pelos praticantes da chamada música instrumental, que
engloba desde o choro até o jazz-samba moderno. Por isso, pode ser considerado
não apenas um ritmo, mas uma grande família de células rítmicas e suas variações,
bem como uma prática cultural disseminada por vários grupos da sociedade.
De maneira paralela a sua produção e divulgação, sempre houve interesse de
pesquisadores em discutir e compreender esta arte. Uma face desta discussão tem
caráter histórico, e busca explicar origens, formas de preservação, desdobramentos
sociais, e sua apropriação ideológica por parte de várias instâncias sociais.
Para tal tipo de trabalho, antropólogos, sociólogos e historiadores têm como
principais fontes de pesquisa a documentação sobre o assunto, seus autores, letras
dos próprios sambas e gravações. Entretanto, o que se percebe, na maioria dos
casos, é que essas pesquisas não abordam o tema por um recorte musical
propriamente dito. Apontam mais em direções sociológicas e antropológicas do que
necessariamente musicológicas.
Este trabalho propõe uma visão histórica do samba através de um recorte
também técnico-musical. Não que se pretenda “recontar” a história do samba, mas
sim, abordar certos momentos e acontecimentos recorrentes na bibliografia sobre o
tema, no intuito de compreender melhor essas diferentes formas musicais. Não só
perceber os “lugares” que esta arte ocupa na sociedade, mas como se dá seu
trânsito por diferentes instâncias sócio-culturais.
Vale dizer: se bem sucedida a empreitada de aliar visão histórica e musical
concomitantemente, incrementa-se a compreensão de como determinadas
“sínteses” musicais afloraram. A arte ocupa posição privilegiada na sociedade como
espelho dessa, e assim processos culturais podem ser mais bem compreendidos.
2

Some-se certa carência de uma abordagem do samba por um viés musical


não usual. Isso porque a maioria das ferramentas de análise foi criada pela música
chamada “erudita”, de caráter eurocêntrico. Portanto é provável, como se quer
mostrar aqui, que estes procedimentos sejam até certo ponto inadequados para uma
análise mais efetiva de um tipo de música que nasceu partindo de outros
parâmetros.
Tal característica torna difícil falar de samba sem falar de etnia, ou de música
popular sem falar de música erudita. Afinal , como falar de visão de arte sem falar de
visão de mundo?
Ao compreender melhor as formas de transmissão e preservação do samba,
também se fomenta capacidade de compreender historicamente o País, pois é
possível observar a existência de uma história que não está oficialmente registrada.
Neste sentido, é preciso dimensionar a importância da oralidade como forma
de manutenção e preservação de conhecimentos dos negros, que foram
considerados por muito tempo como selvagens e primitivos, e suas manifestações
tratadas como “demoníacas” até mesmo por alguns cientistas sociais e musicólogos.
Propor uma forma de analisar este ritmo deve ser também buscar vê-lo
primeiro como fruto dessa cultura que se relaciona diretamente com o samba.
Necessário então, conhecer não só características dessa música, como também o
que a diferencia daquela de origem européia.
É preciso, de início, fazer uma distinção entre “o” e “um” samba. Uma
interpretação é que “um” samba é uma canção luso/brasileira que tem o ritmo como
um ostinato no acompanhamento. Essa é uma possibilidade de interpretação da
síntese.
Existem outras. Em primeiro lugar “o” samba é um ritmo, uma forma musical
elaborada, auto-suficiente. Esse ritmo usa1 as canções, veste-se de acordes e
melodias, atravessa instâncias sociais diferenciadas, e atinge os mais diferentes
decodificadores de suas mensagens, chegando a ouvintes inesperados.
Esta segunda interpretação pode ser descrita como uma tática, no sentido
que De Certeau coloca como “mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro”, ou
seja, o espaço instituído por outros”, pois “nesses estratagemas de combate existe

1
“Em grau menor, o mesmo processo se encontra no uso que os meios ‘populares’ fazem das culturas difundidas
pelas ‘elites’ produtoras de linguagem” (Id. Ibid., p. 95. Grifo meu).
3

uma arte dos golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras de espaço
opressor” (DE CERTEAU, 1990, p. 79).
E se para muitos historiadores a canção2 samba já foi definida como
representante da brasilidade, a música que sobreviveu no terreiro não chegaria, em
sua forma mais “original”, a ocupar importante espaço em nossa música, como por
exemplo, nas rádios, senão se aproximando da linguagem da “cultura dominante”
(Id.Ibid., p.79).
Conhecer os diferentes processos pelos quais sociedades distintas produzem
e preservam suas formas artísticas mostra-se necessário na medida em que vários
musicólogos, ao se defrontarem com uma manifestação popular na qual a questão
rítmica era fundamental, abandonavam o olhar técnico, para tecer comentários
apenas sensoriais.
Na visão geral daqueles estudiosos da música, questões ligadas ao ritmo
parecem pertencer ao universo folclórico ou etnomusicológico, e não, como se quer
mostrar aqui, a um assunto musical strito senso, porém com um viés analítico
diferenciado.
Por exemplo, Mario de Andrade, quando está em Recife3 numa festa popular,
abandona o olhar analítico presente em seu “Pequena História da Música”, e
descreve não o procedimento técnico em relação a construção do aspecto rítmico
desta manifestação musical em particular, mas seus efeitos:
Tão violento o ritmo que era obrigado a me afastar de quando em quando
para...(sic) pôr em ordem o movimento do sangue e do respiro (ANDRADE,
1944, p.186).

Para o presente trabalho, é interessante notar como Andrade, enquanto não


mostra nenhuma pretensão analítica, admite sofrer efeitos dinamogênicos e
sinestésicos do ritmo.
O que é considerado pelos setores eruditos como a forma mais “elementar”
do samba enquanto ritmo, vem sendo preservado, transmitido e difundido através de
outros conceitos culturais ou práticas artísticas dos excluídos sociais, num primeiro
momento, e num segundo, por artistas de outras camadas sociais. Nessas práticas

2
Canção aqui deve ser entendido como uma forma musical de características tonais, quadratura estrófica e com
um texto poético vinculado a essa estrutura.
3
Andrade não precisa a data em que, segundo ele, presenciou, no Carnaval do Recife, ao Maracatu da Nação
Leão Coroado.
4

as heranças africanas, transmitidas oralmente, desempenham um papel


fundamental.
Apesar das controvérsias, há um ponto inegável a respeito das heranças
africanas embutidas nessa forma musical [o samba]: os ciclos rítmicos”
(MUKUNA, 2000, p. 27).

A cultura negra, da qual se herdou esses princípios musicais essencialmente


rítmicos, passou por situações históricas que, de um lado dificultaram sobremaneira
a continuidade de suas práticas, mas de outro acabaram por fortalecer algumas
destas formas musicais específicas. Denominados Res Vocale4, numa primeira
impressão, as possibilidades de preservação da cultura original desses
5
“transplantados” parecem nulas.
Entretanto, ainda que transportados em condições subumanas, sem a
possibilidade de trazer consigo quaisquer representações materiais de sua cultura
além de seu próprio corpo, o que não se podia prever era que este conhecimento
estava como que traduzido e preservado através de ritmos que portavam em sua
memória coletiva.
Assim, aquela herança não precisou nada mais do que estar presente no
universo musical daqueles pretos feito escravos6, para se perpetuar e ocupar hoje
espaço importante na música brasileira. Num ambiente tão adverso quanto o
cativeiro, instrumentos de percussão, talvez os mais rudimentares e de mais simples
construção, foram basicamente os únicos aos quais esses escravos tiveram acesso
ou puderam construir.
Entretanto, a conjunção entre uma herança rica em figuras rítmicas,
instrumentos simples e uma transmissão oral eficaz foi suficiente para que, durante o
longo período da escravidão, esse patrimônio cultural se mantivesse vivo e ativo.
Num segundo momento, a própria abolição, e a conseguinte movimentação
destes escravos libertos para os centros urbanos, foi responsável por criar um
espaço único para a realização do que é entendido hoje como música popular. Esta,
por sua vez, nasceu num ambiente onde foi possível que, através de um processo

4
Res Vocale, a “Coisa que Fala”.
5
Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro, 1995, Companhia das Letras.
6
A professora Petronilha Gonçalves e Silva, primeira negra a ocupar uma vaga no Conselho Nacional de
Educação (CNE), afirma que até hoje a forma que se ministra o conteúdo da história é racista, na medida em que
esta história começa “na África, e não na chegado dos escravos em solo brasileiro”. Folha de São Paulo,
23/03/2002, caderno Cotidiano, p. C8. Assim, o próprio Jose Ramos Tinhorão em seu “Os Sons dos Negros no
Brasil” (1988, p. 17), escreve: “a importação de escravos africanos”, quando o correto seria a importação de
africanos, feito escravos.
5

de trocas e diálogos culturais, dinâmicas de “síntese” fossem levadas a cabo de


maneira intensa e sistemática, gerando uma forma musical constituída por
elementos de origens culturais e sociais diferentes.

De um lado, a classe média (mesmo que baixa). De outro, os descendentes


de escravos. Com os primeiros, a formação profissional que capacitava a ler
partituras, o saber musical do tipo europeu, e a conseqüente vinculação
estilística à polca. Já os segundos perpetuariam na musica a ausência de
qualificação profissional de seus ancestrais; eles seriam salvos, no entanto,
pela paradoxal capacidade de criar um gênero que, sendo novo, seria ao
mesmo tempo o último estágio do batuque angolano (SANDRONI, 2001,
p.139).

Não se pode considerar os elementos musicais de maneira separada do lugar


que ocupam em culturas distintas, nem tampouco que tais elementos musicais são,
até hoje, transmitidos de uma maneira própria. A citação visa endossar a diversidade
das origens musicais, mas daí a afirmar que isso desemboca no “batuque angolano”
é supor a ausência de intensos diálogos e atravessamentos culturais que se deram
em solo nacional.

O samba, naquela época [final dos anos 30], não era visto como
propriedade de um grupo étnico ou uma classe social, mas começava a
atuar como uma espécie de denominador comum musical entre vários
grupos, o que facilitou sua ascensão ao status de música nacional (VIANNA,
1995, p. 120).

Como se pode notar, a discussão aparece sempre levando em conta de um


lado história, etnia e consagração social, e de outro, sínteses ou denominadores
musicais comuns. Se o ponto de vista de Vianna fosse musical, notaria que o samba
ritmo pôde então ascender a esse status, na medida em que dialogou com canções.
“Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia” (De Certeau, 1990, p. 101).
De fato, a oralidade é o meio de transporte por excelência desse tipo de
conhecimento. Interessante é que a possibilidade de gravar um acontecimento
musical é, enquanto registro, imparcial. Portanto, para que se mostrem os
atravessamentos que as estruturas rítmicas do samba são capazes de realizar,
encontra-se inserido nesse trabalho um anexo sonoro, um compact disc que consta
de nove faixas.
Assim, as datas compreendidas entre primeiro e o último registro desse
anexo são exatamente a periodização desse trabalho: desde um samba de Paulinho
6

de Viola de 1973 até um tema7 instrumental do grupo paulistano Terra Brasil,


gravado 1998. Quer se verificar assim a hipótese central: será que o samba, em
diferentes roupagens, em diversos matizes, mantém sua estrutura rítmica intacta?
Para tal tarefa as gravações são inequívocas.
O primeiro capítulo trata de alguns acontecimentos marcantes na história do
samba. O trabalho compara a visão que certos autores têm sobre esses marcos,
adicionando um viés analítico musical. A tentativa é de visualizar como algumas
dessas sínteses se deram, bem como certas expressões artísticas puderam ser
preservadas e transmitidas no escopo da oralidade.
No segundo capítulo, certas premissas musicais serão apresentadas sem as
quais acredita-se que uma análise do samba perderia muito de sua valia. E se é
possível aceitar o fato de que a origem desse remonta a uma cultura distinta, sua
análise não pode ser empreendida com as ferramentas usualmente empregadas
pela musica erudita.
E no terceiro capítulo, desenvolve-se efetivamente uma análise musical,
aliando ferramentas já consagradas no estudo da música ocidental às proposições
levantadas no capítulo 2. Espera-se vislumbrar suas táticas traçando seu caminho.
Esse se inicia no samba rítmico, batucada, passa pelo samba de “raiz”, canção.
Flerta com Tom Jobim e chega até à música popular instrumental atual.
Nesse percurso, espera-se incrementar a visão atual do samba. Legitimar a
oralidade como forma de transmissão adequada para certos tipos de conhecimentos
e formas musicais. E ainda, propor novas ferramentas de análise que permitam uma
melhor compreensão do ritmo na música popular brasileira.

B) Hipótese central
As estruturas rítmicas do samba atravessam intactas seus vários matizes.

c)Objetivos

C.1. A relevância em nível institucional desta pesquisa tem seu foco na busca
da legitimação da transmissão oral para as questões do ritmo.

7
Denominação dos músicos de Jazz para as estruturas musicais sobre as quais improvisam.
7

Se aceitas as premissas no que se refere ao caráter de “síntese” que marca


a própria música popular, e depois de apontados em termos técnico-musicais às
limitações as quais o ensino formal oficial tem diante desta tarefa, o que se quer é
demonstrar que a oralidade é a maneira mais eficaz de se empreender um processo
de ensino-aprendizagem para este tipo de conhecimento.
C.2. Chamar atenção para o fato de que a herança cultural africana não só é
rica, como também mais detectável e marcante no contexto brasileiro do que se
supõe usualmente. A exclusão, até hoje notável, da parcela negra da sociedade não
impede que, musicalmente, a presença de suas manifestações seja acentuada.
Se for possível no momento aceitar que a música popular tem realmente um
caráter sintético, pois reúne, entre outros, elementos da cultura portuguesa e
africana, pode-se propor formas de compreender melhor musicalmente a
contribuição africana ao samba.
Não parece que o aspecto eurocêntrico que a integra necessite ser
enfatizado, pois seus processos já são aceitos, legitimados, e até tratados como
mito, no sentido empregado por Barthes (1957), devido a todo um universo
ideológico que se construiu consagrando a música erudita como “grande arte” ou
“arte culta”. Essa construção inclui não só o próprio objeto musical, como também
suas salas de concerto, seus autores e interpretes e seus processos oficiais de
ensino.
Já no caso do samba enquanto ritmo, dada certa natureza marginal a que
sempre se encontraram submetidas às comunidades que o praticam, nota-se que
sempre houve uma pressão excludente em relação as suas expressões culturais.
Perseguições e atrocidades marcaram todo o processo de continuidade da
existência dessa forma de arte.
C.3. Demonstrar que a persistência das estruturas rítmicas é uma resistência
da cultura. Isso não quer dizer que se fazia essa música para “resistir”. O que se
percebe, analisando com um pouco mais de acuidade, é que a etnia negra portava
essa riqueza de forma tão intensa que, não obstante toda coação e repressão a que
foi submetida, encontrou caminhos para continuar realizando sua música.
Os delegados da época (década de 20), beleguins que compravam patentes
da Guarda Nacional, faziam questão de acabar com o que chamavam os
folguedos da malta. As perseguições não tinham quartel. Os sambistas,
cercados em suas próprias residências pela policia, eram levados para o
distrito e tinham seus violões confiscados. Na festa da Penha, os pandeiros
8

eram arrebatados pelos policiais (Donga, entrevista a Sodré, in SODRÉ,


1998, p. 72).

C.4. Compreender melhor o conceito de diálogos, de bricolagens musicais.


Graças à continuidade e presença da cultura negra, esses processos se
intensificaram de tal forma, em especial após a abolição e a conseqüente migração
em direção aos centros urbanos, que o samba saiu de sua esfera funcional e
religiosa, para se fazer presente em todas as camadas sociais.
A compressão usual desse fato é que a elite se apropria de expressões
populares em seu próprio favor. A proposta aqui é de, por um momento, inverter o
ponto de vista. Se as estruturas rítmicas do samba produzem efeitos naqueles que
as ouvem, é fato que esses se propagam por toda a sociedade.
Entretanto, se por um lado o tempo legitimou esta música, por outro não se
encontraram ainda formas científicas de incluir e compreender de que maneira faz-
se tecnicamente sua transmissão e preservação. No universo da oralidade, ele se
preserva enquanto conjunto de células rítmicas e, ao mesmo tempo, dialoga com
diferentes formas musicais. Através disso, esse ritmo pode transitar por esferas que
ninguém imaginaria.
C.5. Objetivo deste também é creditar ao próprio músico popular a
peculiaridade de ser agente mediador cultural por excelência na questão específica
das sínteses tão significativas para a música popular. Na bibliografia sobre o tema,
este ator social sempre aparece em segundo plano em detrimento de grandes
cantores, ou de uma herança folclórica.
Ao contrário disso, deseja-se ressaltar a importância desses músicos nesses
processos. Suas “escutas” continham simultaneamente tradições até certo ponto
conflitantes e oriundas de diferentes culturas. Essas só poderiam então se tornar
partes constituintes de um mesmo todo, na medida em que esses artesãos tinham
acesso a escutas diferenciadas. Aliado a isso, o contato com as diversas formas
de transmissão desses conteúdos.

D)Critérios teóricos metodológicos

A oralidade é a forma mais recorrente de transmissão de conhecimentos. Ela


permeia todos os níveis de contato humano, seja na família, da sociedade ou da
academia.
9

Desde a leitura da criança até a do cientista, ela é precedida e possibilitada


pela comunicação oral, inumerável ‘autoridade’que os textos não citam
quase nunca (DE CERTEAU, 1994, p. 263).

No que se refere à música popular, sabe-se que existe uma infinidade de


músicos que são julgados por sua proficiência, e não pelo fato de que tenham ou
não uma educação musical formal, letrada ou escolástica. No caso dos ritmos em
questão, isso se acentua ainda mais, pois este tipo de conhecimento nasceu na
cultura africana, onde o corpo de saberes foi, por muito tempo, todo baseado nessa
oralidade.
Em certas camadas sociais, por exemplo, notam-se características de um
comportamento que reproduz relações “tribais”. Devido a seus traços informais,
podem musicalizar desde cedo, de maneira intensa, crianças. Esse tipo de traço
fortalece a idéia da intensidade e da precocidade com a qual a oralidade pode agir
como ferramenta de transmissão de uma dada prática cultural.
Assim a professora Cecília Conde8, ao pesquisar em determinados morros do
Rio de Janeiro9, nota que “no exame do comportamento pedagógico das pessoas e
grupos na transmissão de dados -conceitos ou técnicas- referentes a manifestações
da cultura popular, chama a atenção à integração natural entre adultos e crianças”
(CONDE, 1985/85, p. 43).
Não são poucos os autores que compreendem e aceitam a oralidade como
riqueza humana de suma importância.

Agora se reconhece que a linguagem oral é um instrumento e uma riqueza


fundamental da mente; a escrita, embora importante, é sempre secundária
(OLSON, 1997, p. 25).

Desses, Michael De Certeau é um dos que pesquisou de forma sistemática as


formas de utilização que a cultura popular faz daquilo que lhe é imposto pela cultura
dominante. Numa reflexão das relações entre arte e ciência, dá sustentação a
colocações feitas aqui:

Trata-se de um saber não sabido. Há, nas práticas, um estatuto análogo


àquele que se atribui às fábulas ou mitos, como dizeres de conhecimentos
que não se conhecem a si mesmos. Tanto num caso como no outro, trata-
se de um saber sobre os quais os sujeitos não refletem. Dele dão

8
Artigo publicado na revista do Conservatório Brasileiro de Música.
9
Ver bibliografia.
10

testemunho sem poderem apropriar-se dele. São afinal os locatários e não


os proprietários do seu próprio saber-fazer (DE CERTEAU, 1994, p.143).

Ora, o ritmo trafega exatamente nessas condições. Nascido, desenvolvido e


estabelecido na oralidade e na prática. E, não há, por parte de certas esferas
sociais, e dos músicos criados dentro dessas, uma reflexão sobre o que se sabe. É
um “saber fazer” coletivo, transmitido por caminhos sociais de contato direto, que
engloba as relações de pai para filho, de adulto para criança, de mestre para
discípulo, enfim, de todas as formas de relação social possíveis numa comunidade.
Referindo-se às elites, De Certeau conceitua estratégia: “uma vitória do lugar
sobre o tempo”, um “gesto cartesiano” de “circunscrever um próprio num mundo
enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro” (Id. Ibid., p.99).
Já na observação dos usos que os meios populares fazem das culturas
difundidas pelas “elites” produtoras de linguagem, ressalta: “os conhecimentos e as
simbólicas impostos são o objeto de manipulações pelos praticantes que não seus
fabricantes” (Id. Ibid., p. 95). Assim, vai chamar de tática a ação calculada que é
determinada pela ausência de um próprio.

Ela (a tática) não tem por tanto a possibilidade de dar a si mesma um


projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e
objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as
‘ocasiões’ e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a
propriedade e prever saídas. (Id. Ibid., p.100).

Em outras palavras, enquanto empresas, exércitos ou instituições podem,


através de um “próprio”, criar estratégia para gerir as relações com uma
exterioridade, a prática usa táticas que apontam para uma “hábil utilização do
tempo” e dos jogos que introduz “nas fundações de um poder”

Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão


abrindo na vigilância do poder proprietário. Ai vai caçar. Cria ali surpresas.
Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. (Id. Ibid., p. 101).

No capítulo um, uma temática recorrente é a Casa da Tia Ciata. Mencionada


de maneira constante pela bibliografia sobre o gênero, a Casa é vista como um
microcosmo das relações sociais, culturais e artísticas do início do século passado.
De Certeau, referindo-se ao trabalho de Bordieu, afirma:
11

Este fragmento de sociedade e de análise é primeiramente a casa que é,


sabe-se bem, a referência de toda metáfora. Seria necessário dizer: uma
casa (Id. Ibid., p. 119).

Nesse contexto, a Casa da Tia Ciata tem inúmeras características que a


tornam modelo rico para as relações de escambos e sincretismos culturais que são
analisadas aqui. Os inúmeros diálogos e atravessamentos podem ser
metaforicamente visualizados através de um modelo que além de já constituído, foi
também desenvolvido por vários autores. O que se acrescenta aqui são questões
musicais mais específicas, que se valem do modelo ao mesmo tempo em que o
incrementa.
Entretanto, essa analogia não se baseia na importância que essa Casa
especificamente possa ter tido em detrimento a outras. Sabe-se que havia muitas
“Tias” no Rio de Janeiro. O modelo interessa na medida em que pode ser analolgo
as relações sócio culturais da época. Assim, sala, cozinha e terreiro são reflexo dos
“lugares” sociais onde aconteciam expressões culturais diferenciadas.
A proposta é que dois conceitos sejam empregados de forma concomitante
para que o modelo se torne mais apurado. Primeiro, o conceito de “biombos”,
barreiras sócio-culturais entre seus cômodos, que ora impedem o contato entre
condutas artísticas de origens tão diversas, ora se permitem ser transpassados por
astúcias. Inúmeras táticas utilizadas pelos que não contam com privilégios sociais
que os permitam trafegar livremente pela Casa.
Em segundo, a figura dos chamados “mediadores culturais”, sujeitos que, por
razões diversas, tinham o passaporte que lhes possibilitavam circular por esses
cômodos. Entretanto, o que chama a atenção é que esse papel é atribuído em geral
a personalidades que, se situando na sala, podiam atravessar os biombos e assim
cumprir este papel mediador.
Musicalmente falando, no que se refere ao ritmo, o que interessa é a forma
que esses vazamentos se dão no sentido contrário. O centro da questão é como foi
possível que as matrizes culturais geradas no terreiro, tratadas como selvagens e
primitivas, tivessem influência tão pungente nos processos musicais posteriores.
Como podem estruturas rítmicas tão similares ser observadas num samba somente
percussivo e num grupo de música instrumental atual.
12

Se essa bagagem musical era, a princípio, tão avessa às normas cultas


daquele período, como foi possível que se preservasse e, nesta bricolagem,
chegasse a esferas artísticas tão diferenciadas?
Para tais discussões faz-se necessária uma análise mais cuidadosa da
concepção e interpretação dos elementos que compõem o samba. Importante
também verificar o grau de proximidade entre o ritmo em seus trajes “canção” e
compará-lo com execuções do ritmo tal como é tocado ainda hoje, em contextos
onde se encontra executado de maneira mais primordial, somente batucada.
Não que sua forma batucada deva ser considerada pura. Afinal, o samba
quase nunca aparece assim. Onde háa samba, há canto, e muitas vezes dança. Mas
as estruturas rítmicas são um “denominador comum”. Seja no seu formato
percussivo, seja num disco de Tom Jobim, pode-se aferir a presença dessas
mesmas células, ou de sua gama de variações.
Nosso objeto de estudo então será tratado paralelamente de duas formas
distintas: Primeiro, um trabalho de especificação técnica do ritmo em seu estado
“livre”, ou seja, em gravações realizadas por comunidades que ainda mantêm tal
forma musical em seu caráter percussivo e informal, no sentido de não atado a uma
“forma” canção.
Segundo, a comparação desse samba com sua presença no que se vai
denominar aqui de “música popular” atual. Nesse caso, será uma abordagem do
ritmo inserido em vários formatos, ou seja, aliado a formas harmônicas e estruturais
diversas. O que se quer mostrar é que existe uma proximidade muito grande entre o
ritmo no seu estado “puro” e na sua presença em diferentes manifestações musicais.
A periodização desse trabalho se refere especificamente a esse ponto. São
analisadas e transcritas no capítulo 3 gravações que visam montar um quadro dessa
travessia. Numa discussão sobre samba antigo, samba novo e Partido Alto, elegeu-
se trabalhos registrados no período de 1978 a 1998.
Pode-se assim vislumbrar um quadro panóptico que ajude a compreender
como se dá hoje, no universo da música popular instrumental, realizada por músicos
preparados – e sabe-se que esta capacitação remonta até os chorões do início do
século (MORAES, 2000, p. 249) - a presença e a transmissão dessa sofisticada
forma de arte musical.
E, para que se possa analisar e transmitir uma expressão musical originada
numa cultura diferente, é necessário que se pergunte até que ponto existe e se pode
13

notar a presença dessa cultura no momento atual. Tomando como universo a


música instrumental paulistana hoje, pode-se avaliar a capacidade desta
comunidade musical de compreender e manter em seus procedimentos os
processos orais nos quais se dão a criação, a preservação, e a própria significação
do ritmo.
Para que se faça isso com rigor, faz-se necessário enfrentar não só algumas
adaptações nas maneiras de utilizar determinadas ferramentas analíticas, como
também, devido ao caráter interdisciplinar que se pretende aqui, trabalhar com
autores fundamentados em diferentes escopos do conhecimento.
Em certas questões, praticamente inexistem estas ferramentas, pelo menos
até onde o levantamento bibliográfico desta pesquisa se acercou. Assim o trabalho
se realiza através de algumas releituras de abordagens já utilizadas, mas não
necessariamente já elevadas ao status de metodologia.
Ao se fazer um cruzamento entre o recorte histórico, étnico e sociológico da
questão negra com uma perspectiva analítica musical strito senso, quer se
compreender o valor e a importância do componente africano da música popular.
Por enquanto, sabe-se que, transmitido oralmente, talvez seja o elemento que
fundamenta e caracteriza a própria noção de “música popular brasileira”.
A separação técnica, quase didática, usualmente utilizada para que se
empreenda essa análise se inicia pela divisão do conteúdo sonoro da música
popular em melodia, harmonia e ritmo. Tomando como exemplo um trecho de
partitura usual para os praticantes desse tipo de música (exemplo 1), nota-se que
existe uma melodia escrita nos moldes usuais da escrita musical ocidental. Claves,
acidentes, fórmula de compasso, enfim, todo o aparato usual necessário para que se
leia10 as alturas e durações das notas que constituem uma dada melodia, bem como
a cifragem, que representa os acordes do acompanhamento.
Saber-se que a conformação rítmica da melodia, no caso do samba, está
estritamente ligada ao próprio ritmo. Ao utilizar o padrão ocidental de notação,
percebe-se certo grau de complexidade na forma de escrever o ritmo da melodia, e
isso pode ser atribuído a uma discrepância entre origens musicais. Se o ritmo
preserva algumas características africanas, e a escrita foi criada na Europa, e de se
supor que existam certas dificuldades nessa transposição de “linguagens”.

10
Apenas a título de esclarecimento, o termo utilizado é exatamente “leitura musical”.
14

Usando o conceito de cometricidade e contrametricidade11, nota-se que o


ritmo melódico aparece na partitura como sendo contramétrico, ou seja, deslocado e
irregular.
Exemplo 1

Paradoxalmente, essas divisões de difícil leitura para um músico de formação


acadêmica, são executadas com naturalidade por aqueles que têm sua vivência
musical dentro de uma comunidade que cultive, via oralidade, este rico e variado
corpo de figuras rítmicas. Uma frase musical que tenha uma codificação rítmica
complexa (exemplo 2, ver compassos 5 e 6) em partitura, será comunicada
oralmente a alguém que conheça essa linguagem com facilidade.

Mas o que é interessante no caso brasileiro é que o sistema rítmico clássico


europeu, do qual faz parte, no país, a música escrita, inclusive a música
popular escrita, veio a ser questionado em seu contato com práticas
musicais afro-brasileiras (SANDRONI, 2001, p. 26).

A questão não é se o sistema foi questionado, já que em termos de escrita é


o que está disponível. A pergunta é se existem outros métodos de transmissão úteis
e eficazes para esse tipo de música. Afinal, pode ser que ritmo da melodia de uma
“canção samba” seja tão afro-brasileiro, e neste sentido, com uma constituição

11
O conceito será aprofundado. Por hora, basta colocar que cométrico é quando o ritmo tende a concordar com a
pulsação ou realiza divisões simples, e a idéia de contrametricidade se baseia no fato de que a grande maioria das
colocações rítmicas no samba tende a contrariar a pulsação, a estar num constante processo de “sincopação”. O
reconhecido músico norte americano Winton Marsalis, falando da sincopa no jazz, coloca que sincopar é sempre
realizar os acentos em lugares que surpreendam o ouvinte.
15

rítmica tão diversa do universo europeu “de concerto12”, que a escrita que
caracteriza o último seja inadequado ao primeiro.
Com relação a harmonia da peça, para montar os acordes do
acompanhamento, a música popular se vale da cifragem (ver letras sobre a partitura
no exemplo1). O músico (ou músicos) responsável pela execução do texto
harmônico, dentro de uma determinada esfera de possibilidades, poderá realizar
desde um acompanhamento simples, até uma condução harmônica primorosa.
Devido as suas características, esta competência se configura como uma habilidade
mais européia, já que se refere à organização das alturas musicais.
No caso do samba, o que se nota é que o estudo das relações entre os
acordes, e entre eles e a melodia, momentaneamente desconsiderando o ritmo, é
que tal estudo pode se realizar com as mesmas ferramentas utilizadas pela música
européia. Ou seja, a abordagem analítica das relações entre “alturas” musicais,
usando-se a harmonia tradicional ou funcional, é a mesma que se usaria para
analisar Beethoven, por exemplo.
As diferenças que porventura vêm à tona referem-se muito mais ao tipo de
tratamento composicional que se emprega a um dado universo temático, de acordo
com a origem e formação do autor, do que a diferenças do ponto de partida
melódico ou harmônico em si.
No capítulo 2, que se refere às premissas musicais, são feitas considerações
sobre esses ritmos em estado mais “rústico” (adjetivo eurocentrista?), só percussivo.
Incluem-se também as limitações engendradas a partir do momento em que se
insere dentro de uma “canção samba”. A execução, no nível rítmico, terá um
conjunto de similitudes capaz de, ao abstrair-se de uma “canção samba” sua
harmonia e melodia e trazer à tona sua constituição rítmica, fornecer ao ouvinte a
sensação clara de que estamos diante de uma herança musical contramétrica,
deveras rigorosa na utilização ou não de determinadas figuras rítmicas, e
provavelmente não européia.
Não há interesse aqui em tratar com profundidade de questões organológicas,
exceto em dois pontos: o das limitações às quais o negro estava submetido em
relação ao acesso a determinados instrumentos, que basicamente se limitavam aos

12
Entende-se por repertório de “concerto” a literatura musical consagrada, composta por aqueles considerados
grandes autores eruditos, desde a renascença até os modernos. Não se pretende aqui tratar da chamada musica
erudita contemporânea, pois esta inclui novos procedimentos que não dizem respeito ao tema tratado.
16

de percussão, e de uma distinção um pouco mais acurada das funções básicas de


alguns desses em execuções puramente percussivas do ritmo aqui abordado.
Também de maneira interessante para o que se pretende colocar aqui, ao se
observar uma partitura de música popular para o baterista ou percussionista, não se
verá nada diferente do que uma partitura praticamente em branco, quando muito
com apenas as marcações da forma geral do arranjo da peça. Eventualmente, no
caso ter sido escrita para um baterista ou percussionista mais “preparado”, e que
portanto, seja “letrado” em música, nota-se alguns pontos onde uma determinada
figuração rítmica será feita por todo o grupo13, aparecendo escrito na partitura para
que ele também a execute.
A observação, a partir daí, sobre a questão da rítmica do acompanhamento
harmônico, mostra um ponto chave para o qual se quer chamar atenção. José Maria
Neves, ao analisar o álbum manuscrito “Modinhas do Brasil”, descoberto pelo
musicólogo francês Gerard Behague na Biblioteca da Ajuda em 1968, indica que
“cada vez que há notação essencialmente rítmica no acompanhamento, com
ausência de arpejos, aparece cifragem”.
Ora, novamente a idéia de cifra indica que existe algo a ser decodificado. No
que se refere a este código na música popular, o que deve ser trazido à luz é a
montagem do acorde, a harmonia de uma dada canção. Esse é, pelo menos, o
entendimento habitual.
Mas da observação de J. M. Neves é possível inferir muito mais do que
apenas isto: o que aparece como conhecimento cifrado é também a maneira como
se deve executar o ritmo da harmonia14. E da mesma forma com que o músico de
melhor formação harmônica será capaz de montar um melhor acompanhamento, o
de maior conhecimento rítmico participará da peça, neste aspecto, com muito mais
eficácia, usando seu conhecimento e experiência nesta área.
Pelo fato de ser um conhecimento tácito de um músico popular de
determinado país, perdeu-se a capacidade de compreensão que isto é efetivamente
um conhecimento, uma bagagem cultural. Portanto, pode-se trabalhar em diferentes

13
Neste procedimento em arranjo, num dado fim de frase ou trecho da peça, todo o grupo realiza em uníssono
uma dada figura rítmica. Isto, em linguagem de arranjo, chama-se “convenção”.
14
A discussão aqui não é a do “ritmo harmônico” no sentido empregado pela música erudita. Refere-se sim a
forma que os acordes são executados dentro das figurações de um ritmo popular, as células rítmicas do
acompanhamento.
17

níveis de qualidade tanto na harmonização como na área rítmica. A questão é: o que


fazer para que se entenda e valorize tal competência ?
Para que se inicie a compreensão do que seriam essas diferentes
características e competências rítmicas, e também se possa posteriormente criticar,
vai se utilizar aqui os conceitos adotados por Sandroni (2000) de cometricidade e
contrametricidade mencionados anteriormente.
No primeiro se vê, como no caso geral da música européia, uma tendência de
relação direta entre a pulsação e figuras que, em geral, reforçam as subdivisões
regulares e matemáticas do próprio pulso. Este é também o ponto de partida do
estudo da rítmica, chamado de “divisão musical”. Construída numa norma de
notação que é fruto dessa determinada cultura, se mostra adequada a ser escrita,
lida e até mesmo composta nestes parâmetros.
Com relação a contrametricidade, parece inevitável que já se está partindo
de um sistema como referência, para depois afirmá-lo como o oposto. De certo
modo, não se conta com outra perspectiva, pois o próprio paradigma de se
empreender uma análise é fruto de uma visão ocidental de mundo. Esse universo
rítmico foi constituído sem levar em consideração a escrita. Parece inusitado
considera-lo contra o metro, se ele nem mesmo o considerava.
O que se busca, então, com o intuito de atenuar esse olhar, é engendrar
neste ponto a visão que Muniz Sodré tem do ritmo, para que se amplie o quadro de
referências, adicionando, assim, uma perspectiva respeitadora do lugar que o ritmo
ocupa na tradição afro-brasileira. Não se trata de fazer apologia da contribuição
negra. Entretanto não se pode ver o assunto com uma ótica que se supõe isenta,
mas está embotada pelas teias institucionais.

O privilégio detido pela problemática da repressão no terreno das pesquisas


não surpreende: as instituições científicas pertencem ao sistema que
estudam; examinando-o, elas se conformam ao gênero bem conhecido da
história da família (uma ideologia crítica nada ao seu funcionamento, pois a
crítica cria uma aparência de distancia no seio da pertença) (De Certeau,
1995, p. 105).
Os exemplos musicais escritos e gravados são ferramentas que auxiliam na
compreensão deste ponto. Comparações detalhadas do ritmo em seu estado
percussivo e sem autor com sua presença em composições consideradas do
gênero, mas em contextos já europeizados por seus usos formais e harmônicos são
de grande valia. O intuito e mostrar a extensa gama de similitudes em nível rítmico
destas formas musicais.
18

E a ênfase é exatamente no anexo das gravações (anexo V). Em vários


momentos, ao ler determinado trecho, vai se propor a audição de uma das faixas do
CD que acompanha esse trabalho. Vivas na oralidade, as estruturas rítmicas se
preservam nas gravações, que não as tornam divisões musicais matemáticas. Já as
partituras servem como exemplos analíticos e visuais, mas no que tange ao ritmo,
são apenas caricatas.

E)Debate sobre a produção historiográfica


Os diálogos e atravessamentos, que geram conjuntos de combinações entre
elementos musicais distintos, são processos de trampolinagem, de inexpugnáveis
caminhos de apropriação e expropriação da cultura dominante pela dominada. Veja
o conceito:

Palavra que um jogo de palavras associa à acrobacia do saltimbanco e a


sua arte de saltar no trampolim, e como trapaçaria, astúcia e esperteza no
modo de utilizar ou de driblar os termos dos contratos sociais (DE
CERTEAU, 1990, p.79).
O “lugar” que essas diferentes expressões musicais ocupam em culturas
diversas, faz com que seus processos de manutenção, adaptação e transmissão se
dêem realmente em “mundos” diferentes. Nesse sentido, a música ocupa uma
posição privilegiada de arte com um alto grau de permeabilidade dada sua
polissemia, então permite resultados impares, alguns dos quais são discutidos.
Níveis de discussão paralelos serão propostos: caso esta se dê ora num
parâmetro mais técnico em relação ao texto musical, ora transite numa esfera que se
relaciona às questões da significação de uma expressão artística dentro de
determinada cultura. Ou ainda, que a discussão entre em um espectro ideológico.
Hermano Vianna afirma em seu “O Mistério do Samba” (1995) que a síntese
do samba foi “o coroamento de uma tradição secular de contatos entre vários grupos
sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras” (VIANNA,
1995, p. 34). Necessário certo discernimento nessa colocação, pois aqueles que
realizaram esta síntese (partindo-se novamente do pressuposto de que o estilo é
uma síntese) foram os próprios músicos, e estes não tinham participação direta no
processo de criação e consagração de ideologias. Se os resultados destes trabalhos
foram utilizados para tais fins, isso não é mais uma questão musical.
19

Na observação dos contatos entre elite brasileira e música popular, a atenção


de Vianna se volta aos processos de oficialização do samba como retrato de uma
cultura mestiça. Musicalmente vislumbra-se, através da Casa da Tia Ciata15, que as
sínteses da música popular se dão na cozinha, e não na sala. Sua maior visibilidade
interessa mais a questões mercadológicas do que propriamente a criação artística.
Ou seja, aqueles que participaram deste processo sócio cultural quase
artesanal de criação de um estilo musical, fruto de sínteses e diálogos entre
diferentes culturas, não necessariamente têm qualquer relação com os aparatos
ideológicos que ora visavam coibir, ora alçar o samba à posição de música
representativa do país.
É preciso considerar que era imprescindível, para a realização deste
fenômeno, que uma das escutas do músico popular estivesse ligada ao terreiro.
Embora de difícil aceitação pela sociedade da época, dada a proximidade ao “ritual
16
religioso popular” de caráter afro-brasileiro, escutá-lo era imprescindível para que
as soluções rítmicas fizessem parte dos inúmeros formatos sob os quais o samba
se dá hoje.
Nesse aspecto, a tendência bibliográfica é de não se privilegiar o músico
popular, nem seu contato com manifestações de origem étnica. O terreiro era o
“lugar” onde se realizava, preservava e desenvolvia o ritmo em seu estado mais
“primordial”. Para que essa miscigenação com a canção tonal e com a letra 17 fosse
possível, o músico era quem atravessava os biombos.

Adotando aqui o conceito de “mediadores culturais” (id. Ibid., p. 41) numa


perspectiva musical, e não mercadológica ou ideológica, os músicos devem ser
situados no biombo cozinha/terreiro, e não no biombo sala/cozinha.

Mas a síncopa brasileira teve maior influência institucional no samba,


possivelmente devido a maior proximidade dessa forma musical com os
terreiros - nome dado às comunidades litúrgico-culturais que agrupam os
descendentes de africanos no Brasil (SODRÉ, 1998, p.26).

Quando Vianna se refere às questões relativas aos processos de


urbanização, embora isto ajude a traçar um panorama da dinâmica desses biombos
e contatos, novamente surge uma impessoalidade que furta das mãos dos músicos
sua função sócio-artístico-cultural. Num parêntese, afirma que muitas famílias

15
Vide capítulo 1
16
Terminologia proposta por Wisnik.
17
No sentido moderno de autoria, já que no samba antigo havia o canto, mas esse muito mais improvisado.
20

baianas se mudaram da Bahia para o Rio de Janeiro após a abolição, “trazendo em


sua bagagem o candomblé e vários ritmos do samba, que aqui foram transformados
no samba carioca”. Quem os transformou, Pereira Passos, as Tias Baianas, ou os
próprios músicos que estavam ali, técnicos em sua aérea, e oportunamente diante
de manifestações musicais tão distintas?

A qualidade de seu trabalho é se manter desapegado num tema que conjuga


tantas paixões, as questões relativas a “pureza” do samba. Este olhar antropológico
de Vianna ajuda a neutralizar uma discussão tão inócua quanto essa. Sabe-se que
não existe pureza, nem gênese. Uma rede complexa de trocas, intercâmbios,
diálogos e atravessamentos acontecem continuamente no âmbito da música, como
também da cultura em geral, não permite que se afirme nenhuma manifestação
como “pura”.
Entretanto, existe algo que não pode ser chamado de “puro”, talvez possa ser
visto como “preciso”. Ainda hoje, ao se escutar um grupo de música instrumental
moderna, transformando tudo que se refere a alturas em apenas ritmo (por exemplo,
o som do piano em atabaque, e assim se ouvisse só os ataques, e não os acordes),
o resultado é um batuque, um samba com um rigor surpreendente na presença de
figuras rítmicas muito bem caracterizadas.
Nota-se até algumas daquelas que Mukuna (2000) entende como trazidas da
África. E, mais importante ainda do que a exatidão ou não destas figuras, é o vigor
da presença das cinco características básicas que o estilo herdou e consagrou e são
aprofundadas no capítulo 2: ciclicidade, contrametricidade, simultaneidade,
acentuação e ginga .
Já Sandroni, como músico, pode abraçar simultaneamente diferentes
abordagens do tema. Quando coloca que a batida do violão não é “um simples fundo
neutro sobre o qual a canção viria passear com indiferença” (2001, p.14), parte de
uma suspeita legítima. Também algumas das premissas musicais com as quais abre
seu livro estão de acordo algumas das ferramentas teórico-metodológicas que se
utilizam no capítulo dois e três. É importante mencionar alguns parâmetros
adotados em comum, bem como as necessárias ressalvas.
Um conceito importante que se adotará aqui, em comum com Sandroni, será
o de contrametricidade. Entretanto, tal idéia só pode ser concebida caso se aceite
que há uma “metricidade” vigente. E, musicalmente falando, não existe uma
21

metricidade padrão, para que se defina a outra pela negação. Notar-se é que, em
linguagens musicais diversas, existem métricas mais ou menos constantes ou
usuais. O próprio autor nos lembra que:
Na África Negra, ao contrário, elas (as figuras musicais contramétricas, que
estarão detalhadas no capítulo 3) pertencem ao senso comum musical,
freqüentando inclusive o repertório rítmico das crianças (Id. Ibid., p.25).
Parece também que, na tentativa de enumerar os gêneros musicais, muitos
autores despedem energia ao tentar definí-los, com a preocupação de serem
precisos. No entanto Sandroni acerta quando coloca: “nos informavam basicamente
que se tratava de música ‘sincopada18’, ‘tipicamente brasileira e propícia aos
requebrados mestiços” (Id. Ibid., p. 31). Ou seja, ao invés de se preocupar em
nomear uma infinidade de categorias rítmicas, tais como maxixe, cateretê, habanera,
etc, o autor centra-se no que musicalmente deve-se destacar: trata-se de música
com características contramétricas.
Ligado à inusitada forma pela qual os africanos trouxeram sua bagagem
cultural, Sandroni, referindo-se à escolha do próprio título de sua obra que foi buscar
em Noel Rosa, “Feitiço Decente” 19 acha uma frase primorosa, na qual coloca que “A
doce vingança dos negros libertos é produzir uma música que escraviza quem a
escuta: decente, porém feitiço” (Id. Ibid., p.171).
Novamente isso corrobora a idéia do poder que esta “trama” rítmica exerce
sobre seus ouvintes. E como colocado acima, enquanto ritmo do terreiro, esse não
chegaria jamais a ser “decente”. Assim, joga com canções, passaporte para que este
“feitiço” continue sendo “ministrado”, ou seja, tornado aceitável e, assim, pronto para
os atravessamentos subseqüentes.
Sem trafegar por assuntos de ordem teológica ou mágica, não deixa de ser
interessante colocar a pergunta de como uma música que nasce e/ou sobrevive no
terreiro, dialoga com canções, as influencia e chega até a sala.
Se isto soa forçado, pode-se observar que, ainda que existam inúmeros
sambas e seus diversos autores, há sempre um elo forte entre todos eles, o fato de
que todos contêm o samba (sem autor) em seus principais fatores constituintes.
Quando Sandroni coloca que os cantores que não são “letrados” em música
“dividem” de maneira mais contramétrica20, percebe-se a natureza sincopada da

18
O conceito de sincopa empregado aqui está colocado no capitulo 2 e aprofundado no 3.
19
Pequeno trecho da composição de Vadico e Noel Rosa intitulada “Feitiço da Vila”.
20
Vide depoimento de Francisco Alves in Sandroni, 2001, p.212/213.
22

melodia, característica clara do samba, bem como a oralidade como forma eficaz de
aprendizagem.
O ritmo (ou ritmos), como veremos no capítulo adiante, é absolutamente
similar, seja num batuque ou na subdivisão rítmica do acompanhamento harmônico
no disco de Tom Jobim. Tudo isso ratifica a idéia de que as estruturas rítmicas do
samba chegam por inúmeras vias à “escuta” do brasileiro. Vale dizer que essas
similitudes fazem com que aquele que pensa estar ouvindo uma canção, está, de
fato, escutando o samba do terreiro, ainda que supostamente como pano de fundo.
No sentido geral de seu trabalho, vê-se apenas um equívoco, exatamente no
que ele coloca como hipótese central, o fato de que o samba mudou seu paradigma
de uma figuração rítmica menos sincopada (exemplos no capítulo 3), para uma mais
contramétrica, nas primeiras décadas do século passado.
Ora, o fato é que a legitimação social ou comercial deste gênero não tem
relação com o fato de que ele é o que sempre foi. Colocado de outra forma; ainda
que o samba, com estas características mais contramétricas não tivesse alcançado
a posição que ocupa no cenário nacional, ou seja, se não tivesse encontrado e
passaporte para transpor certos biombos sociais, ele ainda continuaria existindo
dentro de nossa cultura.
Mesmo que sua existência fosse de pouca relevância cultural no sentido de
seu alcance, ainda estaria lá. Não interessa, desconsiderando questões de mercado,
se houve uma mudança no que é aceito como sendo ou não o “legítimo samba”. O
que ele chama de samba antigo continua vivo e sendo executado por inúmeros
músicos em diversos trabalhos, alguns desse explicitados em gravações que
seguem anexas a esse trabalho.
Talvez para Vianna, como antropólogo, seja importante o que se consagrou
ou não como o legítimo samba. Mas para o músico Sandroni, que nos lembra que o
mais importante não é a nomenclatura , e sim características contramétricas, não
deve importar o uso que se fez do samba. Essa homogeneização não interessa ao
músico, que deve sim, notar a presença da diversidade, em termos de possibilidades
rítmicas hoje.
Parece patente que não houve uma “gênese” na Estácio. Essas figuras
rítmicas não foram inventadas ali, como é possível perceber na leitura de Mukuna
(2000). Eles vinham trafegando pelos anais da história, assim com ainda hoje fazem.
23

Assim, não se pode confundir difusão ou homogeneização, com criação ou ainda


com o nascimento destas figuras rítmicas.
O rádio e as necessidades de fixação da idéia de autoria por motivos
econômicos cristalizaram algumas das possíveis figurações do samba como sendo
“o” samba. Além disso, um dos argumentos principais que utiliza se baseia na idéia
de que a time line do samba “moderno” é mais contramétrica que o samba “antigo”
Essa discussão é feita de maneira detalhada no capítulo 3. E, com se pode notar
ali, não se pode afirmar isso.
Em relação a Mukuna, como já citado, sempre é útil reforçar a idéia de que
existe uma inegável contribuição da cultura africana à música popular, “os ciclos
rítmicos” (MUKUNA, 2000, p. 27). Como se observará no capítulo dois, existe uma
certa fragilidade, ao menos no que tange ao olhar do músico, em se resumir um
ritmo a apenas uma linha rítmica. Entretanto, para efeito de discussão,
momentaneamente vamos partir dessa idéia.
Já que seu trabalho – Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira (2000)
- tenta exatamente verificar a relação entre aquelas figuras na África, e a vinda delas
para o Brasil, a primeira necessidade seria a de delimitar um espaço geográfico no
continente negro para que se pudesse então, num segundo momento, compará-las
com as presentes aqui.
Suas observações relatam que, durante esse transplante cultural, preservou-
se tanto a estrutura organológica de alguns instrumentos, como também a
ciclicidade de padrões rítmicos. Isso, por si só, independentemente da exatidão (ou
tradução) dessas figuras, já confirma a influência de uma abordagem musical que se
dá por paradigmas diversos do que se compreende por “arte elaborada” em termos
eurocêntricos. Pode-se então, através de Mukuna, reafirmar novamente cinco pilares
fundamentais da música afro-brasileira: a ciclicidade, contrametricidade,
simultaneidade, acentuação e ginga.
Outro ponto importante a se notar, não só no que se refere aos ritmos, como
também às festas onde esses eram executados, é que, na literatura em geral dá-se
excessiva ênfase a uma idéia de lascívia e sexualidade exacerbada que envolvia
tais eventos. Essa leitura ocidental, que via como dionisíaca o espírito dessas
manifestações, tem caráter preconceituoso.
Inusitadamente, existe um aspecto interessante nesse pré-julgamento, pois
ao menos se nota que a realização dessas festas, onde o ritmo sempre estava
24

presente, realmente tinha o poder de incomodar aqueles que não compreendiam o


que se passava. Se Mario de Andrade teve de se afastar para “pôr em ordem o
respiro”, o efeito entre portugueses e viajantes que relataram essas cerimônias devia
ser contundente.
Mas a leitura de Mukuna pode nos esclarecer alguns pormenores desta
questão. Assim, ele lembra que muitas destas cerimônias, na África, tinham uma
função iniciática em termos de educação sexual e em outros casos, de preparação
para o casamento (Id. Ibid., p.92). Isso muda certas apressadas perspectivas que se
supõem analíticas, quando são apenas fruto de ideologia preconceituosa ou mesmo
de interesses econômicos. Conflito moral para o grupo social dominante católico e
capitalista, que de um lado via sexo como degradação e de outro, fomentava a
procriação em cativeiro, enquanto essa lhe pudesse gerar dividendos.
Talvez o ponto mais difícil de lidar, já que não é proposta deste estudo um
aprofundamento no qual circule a idéia “religiosidade”, é exatamente a busca do
autor em traçar o que chama de “obliteração (sacrifício) dos valores étnicos” (Id.
Ibid., p.29). Nesse contexto, as questões se referem ao lugar cerimonial que essas
células rítmicas ocupavam na África em contrapartida a seu papel no Brasil hoje.
Em sua visão, houve uma migração do “sagrado” em direção ao “profano”. Ou
seja, estas figuras tinham um caráter “invocacional” dentro de um contexto
operatório “funcional” da tradição africana, e hoje, segundo Mukuna, ocupariam o
espaço profano, de uma música popular com dotes “vulgarizados”.
Para que se aborde com mais propriedade essa discussão, duas colocações
21
parecem pertinentes. Juliana Elbein dos Santos , em sua tese de doutorado,
coloca que o isolamento em que se davam no Brasil as cerimônias de origem
africana, tende a ser justificado sempre pela perseguição, por parte das autoridades,
que esses rituais sofriam. Santos então nos lembra que muitas vezes o que se dava
era o contrário, não se aceitava a presença de brancos.
Isso redimensiona a idéia de que essa fosse uma cultura constituída apenas
com base na “resistência”. Em muitos casos, não eram oprimidos tentando salvar
suas tradições, e sim figuras importantes dentro da hierarquia africana que
simplesmente não estavam interessadas em compartilhar suas vidas religiosas com
a cultura dominante.

21
Tese de Doutorado em Etnologia na Universidade de Sorbonne: “Os Nagô e a Morte”, Editora Vozes, 1977.
25

Deve-se levar em conta ainda dois outros fatores: primeiro, a presença e


continuidade significativa de uma expressão religiosa afro-brasileira, nas quais
inclusive até hoje muitas figuras musicais (toques) são “interditas”, ou seja, não
podem nem sequer ser executadas num contexto profano.
Segundo, é curioso também saber que, muito embora exista um acordo em
torno da idéia de que a palavra samba se origine em "semba”, que quer dizer
umbigada, uma forma de dança africana que pode ter originado essa dança/música,
Câmara Cascudo nos lembra que samba também é um verbo Conguês que significa,
entre outras coisas, rezar (CASCUDO, 1999, p.137).
O fato de não parecer “científico” no momento engendrar uma discussão
acerca do que seria uma figura musical de caráter “invocacional”, não impede que se
coloque a questão: se essas figuras tinham algum “poder de invocação”, por que
esse se perderia no movimento de levar uma figura rítmica de um contexto a outro?
Recolocando: aos olhos (ouvidos) de um auditor, se aceito o fato de que um
padrão rítmico cíclico produz algum efeito em seus ouvintes, não parece claro por
que ele perderia sua força ao ser aplicado em outro contexto, agora mais profano.
Nesta direção, a discussão ganha uma tonalidade quase inusitada: “o” samba
trampolina, joga com a canção para se tornar “um” ou “outro” samba. Com essa
máscara de credibilidade, pode adentrar no universo da cultura oficial, ser gravado e
reproduzido no rádio. Com isso, essas figuras e ciclos de força “invocadora” passam
a ser ouvidas e, supostamente, exercer seus efeitos nos quatro cantos do país?
Dentro desse viés, Muniz Sodré é um autor que pode auxiliar na re-
significação dessa temática. Além de sua vida acadêmica, Sodré ocupa uma posição
na própria hierarquia religiosa afro-brasileira (Oba Xangô nilê Opô Afonjá), o que faz
com que desloque seu ponto de vista para mais próximo do que se pretende aqui,
no sentido de que não se trata apenas de um intelectual que fala “de fora”, mas
alguém com autoridade para falar também desde “dentro” da cultura negra.

Apesar de suas características mestiças (misto de influências africanas e


européias), essa música fermentava-se realmente no seio da população
negra, especialmente depois da Abolição, quando os negros passaram a
buscar novos modos de comunicação adaptáveis a um quadro urbano hostil
(SODRÉ, 1998, p. 13).
26

Ao se referir à casa da Tia Ciata, que será discutida no capítulo um, propõe
um modelo que utilizado por inúmeros autores, incluindo os já discutidos, e ainda
Wisnik, Roberto Moura e Tinhorão.
A economia semiótica da casa, isto é, suas disposições e táticas de
funcionamento, faziam dela um campo dinâmico de re-elaboração de
elementos da tradição cultural africana, gerador de significações capazes de
dar forma a um novo modelo de penetração urbana para os contingentes
negros. (Id. Ibid., p. 15).

Embora considerado um baluarte da “cultura de resistência”, o que vai


interessar aqui é sua contribuição para uma visão diferenciada das questões rítmicas
dentro da cultura negra. Para o ritmo propõe então:
O ritmo restitui a dinâmica do acontecimento mítico, reconfirmando os
aspectos de criação e harmonia do tempo (Id. Ibid., p. 19).

Ainda que não se pretenda discutir aqui questões “cosmológicas” seria


interessante lembrar, com Mukuna, do poder invocatório das figuras e ciclos. E
recolocar algumas questões:
Extraído do contexto, perderiam estas figuras sua potência, seu poder, seus
efeitos?
Como todo ritmo já é uma síntese (de tempos), o ritmo negro é uma síntese
de sínteses (sonoras), que atesta a integração do elemento humano na
temporalidade mítica.(Id. Ibid., p. 21).

Mesmo não utilizando o conceito de contrametricidade, Sodré caracteriza


esses deslocamentos, essa ênfase no tempo mais fraco, como um processo de
utilização ostensiva de síncopas, o que é apenas uma maneira diferente de colocar
a mesma questão. Assim, no capítulo 2, pode-se notar que a própria noção de
tempo forte é questionada.
Melhor interpretar então a origem do samba no transplante, no sentido
empregado por Darcy Ribeiro (1995), de toda uma cultura musical que, mesmo
contendo suas próprias heterogeneidades, tem, como nos mostra Mukuna, traços
gerais em comum com a região da África de onde se originou o maior contingente de
negros trazidos ao Brasil, o Reino do Congo (2000, p. 38).

É deste sistema de que fala a síncopa do samba. A insistência da síncopa,


sua natureza iterativa constituem o índice de uma diferença – entre dois
modos de significar musicalmente o tempo, entre a constância da divisão
rítmica africana e a necessária mobilidade para acolher as variadas
influências brancas. Entre o tempo fraco e o forte, irrompe a mobilização do
corpo, mas também o apelo a uma volta impossível, ao que de essencial se
perdeu com a diáspora negra (SODRÉ, p. 67).
27

Por esses caminhos e indicações é que se pretende empreender uma análise


musical detalhada das estruturas rítmicas do samba , e, ao mesmo tempo, fortalecer
a consciência de que não é possível compreender essa herança musical sem que se
reveja o papel que ocupa (ou ocupava) na cultura que a geriu.
Assim o samba emprega essas sofisticadas táticas, através da oralidade, e
se re-significa. Avesso a normatizações, categorizações e verbalizações, “aí vai
caçar”. Fugidio em suas maneiras de jogar, perpassa, em seus mil disfarces, todos
os âmbitos e camadas da sociedade. E em todas as suas formas, das mais
primordiais as mais sofisticadas, consegue estar onde ninguém espera. “É astúcia”.

F) Corpus

O cerne do núcleo documental desse trabalho é o anexo de gravações. Existe


uma demanda geral de partituras em trabalhos ligados a música. Talvez isso dê
aparentemente mais credibilidade acadêmica. Mas a única forma de demonstrar
inúmeros aspectos aqui salientados é via audição.

Se a partitura categoriza e cristaliza, a gravação, ao registrar a manifestação


sonora no eixo do tempo de maneira isenta, deixa-se transpassar pela ginga.
Mostras seus detalhes mais sutis através dos interstícios que as possibilidades da
execução deixam entrever.
Entretanto, para efeitos ilustrativos e analíticos, tanto de caráter visual quanto
musical, algumas partituras aparecem anexadas. Citadas durante o texto, têm sua
utilidade como fonte de consulta.
Anexo I. A primeira partitura é um trecho do arranjo de Rui Carvalho para a
música “Upa Neguinho”, de Edu Lobo e G. Guarnieri.
Anexo II. A segunda partitura é a transcrição de uma faixa do CD “Batucada
Fantástica”, intitulada Samba Quente. Faixa 3 do anexo V.
Anexo III. A terceira partitura, é a transcrição da faixa “Tamborins” do mesmo
CD, também faixa 5 do anexo V.
Anexo IV. A quarta partitura é da música “Atravessou”, de Paulinho da Viola.
Faixa 7 do anexo V
28

Anexo V. O anexo cinco é um “compact disc” que contém 9 faixas. Algumas


delas são acompanhadas da partitura completa, e outras de apenas trechos que se
encontram no decorrer do texto. Essa diferenciação baseia-se na necessidade ou
não de dados para a ilustração, conforme o caso. No final desse trabalho encontra-
se uma ficha técnica detalhada de cada uma das faixas desse anexo.
Em segundo, é necessário empreender uma busca no intuito de determinar
de quais etnias se herdou cada um desses elementos. Qual cultura, e mais tarde,
qual camada social, se destaca no cultivo e desenvolvimento do samba? É uma
jornada um tanto complexa. Pode-se atribuir um traço musical a uma etnia? Pode-se
separar esses traços num tipo de música?
Em terceiro lugar, uma vez sendo a influência portuguesa –e por extensão,
européia – supostamente a mais vasta, tudo o que se refere a uma abordagem
analítica de um dado conteúdo musical, está por demais comprometida com os
paradigmas dessas culturas. Vale dizer: o contexto onde se pratica a análise não é
isento. Suas regras e valores têm também pertinência social, cultural, e até mesmo
étnica.
Uma sociedade seria composta de certas práticas exorbitadas,
organizadoras de suas instituições normativas, e de outras práticas, sem-
número, que ficaram como ‘menores’, sempre no entanto presentes, embora
não organizadoras de um discurso e conservando as primícias ou restos de
hipóteses (institucionais, científicas), diferentes para esta sociedade ou para
outras (DE CERTEAU, 1994, p.115).

Numa determinada abordagem, o ritmo é o elemento que mais se destaca no


samba. Primeiro, as estruturas rítmicas são o denominador comum, o que muda são
as roupagens harmônicas, melódicas e formais. Existe também a suspeita de que
essas estruturas tenham origens africanas. Caso essas perguntas tenham respostas
afirmativas, está justificado que se busque uma forma diferenciada de análise.
É sempre tarefa inexata compreender a expressão artística sem examiná-la
através de seus próprios parâmetros. Não caberia, por exemplo, determinar a
qualidade de uma batucada por sua riqueza harmônica. Em contrapartida, o fato de
uma grande obra da “música de concerto” ter uma série de características
complexas, não significa necessariamente que exista nela sofisticação rítmica, ao
menos nos moldes abordados aqui.
Por isso, se faz necessário pontuar alguns tópicos dos diálogos musicais,
culturais e seus atravessamentos.
29

Capítulo 1

O Samba na Cultura

O Brasil possui uma conformação sócio-cultural impar. Nascido do encontro


de diferentes culturas, suas expressões artísticas são o fruto dessa singularidade tão
plural. Índios, negros e portugueses, os agentes principais, se amalgamaram de tal
forma que muito de nossas manifestações culturais têm um caráter híbrido,
sincrético, sintético.

Cabe lembrar mais uma vez aqui do que é feita a música brasileira. Embora
chegada no povo a uma expressão original e étnica, ela provém de fontes
estranhas: a ameríndia em porcentagem pequena; a africana em
porcentagem bem maior; a portuguesa em porcentagem vasta (ANDRADE,
1962, p.25).

Sabe-se que a posição de colonizadores dos portugueses fez com que seus
valores, em várias áreas, ocupassem papel central na constituição da chamada
“cultura brasileira”. Um exemplo disso é a própria língua oficial do país. Entretanto,
quando o assunto é música popular, essa posição de maior influência lusa pode e
deve ser revista.
A música é uma expressão privilegiada para ser veículo que trafega entre
esferas sócio culturais diversas. Existem mil maneiras de se combinar melodia,
harmonia e ritmo. Além disso, cada um desses elementos pode ter traços atribuídos
a diferentes culturas e etnias.
Em algumas dessas manifestações musicais não se pode afirmar, como fez
Mario de Andrade, que a influência portuguesa é maior do que a africana. Esse é o
caso do samba, em suas inúmeras formas e de características híbridas. Para discutir
esse assunto, existem três problemas fundamentais.
Em primeiro lugar, se o objeto escolhido é “um” samba, cabe buscar discernir
o que mais o caracteriza. São seus contornos melódicos e/ou harmônicos, ou sua
estrutura rítmica? Ou seja, é possível definir numa música que congrega influências
tão diferentes, qual desses elementos constituintes é o que se sobressai?
30

1.1 - As culturas e a história

Como se dão as inter-relações entre os aspectos históricos, em especial a


contribuição dos negros, e a presença e formação dos ritmos?
Para avaliar essas questões, pretende-se trabalhar primeiro com uma
concepção de história. Sem a pretensão de recontá-la, o que se quer mostrar são
algumas das mazelas as quais o negro foi submetido. Ao observar o quão restrito
era seu espaço de ação, pode-se compreender melhor por que o ritmo acabou se
tornando um dos principais legados da África à música brasileira.
Caçados em sua terra natal, aprisionados, transportados em péssimas
condições, vendidos e forçados a trabalhar, não puderam portar junto a si nada. A
única coisa que trouxeram foram seus corpos. Com eles, seus ritmos e gestos.
Pretende-se traçar este quadro de forma não necessariamente linear,
fotografando assim flashes históricos concomitantes de aceitação e apropriação,
negação e perseguição, astúcias e trampolinagens. Mais um agravante nessa tarefa,
com relação a opressores e oprimidos: são sempre os opressores que contam a
história.
Como antídoto à armadilha de repetir aqui esse erro é necessário trabalhar
com autores que transitem por esta história com um olhar diferenciado, mais “de
dentro”. Existe uma bibliografia escrita por pensadores que podem versar sobre a
cultura africana e a afro-brasileira com propriedade.
Assim o africano Kazadi Wa Mukuna, contribui para que se tenha uma idéia
do “lugar” do ritmo na cultura africana. Ao se abordar formas de expressão de uma
dada comunidade, é preciso situá-la em seu próprio contexto, até onde isso for
possível.
Outro autor, Muniz Sodré, é a referência para que se vislumbre o paradeiro da
cultura africana no Brasil, para que se perceba assim o “lugar” do ritmo na cultura
afro brasileira. A cultura estabelecida não consegue dar conta dos mil interstícios por
onde caminha o excluído, o diferente, o heterogêneo, nem do uso que os oprimidos
fazem da “cultura de elite”. Até mesmo quando o discurso é uma ideologia crítica,
isso apenas cria uma aparente distância, mas no âmago do próprio sistema.
31

Mas essa elucidação do aparelho por si mesmo tem como inconveniente


não ver as práticas que lhe são heterogêneas e que reprime ou acredita
reprimir (DE CERTEAU, 1994, p. 104).

Uma interpolação entre diferentes tipos de “cientistas sociais” se faz


necessária na medida em que mesmo os historiadores brasileiros mais “clássicos”
partem de um olhar “de fora”, ainda que alguns deles aspirem o contrário. Tentar
compreender o mundo assim é similar ao erro de analisar o material sonoro afro-
brasileiro com uma bagagem européia, letrada. Isso seria contradizer a natureza da
pesquisa em questão.
A tentativa de compreensão das similitudes e diferenças entre transmissão
oral e cultura letrada é uma das bases desse trabalho. Não devem ser vistas como
formas antagônicas, mas como processos de preservação de conhecimentos com
características e conseqüências históricas e musicais muito diferentes.
Lembrando novamente que a detentora dos meios de análise é exatamente a
cultura letrada, note-se que existem vários equívocos nas incursões analíticas a
formas musicais que provém de origens estranhas as suas.
Não é verdade que o estudo da música européia não se configura como um
estudo etnomusicológico? O que justifica então um estudo musical ter uma
abordagem étnica, que não pertença à cultura onde foi concebido? Por que o estudo
da música germânica, por exemplo, não é visto como “étnico”? O exemplo parece
apropriado na medida em que uma das maiores mazelas da humanidade, o anti-
semitismo e suas conseqüências, baseou-se exatamente em pressupostos étnicos.
Ao mesmo tempo, há certo reducionismo quando se intenta analisar a cultura
das etnias ou camadas excluídas. Vide, por exemplo, o que se supõe como
características colaterais das manifestações rítmicas dos negros no país. As
descrições das manifestações musicais negras envolvem adjetivos pejorativos. Esse
é mais um biombo, um mito, erguido com a função de distanciar tais expressões
musicais do “decoro” necessário as “formas cultas” de arte.
Num processo tardio, apenas há alguns anos começou-se a levar a sério, em
nível acadêmico, pesquisas sobre a música popular brasileira no que se refere
especificamente ao ritmo, a maior contribuição da cultura africana. Embora existam
bons trabalhos, esses, em sua maioria, não trazem informações técnicas sobre
música.
32

Especialmente no que foi escrito sobre o samba, sublinha-se sobremaneira


informações sobre personalidades e seus encontros, letras, autores e cantores. No
entanto, o fenômeno rítmico musical é colocado em último plano. É pretensão desse
trabalho inverter tal abordagem, pois na visão aqui colocada o ritmo é o samba.
Canções, letras, autores, e personalidades são componentes muitas vezes mais
históricos, poéticos ou mercadológicos do que musicais.
Como representante dessa primeira e mais usual visão, o recém publicado
trabalho de Hermano Vianna, intitulado “O Mistério do Samba” (1995) usa como
ponto de partida o encontro entre Gilberto Freyre e Prudente de Moraes Neto com
Pixinguinha e Donga, entre outros. Esse tipo de bibliografia, embora cite gravações,
não privilegia o enfoque do que é, de onde veio, e como se preservou o que nos
interessa aqui: uma proposta de se analisar, com ferramentas diferenciadas, o
samba enquanto conjunto de estruturas rítmicas.
Inúmeros autores consideram que o primeiro samba gravado (Pelo telefone,
Donga, 1917) marca o nascimento do gênero. Todavia, isso pode causar algumas
confusões. A data do primeiro registro nada tem a ver com o início dessa forma
musical.

Independente de qual possa ser a data exata em que essa forma de


expressão popular tenha sido criada, podemos seguramente afirmar que o
samba já estava em voga por volta de 15 de novembro de 1878 (...)
(MUKUNA, 2000, p. 98).

O fato é que não existe nem momento exato nem gênese, e sim inúmeros
processos que, ritmicamente falando, são com certeza anteriores à data proposta
por Mukuna. Daí a expressão “já estava em voga”.
Do outro lado, toda vez que nos defrontamos com livros dirigidos a músicos, a
tendência é que se enfatize nossa cultura musical letrada, ou seja, européia. Um
samba tem uma construção harmônica e melódica22 , baseado na tradição tonal, e
uma esfera rítmica baseada nas heranças africanas.
Isso é aceito desde o início do século, a começar por Mario de Andrade. E
realmente pode ser observado musicalmente, dada a natureza desses elementos.
Entretanto, discussões mais técnicas sobre a questão da herança africana sempre
estiveram relegados, assim como de seus próprios herdeiros, ao segundo plano.

22
O ritmo de melodia é um reflexo do gênero da peça. Aqui me refiro as relações de alturas da melodia.
33

Quem foi o principal interlocutor nesses diálogos? Possivelmente o músico


popular. Como desempenhava tais papéis? Não precisava de teorias modernistas
como queria Mario de Andrade com suas bulas composicionais. Porque o saudável
descompromisso da música popular faz com que o músico seja um antropófago de
suas próprias escutas.
Se desde o primeiro português que chegou a terra do sol poente já havia
escutas européias e africanas, é por que nunca se levou a sério tratar de maneira
analítica a segunda ? Um país mestiço, uma cultura mestiça, e uma abordagem
analítica unilateral.
Sabe-se que tratar a mestiçagem como solução para o país foi um conceito
forjado sob a ótica de concílio, de brado a nossa democracia racial, muitas vezes
apenas para amansar os excluídos. Mas isso não quer dizer que, musicalmente
falando, não se possa chamar o samba de mestiço, ou ao menos de expressão que
sempre dialogou e ainda o faz, com estruturas musicais diversificadas.
Aliás, a artes em geral, e a música em particular, têm uma capacidade impar
de sintetizar influências, de estabelecer diálogos, de engendrar atravessamentos.
Entretanto, no universo acadêmico, muitas vezes se exclui a possibilidade de tratar
com seriedade o ritmo enquanto fenômeno musical.
Uma outra forma de exclusão vem da idéia de folclore, por se tratar do estudo
do “outro”. Na África, culturas são assunto de antropólogos, que durante muito
tempo viram tais civilizações como “primitivas”. Hoje se sabe que isso é um
equívoco. Por que, ao se tornarem os principais excluídos na sociedade brasileira,
suas contribuições culturais se tornam estudos de folclore ou étnicos?
Importante atribuir a aqueles que resistiram durante séculos a religiões
impostas, perseguições, atrocidades, enfim, toda a sorte de dificuldades, a
preservação de algo que simplesmente não podiam parar de carregar consigo: seus
ritmos, um dos cernes de suas expressões culturais.
Assim, no que tange a música, o trabalho se concentra no ritmo. E, no que se
refere a abordagem, a ênfase recai apenas num aspecto essencial para que haja
rigor: analisar uma expressão através de seu próprio viés, o que significa propor
novas ferramentas de compreensão de um fenômeno musical construído
originalmente em outro âmbito cultural.
34

1.2. A África no Brasil

Dante Moreira Leite, na conclusão de seu “O Caráter Nacional Brasileiro”, é


enfático ao colocar que “o passado atua no presente e pode ser uma força
determinante da ação, mas que isto só ocorre quando forças do passado continuam
no presente” (1976, p. 75). Explica que não é possível delinear o caráter de um povo
ao menos que se defina a camada social e os tons regionais.
Ao aplicar essa leitura ao foco dessa pesquisa, pode-se formular algumas
questões, a começar por: será que a situação dos negros hoje é tão diferente da
vivenciada nos últimos quinhentos anos? Não foram todos eles submetidos a muitas
situações comuns, o desterro, o transplante, a opressão, o jugo e, talvez mais
potente, a pressão psicológica, uma das ferramentas fundamentais de controle para
aqueles que tinham de manter sua posição de opressão e domínio.
Não se pode, entretanto, emprestando de Leite alguns conceitos, tentar
descrever o que seria “cultura africana” devido, no mínimo, a vastidão de culturas
que coabitam aquele continente. É necessário traçar delimitações. Geograficamente,
a costa atlântica sub-saariana, o que Mukuna (2000) denomina o “Reino do Congo”.
Importante também verificar o grau de intensidade das relações entre o Brasil
e a África. Luiz da Câmara Cascudo afirma que, em meados do século XIX, o
volume de comércio Brasil/Angola era “três a quatro vezes superior ao comércio com
a metrópole” (CASCUDO, 1999, p. 96).
Nessa linha, segundo Alencastro, considera-se muito o comércio Portugal-
Brasil e Portugal-África, menosprezando-se, assim, a intensidade e volume de
relações comerciais diretas Brasil-África, em especial, Angola/Salvador e Angola/Rio
de Janeiro (Alencastro, 2000). Vale dizer que houve uma relação mais intensa do
que se supõe usualmente. E, é claro, isso tem inúmeras significações culturais.

O problema que se nos coloca, em primeiro lugar, é o de compreender


como tantos traços culturais africanos puderam resistir ao rolo compressor
do regime servil (BASTIDE, 1967, p. 95).

É então possível tecer considerações entre o que se entende como “cultura


brasileira” e seu viés de mundo europeizado (latino), confrontando isso com o quanto
35

se introduziu de “traços” da cultura negra em nosso país, mais especificamente na


região Sudeste?
Num processo civilizatório tem-se até certo ponto uma visão clara das
influências mútuas entre dominadores e dominados. Mirando-se nas relações
portugueses/indígenas, se é verdade que o povo mais evoluído tecnicamente
influencia sobremaneira a cultura mais “primitiva”, também é verdade que o povo
que se vê invadido é o melhor conhecedor do local e suas características,
conhecimento muitas vezes indispensável à colonização.
Ou seja, ainda que complexo e discutível, existem muitos estudos que
trabalham no sentido de compreender relações entre dominador e o dominado. Em
geral, reflexo direto de uma relação invasor/invadido. Entretanto, a análise desses
processos se torna obscura, no sentido do considerável aumento de variáveis,
quando transplantamos uma etnia, privando-a num só golpe de sua cultura original e
do local onde esta se dava.

A escravidão acarretou a transplantação de africanos de suas tribos, terras,


tradições, etc, para um novo mundo com um conjunto totalmente diferente
de estilos de vida, regido por uma nova rede de relações (MUKUNA, 2000,
p.222).

Some-se a isso vários tipos de aval ideológico, como o determinismo


biológico, usado para justificar este comércio. Se o negro era tratado como
mercadoria, res vocale, imagine-se com que atenção era tratada sua cultura.
No início das navegações, havia justificativas econômicas e teológicas, e o
fortalecimento do positivismo veio a piorar a situação, já que havia argumentos
supostamente objetivos que alicerçavam todo o tipo de atrocidades, por ação ou
omissão.

“Conseqüentemente, o clero professa no Brasil a doutrina difundida pela


bula Romanus Pontifex (1455). Tolerava-se a escravidão na medida em ela
facilitava a catequese. Arrancados das brenhas do paganismo, os negros
teriam suas almas salvas no ambiente da metrópole e dos enclaves
ultramarinos” (ALENCASTRO, 2000, p.159).

Com a pretensão de observar esse quadro de maneira um pouco mais


panóptica, uma das questões que se pretende enfocar aqui vem à tona: que
artifícios, nestas condições tão adversas, esta cultura usou para sua auto-
36

preservação, se é que isto aconteceu, e qual a medida da presença desta cultura


hoje, se é que isto pode ser medido?
Embora se configure como tarefa arriscada, pode-se começar contrapondo
algumas diferenças básicas entre a cultura européia e africana, abordando tal tarefa
através de conceitos um tanto genéricos, que entretanto se configuram como uma
chance de visualização deste traços.
O primeiro marco significativo do contraste entre a cultura européia e a
africana é o fato de uma ser “letrada” e a outra “oral”. Pode-se argumentar que
muitos dos portugueses que vieram ao país não eram letrados, muito pelo contrário,
havia um grande contingente de degredados. Some-se a isso o número de pessoas
não bem posicionadas socialmente, senão não estaria embarcando numa viagem
que, ao menos ao início das navegações, era considerada uma verdadeira loucura.
Mas o fato é que a maneira pela qual se construiu a cultura européia, desde a
Grécia socrática, esteve intimamente ligada aos preceitos de uma cultura que tinha
nos mapas, e na escrita alfabética, símbolos-ferramentas de seu desenvolvimento,
de sua visão de mundo. Sendo assim, se escolhido como critério de
desenvolvimento humano o desenvolvimento tecnológico e científico, as culturas
africanas estariam “atrasadas“.
Talvez seja exatamente esse o primeiro paradigma, que perdura até hoje,
que relaciona de maneira quase direta complexidade, sofisticação, capacidade
analítica, com as “letras”. Para Olson, “não passa de um equivoco identificar os
meios de comunicação usados com o conhecimento por eles comunicado” (1994, p.
29).
Recentemente se iniciou o reconhecimento de que não é fato, ao menos sob
este aspecto, supor a superioridade de uma cultura em detrimento de outra.

Pois, hoje em dia, ninguém acha que 'primitivos'- se é que existe alguém
que ainda use este termo - são pragmatistas simplórios que andam tateando
em busca do conforto em meio a uma névoa de supertições (GEERTZ,
2000, p.113).

Uma cultura era sedentária há milhares de anos, e a transplantada era em


grande parte nômade. Ora, é fácil de se entender que, assim que o conhecimento
dos princípios da agricultura é alcançado, uma cultura tende a fixar-se numa
determinada área. Com o desenvolvimento dessa, constroem-se vilas, monumentos,
37

aquedutos, etc, portanto a “produção cultural” se torna cada vez mais materializada,
mais sólida, mais ligada a um espaço fixo.
Já numa organização que não necessariamente se fixa num determinado
ponto do globo, é imprescindível uma cultura “portátil” como garantia de sua própria
sobrevivência. Esta então passa a ser acumulada e transmitida usando como
veículos contos, danças, rituais, e de especial interesse para esse trabalho, a
música.

23
A tradição oral depende da rima e do ritmo , bem como dos feitos
impressionantes de deuses e heróis, para poder ser lembrada e servir como
fundamento de uma cultura (OLSON, 1994, p.53).

Existe mais um aspecto que, embora dificultasse a comunicação verbal,


fomentou a comunicação musical. Uma das estratégias usuais dos mercadores
negreiros para manter um grupo sob jugo era exatamente o de selecionar, para
venda, escravos que não falassem a mesma língua. Na verdade, já havia essa
preocupação desde o embarque em terras africanas.
Ou seja, os negros foram privados até da possibilidade de se comunicar
usando a própria língua, que porta em seu bojo além da possibilidade de
comunicação, vários aspectos de seus modus vivendi/operandi.
Não havia aparentemente nada que permitisse a preservação dessa cultura.
Nem terra, nem língua, nem relações familiares, nem hierarquia24, já que não fazia a
menor diferença ao traficante se uma peça era um príncipe ou um súdito. Em suma,
numa visão precipitada, não existia aparentemente nada que pudesse ser um lastro,
uma vinculação sócio-cultural entre aqueles que foram feitos escravos.
Porém, observando-se a presença e a abrangência de determinadas
estruturas rítmicas e suas possíveis origens africanas (Mukuna), aventa-se a
seguinte possibilidade: um dos veículos responsáveis pela manutenção,
preservação e transmissão da cultura africana no Brasil foi a música, em especial os
ritmos. Ainda que se colocasse que fazem parte disso o sincretismo religioso, a

23
Não é essa a acepção de ritmo que deve ser considerada nas linhas gerais do trabalho.
24
Sabe-se que o próprio Maracatu, enquanto cerimônia, é a coroação no Brasil daqueles que ocupavam posições
de nobreza em sua terra natal. Existe uma polêmica acerca dessa idéia, já que se sabe que muitas vezes eram as
próprias castas nobres africanas, ou de mais poder, que escravizavam a população para depois vendê-la. Além
disso, Tinhorão mostra que uma das estratégias utilizadas para manter os cativos sobre controle era exatamente
delegar mais poder, em forma inclusive de algum título de nobreza, para que esses controlassem seus iguais.
38

culinária, etc, estas áreas culturais são vistas como “do outro”. Já a música é vista
como “popular brasileira”, como um produto autenticamente nacional.
Não se pode negar que o samba e seus atravessamentos permeiam todo o
espectro da sociedade brasileira. De um lado, sabe-se que isso foi um artifício
ideológico populista. Mas deve-se considerar apenas o uso que as elites fazem da
cultura popular, ou também as táticas da cultura popular em perverter o que lhe é
imposto?
Talvez o vislumbre disso venha através de uma análise histórica e musical do
conteúdo rítmico em si. Seta nos dois sentidos: a história fomenta a compreensão
dos diálogos musicais, e a música, se analisada com uma ferramenta adequada,
por si só conta a história. Mas que música, com que instrumentos, e
desempenhando qual importância na vida deste povo ancestral e no Brasil hoje?

1.3. Os processo de trocas e sínteses culturais

1.3.1 Os conceitos: biombos e mediadores

Num primeiro momento, é necessário que se incremente a descrição dos


diálogos e confrontos entre culturas. A intenção aqui é utilizar como modelo
analógico à famosa “casa da Tia Ciata”.
Esta, situada na Praça Onze no Rio de Janeiro, teve seu auge nas primeiras
décadas do século passado. Foi um centro aglutinador dum sincretismo do qual a
música popular, a dança, a culinária e outras expressões culturais fazem parte.
Todos os autores com os quais se esta dialogando de maneira mais
sistemática , em especial Mukuna, Sandroni, Vianna e Sodré, aprofundam, ou no
mínimo mencionam a Casa da Tia Ciata, como pólo de intersecção de diferentes
universos culturais.
A configuração geral do modelo é realmente de uma casa. Sua descrição
mais crua se coloca como um tríptico sala/cozinha/terreiro. Desse, pode-se construir
os paralelos raciais -branco/mestiço/negro, de origem - Europa/Brasil/África,
39

organológicos - piano/viola/atabaques, dos ritmos -modinha/samba/batuque, de


autoria - um autor/criação coletiva/étnico anônimo, e assim sucessivamente.
Sabe-se que toda metáfora levada ao extremo corre o risco de um
reducionismo que pode limitar sobremaneira sua utilidade. Mas se configura também
como uma boa oportunidade de, tomadas as devidas precauções, compreensão e
vislumbre de um retrato social, no sentido de trazer à tona detalhes das trocas e
diálogos culturais de uma época.
No presente caso, não se quer necessariamente esmiuçar a própria casa25,
mas utilizá-la como modelo genérico, no que se refere estritamente à relação entre
os elementos constituintes da música popular. Às vezes, toda uma praça pode
assumir características da casa, e “às vezes, todo um bairro pode assumir
características de praça” (SODRÉ, 1979, p. 17).
No caso de Vianna, empresta-se conceito de mediadores culturais (1995) e
com relação a Sodré, o de biombos.

A existência de indivíduos que agem como mediadores culturais, e de


espaços sociais onde essas mediações são implementadas, é uma idéia
fundamental para analise do mistério do samba (Vianna, 1995, p.41).

Começando com Vianna, vários motivos podem levar um indivíduo a


desempenhar tal papel. Para começar, é necessário que exista uma sociedade com
certo grau de complexidade e heterogeneidade, como é o caso do Brasil.
Esses mediadores aparecem em geral como fruto de dois processos diversos.
Às vezes são estrangeiros, e por isso têm a capacidade de olhar com certa isenção
manifestações culturais. Inseridos num contexto sem terem sido criados com valores
morais e estéticos desse, podem apreciar expressões artísticas e julgá-las por sua
qualidade intrínseca, independente de quais camadas sociais ou étnicas essas são
oriundas.
Como exemplo, Vianna comenta um texto do compositor francês Darius
Milhaud, que morou no Rio de Janeiro de 1914 a 1918, uma das personagens a
quem ele atribui essa função mediadora:

25
Não se elegeu especificamente a casa da Tia Ciata por outros motivos a não ser que pelo fato de que é a mais
conhecida. Mas havia muitas outras casas de igual importância e influência à época.
40

Como se vê nessas palavras, não existe nenhuma hierarquia


erudito/popular. Ao contrário, a música e os músicos populares são tratados
com grande respeito e seriedade (também em relação a aspectos da técnica
musical) como se pudessem – como acabaram fazendo – ensinar coisas
importantes e difíceis a qualquer músico erudito (Id. Ibid., p. 104).

Em outros casos, são músicos, que por esse motivo, já se encontravam em


interstícios sociais. Profissionais liberais ou funcionários públicos que tinham uma
forte relação com a música popular.
Uma das propostas do presente trabalho é supor que esses mediadores, no
dia a dia desses diálogos, são os próprios músicos. Essa preocupação advém do
fato que, nos textos onde se trata disso, a ênfase recai sobre os interlocutores do
diálogo entre a sala e a cozinha. Tem-se a impressão de que a maior preocupação
está nas relações entre a música sincrética e sua credibilidade social.
Quando o discurso se refere aos processos de aceitação social de um
fenômeno cultural, que parece ser o que mais interessa a Vianna, essa discussões
podem até ser fundamentais. Entretanto é um tanto inócua quando o foco é o
conteúdo musical em si.
Quando Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda se encontram com
Pixinguinha, como descreve Vianna, o interesse musical deve recair sobre o próprio
Pixinguinha, somado a inumerável quantidade de músicos anônimos que, em sua
labuta diária, realizam essas inúmeras bricolagens entre elementos tão diversos.
Ou seja, existe uma tendência em tratar como mediadores culturais àqueles
que participam do processo de aceitação da música popular entre as camadas mais
esclarecidas e de maior projeção social à época. Mas trazendo tal discussão à
questão da síntese musical propriamente dita, o problema da aceitação não é o que
merece maior destaque.
Mesmo porque nesse processo de abordar a mestiçagem como positiva,
tendo Gilberto Freyre como seu maior mentor, parece que as discussões novamente
incidem sobremaneira nas relações sala/cozinha.
Assim, as pesquisas recaem mais sobre as relações entre “cultura popular” e
a “cultura de elite”, como, por exemplo, o dia em que Gilberto Freyre encontrou
Pixinguinha (VIANNA) e a preocupação em testemunhar a “presença de membros
da elite branca na roda de samba” (SANDRONI). Exceção feita a Wisnik, que se
mostra mais atento à relação entre as pontas: “Da sala de visitas ao terreiro de
candomblé, passando pelo samba raiado” (WISNIK, 1982).
41
42

1.3.2 O músico, esse re-inventor

A construção das canções populares no sudeste do Brasil, em termos de


alturas musicais, é basicamente uma herança portuguesa e, por extensão, européia.
Esse aspecto da organização dos sons, como até hoje se pode averiguar no samba,
é perfeitamente analisável com os instrumentos técnicos da música erudita. São
cadências harmônicas e melodias que podem ser analisadas através dos meios
usuais do universo acadêmico. Não está se discutindo aqui com que grau de
complexidade as técnicas eruditas são empregadas nas canções de samba, apenas
que são.
Já no que se refere ao ritmo, nota-se que as mesmas células rítmicas que
estão numa batucada podem ser encontradas num samba de caráter popular, num
samba de Paulinho da Viola, num disco de Tom Jobim ou numa peça de música
instrumental que seja caracterizada ritmicamente como samba.
Embora as estruturas rítmicas do samba tenham inúmeras nuances, existe
uma série de características comuns a todos. Nota-se que os principais elementos
musicais que são ali apontados têm mais relação com a música africana do que
com a portuguesa.
Para que se apreenda isso no contexto de nossa metáfora da casa, é preciso
eleger uma manifestação musical que esteja ainda, dentro do possível, longe das
influências tonais, a batucada.
Entende-se por batucada essa expressão musical do ritmo como um fim em si
mesmo. Não é, nem nunca foi necessário haver uma canção para que o samba
exista. Em seu formato mais original, apenas com instrumentos de percussão, é que
ele pode se expressar em sua plenitude. E essa forma de tocá-lo acontecia
exatamente, por analogia, no terreiro, no lugar da casa onde as heranças africanas
podiam acontecer sem subterfúgios.
A eleição da batucada como ponto de partida não significa que seja uma
manifestação cultural usual. Pelo contrário, na maioria das manifestações do gênero,
ela vem acompanhada de canto e dança. Esse conjunto de expressões culturais é
constantemente re-inventado.
Entretanto, as estruturas rítmicas parecem atravessar essas diferentes formas
do samba se apresentando de maneira quase incólume. Por isso, devem ser
43

consideradas como “denominador comum” do próprio samba. Detectar a intersecção


parece ser a melhor forma de compreender um espectro que contém várias formas
de música, dança e canto.
Desde a batucada, até que as sínteses e atravessamentos da música popular
ocorressem, eram necessárias escutas diversas. Era imprescindível que músicos
pudessem ter acesso de um lado, às modinhas e outras formas musicais
europeizadas, e de outro, à tradição musical afro-religiosa em seu formato original,
o batuque.
Então os mediadores não eram aqueles que faziam a ponte entre a cozinha e
a sala, mas sim, aqueles que da cozinha podiam fazer a mediação entre a sala e o
terreiro. Através duma verdadeira bricolagem entre as duas extremidades, de formas
tão distintas de se organizar o material sonoro, o samba em suas várias vertentes
vem sendo sintetizado. Astuto, vive se transfigurando.
Isso leva ao outro conceito utilizado aqui, os biombos. Esses devem ser
compreendidos como uma barreira com variado grau de permeabilidade. Assim, se
num extremo existe uma total impossibilidade de transpassá-lo, como, por exemplo,
proibições e perseguições policiais explícitas, no outro, como no caso da Tia Ciata, o
biombo se deixava vazar em todas as direções.

O ‘biombo’ não servia para interditar, mas para marcar uma fronteira pela
qual, sob certas condições, passava-se constantemente (SANDRONI, 2001,
p.106).

O fato de seu marido ser negro, médico e ainda chefe de gabinete do chefe
de polícia no governo Wenceslau Brás, permitia que os bailes, festas e encontros,
muitas vezes denominados “sambas”, pudessem fluir sem que houvesse repressão
sistemática.
Existem vários outros exemplos desses dois extremos, bem como todo o
escopo intermediário. Por exemplo, no contexto pré-abolição, em especial no ciclo
da cana-de-açúcar, acontecia simultaneamente música na Casa Grande e batuques
da senzala. Nesse caso, havia um significativo contingente de crioulos26 que
dormiam na senzala, mas trabalhavam na casa grande. Não eram esses os
mediadores culturais nesse contexto?

26
Utilizo o termo aqui em alusão aos “creoules” norte americanos, que transitavam por certos meandros sociais,
tendo acesso a uma formação musical europeizada, mas ainda sim sofrendo discriminação. Foram também os
criadores do ragtime, que deu origem ao Jazz, e pode ser traduzido como “tempo quebrado”.
44

Havia ainda uma infinidade de posições intermediárias, como, por exemplo,


os mulatos, filhos dos senhores com as escravas, e que acabavam por não
pertencer claramente nem a um universo cultural nem a outro.
Tinhorão defende a necessidade uma certa “diversidade” social para a
gestação da música popular, e a abolição da escravidão contribuiu sobremaneira
para que esse leque de etnias e culturas crescesse consideravelmente. Primeiro
porque, em termos espaciais, mais uma vez o negro foi desterrado. Da África para o
Brasil, dos campos para as cidades. Inicia-se um caótico processo de urbanização
que veio a culminar hoje nas favelas. Vianna, referindo-se ao Rio de Janeiro,
localização da Casa, coloca:

Mas no centro ainda era possível encontrar uma mistura de todas as


classes sociais, inclusive morando lado a lado, o que tornava mais rápida a
circulação das novidades lançadas pelos diferentes segmentos da
sociedade carioca (VIANNA, 1995, p. 113).

Importante salientar que o fenômeno não era apenas carioca. Processos


similares em São Paulo estavam acontecendo, tanto no que se refere aos
movimentos urbanísticos que fomentaram contatos sociais diversos, quanto nesse
desempenho do músico como mediador cultural.

Os bons instrumentistas gerados nos encontros informais nas ruas e


residências ocuparam paulatinamente os inúmeros espaços pagos de
entretenimento, que se multiplicavam por São Paulo (MORAES, 2000,
p.252).

Assim, o que socialmente era periférico, musicalmente acabou sendo uma


central. O interessante é que isso veio a ocupar papel quase pungente na cultura
brasileira. Nesse sentido, a música possui um alto grau de permeabilidade que
permite que esses processos de síntese aconteçam. Soma-se a isso uma situação
urbanística ímpar que possibilitou o aparecimento de sujeitos sociais diferenciados, e
com isso , a intensificação de contatos heterogêneos.
As oportunidades de profissionalização que vão gradativamente surgindo
nesse novo contexto citadino acabam por se tornar uma das poucas possibilidades
de ascensão social para as camadas mais baixas da população. Desnecessário citar
45

o enorme vínculo, até hoje, entre cor e posição social27, bem como o fato de que a
música, ao lado dos esportes, continua sendo uma das poucas áreas que
possibilitam esse fluxo entre camadas sociais.

1.3.3 Os diálogos musicais

Pode-se aceitar com certa naturalidade o caráter híbrido da música popular.


Mas como colocar de maneira imparcial quais são os elementos que nela mais se
destacam?
A primeira possibilidade é vê-la como uma reunião entre “canções
portuguesas” e um acompanhamento no qual existe o ritmo afro-brasileiro. Pode-se
entender que o ritmo é um simples “pano de fundo”, em que canções populares,
resquícios de formas mais elaboradas, são apropriadas pela população menos
preparada musicalmente. Essa utiliza o ritmo, que se encontra disseminado em tal
universo social, para acompanhar pequenas peças.
Como seria inverter tal perspectiva? Considerá-la fruto de um processo no
qual o ritmo aparece travestido de uma canção? Colocando melhor: o ritmo, forma
musical ligada inclusive à religiosidade afro-brasileira, não poderia, em seu estado
bruto, tornar-se objeto de interesse artístico pelas camadas mais esclarecidas da
população. Então, para atravessar os biombos que se encontram entre os diferentes
níveis sócio-econômicos, e, por analogia, entre os cômodos da casa, ele joga com
canções de moldes mais palatáveis.
Com isso, pode acessar os meios de difusão que estavam se estabelecendo
à época. Entrando no universo das gravações, pode inclusive ser propagado pelas
ondas do rádio. Com isso, é ouvido por parcelas enormes da população que nem
imaginam o que seja um terreiro ou um batuque. Feitiço decente: quem pensa estar
escutando um samba, esta ouvindo “o” samba.
Esse processo se configura com uma tática, no sentido que De Certau (1990)
emprega o termo, a de tornar generalizado em termos de aceitação cultural popular
o que era específico de uma comunidade.
Era uma tática de falsa submissão: o negro acatava o sistema tonal
europeu, mas ao mesmo tempo o desestabilizava, ritmicamente, através da
sincopa (SODRÉ, 1998, p. 25).

27
Sobre esse assunto, “Cor, Profissão e Mobilidade”, João Baptista Borges Pereira.
46

E não é por coincidência, mas sim por precisão, que no contexto de uma
grande banda de música popular, a reunião dos instrumentos percussivos na
chamada seção rítmica, seja até hoje chamada de “cozinha”. Isso reforça de várias
maneiras o que está sendo colocado aqui como uma forma de “conhecimento
cifrado” 28.
Sandroni (2001, p. 215) teve a curiosidade de salientar, ao analisar
socialmente a ficha técnica de um disco atual, que os nomes (ou a forma de nomear)
dos músicos estão de acordo com sua origem social. Assim nota-se que os
instrumentistas de cordas são de origem européia e aparecem com seus nomes
completos. Já os dos sopros aparecem denominados por seus apelidos. Muitas
vezes nem se mencionam aqueles que foram, e ainda são, estigmatizados como
ritmistas.
No caso do olhar musical, o objeto de discriminação intelectual é o próprio
ritmo. Dados seus vínculos sociais e raciais, este conhecimento continua oral, tácito,
e codificado.
Para que se detalhe melhor muitos desses aspectos musicais aqui
abordados, nada melhor que partir de um texto musical. Nas maneiras de se
escrever ou não elementos musicais, já se sobressaem pontos relevantes. É uma
espécie de análise da própria técnica de notação ou melhor ainda, de suas
limitações.
Os exemplos a seguir são trechos extraídos de um arranjo de Rui Carvalho
(Os 16 primeiros compassos da grade completa estão no anexo I, paginas 117 e
118), para a peça “Upa Neguinho”, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri. É um
arranjo para Big Band, onde se encontram discriminados, de cima para baixo,
saxofones, trompetes, trombones e sessão rítmica, respectivamente. Essa última,
denominada no jargão da área “cozinha”, aparece dividida em quatro linhas: guitarra,
piano, baixo e bateria.

28
Recentemente fui convidado para a prestação de um serviço como músico profissional para, junto de uma
seção rítmica e os sopros de uma orquestra, executar arranjos de música popular. Soube, então, no primeiro
ensaio, que a orquestra havia tentado executá-los com seus próprios percussionistas. A tentativa não vingou, e
fomos então chamados. O mais interessante é que o que tínhamos a mais para que a música acontecesse não era a
capacidade de ler algo que a orquestra não sabia. Sabíamos exatamente o que não estava escrito e, no entanto,
esse era um fator imprescindível para que o concerto se realizasse.
47

No alto, à esquerda, a determinação do gênero.

Exemplo 1

Nas linhas dos sopros, uma escrita complicada, devido ao alto grau de
contrametricidade do ritmo da melodia (exemplo2, letra B). Decodificável em suas
alturas e durações, mas não em sua natureza sutil. Nesse exemplo, vê-se o “nipe”
de saxofones.

Exemplo2
48

Na linha para bateria e percussão, apenas as subdivisões de trechos do


arranjo, sem nenhuma marcação a mais (exemplo 3), exceto quando existe uma
figuração rítmica realizada por todo o grupo29. Vale dizer, sem conhecimento prévio
de onde, como e quando se dá o samba, este é um pedaço de papel sem nenhuma
utilidade.

Exemplo 3 (Drums)

Na partitura para piano ou guitarra, vê-se a cifragem, que explicita a harmonia


da peça, mas não o ritmo dentro do qual estes acordes devem ser executados
(exemplo 4). O músico popular simplesmente detém esse conhecimento desde o
momento histórico em que o sintetizou, pois, em paralelo a sua formação técnica de
conhecedor das “alturas” musicais e suas combinações, ele deve conhecer todos os
códigos rítmicos de cada peça que for participar, condição sine qua non para uma
correta atuação.

Exemplo 4

Assim, gradativamente esse ambiente cultural popular e informal produziu,


na década de 1930, músicos profissionais da mais alta qualidade, que se
constituíram em autênticos intermediários entre o universo da cultura de
elite e da popular urbana, entre o formal e o informal e entre o espaço
público e o privado (MORAES, 2000, p. 252).

Pode-se observar ainda que essa variedade de escutas, bem como uma
formação sintética e híbrida, pode gerar, como realmente faz, músicos da mais alta
qualidade. E, pelos exemplos acima, percebe-se que o tipo de formação musical

29
Esse recurso, na linguagem de arranjo, é denominado “convenção” .
49

depende da linguagem de cada instrumento. E quanto mais ligado ao ritmo, menos


explícito e mais cifrado se apresenta o texto musical.

1.4 A casa da Tia Ciata

Muito disso pode ser visualizado através de uma analogia com a casa da Tia
Ciata. Os autores já citados, entre outros, acordam que:

A economia semiótica da casa, isto é, suas disposições e táticas de


funcionamento, faziam dela um campo dinâmico de re-elaboração de
elementos da tradição cultural africana (SODRÉ, 1998).

O samba é uma re-elaboração de elementos de origens diversas. Os sujeitos


agentes dessa tinham de estar num ponto privilegiado da casa. Talvez não social,
mas musicalmente. Era um “lugar” rico em “escutas”, de onde se ouvia tanto a sala
quanto o terreiro. Seu nome: cozinha.
Enquanto agentes, tinham necessariamente um ouvido na sala. Precisava
incorporar em seu repertório estrutural e harmônico as modinhas, as valsas, enfim,
toda uma forma de combinar os sons baseados nessa herança tonal e formal
européia. Essa, como se sabe, é até hoje a bagagem cultural empregada no samba
em sua condição de canção.
O outro ouvido, entretanto, estava atento e sendo impregnado, ou emergindo
desde uma memória coletiva, pelo ritmo no seu sentido mais puro, livre da canção.
Essa “escuta” merece atenção. Para que se compreendam diálogos, é básico que se
conheçam as várias matérias primas que fazem parte do mesmo.
Na maioria dos casos em que a Casa aparece na bibliografia sobre o samba,
os autores citam Muniz Sodré (1979). Mas talvez quem mais se dispôs a aprofundar
suas análises, ainda que partindo do modelo proposto por Sodré, foi Wisnik:

“A riqueza da metáfora admite a tentativa de tomá-la como base de um


mapa da vida musical da capital do Brasil no começo do século, pois a
tensão entre o salão e o terreiro, entre o que se mostra e o que se esconde,
separadas por biombos que vazam sinais nas duas direções, é significativa
do próprio processo de interpenetração de culturas que vinha ocorrendo”
(WISNIK, 1982, p.155).
50

Wisnik também é quem propõe uma analogia do caminho que se inicia no


terreiro, e segue em direção à sala. Elege então, como marcos da polaridade social,
o “ritual religioso popular” e o “ritual estético burguês”, respectivamente.

Como expressão da marginalidade dos grupos dominados, a ocupação de


lugar através de biombos corresponde a uma estratégia popular de
resistência onde, procedendo por avanços e recuos, escaramuças e
escamoteamentos, reage-se à exclusão e firma-se uma identidade
polarizada pelo seu ponto mais encoberto: a prática religiosa (Id. Ibid.,
p.160).

Partindo daí, qual seria a descrição do que acontece no terreiro? Em primeiro


lugar, a idéia de “resistência” já pressupõe um olhar ideológico que advém do
dominador. Não se trata de resistência, e sim, conforme De Certeau, de um saber
não sabido.

Há, nas práticas, um estatuto análogo aquele que se atribui as fábulas e


mitos, como os dizeres de conhecimentos que não conhecem a si mesmos.
Tanto num caso como no outro, trata-se de um saber sobre o qual os
sujeitos não refletem. Dele dão testemunho sem apropriar-se dele. São
afinal os locatários e não os proprietários do seu próprio saber fazer (DE
CERTEAU, 1994, p.143).

Destaca-se do ritual religioso, a proeminência do ritmo, um saber não sabido


por excelência. Sem autor, de propriedade ‘étnica’, representa essa prática que
organiza descontinuidades. Mais que isso, dada sua natureza, tende a expressar
essa mescla na qual a própria estrutura musical engendra e é engendrado pelos
receptores/transmissores da informação sonora.

Transmissor e receptor se convertem na própria informação advinda do som


(SODRÉ, 1979, p.20).

Pode-se dizer que na direção da sala ao terreiro sobrepõe-se uma forte carga
ideológica. Porém, independentemente do ideológico do tipo “conciliatório” do
samba, vale destacar que no atravessamento do terreiro ao salão, não havia nada
mais do que o ritmo negro, essa “síntese de sínteses” (Id. Ibid).
Na construção do universo social formal, de ideologia que se confunde com a
realidade, pressupõe-se que da camada mais alta para a mais baixa o trânsito é
livre, e que os biombos aparecem muito mais marcados no sentido contrário. Falsa
premissa.
51

Em primeiro lugar, no lugar da idéia de que os negros “dominados e


perseguidos” escondiam-se para realizar seus rituais, muitas vezes acontecia o
oposto. Sempre houve rituais “interditos”, onde não era aceita a presença do branco.
A posição de dominados é uma circunstância histórica que não deve pressupor que
todo negro andava por aí ansiando por aceitação social.
Em segundo lugar, essas táticas utilizadas para transpassar os biombos, de
aparência sutil, podem ser muito mais pungente do que se quer aceitar: “Manobra
delicada”, diria De Certeau, que consiste em encaixar a exceção “etnológica” num
vácuo do sistema sociológico.
Exatamente por não saber o que fazem, o que fazem tem mais sentido do que
se dão conta. O próprio ritmo pode ser visto assim. Quando participa da síntese, é
objeto de mediação cultural. Quando simplesmente influencia, não media nada, e
sim impõe, toma o espaço através de uma eficaz “inconsciência”.
Essa, não entendida de forma bruta, mas sim com todas as escaramuças e
subterfúgios, agindo nos interstícios da cultura do dominador, eficazmente astuta.
Segundo De Certeau, “inconscientes, entretanto coerentes” (Id. Ibid., p.124).
É prioritário para a elaboração de uma visão mais técnica do objeto musical,
que o ritmo, enquanto expressão artística desinteressada (Mario de Andrade), tenha
como arquétipo exatamente a potência funcional da sua origem interessada.
Funcional no seu âmago, servia a um contexto antropológico realmente
desconhecido para a sociedade moderna. Essa funcionalidade, essa origem
interessada, faz com que procedimentos quase técnicos, didáticos, no contexto de
sua própria cultura, sejam mal interpretados.
Por exemplo, as atribuições “perversamente sexuais” aos ritos e danças afro-
brasileiros. Numa simples leitura de Mukuna, percebe-se que havia, em parte desses
rituais na África, uma função iniciática, com o intuito de preparar os jovens para o
casamento.

Deve-se notar também que a iniciação aqui não é a da puberdade, mas,


sim, a que precede o casamento; razão pela qual o principal assunto é a
educação sexual (MUKUNA, 2000, p. 92).

Esse é apenas um exemplo, entre inúmeros, dos mal entendidos gerados


quando se procura compreender uma cultura com olhos de outra. Ainda a título de
exemplo, pode-se encontrar, nos poucos livros sobre a capoeira, um olhar que,
52

transmitido via oralidade pelos próprios jogadores/lutadores/dançarinos, não se


encontra nos livros da história oficial30.
Assim, Nestor Capoeira, em seu livro “Capoeira, os Fundamentos da Malícia”,
trabalha com a idéia de que de 1810-1830, período que compreende a
independência, houve uma guinada nas estratégias dos negros em lidar com o
sistema dominador.

Por seu lado, os negros, comprovada e aceita a impossibilidade de uma


vitória militar, voltam-se para o lado cultural, que se torna fundamental: a
cultura se torna uma arma (CAPOEIRA, 2000, p.28).

Ainda que se corra o risco de interpretar tais colocações como oriundas de


um “autor menor”, o interesse da citação é o de não se atribuir sempre uma posição
passiva à figura do negro. Pelo contrário, nota-se que havia certos níveis de
organização, embora as notícias acerca desses fatos só existam no plano da
oralidade, ou por via de poucos indivíduos que se arriscaram a escrever sobre o
assunto.
Pode-se inclusive identificar o que De Certeau chama tática ou astúcia, com o
que, no âmbito popular brasileiro, denomina-se malícia ou ginga. A noção musical de
ginga será aprofundada adiante, na tentativa de se propor uma visão mais técnica
de um assunto tão avesso a tal tipo de abordagem. Aqui as colocações se
restringem a procedimentos sócio-culturais de certas camadas sociais, e mais
exatamente, a alguns indivíduos inseridos nas mesmas.
O assunto acaba por desembocar na figura do malandro. Largamente
discutida por diversos autores, esse personagem toma vulto como mediador e
influenciador de certos processos musicais. Personalidade que só pode vir a existir
quando há suficiente “diversidade social” num determinado aglomerado urbano,
pode ser considerado um dos mediadores anônimos.
Sujeito que se sente à vontade em não seguir determinações sociais vigentes,
nem estar submetido à esfera sagrada da liturgia africana, acaba sendo, em sua
aparente indisciplina, um verdadeiro pontifex entre planos culturais distintos.

30
Tanto os “livros” quanto a “história oficial” são considerados ferramentas de controle e dominação.
53

Afinal, o capadócio se expressa melhor exatamente nos pontos onde as


fronteiras podem ser maleáveis. De fato, sua astúcia (De Certeau) ou malícia
(Capoeira), é que torna os biombos flexíveis. Sua singularidade acaba por devassar
essas fronteiras.

A exposição cabal dos cômodos contíguos da vida musical dependia de


momentos mais acentuados de verdadeiro devassamento dos biombos
culturais, quando as restrições que separam as práticas musicais de grupos
e classes são suspensas e as diferenças expostas de maneira simultânea
(WISNIK, 1982, p.162).

Acrescente-se à citação que, além de momentos particulares, sempre houve


indivíduos que, dados seus atributos ímpares, transpassavam os biombos:

A fartura dos convites é evidente sintoma da popularidade do capadócio,


possivelmente mesmo junto a pessoas de melhor situação econômica
(SANDRONI, 2001, p.159).

Ainda sim, Sandroni traça sua trajetória desde malandro até compositor. Não
parece necessário que, para sua consagração, esse tenha de chegar a compositor.
E o músico? Sua importância está exatamente em, uma vez tendo acesso desde o
terreiro até a sala, poder estar com o violão no primeiro, ou a percussão no segundo.
Essas escutas diferenciadas são os pré-requisitos que possibilitam os diálogos que
originam a música popular. Melhor ainda, são como catalisadores amalgamando
esses diversos materiais sonoros.

1.5- Ritmo e gesto


Visto que o presente trabalho procura restringir-se as estruturas rítmicas do
samba, evitou-se a todo momento discutir méritos que fossem alheios a fenômenos
musicais propriamente ditos. Ao se trabalhar com qualquer outra esfera de
expressão conectada a isso, poderia se por em risco essa necessária delimitação.
Entretanto, não se pode negar que, num dado momento, toda a bibliografia
visitada menciona as relações ritmo/gesto. Existem aqueles que não conseguem
aceitar um sem o outro. E, é claro, vertentes que isentam o ritmo dessa correlação
tão estrita. Segue então um pequeno panorama da situação, no intuito de trazer à
tona tais elementos para uma reflexão sobre o assunto.
Mukuna descreve a situação na África como um conjunto interligado,
colocando que uma expressão não existe sem outra. Portanto, é um conjunto de
54

elementos funcionais ritualísticos, que vai mostrar que dança e música são
expressões inseparáveis.
Entretanto, embora a associação música dança deva ser considerada como a
“expressão total” de um dado ritual, somado inclusive aos “adereços corretos e o
celebrante tradicionalmente designado”, Mukuna acrescenta:

Quando um informante enfatiza o fato de que o padrão rítmico apenas


determina o passo da dança, ele quer dizer que por si mesmo o padrão é
não funcional (MUKUNA, 2000, p.187).

Na história da música afro-brasileira, em especial nesse momento de início


dos processos de urbanização (1870) e do estabelecimento de uma mínima
diversidade, Tinhorão vai definir sua visão das relações música/dança/gesto.

Nascido da maneira livre de dançar os gêneros de música em voga na


época – principalmente a polca, a schotish e a mazurca -, o maxixe resultou
do esforço dos músicos de choro em adaptar o ritmo das músicas à
tendência aos volteios e requebros de corpo com que mestiços, negros e
brancos do povo teimavam em complicar os passos das danças de salão
(TINHORÃO, pequena, p. 59).

Como se sabe, até hoje nos rituais religiosos afro-brasileiros, os movimentos


e danças são sempre definidos ou dirigidos pelos “pontos”, ou seja, os ritmos
básicos de cada entidade ou orixá . Continua a dúvida: o gesto define o ritmo, como
quer Tinhorão, ou o ritmo define o gesto?
Squeff concorda com Tinhorão afirmando que “os ritmos afro-brasileiros nada
mais são do que a temporalização dos gestos das danças” (1982 p.44).
Independente de ser verdade ou não, o autor mostra certo preconceito embutido em
suas palavras: “nada mais são”. Isso é um reducionismo em relação ao que se quer
mostrar aqui, que esses ritmos são formas musicais mais elaboradas do que
parecem a primeira vista.
Nesse contexto é fundamental que se isente a música da dança. É fato que a
dança não existe sem música1 , mas a recíproca não é verdadeira.
Assim, Sandroni coloca:

31
De novo, excluam-se aqui formas de dança moderna e/ou contemporânea.
55

Em teoria, não se pode dizer que uma música qualquer determine de modo
intrínseco a coreografia correspondente, nem deduzir um estilo musical de
uma necessidade coreográfica.(2001, p. 137).

Difícil saber a que “teoria” se refere o autor, mas parece mais improvável que
uma herança gestual fosse capaz de gerar um ritmo do que o contrário. O ritmo pode
convidar indivíduos a realizar certos movimentos. Lembrando também que no
transplante da África para o Brasil, os negros só trouxeram seus corpos. Juntos com
seus corpos, seus ritmos e gestos. Esses gestos já eram uma síntese dos gestos da
África ocidental, dada a mistura de etnias trazidas ao país.
Vale lembrar também que, olhando os números de mortes, durante a espera
na África, no transporte e nas difíceis condições de vida como força de trabalho em
terras brasileiras, pode-se seguramente afirmar que houve uma seleção forçada de
melhores espécimes. Ou seja, os que sobreviveram a todas essas dificuldades são o
que há de melhor na raça negra.
O gesto leva uma vantagem sobre o ritmo, ele é observável em qualquer
relação social. Sua influência é inevitável. Apenas a presença do negro na vida
social do país é suficiente para que o movimento de trabalho ou qualquer outro seja
visto pelo atores sociais que ali se encontram.
E a música, por sua vez, é a condição primordial senão para o gesto, ao
menos para a dança. O fato é: ritmo e gesto podem estar sempre juntos, dado que
os corpos negros são os veículos dessa herança. Talvez por isso sejam as
influências mais marcantes da cultura africana.
56

Capitulo 2

Pode-se dizer que o populario (sic)


musical brasileiro é desconhecido até de nós
mesmos. Vivemos afirmando que é riquíssimo
e bonito. Está certo. Só que me parece mais
rico e mais bonito do que a gente imagina. E
sobretudo mais complexo

Mario de Andrade

Premissas musicais para a análise do “ritmo”

Este capítulo trata de questões que envolvem o fato do samba nascer do


diálogo entre as culturas brasileira e africana, e que, portanto, não pode ser
analisado através de outras premissas musicais que não suas próprias. Na ausência
desses instrumentos, procurou-se enumerar e justificar uma série de fenômenos
musicais que não são em geral vistos como relevantes pela música erudita, mas
podem ser entendidos como alicerces da música popular.
O próprio ritmo, no caso de qualquer expressão musical dita popular,
desempenha função tão fundamental, que se torna responsável pela determinação
do gênero. Seja numa bateria de escola de samba, numa canção de João Nogueira,
ou num grupo de samba-jazz, podem-se encontrar figuras e células rítmicas
similares que permitem a classificação dessas diferentes expressões musicais
dentro de um mesmo gênero.
Apreciando o fato de que existe um desenho melódico, uma estrutura
harmônica e uma linguagem rítmica, essa última é a responsável pela determinação
da “linguagem” que denomina o gênero. Deve-se lembrar também que, embora
exista a possibilidade de se empreender uma abordagem analítica da melodia e
harmonia pelas ferramentas convencionais, o ritmo esta presente também nesses
57

elementos. Vale dizer, no caso de uma canção, o ritmo da melodia e harmonia


estão, na sua estrutura rítmica, dentro da linguagem do samba.
E ainda que se observe a diversidade de figuras rítmicas, que aparecem de
forma mais ou menos recorrente em diferentes situações ou formações musicais, os
fenômenos aqui tratados englobam essa variedade, referem-se a um espectro mais
amplo do que detalhes de variações. Todos os itens enumerados poderiam se
referir, até mesmo, aos ritmos32 em geral, mas a título de delimitação, considera-se
como objeto o universo rítmico do samba.
Carlos Sandroni (2001, p.131) em seu trabalho “Feitiço Decente”, buscou
compreender “Essa separação do samba em dois tipos, que teria ocorrido no final
dos anos 1920”, tentando apontar quais foram estas mudanças. Neste trabalho
interessa mais sua colocação, quando afirma logo à introdução que “a batida não é
um simples fundo neutro sobre o qual a canção viria passear com indiferença. Ao
contrário, a primeira nos diz muito sobre a segunda” (Id. Ibid., p.14).
Para o enfoque proposto aqui, mais do que aprofundar questões sobre
mudanças no samba, pretende-se avaliar qual é a importância do ritmo para a
música popular. E, se possível, mostrar que o ritmo realmente não é um simples
“pano de fundo”.
Para isso, a idéia é trabalhar esse ritmo afro-brasileiro como uma prática
musical em si mesma. Ou seja, o foco dessa análise não é um ou outro samba, mas
o “samba”, enquanto conjunto de células rítmicas características e simultâneas.
A hipótese é que o samba se apropria de canções para transpassar biombos
sócio-culturais e, assim, chegar à escuta de um público maior. É como se a canção
fosse o pano de fundo, ou a máscara de frente do samba. Olhando assim, o ritmo
toma um vulto maior do que o que lhe tem sido reservado.
Para justificar tal suposição, o primeiro aspecto a se considerar é que todas
as canções do gênero têm o ritmo como unidade, como denominador comum. Caso
fossem reduzidas a apenas ritmo, notar-se-ia o mesmo, dentro, é claro, do universo
de variações que a grande família desse ritmo apresenta33, e que será trabalhado no
capítulo 3.

32
O sentido de ritmo nesse trabalho é exatamente sua acepção popular. No caso apenas do Brasil, essa família é
enorme, e conta, entre muitos outros, com o Baião, Xote, Xaxado, Maracatu, Congada, Afoxé, isso sem
mencionar a própria família do samba, que conta com mais de dez denominações diferentes.
33
Na Enciclopédia de Música Brasileira da Publifolha, estão listados 13 tipos ou variedades de samba, embora
nesse caso, estas especificações nem sempre são baseadas em critérios musicais, e sim sócio-culturais.
58

Na busca de uma definição, ainda que temporária, da idéia de ritmo,


poderíamos dizer que este é “um conjunto de células ou padrões rítmicos
simultâneos e suas variações34”. O problema desta definição é que se pode inferir
que é possível “inventar”, compor, criar um ritmo.
E isto não parece factível. Não é possível inventar um ritmo, dado que suas
células não são criadas de maneira arbitrária, mas sim transmitidas oralmente
dentro de uma determinada cultura, ou pelos encontros e diálogos entre mais de um
universo musical.
Pode-se até dizer que é possível inventar um ritmo, mas esse jamais teria o
fundamento necessário para ser considerado como tal. Qual seria o seu lastro
cultural? Como se dariam seus efeitos nos ouvintes? Como esse poderia ser
reconhecido?
Outro argumento que reforça a idéia de que não é possível inventar um ritmo
se refere ao fato de que esse é sempre fruto de uma criação coletiva e atemporal.
Ninguém senta e compõe células rítmicas, a ponto de essas se tornarem claramente
um ritmo. As células do samba têm, até certo ponto, origem em rituais e costumes
de vários tipos na África e desempenhavam uma importante função dentro dessas
cerimônias. E continuam desempenhando, em contextos sagrados e profanos.
Assim Santos, em sua tese de doutorado acerca dos ritos Nagô, coloca:

Os sons produzidos pelos instrumentos agem sós ou em conjunção com


outros elementos rituais. Constituem formidáveis invocadores de elementos
sobrenaturais (1976, p. 48).

No processo de transposição do enorme contingente de negros para o país


durante a escravidão, esses sons foram para cá trazidos, preservados, adaptados e
re-inventados através de um processo histórico ímpar. E, embora não interesse aqui
a discussão sobre a “autenticidade” ou “pureza35” do samba, a escolha e o uso
destes padrões são extremamente rigorosos.
Mesmo considerando o fato de que estas linhas rítmicas podem ser
modificadas, até mesmo o vocabulário dessas variações é herdado, aprendido,

34
Entenda-se por variações aqui as nuances, as pequenas modificações pelas quais, ao decorrer da execução,
pode uma linha rítmica variar.
35
Essa discussão toma muito tempo de diversos autores e artistas ligados ao samba, inclusive Hermano Vianna.
Como cientista, não toma posição, e sim discute o tema. Nesse trabalho, o fato é que não interessa a polêmica, já
que o foco é conhecer melhor o samba e, se possível, seus próprios paradigmas musicais.
59

oralmente preservado. Esse é um dos fatores que dificulta tanto a aprendizagem de


um ritmo por parte de um músico que não conheça a cultura na qual esse surge.
O importante agora é enumerar as características diferenciadas através das
quais o ritmo pode ser abordado e analisado.

2.1. Simultaneidade e polirritmia.

O primeiro aspecto que cabe ressaltar acerca da literatura sobre o samba é


que, nos poucos casos em que se explicita musicalmente suas células36 , as
discussões são construídas sobre apenas uma linha rítmica.
O estudo da música africana tem mostrado que a sofisticação de suas tramas
rítmicas se caracteriza pela abundância de células rítmicas, somadas sempre a idéia
de polirritmia, de células rítmicas simultâneas.

Como maior componente inicial do ‘quente’ ritmo africano, então, nós temos
as polirritmias percussivas (Waterman, 1943, p.25).

O que leva à conclusão de que o estudo do ritmo deve se dar através da


análise não de uma célula, nem de um grupo de células, mas sim de um conjunto de
linhas rítmicas simultâneas.
Esse é um diferencial importante, pois inúmeros aspectos musicais têm sua
percepção modificada quando células rítmicas, que em geral acontecem em
diferentes registros, são ouvidas em conjunto. Um exemplo marcante de alteração
da percepção é a própria acentuação, pois é necessário saber quais são os tempos,
dentro de um compasso, que são marcados como fortes ou fracos, de acorde com o
universo que se está considerando.
Importante também lembrar que essa simultaneidade tem relação direta com
o coletivo, pois, diferente de um baterista moderno que pode executar três ou quatro
linhas rítmicas, cada uma dessas linhas é executada por, no mínimo, um músico,
seja no contexto ontológico ou numa escola de samba atual.
No caso dessas agremiações, um grupo de músicos toca os mesmos
instrumentos e a mesma linha rítmica. Essa é definida nos ensaios sem nenhum uso
de partituras. Do começo ao fim da peça, essas figuras rítmicas são executadas em
uníssono, dentro de cada naipe. São idéias musicais bastante contramétricas,

36
Ver Sodré, 1998, Mukuna, 1975, Sandroni, 2001
60

transmitidas por um processo que se dá oralmente, ou seja, através da vivência de


ensaios em grupo, sem nenhum auxílio de notação.
Trata-se de um conhecimento tradicional, praticado presencialmente e, caso
se pretenda realizar uma abordagem analítica, fundamental, que se leve em conta
suas várias linhas simultâneas. Primeiro, por que isso é uma característica marcante
da herança polirrítmica africana e, segundo, porque analiticamente uma linha pode
ter uma leitura diferente caso seja compreendida sozinha ou em relação a outras.

2.2. A contrametricidade como regra no emprego da


síncopa.

Quando o ocidente (1320)37 alcança a técnica para a notação das durações


dos sons, baseia-se no que se pode chamar literalmente de “divisão” rítmica. Uma
breve descrição desta técnica é que todas as figurações rítmicas são definidas por
relações matemáticas de super ou subdivisão de uma pulsação pré determinada.
Assim, uma vez tomada tal marcação de tempo, constrói-se um conceito de duração
que será de metade, dobro, e assim por diante, sempre baseado numa relação
algébrica.
Some-se a isto a definição de compasso, processo que “divide a música em
pequenas partes de duração, igual ou variável”. Nesse, também aparece implícito
quais são os tempos fortes e fracos, portanto onde seriam os pontos “naturais” de
apoio dentro deste. Num compasso 4/4, por exemplo, existe uma pré-definição, no
qual se considera o primeiro tempo forte, o segundo fraco, o terceiro meio forte e o
último fraco.

37
Em 1320, Philip de Vitry publica o “Tratado Ars Nova”, em que pela primeira vez aparece organizado o
sistema de notação de durações empregado até hoje.
61

Assim lê-se no Compêndio de Teoria Elementar da Música, de Osvaldo


Lacerda:

De acordo com sua maior ou menor acentuação na execução


musical, os tempos são chamados fortes ou fracos. O primeiro tempo é
tradicionalmente considerado forte. Os demais são considerados meio fortes
ou fracos. Exemplo:

c) compasso quaternário – primeiro tempo forte, terceiro tempo meio forte,


segundo e quarto tempos fracos.

Exemplo 1

Quase desnecessário dizer que a concepção empregada para se compor ou


executar qualquer tipo de peça que tenha como ponto de partida tais premissas será
influenciado sobremaneira pela concepção que a cultura na qual esta foi gerada
tenha. Ou seja, se um artista criado dentro de uma tradição escreve uma peça, o faz
a partir de pressupostos rítmicos pré-definidos em termos de acentuação do
compasso e nas formas de subdivisão da própria pulsação.
Na tentativa de definir o conceito de síncopa dentro deste universo, Cooper
and Meyer colocam:

Como empregado nesse livro, o termo ‘sincopação’ se refere a uma nota


que entra onde não há o pulso do nivel métrico primário (o nível onde o
pulsação é contada e sentida) e onde o próximo pulso do nível métrico
primário é também ausente (uma pausa) ou suprimido (uma ligadura)
(COOPER at al. , 1960, p. 100).
62

Interessa aqui o conceito que todo o acento que reforça a pulsação é tido
como primário. A idéia é que uma vez definido o pulso, se os ataques das notas
coincidem com o pulso ou com divisões simples como da metade ou dobro, a
natureza desses será cométrica. Em outras palavras, quando os acentos de um
ritmo coincidem frequentemente sobre a própria pulsação, o nível métrico primário,
esse ritmo é denominado cométrico.
Em oposição, toda vez que a acentuação ocorre em tempos “fracos”, a
princípio mais “inesperados” na medida em que não reforçam o pulso original,
define-se a noção de síncopa. Nesse trabalho denomina-se sincopação essa forma
de relacão que troca o apoio a marcação pelo ato de deslocar o acento e, de certa
maneira, colocá-lo em um ponto que crie surpresa38.
E, se num determinado tipo de música, os acentos tendem a ser
constatemente colocados nestes momentos “inusitados”, como é o caso do samba,
pode-se determinar o estilo como sendo de características contramétricas.
Waterman concorda e coloca de maneira mais sintética a contrametricidade
de fraseado “off-beat”, o que pode-se traduzir como “fora do pulso”.

A música popular brasileira utiliza uma grande gama de metros múltiplos da


polirritmia africana, e numa extenção mais ampla, a característica de um
ritmo melódico de fraseado “off-beat (1943, p. 24).

Vale mencionar que na Àfrica, universo cultural e musical onde esses ritmos
nasceram, não havia nem mesmo a idéia de pulsação no sentido ocidental do
termo. Tanto cometricidade como contrametricidade são conceitos que só existem
dentro de uma visão letrada e analítica de música.
No exemplo 2, pode-se verificar que a escrita usual, quando utilizada para os
ritmos de origem africana, resultam numa notação complexa, através de recursos
tais como ligaduras de valor e pontos de aumento. Vale lembrar que, ainda assim, a
escrita é apenas uma aproximação. A partitura completa consta no anexo IV.

38
Essa é uma definição do trompetista Wynton Marsalis, músico que no mesmo ano foi agraciado com dois
prêmios Grammy, um em música erudita e outro em Jazz.
63

Exemplo 2

Note-se como no compasso 5 e 6, os únicos pontos que aparecem cométricos


à pulsação estão no segundo tempo desses compassos, o que, como veremos
adiante ao tratar acentuação no samba, faz sentido. Ainda sim, a figura é de
síncopa, o que remete o acento para o segundo quarto de tempo. Somente nesses
compassos pode-se observar muitos aspectos que caracterizam a rítmica do samba
e, em especial, o uso que se faz da síncopa.
Note-se que a figuração básica é exatamente a citada como sendo aquela
que caracteriza a música brasileira, a figuração semicolcheia/colcheia/semicolcheia:

Nesses compassos cinco e seis, aparecem as duas opções citadas por


Cooper an Meyer, a pausa primeiro tempo ( tempo forte, segundo Lacerda) do
compasso cinco, e uma ligadura no primeiro tempo do compasso seis. No segundo
caso, o que se nota é uma prática usual na música popular, o chamado
39
“adiantado ”, cujo o procedimento é adiantar por um quarto de tempo a entrada do
próximo acorde, junto com a melodia.
Fica também caracterizado algo que em certos casos aparece de maneira
ainda mais sistemática, um grupo ou seqüência de sincopas ligadas.

39
Existe, entre os músicos do cenário instrumental paulistano atual, toda uma terminologia ainda não
formalizada, mas compreendida por todos.
64

Exemplo 3

O resultado desse tipo de figuração rítmica, muito característica do samba, é


um sentido polirrítmico marcante, já que essa estrutura pode ser entendida como
uma seqüência de colcheias, figuração a princípio mais cométrica e regular se vista
fora de uma contexto.

Exemplo 4

Porém, quando executada deslocada um quarto de tempo em relação ao


pulso, exerce uma forte sensação de deslocamento, de sincopação, e de
simultaneidade de eventos musicais que se deslocam uns em relação aos outros.
Voltando à observação dos compassos 5 e 6, sabe-se que um músico
formado nos moldes letrados habituais, terá dificuldade para executar tal tipo de
divisão rítmica. E ainda que possa realizá-la, não a acentuaria de acordo com a
linguagem do samba.
Um músico popular brasileiro, que conheça o gênero, está habituado a este
tipo de figuração. E, mais interessante, num naipe de escola de samba, essas
figurações acontecem quase que ininterruptamente, e são aprendidas e ensaiadas
por via oral, auditivamente, gerando efeitos musicais que “fariam inveja a Stravinski
e Vila-Lôbos” (ANDRADE, 1980, p. 186).
65

Portanto, o assunto deve ser colocado por dois prismas que se somam. Um é
o fato de que a escrita musical é, até certo ponto, inadequada para os ritmos
africanos, inclusive porque os entende como contramétricos, ou seja, contra uma
suposta métrica padrão. Outro aspecto é entender que, para a música brasileira em
que o ritmo tem origem africana, a contrametricidade é regra. Acontece todo o
tempo, é característica dela.
O que não se deve deduzir apressadamente é que, pelo fato de ser
transmitida por via oral esta música é menos complexa. Ela apenas deve ser
analisada por outro viés, inclusive para que se possa dimensionar, dentro de seu
próprio universo, quais são mais ou menos sofisticadas, ou de maior ou menor
qualidade. Vale dizer que o uso ostensivo de síncopas caracteriza uma rítmica
altamente contramétrica, mais fácil de ser aprendida por meio da oralidade, do que
através da leitura musical propriamente dita. E assim, quanto mais contramétrica,
mais interessante dentro desse universo sonoro.
Essa questão se defronta com o fato de que esse conhecimento transita em
meios sócio-culturais que muitas vezes não estão interessados em processos de
análise, lembrando De Certeau, porque “trata-se de um saber não sabido”40 (1994,
p. 143).

2.3. O sentido cíclico dos ritmos

Uma síntese musical forjada a partir do diálogo entre diferentes culturais se


dá de diversas formas. Assim, se é de comum acordo que, apesar de as variações e
adaptações das células rítmicas do samba, essas têm uma origem afro-brasileira, é
também facilmente demonstrável que a forma de organização dos sons numa
canção de samba (em oposição apenas ao ritmo) é de herança luso-européia.
Essa não é a única forma pela qual uma síntese musical pode se dar, mas é,
com certeza, uma possibilidade. Sabe-se que o contexto erudito privilegia a questão
das “alturas” musicais e suas combinações, e as formas africanas privilegiam o
“pulso”, a natureza rítmica da música. Obviamente, esta é uma colocação um tanto

40
O professor Dr. Carlos Stasi, em sua pesquisa sobre o reco-reco nas festas populares do Brasil, certa vez, ao
ouvir determinado músico amador tocando tal instrumento, ficou tão interessado naquelas células rítmicas que
pediu autorização para visitá-lo no dia seguinte com o intuito de escrever aquelas figuras. Porém, durante a
visita, o músico não conseguia repetir o que tocava no dia anterior. Indagado por que, o músico respondeu: não
dá, eu só consigo com todos tocando junto. O fato me foi descrito pelo professor.
66

genérica, mas que serve no momento para discutir um pouco questões relacionadas
a ciclicidade.

Só a música e o ritmo hipnótico são catárticos, e só os ritmos que se


repetem apenas com leves transformações são realmente hipnóticos
(SQUEFF, 1982, p.44).

Novamente, não é intenção deste trabalho definir ou discutir a extensa gama


de adjetivos empregados por inúmeros autores, acerca dos efeitos de figuras
rítmicas de natureza cíclica e, até certo ponto, repetitivas. O ponto que parece
inegável é que esse tipo de música tem claramente efeitos sinestésicos e
dinamogênicos.
Insistindo na comparação entre música européia e africana, de certa forma,
pode-se afirmar que essas duas tradições musicais têm em sua natureza um
arquétipo cíclico. Afinal, o que norteia o estudo formas musicais é, em primeiro lugar,
como se dão as repetições das partes de uma dada peça. Pode-se observar no
exemplo a seguir a “canção”, forma musical que aparece tanto na música erudita
como na popular:

Exemplo 5: a forma canção

[A] [A] [B] [A]

Tradicionalmente, cada parte tem oito compassos, totalizando trinta e dois,


num exemplo de métrica regular.
Entretanto, na linha evolutiva da música erudita, cada vez mais o
“desenvolvimento” foi sendo valorizado como uma destreza composicional41. Isso
por que sob a ótica formal, é sempre mais fácil simplesmente repetir uma parte, do
que criar um desenvolvimento, como faziam os grandes autores da música erudita.
Nesse, alia-se imaginação musical e coerência estrutural, tarefa só possível a
compositores do porte de Mozart, Beethoven, entre outros.

41
Como exemplo, pode-se observar o primeiro movimento de qualquer das nove sinfonias de Beethoven.
67

Assim, a forma sonata até certo ponto abre mão da ciclicidade para que se
introduza um grande desenvolvimento em sua parte central, ainda que mantenha a
volta ao tema no final dessa como característica cíclica. Já no início do século
passado, os franceses escreveram “poemas sinfônicos”42 com um grau enorme de
desprendimento em relação a ciclicidade ou mesmo aos conceitos de forma.
Na música popular, a ciclicidade em termos formais acabou limitada pela
herança tonal portuguesa, base do samba em seu formato canção.

A influência portuguesa foi a mais vasta de todas. Os portugueses fixaram


nosso tonalismo harmônico; nos deram a quadratura estrófica. (ANDRADE,
1980, p. 185).

Essa ciclicidade em nível formal faz com que a grande maioria das canções
populares funcione na métrica cíclica de 32 compassos, a chamada forma canção,
exemplificada acima.
Faz-se necessário então diferenciar os conceitos de ciclicidade. A música
ocidental erudita começa mais ligada a ciclicidade. Essa é devido a vários fatores,
que sofrem modificações ao longo da história. Um desses é exatamente a
sistematização do tonalismo, que, por muito tempo, esteve vinculado a uma
obrigação de se concluir trechos musicais no acorde de tônica. Esse paradigma gera
uma sensação de resolução que, caso não seja o fim da peça, propicia uma
inevitável sensação de recomeço.
Entretanto, sua evolução segue em direção a um desprendimento desse
senso cíclico. A própria evolução da composição, principalmente do período barroco
em diante, foi gradualmente propondo outras possibilidades mais abertas. E ainda o
desenvolvimento de formas instrumentais mais “puras”, que não se prendiam a
certas quadraturas necessárias às danças, contribui para a evolução das formas
musicais.
Na música popular, em especial na canção samba, vários fatores, tal como a
quadratura estrófica, deixam-na realmente presa e limitada a um espectro restrito de
possibilidades formais. Isso é um dado verificado até hoje, pois se nota que não
existe praticamente nenhuma inovação formal nesse contexto.

42
O poema sinfônico é uma forma considerada moderna de composição, em que a liberdade de criação é tal que
não é necessário que se repitam partes da peças, ou que se retome o tema ao final. Como exemplo, pode-se citar
“La Mer”, de Claude Debussy.
68

A quadratura melódica do samba não me aprece derivar da formula métrica


e estrófica dos textos. Tenho antes a convicção de que foi uma influência
artificial, imposta exclusivamente pela melodia quadrada européia
(ANDRADE., 1941, p.155).

Como se pode observar na citação, Mario também atribui essa pobreza


maneira mais singela, limitada, que os negros foram capazes de interiorizar as
influências européias e suas melodias “quadradas”.
Entretanto, quando o ritmo é executado como um fim em si mesmo, num
batuque, não existe tal tipo de metrificação fixa. Quando acontece essa prática
musical, sem nenhuma obrigação de acompanhamento, o que se pode chamar de
música instrumental puramente percussiva, não existe nenhum elemento que o
obrigue a um reinício. O que acontece nesse caso, como se pode observar na
primeira batucada analisada no capítulo 3, são dois processos.
De um lado, a rítmica fechada do pequeno ciclo, em geral de dois compassos.
Historicamente se convencionou que a escrita do samba é feita no compasso
binário, provavelmente devido ao movimento da linha grave, executada pelo surdo,
considerado o instrumento principal nessa música43. Entretanto, o instrumento que
executa a clave do ritmo, o tamborim, tem uma fraseologia de quatro tempos. Daí a
consideração que o menor metro possível é o de dois compassos.
Tomando por base essa figuração do tamborim, a clave44 do samba, suas
células rítmicas são sempre em frases de no mínimo dois compassos, pois existe
uma convenção de escrever esse ritmo em 2/4. Observe o exemplo 3, a forma mais
simples de escrita desta frase.
Exemplo 6

A unidade cíclica mínima seria então de dois compassos. Difícil é


compreender que o número de variações possíveis tende a infinito, entretanto as

43
Embora esteja se referindo ao samba rural paulista, Mario de Andrade observa: “instrumentos
sistematicamente de percussão, em que o bumbo domina visivelmente”. Mais modernamente é que o bumbo veio
a ser chamado surdo.
44
A clave, ou chave, é exatamente a linha rítmica que mais marca ou caracteriza determinado ritmo.
69

figuras rítmicas que aparecem nessas estão rigorosamente dentro do “idioma”,


dessa linguagem. Eis alguns exemplos dessas variações:
Exemplo 7

Exemplo 8

Exemplo 9

Segundo, ao lado desse pequeno ciclo de dois compassos, deve-se examinar


o “período” longo, se é que se pode chegar a atribuir periodicidade a essa forma
musical. O que se observa, de fato, é uma rítmica aberta discursiva, que procede por
adição infinita. Só existe início por que alguém começa a tocar. E só existe fim por
questões fisiológicas, ou seja, não se pode tocar para sempre. Fora isso, não
existem amarras métricas.
Tome-se como exemplo três percussionistas que estejam tocando juntos,
ouvindo-se e improvisando. Muitas idéias rítmicas vão sendo propostas, executadas
e variadas, de acordo com a competência musical e a extensão do vocabulário
desses músicos. O tamanho, a duração ou a intensidade da execução vão depender
apenas da disposição de seus executantes e do contexto (festivo, ritual, informal) no
qual essa se realiza.

Talvez um só elemento esteja ordenado na manifestação do samba, pelo


menos dos que tenho observado, o ritmo. Os instrumentos de percussão
reinam absolutos. Ora, isso dificulta ainda mais a colheita de sambas, textos
e melodias, que são absorvidos pelo barulho dominador. O ritmo domina, e
no grupo dançante um frenesi fisiológico que se manifesta por todo o corpo,
com liberdade (Id. Ibid., p. 118).
70

Nesse processo, vão se criando ciclos e períodos que se tornam novos ciclos,
e assim sucessivamente. Como tudo é improvisado, dentro dos rigores da
linguagem, o resultado musical influencia e é influenciado pelo contexto humano
onde acontece. Assim, os resultados variam de acordo com espaço e tempo.
Assim, por questões fisiológicas, rituais, funcionais ou temporais, o ritmo pode
se manifestar de diferentes maneiras. Isso não quer dizer que o contexto mude
necessariamente as figurações rítmicas utilizadas. Mas como existe certa liberdade
formal, dado que é uma manifestação musical que não está pré-determinada em
partitura, existe uma variedade que se refere ao andamento, a intensidade e ao
timbre. Os dois primeiros estão mais à mercê da disposição física dos executantes, e
o terceiro se modifica dada a instrumentação disponível no momento.

2.4. A não linearidade como forma musical

A idéia de construção de um todo linear, seja num livro, num filme, numa
canção ou numa palestra é uma presença marcante em toda a “cultura ocidental”.
Em geral parte-se do princípio de que algo bem construído tem que ser introduzido,
desenvolvido, atingir seu ponto culminante, e finalmente chegar as suas conclusões.
Ora, isso é um paradigma cultural que só a partir de meados do século
passado começou a ser questionado. Será que a percepção é linear? O que pode se
afirmar com tranqüilidade aqui, sem a pretensão de discorrer sobre áreas que não
são objeto deste estudo, é que a percepção do ritmo é não linear.

Ao contrário da música ocidental, porém, o ritmo africano contém a medida


de um tempo homogêneo (a temporalidade cósmica ou mítica), capaz de
voltar continuamente sobre si mesmo, onde todo fim é o recomeço cíclico de
uma situação (SODRÉ, 1988, p.19).

Sem entrar na questão “mítica” mencionada pelo autor, o que se deve levar
em conta por hora é que esta não linearidade influencia sobremaneira a maneira de
ouvir, sentir e perceber esta música. Não existe no ritmo uma idéia de começo meio
e fim, portanto de passado, presente e futuro. Não se trata de uma peça em que
existe uma expectativa em relação ao seu ápice, ou a chegada do refrão.
Nesse viés, o ritmo privilegia a noção psicanalítica do estar “aqui e agora”, um
mergulho na temporalidade em si mesma, já que abre mão tanto de atingir um ponto
culminante, como de funcionar dentro de uma estrutura lógica formal.
71

Então existem duas categorias no sentido de representação que a música


pode fazer valer. Numa peça altamente estruturada, como, por exemplo, numa
sinfonia de Beethoven, pode-se encontrar, uma relação estreita entre a organização
da linguagem escrita e a construção da obra.
Assim, a peça consta de várias partes que se concatenam através de uma
lógica que ligada ao desenvolvimento da escrita. Introdução, apresentação,
desenvolvimento do tema, “movimentos”que se assemelham a capítulos, com um
uso de motivos recorrentes para que o “assunto” tenha unidade, e uma coda, que
retoma o assunto e o conclui num grandioso final
Nesse aspecto, a canção popular reflete, de maneira mais simplista, esse tipo
de estrutura linear. É verificável, ainda que numa estrutura muito menor, essa
ciclicidade. Dois motivos principais são responsáveis por essa composição cíclica:
em primeiro lugar, a tradição tonal. Partindo de certo centro harmônico, a peça
necessariamente retornará a esse tonos, proporcionando uma sensação de
encerramento que, por vezes, será concomitante ao novo re-início. Tomando-se
como exemplo a já exemplificada “forma canção”, a ciclicidade será demarcada
exatamente por períodos de 32 compassos.
Em segundo lugar, é inegável a presença da palavra cantada. E a métrica
musical advém muitas vezes palavra cantada, da “poesia”. Considerando que essa
“letra” é construída dentro de suas próprias características formais, em muitos casos
a música se submete a ela. O universo formal destas canções é restrito devido,
entre outras coisas, a métrica da poesia que constitui a canção e a métrica
harmônica tonal utilizada pelas mesmas.
Ao se avaliar o ritmo apenas como “pano de fundo”de uma canção, isto o
insere numa espécie de amarra métrica, numa ciclicidade, portanto num conceito de
linearidade que ele em sua origem não necessariamente tem. Não existe uma
obrigação de que o ritmo esteja submetido aos conceitos europeus de antecedente e
conseqüente, de pergunta e resposta, de quadratura, forma canção e outros
elementos formais ou fraseológicos.
É claro que estes parâmetros, enquanto parte de uma natureza musical
primeira, ontológica e arquetípica, portanto comuns a todas as “músicas”, também
aparecem no ritmo. Mas não com o restrito compromisso métrico que o samba,
quando em seu traje canção, acaba se submetendo. E, nesse caso, também não há
distinção entre o tipo de samba que se observe. Apenas as premissas citadas – seja
72

ele tonal, seja ele pano de fundo de um samba enredo ou bossa nova - já o
submetem a essa perspectiva linear.
O que é importante salientar aqui é que um ritmo existe muito além da
canção, portanto mais livre do conceito formal fechado tonal europeu, ou mesmo de
outras formas cantadas do samba mais “antigo”, tal como estrofe/refrão, solo/grupo,
etc.
Essa liberdade que o ritmo como um fim em si mesmo possui permite que
sua percepção aconteça de forma não linear, e provavelmente é isso que dá
margem ao grande leque de efeitos atribuídos ao mesmo, tais como hipnótico,
catártico, entre outros.
No ritmo do terreiro, na batucada, na música percussiva instrumental, não há
tema. A clave não é o tema, é o micro-ciclo ao qual não se pode sequer atribuir
começo e fim. Não há conclusão; se há disposição física, em principio ele poderia
continuar infinitamente. Sua construção se inicia da mesma maneira que se
desenvolve. Cada retrato é um fim em si mesmo, cada som convida a um mergulho
no que vai se seguir, e assim não existe expectativa, apenas transe.

Todo som que o indivíduo emite reafirma a sua condição de ser singular,
todo ritmo a que ele adere leva-o a reviver um saber coletivo sobre o tempo,
onde não há lugar para a angústia, pois o que advém é a alegria
transbordante da atividade, do movimento induzido (SODRÉ, 1998, p. 21).

2.5. As conseqüências da oralidade na transmissão


dos signos musicais

Na história da música ocidental, descobriu-se uma maneira de


escrever a variação das alturas antes de se sistematizar a notação de duração.
Aceita-se como data o ano de 1320, quando é publicado o “Tratado Ars Nova”. A
presença exclusiva dos intervalos de uníssono e oitava, mas o texto que servia como
métrica de onde se construía a música, permitiam que a oralidade conseguisse dar
conta satisfatoriamente da questão da divisão musical.

Entretanto, como a evolução seguiu em direção a polifonia, pode deduzir daí


que quanto mais polifônico, mais contrapontístico, mais necessária se faz a precisão
das durações. A partir daí, todo o estudo da rítmica na música ocidental e sua
73

relação com a escrita se baseiam na proporcionalidade das durações. Assim, se


uma semínima dura um tempo, a colcheia dura meio, e assim sucessivamente. No
exemplo a seguir, nota-se que num compasso em 4/4, as figurações são construídas
dentro desse sistema.

Exemplo 10

Nas culturas orais, a aprendizagem da música não se dá pelo meio entendido


hoje como educação musical formal. Antes de apontar as conseqüências musicais
da transmissão oral no que se refere especificamente aos signos musicais, é
importante recordar alguns fatores que refutam hierarquias equivocadas entre escrita
e oralidade.

Agora se reconhece que a linguagem oral é um instrumento e uma riqueza


fundamental da mente; a escrita, embora importante, é sempre secundária
(OLSON, 1994, p. 25).

E ainda:
Nós, usuários da escrita moderna, é que temos crenças especiais sobre a
leitura e a interpretação que fazem com que outras orientações pareçam
equivocadas ou primitivas (Id. Ibid., p.116).

Existe, a partir daí, uma margem para se afirmar que o fato de uma expressão
artística se dar via oralidade não pressupõe nenhuma hierarquia em relação a
outras, no que se refere a sua complexidade. Todavia, o grau de elaboração,
também nesse aspecto, deve ser avaliado por um viés diferenciado.

As culturas que não dispõem de escrita para preservar palavras não só têm
recursos físicos para preservar a informação factual como também
empregam recursos poéticos, inclusive recursos simbólicos, como a
homofonia, a metonímia e a metáfora para tornar “memoráveis” as
informações mediante a preservação de sua forma verbal (Id. Ibid., p. 116).
74

Essa referência serve para colocar não só que há preservação, mas também
que, dependendo do tipo de conteúdo, o nível de precisão quiçá será maior. Esse
parece ser o caso dos ritmos. Como suas células têm origem nesse passado
arquetípico, sem nenhuma relação com a escrita, sua transmissão será mais eficaz
via oral.
Isso significa que toda a concepção das células rítmicas do samba aconteceu
antes ou fora do conceito letrado de rítmica, de divisão musical, portanto livre de
uma certa matematização destes padrões ou células rítmicas.
Novamente a literatura sobre a música popular se constrói acerca de
discussões sobre células rítmicas “escritas”, e por falta de fontes de outra sorte, até
mesmo pesquisas sobre como deveria ser determinado ritmo em uma época
específica foram feitas sobre arquivos musicais escritos. Isso pode até auxiliar na
determinação de algumas das figuras básicas utilizadas, mas as sutilezas que
caracterizam um ritmo não podem ser abarcadas pela escrita. A escrita não inclui as
variações, o ritmo estava submetido à canção, não há notação polirrítmica, apenas
para mencionar alguns parâmetros já citados.
O que se percebe então é que, quando um processo de composição, bem
como o de posterior leitura e execução, nasce dentro de um parâmetro matemático
de tempo, como é o caso da musica ocidental e sua notação,o resultado terá um
grau de vinculação muito grande a essa forma de conceber a divisão musical. Nesse
sentido, a técnica influencia sobremaneira o resultado artístico.
Já no caso da música transmitida de maneira oral, as figuras rítmicas, embora
possam ser escritas de maneira aproximada, estão absolutamente livres de qualquer
noção cartesiana de divisão do tempo em sua concepção primeira. Ao nascer numa
cultura em que toda a aprendizagem se dá por via oral, o que se repete é o que se
ouve, não sendo necessário que se decodifique, no sentido métrico ocidental, o que
está sendo executado.
As células rítmicas, os acentos e variações são pincelados sobre o tempo.
Não se podia nem mesmo num contexto mais ancestral, definir algo como sendo a
pulsação. Essas figuras musicais não estão necessariamente nem longe nem perto
da escrita, apenas não a levam em consideração.
A dificuldade enfrentada aqui só pode ser sanada através do anexo II da
presente pesquisa, onde se poderá fazer a comparação entre uma mesma célula
75

rítmica do samba em três representações diferentes: escrita, executada de maneira


matemática, ou seja, de acordo com a métrica “exata”, e, num terceiro momento,
executada com todas as peculiaridades e sutilezas que só são preservadas pela
oralidade, por quem as aprendeu de forma direta, ouvindo e vivenciado essas
figuras.
Mario de Andrade, embora se referindo a um cantador, demonstra bem certas
conseqüências desse tipo de relação extra-formal que caracteriza a música popular:

O cantador aceita a medida justa rítmica justa sob todos os pontos de vista
a que a gente chama Tempo mas despreza a medida injusta ( puro
preconceito teórico as mais das vezes) chamada compasso. E pela adição
de tempos, talequal (sic) fizeram os gregos na maravilhosa criação rítmica
deles, e não por subdivisão que nem fizeram os europeus ocidentais com o
compasso. (1962, p. 36)

De qualquer forma a intenção aqui é apenas apontar algumas conseqüências


musicais imediatas do fato de determinada linguagem musical, uma vez nascendo e
existindo num contexto cultural que se baseia na oralidade tem características
singulares, só perceptíveis via documento sonoro. Vale dizer que também nesse
caso a técnica influencia diretamente o resultado musical.

2.6. A concepção de compasso na música ocidental

Dentro da cultura européia, durante muito tempo, foi pequeno o espectro de


fórmulas de compasso utilizadas. Novamente não se pode dizer em toda a música
de concerto européia, dada as inovações introduzidas pela música contemporânea.
Essa música se desenvolveu muito mais em direção à polifonia, bem como em seu
desenvolvimento formal.
Mas para que se verifique tal limitação, basta uma comparação dessa música,
por exemplo, com a música indiana, tradição de mais de cinco mil anos, e que não
se vale da harmonia, no sentido europeu. É de se imaginar, e facilmente verificável
para quem se dispuser a estudá-la, que uma música tão antiga que não desenvolveu
a harmonia nem a polifonia, tenha desenvolvido de maneira profunda suas
concepções de melodia e ritmo.
Assim, no caso dos ciclos rítmicos indianos, existem “talas” (denominação dos
ciclos no contexto indiano) com uma gama muito variada de possibilidades, tais
76

como ciclos de 5, 7, 13, e outros, que na música ocidental seriam chamados de


irregulares.
Aceitando as premissas anteriores, e considerando a música popular
brasileira, em especial a canção no samba, verifica-se que quase todo o repertório é
escrito em 2/4, com as frases de tamborim em ciclos de dois compassos.
Ora, num compêndio de teoria musical, como o já citado de Osvaldo Lacerda
(exemplo 1, p. XXX), na aula sobre compassos será colocado que um compasso em
4/4 pressupõe tempos fortes e fracos a priori. Só que, no samba, é senso comum
entre os músicos, e fato musical, que o segundo tempo é que se considera forte, já
que esse segundo tempo é exatamente o acento mais constante e marcante nesse
ritmo, executado pelo surdo, como fica claro no capítulo 3.
A primeira vista não se pode medir as conseqüências em nível analítico,
sinestésico, e mesmo paradigmático desta diferença. Para tal, seria necessária uma
mudança significativa nas ferramentas de análise da educação musical formal. Toda
a idéia de anacruse, de terminação masculina ou feminina, de cabeça de tempo,
entre outros, estaria em posta em questão. A própria noção de divisão rítmica teria
de ser considerada de outra forma.
Colocando de maneira sucinta, o tempo forte numa é fraco na outra, e vice-
versa, o que impossibilita uma abordagem através dos mecanismos usuais de
compreensão da métrica.

E si a métrica das nossas danças obedece no geral a obsessão brasileira da


binaridade, os ritmos, os movimentos são variadíssimos e com eles o
caráter também (Id. Ibid., p. 67).

Entretanto, se não é possível mensurar tais desdobramentos, o mínimo que


se deduz daí é que realmente é necessário, tanto num processo de análise quanto
de ensino, que não se pretenda compreender o ritmo através dos processos usuais
de análise. Insistência preventiva: na cultura em que o ritmo foi gerado não havia,
obviamente, nenhuma concepção de compasso.

2.7. Autoria versus criação coletiva: temas em debate

Tinhorão inicia assim sua “Pequena história da música popular”:


77

Por oposição a música folclórica (de autor desconhecido, transmitida


oralmente de geração a geração), a música popular (composta por autores
conhecidos e divulgada por meios gráficos, como as partituras, ou através
da gravação de discos, fitas, filmes ou videoteipes) constitui uma criação
contemporânea de aparecimento de cidades com um certo grau de
diversificação social (1975, p. 5).

Em primeiro lugar, o ritmo é realmente transmitido de geração a geração,


porém escrever “de autor desconhecido” parece supor que exista um autor, e esse é
desconhecido. Pelo que foi visto até agora se pode dizer, no caso do ritmo, que esse
é uma espécie de domínio público étnico.
Assim, ninguém compôs “o” samba. As células rítmicas africanas e seu
processo de mutação no desterro de seus portadores, são por assim dizer,
recebidas, intuídas, trazidas à realização sonora pelos negros desde a África até o
Brasil.

Visto sob esse prisma, o “eu”africano só existe quando esta enquadrado por
outros elementos ( sociedade, mito, terra, etc) que o completam; é o
existente, que é um conjunto do ser com todos os elementos imaginários
que constituem seu cosmo – é o conjunto de valores vitais de sua tradição
que completam sua identidade (MUKUNA, 2000, p.200).

Pode-se notar que mesmo a noção de autoria individual é um paradigma, uma


construção ocidental que hoje é mais homogênea no planeta, devido, entre outros, a
interesses sócio-econômicos. A construção do eu individual é assunto complexo que
não cabe no escopo desse trabalho, mas, em última instância, isso desemboca na
historiografia do samba, em quem vai receber os direitos autorais.
Do outro lado, em comunidades onde mais tempo vigoraram valores africanos
de “ser”no mundo, e onde se cultivava o ritmo como expressão musical, houve
dificuldade até de se instituir a noção de individualidade.
Por isso, pode-se notar um processo gradativo, que se inicia na total ausência
de autoria do ritmo em sua forma “pura”, ancestral. Advindo de um caráter étnico,
reforça alguns dos argumentos colocados anteriormente como o fato de que não se
pode inventar um ritmo.E, muito provavelmente, isso é um dos fatos que empresta a
ele sua força, seu poder de expressão.
Num segundo momento, como, por exemplo, nos encontros da Casa da Tia
Ciata, o coletivo e individual têm delimitações mal definidas. Os processos de
criação partiam de improvisos individuais alternados a estrofes e quadras coletivas,
a ponto de não ser possível atribuir exatamente autoria a inúmeros sambas.
78

Desse ponto até hoje, com a mercantilização desse processo através do


advento das gravações e sua divulgação por meios de comunicação em massa, a
autoria é hoje algo claro.
Entretanto, ao se observar um samba, pode-se notar com facilidade que esse
contém o samba, determinante do gênero. Portanto, ainda que uma ou outra peça
tenha esse ou aquele autor, há sempre algo de anônimo, de coletivo, o próprio ritmo.
Vale dizer, em música popular existe sempre algo pronto sobre o qual vai se
construir uma peça, o ritmo.
Isso possibilita que um músico popular, ao se colocar diante elementos que
constam numa partitura desse tipo de música, tais como melodia e cifra, saiba como
se comportar diante da peça. Caso toque um instrumento melódico, acentua e
ornamenta de acordo com gênero. Se sua participação é num instrumento
harmônico, sabe como conduzir o ritmo na harmonia, e se toca instrumentos de
percussão, executa as figurações do samba (vide exemplos no capítulo 3).
Lembrando sempre que não existe apenas um samba, mas um grande universo de
possibilidades, ainda que todos tenham a mesma denominação geral.
Esse é um dilema interessante que perpassa, de certa forma, toda a
discussão desse trabalho. Caso se eleja os contornos harmônico-melódicos como
característica principal da autoria, o sistema atual está correto. Mas, se todos os
sambas contém o samba, se o ritmo não é pano de fundo, e sim, o principal
elemento dessa expressão artística, não é possível atribuir a ninguém os créditos
por sua criação.
Mais importante na citação de Tinhorão é a ressalva feita: “com um certo grau
de diversificação social”. Por que é tão importante, para a realização da música
popular, que exista tal diversificação?
Porque essa é uma música de síntese. Porque sua existência só se tornou
possível através de um processo de bricolagem musical, de diálogos culturais e
confrontos e concílios étnicos. Talvez a melhor definição para música popular seja:
uma forma musical que contém ritmo, no sentido abordado por esse trabalho.
79

2.8. A ginga e a questão da oralidade

Em cada navio, invisível é lógica, embarcava a Rainha Jinga.


(CASCUDO, 1999, p. 40).

Nota-se, pela epigrafe acima, que Jinga era uma personalidade africana, meio
histórica, meio lendária e, como mostra Cascudo, presente até hoje em inúmeras
cantigas populares, principalmente as Congadas.
Numa definição para suingue, lê-se: “Elemento rítmico do jazz, de pulsação
sincopada, e que caracteriza esse tipo de música”. Nessa, como era se esperar, não
há menção do que seja esse elemento, apenas que se refere a alguma
característica rítmica peculiar.
De fato, ginga, suingue, balanço, bossa, jogo de cintura, são todas
expressões usualmente empregadas no Brasil em inúmeros contextos tais como
futebol, música e, até mesmo, na maneira de lidar com a vida e as situações que ela
oferece. Tem-se a impressão também de que existe uma compreensão disso.
Principalmente entre os músicos populares, a expressão é empregada como sendo
um fator objetivo: determinado músico tem suingue, outro não.
Mas existe uma definição? O que é exatamente ginga? Será possível uma
definição musical mais precisa?

Tal como é empregado na música popular não temos de discutir o valor da


síncopa. É inútil discutir uma formação inconsciente. Em todo caso afirmo
que tal como é realisado (sic) na execução e não como está grafado no
populario impresso, o sincopado brasileiro é rico (ANDRADE, 1962, p. 37).

Andrade já reconhecia uma distância entre a escrita e a execução, fato que


quase pode ser utilizado como uma definição de ginga. Como? Ginga poderia ser
colocada como a distância entre escrita e execução, no que tange aos ritmos
populares. Mas isso não é o suficiente. Que distância é essa? Como mensurá-la? E
no caso de ser apenas uma questão de acentuação, e não de métrica?
Entretanto, não se pode concordar que é inútil discutir uma formação
inconsciente. Inútil discuti-la com os parâmetros usuais da educação musical formal,
80

mas o que se propõe aqui é exatamente partir de outras premissas, para que se
torne útil versar sobre o assunto.
A questão da inconsciência é sutil: inconsciente é menos que consciente?
Mario de Andrade a considera inconsciente pelo fato de ser domínio público ou
étnico? Não se pode aprofundar questões relacionadas à consciência, pois essa é
uma discussão fora do campo dessa pesquisa, mas inúmeros pontos podem ser
frisados num viés musical.
O primeiro aspecto a se considerar se refere à própria idéia de transmissão
oral de figuras rítmicas. Como já colocado, se um indivíduo aprende música pelos
moldes formais, via escrita, tenderá sempre a traduzir matematicamente as
figurações rítmicas que tem de executar. Novamente, a técnica influencia
diretamente o resultado. Portanto, se a aprendizagem da rítmica e a própria
concepção da notação se dá por moldes métricos matemáticos, essa é sua
referência técnica, seja no ato da escrita ou da execução dum texto musical.
Em oposição, se outro indivíduo aprende via oralidade, não há qualquer
preocupação rítmica com relação o ritmo. O que acontece é uma aprendizagem
dessas figuras via imitação, e com isso, a preservação de qualidades sutis e
ancestrais dessas células que simplesmente “acontecem” no tempo. A tentativa de
escrevê-las será sempre uma aproximação. Um músico que conhece determinado
ritmo, ao lê-lo, sabe transpô-la de volta à vida com seu “sabor” original. Caso
contrário, restará apenas uma figura rítmica entre várias, provavelmente equivocada
em sua acentuação, na duração de cada figura e na sua colocação em relação ao
tempo.
Vimos acima que este traço formal - a maior ou menor contrametricidade
das varias versões de uma mesma melodia – pode ser relacionado à maior
ou menor pertinência dos enunciadores à tradição oral ou erudita. Em outras
palavras, as diferentes versões rítmicas não são socialmente neutras
(SANDRONI, 2001, p.215).

A partir de um ponto de vista social, Sandroni atribui versões mais


contramétricas a camadas mais baixas da população, onde o aprendizado tende a
se dar muito mais por via oral. Numa abordagem menos sociológica o que se retém
daí é que quanto mais oral, menos matemático, e se já é possível utilizar tal
terminologia, com mais ginga.
Outra questão diretamente ligada à ginga é o som quebrado. Esse é um som
extra, obtido de várias maneiras de acordo como instrumento utilizado. Para que se
81

possa escreve-lo, é necessário um novo código de notação. Ainda assim, a forma


como este som peculiar é utilizado engendra muitas variações não regradas, que
resultam num certo tipo de casualidade aprendida via oral, tornando-o avesso à
própria idéia de escrita.
Novamente delimitando a discussão até o advento da música contemporânea,
que incorpora o ruído de inúmeras formas, pode-se dizer que, no contexto da música
erudita, esses sons seriam considerados imprecisões ou ruídos.
Já nos ritmos populares, o chamado “som quebrado” é ferramenta
fundamental para que o ritmo se expresse em todo o seu potencial. Assim, nas
poucas tentativas que se fizeram no sentido de criar métodos de aprendizagem ou
escrita dos ritmos para os instrumentos típicos na música popular brasileira, forjou-
se uma legenda na qual o som quebrado tem papel fundamental.
Assim, o berimbau, por exemplo, tem três sons: a corda solta, a corda
pressionada e a corda tocada de leve. Nesse último, deve-se encostar o dobrão na
mesma, produzindo, assim, um som de altura indefinida e forte função rítmica. No
exemplo 11, vê-se a legenda utilizada para tal som que, no caso das tradições
relacionadas ao berimbau, é denominado escracho.

Exemplo 11

Escracho: obtém-se o escracho encostando levemente o dobrão na corda e,


ao mesmo tempo, batendo a vareta na corda (Junior et al., 1987, p. 5).

No caso do tamborim também se obtém, além do som da baqueta que


percute o couro, um som por baixo desse com dedo médio da mão que segura o
instrumento, fazendo marcações e células sutis que, somadas aos ataques mais
claros, permitem a otimização de suas figuras e células rítmicas.
Como já visto, apenas fatores como transmissão via oralidade, som quebrado
e um alto grau de contrametricidade já seriam suficientes para limitar sobremaneira a
82

possibilidade de se escrever o samba, ou algumas de suas linhas rítmicas. Porém,


existe mais um fator central, que é a questão das variações ou improvisações.
Sob uma ótica erudita, a tendência é que se denomine um ritmo como
ostinato. Vale dizer uma obstinação em repetir ininterruptamente cada uma das
linhas rítmicas do samba. A diferenciação que deve ser feita é que, no caso de uma
figura escrita inúmeras vezes em seguida, obtém-se um resultado praticamente
igual. Não é possível considerar absolutamente igual, porque existe sempre um fator
humano na execução que impossibilita que qualquer repetição seja completamente
idêntica.
Porém, no caso dos ritmos, o que acontece é que a cada nova repetição45
existem pequenas variações, cujo espectro de possibilidades é regido, como já visto,
pela capacidade de seus executantes em ouvir seus companheiros e “conversar”
musicalmente, bem como pela competência e repertório de figurações e
possibilidades desses músicos.
Em oposição, um músico competente, entretanto desconhecedor da tradição
do samba, poderia, com certa facilidade, aprender as figuras padrão, as linhas mais
básicas de cada instrumento ou naipe. Mas ensinar quando, como e onde essas
variações são pertinentes é tarefa árdua. Possível, mas demanda anos de
convivência, exatamente a premissa para que a transmissão de conhecimentos por
essa forma fundamental de preservação da cultura humana, a oralidade, se dê de
maneira eficaz.

45
Embora se possa verificar no capítulo 3 algumas dessas variações, seria uma contradição afirmar que essas
seriam percebidas apenas via escrita, pois isso vai de encontro às afirmações feitas aqui. Já no anexo que contém
as gravações, com acuidade auditiva, percebe-se tal fenômeno.
83

Capítulo 3

Estruturas rítmicas do samba: algumas análises

Este capítulo se propõe a analisar algumas questões sobre o ritmo brasileiro,


em especial o samba, através das premissas que estão colocadas no capítulo 2.
Pode-se enumerar como tópicos a simultaneidade, contrametricidade, ciclicidade,
acentuação do compasso e ginga. Vai-se também sugerir outras ferramentas.
Partindo do que autores relevantes para este trabalho afirmam acerca do
assunto, pretende-se mostrar que, embora seja possível sintetizar grandes famílias
de ritmos em algumas linhas rítmicas, deve-se ressaltar peculiaridades dessas
linhas. Além disso, resumir um grande grupo de ritmos numa “time line” não é o
suficiente, devido a premissa da simultaneidade. Mais um ponto onde cabe a leitura
através dos parâmetros propostos no decorrer desta pesquisa.
Existem outros, como por exemplo, a “ginga”, pois mostra que algumas
“sutilezas” da execução são, de fato, impossíveis de serem escritas. A oralidade
então se transfigura em forma precisa de transmissão de conhecimentos.
Assim quer-se escapar da armadilha de prender tais manifestações em
amarras de nomenclaturas, pois vale mais a pena investigar questões musicais
propriamente ditas do que denominações muitas vezes circunstanciais, dada a
natureza imprecisa da oralidade no que se refere a esse tópico.
Em outras palavras, no quesito “estruturas rítmicas”, nota-se que a oralidade
tem a capacidade de transmitir com acuidade as características mais marcantes de
determinado ritmo. Por outro lado, denominações categóricas são sempre
capciosas. Como determinar ritmos por suas nomenclaturas, se essas vivem
constantes re-invenções de acordo com o espaço, o tempo, e o grupo cultural onde
se manifestam?
Para as investigações rítmicas, toma-se como ponto de partida o que Mukuna
e Sandroni consideram as duas “time lines” básicas dentro do universo do samba.
Acrescenta-se ainda mais uma figuração rítmica mencionada por inúmeros autores,
mas poucas vezes vista sob uma ótica estritamente musical, o Partido Alto.
84

A inclusão desse cumpre dois objetivos: explicitar um ritmo muito citado que
não foi descrito por nenhum deles e demonstrar, através dele, atravessamentos que
se referem à hipótese central desse trabalho.
Pelo Partido Alto pretende-se percorrer uma trajetória que se inicia no terreiro,
no samba em seu estado batucada, somente percussivo, e que se apresenta como o
denominador comum desse percurso. Daí, ele vai dialogar com a obra de Paulinho
da Viola, num samba de caráter “canção”. Num terceiro momento, nota-se a
presença dessas mesmas células rítmicas na obra de Tom Jobim, encerrando tal
trajeto numa composição de música instrumental popular brasileira do Grupo Terra
Brasil.
Pesquisas acerca do assunto propõem algumas células rítmicas
fundamentais dentro da música brasileira, em especial do samba. Mukuna (2000),
em sua investigação acerca do que poderiam ser elementos musicais de origem
Bantu presentes na música brasileira, detecta duas “time lines”:
Exemplo 1

Exemplo 2

Essas figuras resumem uma parte dos ritmos brasileiros, em especial aqueles
relacionados ao samba. E essa constatação independe da necessidade de
averiguação da origem das mesmas. Quer dizer, para o que se pretende agora não
é necessário determinar se são ou não oriundas da África.
85

3.1. Samba Antigo?

Tratando então da primeira figuração, pode-se ressaltar uma série de


aspectos relevantes ao interesse desse trabalho. Mario de Andrade atribui essa
figuração exatamente ao samba rural paulista (1991, p. 151). Já Sandroni vai
chamar essa figuração de samba “antigo”. Vai considerá-lo menos contramétrico que
o exemplo 2 (p. 84), e entender que houve uma mudança de paradigma do primeiro
para o segundo entre 1917 e 193046.
De novo, o interesse musical não deve se basear no que se consagra
mercadologicamente como sendo o samba “oficial”. O que se deve ter em mente é
se tal ritmo continua vivo ou não. Essa figuração rítmica continua presente, sendo
utilizada e executada por inúmeros músicos e compositores, independente do nome
que estes lhe dão.
Portanto, ciclicidade, simultaneidade, contrametricidade, acentuação de
compasso e ginga devem ser considerados sempre. Essas ferramentas são
necessárias pois através delas torna-se possível verificar o que mais interessa
aqui: os atravessamentos e os diálogos culturais e musicais.
Nessa direção, o “samba antigo” está presente hoje em inúmeras
manifestações musicais, como por exemplo, na capoeira47. Embora seja uma forma
de expressão que envolve não apenas música, jamais prescinde desta. Pode-se
ouvir então, no anexo V, faixa 1, a figuração descrita no exemplo 1, num disco
gravado em 1983.
Como já mencionado, devido a imprecisões próprias da oralidade, os nomes
atribuídos aos ritmos variam sobremaneira. Assim, uma mesma “levada” 48, pode ser
chamada de Afoxé, Samba de Roda, ou Samba Baiano.
A característica mais marcante desse ritmo é a presença de duas colcheias
no segundo tempo. Isso vai caracterizar a maior discrepância musical com aquilo
que Sandroni chama de paradigma da Estácio, que têm a presença da sincopa49 no

46
“(...) penso que o segundo paradigma demorou mais a ‘ pular a fronteira’ (por assim dizer) que separa a
música folclórica da música popular, por ser muito mais contramétrico que o outro (Sandroni, 2001, p. 221)”.
47
Existem inúmeros “toques” de berimbau, inúmeras células rítmicas. Mas a maioria tem a colcheia no segundo
tempo, característica marcante do chamado “samba antigo” ou rural.
48
Maneira habitual entre os músicos de se denominar um ritmo.
49
Já discutido no segundo capítulo a concepção de síncopa. Aqui o termo é usado genericamente para a
figuração semicolcheia/colcheia/semicolcheia.
86

segundo tempo, com a ligadura da última semicolcheia ao próximo compasso (vide:


exemplo 2, p.84).
Em outras palavras, um divisor de águas fundamental entre os dois
paradigmas é a existência, sempre no segundo tempo, num as duas colcheias, e
noutro a síncopa com a ligadura. Num contexto de música popular, essa é
exatamente a informação musical mais relevante para que o músico, ao tocar seu
instrumento, não contrarie a natureza do ritmo em questão. Ou melhor, para que
toque de maneira sincrônica e participe de forma adequada do arcabouço rítmico da
peça.
Um outro ponto é como mensurar um maior ou menor grau de
contrametricidade das duas estruturas. Como já colocado, o próprio conceito se vale
da idéia de que exista uma métrica padrão, para que algo seja definido como seu
contrário. A primeira impressão que se têm é que realmente uma ligadura no último
quarto do segundo tempo (exemplo 2, p. 84), é mais contramétrica do que as duas
colcheias (exemplo1, p. 84). Entretanto, o acento na interpretação dessas duas
colcheias é exatamente no tempo contra da segunda colcheia do segundo tempo.

Exemplo 3

Esse fato realmente põe em dúvida o grau maior ou menor de


contrametricidade. Visualmente, na partitura, o uso de recursos gráficos sofisticados
tais como a ligadura dá a entender novamente que o “Paradigma da Estácio” (assim
Sandroni denomina o exemplo 2, p. 84) é mais contramétrico.
Ora, pode-se encontrar a síncopa nas duas linhas rítmicas. A diferença mais
marcante recai sobre e existência de colcheias ou de sincopas ligadas, no segundo
tempo do compasso. Mas, ao se perceber que o acento mais proeminente no
exemplo 3 recai no contratempo, por que afirmá-lo como menos contramétrico?
A oralidade que permeia todos esses processos de transmissão não está
trabalhando via consciência musical letrada. Portanto o grau de complexidade da
escrita, embora possa revelar a inadequação desta aos ritmos brasileiros, não pode
87

explicitamente denunciar um maior o menor grau de contrametricidade, ao menos


nessa comparação das duas linhas básicas.
Existe mais um ponto importante que deve ser levado em conta no decorrer
deste capítulo, e que também serve de argumento a essa polêmica questão de qual
seria a “time line” mais contramétrica: a primeira linha (exemplo1, p. 84) acontece,
na maioria dos casos, no grave. Em especial no segundo tempo, é padrão que
ocorra nos instrumentos responsáveis por tais linhas. Em geral os instrumentos para
isso são o surdo ou o treme-terra50.
Já no que se refere ao samba dito “padrão” (exemplo 2, p. 84), a linha que o
caracteriza, como veremos detalhadamente a seguir, é uma linha médio-aguda, em
geral executada pelos tamborins.
Para experimentar sensorialmente o grau de contrametricidade dessa
primeira figura, basta então que se esteja batendo palmas (exemplo 4) numa roda
de capoeira, para que se perceba essa sincopação. Afinal, além do segundo tempo
se caracterizar como mais forte, o acento principal é ainda no contratempo desse
segundo pulso.

Exemplo 4

O que as mais das vezes caracteriza o desenho rítmico do bumbo é


uma batida mais forte, na segunda metade do segundo tempo de cada
compasso, ou de cada dois compassos:

ou

50
Não se pode deixar de observar que nomenclatura interessante para esse instrumento; treme-terra. Sua origem:
um grande tronco oco ou uma barrica de navio com um couro esticado.
88

Mario de Andrade (1991, p.151) coletou tais figurações em 1931, no samba


rural de Pirapora. A citação, textual e musical, visa apenas apontar onde se dá o
acento dessa “time line”.
Interessante também lembrar que ao se adentrar na arriscada esfera da
oralidade em música tentando compreender analiticamente seus pormenores, corre-
se o risco de esquecer como aquele que executa o ritmo o percebe.
Assim, quem que participa de uma roda onde esse ritmo está sendo
executado, entende que o tempo 2 é o primeiro tempo, ou ao menos o início da
célula. Ao se solicitar que qualquer indivíduo que não seja músico letrado que
execute as palmas, ele começa na figura do segundo tempo.
Essa mesma figuração pode ser encontrada em inúmeros exemplos na
literatura musical de épocas distantes. Note-se o ritmo do acompanhamento da
segunda parte do choro “Odeon” de Ernesto Nazareth (exemplo 5), ou ainda numa
faixa do CD “Olho de Peixe”, do compositor Lenine, de 1993 (anexo V, faixa 2).

Exemplo 5

Em suma, não cabe aqui discutir se isso era considerado ou não o ‘samba’
legitimado pela historiografia tradicional. Não existia um samba, mas uma gama de
matizes diversos: marchas, maxixes ou lundus? Não se pode afirmar muito, em
89

especial quando as referências se remetem a uma época que antecede as


gravações e o rádio.
Curiosamente, esses veículos de registro e divulgação acabaram sendo os
principais fatores de homogeneização, responsáveis pela existência hoje de uma
idéia padronizada do que seja o samba.
Doce dilema. Difícil afirmar categoricamente como era ou não o samba pois
não havia registro sonoro. Depois, a possibilidade de registrar vai cristalizar uma
versão como sendo o padrão.
O rádio, a partir do momento em que atinge um grande contingente de
ouvintes, passa a ter um poder de denominação de gêneros sem precedentes. Mas
isso não quer dizer que, escondidos sob outros nomes e executados por outros
agrupamentos, outros ritmos deixaram de ser cultivados.

3.2. Samba Novo?

Existe realmente uma certa unanimidade do que passou a ser chamado e


aceito como samba, ritmicamente falando. Localizado em especial no eixo Bahia/Rio
de Janeiro, a célula do exemplo 2 (p. 84) é unanimidade no que se entende como
sua “time line” mais inconfundível. O que parece necessário é então sublinhar suas
peculiaridades, já que o universo de variações é extenso.
Para começar, muito embora o samba se escreva, dentro da tradição
brasileira, em 2/4, a time line, a clave do samba , completa seu ciclo num mínimo de
dois compassos. Isso soa um tanto contraditório, mas existem nuances musicais que
podem justificar tal fato.
90

3.2.1 A linha grave

Em primeiro lugar, deve-se observar que a linha grave, dos surdos, tem seu
ciclo em um compasso. Pode-se averiguar que o tempo forte é o segundo. Embora
isso contradiga a tradição européia que supõe ser o primeiro tempo o mais forte, é
realmente o que acontece no samba51.
O primeiro tempo aparece como o abafamento da pele do instrumento depois
do acento percutido no segundo tempo anterior, ou ainda como um ataque, porém
sempre com o ‘couro’ abafado.
Ainda não se chamou atenção para essa mudança de concepção do que é o
tempo forte. E sua relevância se incrementa na medida em que essa acentuação
muda a percepção da própria “time line”. Na faixa “Samba Quente”, por exemplo,
transcrita na íntegra no anexo II (p. 120), e ouvida na faixa 3 do anexo V, pode-se
observar do início ao fim da peça o acento da linha grave no segundo tempo.

Exemplo 6

O uso da clave de fá tem a intenção de fortalecer a noção de que esta linha é


a mais grave. Também o uso do movimento de quarta (abaixo) não é gratuito. Essa
tem sido a forma com que inúmeros músicos vêm transportando, para instrumentos
de afinação definida, responsáveis pelas linhas graves, a sonoridade do surdo com o
acento no segundo tempo52.

51
Aliás, não só no samba, mas esse é o caso do Jazz. Escrito em 4/4, todos os praticantes desse estilo
musical sabem que os tempos forte são o dois e o quatro.
52
Em geral se atribui ao baixista Luizão Maia essa concepção, essa maneira de tocar o contrabaixo.
91

3.2.2 As semicolcheias

Em segundo lugar, existem muitos instrumentos que fazem linhas de


semicolcheias, como por exemplo o pandeiro. Inventam-se legendas com o intuito de
descrever tais linhas rítmicas com o mínimo de propriedade. No entanto, o que se
verifica é que a notação não se aproxima de forma nenhuma da realização musical.
Nesse caso lança-se mão de uma das premissas colocadas no capítulo
anterior: a ginga. Essa pode ser concebida aqui como um conjunto de minúcias tão
sutis, que não podem ser expressas via escrita. O que se pode fazer é comentar
algumas delas, e depois utilizar a faculdade apropriada para a apreensão de tais
sutilezas, a audição.

Em Pirapora, um tocador mais virtuose trazia na mão esquerda uma varinha


agarrada pelos dedos mínimo, anular e pai-de-todos. Mantinha a estabilidade do
bumbo com os outros dois dedos, segurando-o pela guarda de metal, e batendo com
a varinha de couro, obtinha sons suplementares mais fracos, de excelente efeito
(Andrade, 1991, p. 151).

Dessa citação de Mario de Andrade, de novo sobre o samba rural paulista,


pode-se inferir certos pontos. De fato, ele escreve a linha principal (vide: citação pg.
88), mas não esses “acentos fracos”. Conhecedor de detalhes constitutivos da
música européia, repete a mesma abordagem de sua colocação feita à introdução
desse trabalho: em troca de descrever com maior exatidão musical o que ouvia,
apenas descreve o resultado sensorial desses sons suplementares: “de excelente
efeito”.
Isso mostra a necessidade de utilização dessas novas premissas analíticas.
Nesse caso, o som quebrado, já colocado como um fator constituinte da ginga. No
caso do pandeiro, por exemplo, existe um movimento de semicolcheias realizado
pela mão direita (no caso dos destros). Nessas já existem pequenas diferenciações
de sonoridade que dependem de que parte da mão percute a pele: o polegar, os
dedos ou a base das mãos (Anexo V, faixa 4).
Enquanto isso, a mão esquerda, que segura o instrumento, tem o dedo
médio livre para abafar a pele por baixo, criando inúmeros toques mais delicados
que a divisão contínua executada na parte de cima da pele. Além disso, ao mesmo
tempo em que tudo isso ocorre, a mão esquerda balança o instrumento de tal forma
92

que as platinelas, pequenos pratos de ferro colocadas em pares ao redor do


pandeiro, realizam mais uma linha, essa mais aguda.
O pandeiro realiza ainda a linha grave, ou seja, os toques de primeiro e
segundo tempo, com o segundo acentuado, em contraste com o abafamento do
toque do primeiro tempo. Na linha mais aguda, o que se ouve é basicamente a
acentuação de síncopa sobreposta às semicolcheias. O que acontece é uma
acentuação nos segundos e quartos pontos da figuração contínua.

Exemplo 7

Caso se exclua as cabeças de tempo, que têm por função executar a linha
grave, o resultado é:

Exemplo 8

Ou então, não relevando a questão da duração:

Exemplo 9

Muitos músicos tocam essas conduções por horas, dias, meses e anos a fio.
O grau de detalhamento que se pode alcançar nessa prática é impossível de ser
escrito. E mais, quando a aprendizagem se dá na primeira infância, incorpora-se
93

sutilezas sem fim, que só mesmo a transmissão oral é capaz de efetivar. A título de
ilustração, ouvir o anexo V, faixa 4.
Sobre o último ponto, existe um paralelo interessante que pode ser traçado.
Estudos médicos mostram que se o indivíduo é criado numa língua que não tem
determinado som, além de não conseguir reproduzi-lo depois de adulto, não
consegue nem mesmo reconhecê-lo. Talvez isso explique por que é tão difícil para
um sujeito de outra cultura aprender esses atributos sutis do que está se chamando
de ginga.
A confusão que não deve ser feita é exatamente nas relações entre oralidade
e grau de detalhamento. Numa concepção linear53, a escrita possibilita um grau de
detalhamento formal estrutural geral que não seria possível sem ela. Em oposição,
esses “sotaques”, essas minúcias, esses leves toques, são um componente
fundamental do que se quer fazer demonstrar aqui: a complexidade de um ritmo. E
nesse caso, isso só é possível via oralidade, onde a escrita se configura como
registro quase caricato dessas estruturas.

3.2.3 A “Time Line”

Faz-se necessário verificar questões relativas à própria “time line”. A


observação inicial, quando se comparam os exemplos 1 e 2 (p. 84), é que a
segunda não se dá na linha grave. É uma linha rítmica chave (clave), que aparece
sendo completada pelo acento no segundo tempo no grave. Acompanhe a partitura
“Tamborins”, anexo III (p.138). Ouvir faixa 5 do anexo IV. Na gravação e partitura,
note-se que os primeiros compassos são , excetuando-se a ausência do acento do
segundo quarto do segundo tempo, a “time line” do exemplo 2, p 84.
Embora exista uma grande gama de variações, o que chama mais atenção
como característica principal é a última semicolcheia ligada de um compasso a
outro54. Isso justifica a necessidade de, no mínimo, dois compassos para se
escrevê-la. Em todas as variações notadas por Sandroni, e nas batucadas
pesquisadas neste, o fator comum é exatamente essa ligadura que se inicia no
último quarto do segundo tempo.

53
Cf. introdução, 2.4.
54
Sem mencionar a síncopa, que será tratada a parte no próximo item.
94

Exemplo 10

Até mesmo outras figurações de ritmos próximos colhidos na África, segundo


Mukuna e outros estudiosos55, têm esse traço unificador. Essa é uma característica
contramétrica. Através da audição nota-se que este acento não é um simples ligado,
onde o apoio continua sendo no segundo tempo ou na cabeça do primeiro que vem
a seguir.
Não se pode ter uma visão de rítmica, no sentido cartesiano de divisão
métrica do tempo, e sim uma concepção de ritmo. Essa ligadura caracteriza a célula.
Não é, como no caso da música européia em geral, um recurso utilizado
eventualmente. É uma propriedade desse ritmo, e pode ser entendida como uma
transferência do ponto de apoio. Essa é a uma das definições de síncopa, mas aqui
têm uma ênfase diferente. Na oralidade ela se transfigura realmente em ponto de
apoio, inclusive por que nessa não existe a noção do que seria a pulsação
referencial.
Todos os músicos que tocam instrumentos harmônicos sabem que se a
melodia aparece ligada dessa forma, deve-se adiantar inclusive o acorde do próximo
compasso. Note o exemplo a seguir:

Exemplo 11

55
Mukuna menciona Kubik
95

O acorde no primeiro compasso é Dó, no segundo é Lá com sétima, e no


terceiro, Ré com sétima, que já vigora a partir do último quarto do segundo tempo.
Assim se adianta não só a melodia, como também o acorde do próximo compasso.

Exemplo 12

É possível traçar algumas outras características, mas o primordial na


concepção desse trabalho é que se aceite a oralidade como forma legitima e eficaz
de transmissão de determinados tipos de conhecimento musical. Pode-se se
escrever, transcrever, enumerar características, mas a audição continuará sendo o
sentido insubstituível para a aprendizagem de qualquer ritmo.

3.3 A síncopa por ela mesma.

Quais são a perguntas que relacionam com propriedade a síncopa, essa


controversa figuração musical, e o viés adotado aqui? Como se dão às relações
entre síncopa e oralidade? Como construir um tipo útil de análise?
Nesse capítulo, a discussão tem se baseado na idéia de que o maior
diferencial musical entre as “time lines” principais no universo do samba é a
presença síncopas com ligaduras ou de colcheias no segundo tempo. Entretanto,
nota-se nas duas linhas rítmicas como um todo, seja de forma alternada ou
subseqüente, a presença das figuras de síncopa.
Em alguns ritmos afro-americanos, onde se podem sublinhar os norte-
americanos, os cubanos, e os brasileiros, existe uma figuração que funciona como
célula básica, como o mínimo elemento a que se pode reduzir aquela dada
96

linguagem56. No caso do samba, essa figura é a síncopa


semicolcheia/colcheia/semicolcheia.

Colocando de outra forma, os dois tipos de samba até aqui analisados têm
como menor fragmento que ainda detém a essência do todo, a figura musical acima
descrita.
Essa figura pode aparecer em inúmeras formas, de efeito similar.
Exemplo 13

ou

Exemplo 14

E o efeito similar deve-se ao fato de que o exemplo 13 omite o acento tético, o


menos importante. No ex. 14, além disso, despreza-se a duração, muitas vezes
irrelevante no que se refere a instrumentos de percussão.
Duas considerações devem ser feitas a partir daí, uma pelo aspecto estrutural
e outra de caráter organológico. Sobre sua estrutura, o ataque nunca recai sobre a
cabeça. Exceto, como já visto, nas linhas graves. A definição de contrametricidade,
de sincopação e de fraseado “off-beat” baseia-se exatamente no fato de que os
acentos não recaem sobre a própria pulsação. Isso explica porque a diferença entre
a figura completa e a variação onde há ausência da cabeça de tempo (exemplos 13
e 14) é irrelevante.
Quanto ao segundo, a questão das durações é emblemática, na medida em
que, ao se originar num universo percussivo, o ataque é muito mais relevante do que
a duração, do tempo que a nota se estende ou não.

56
Ao utilizar o termo “linguagem”, não existe nem intenção nem pretensão de adentrar em qualquer esfera
semiológica ou lingüística, apenas utiliza-se o termo com freqüência no contexto de arranjo.
97

Já o segundo ataque, que ocorre no segundo quarto de tempo, é uma das


marcas registradas dessa figura57. Na verdade, quando da passagem da escrita para
a realização, existe um apoio sobre o próprio pulso (beat), que não acontece na
esfera da oralidade. Quando o caminho se dá ao contrário, ou seja, da percepção da
realização para a escrita, a denominação correta seria de uma transferência do
ponto de apoio.
O conceito de transferência de ponto de apoio deve ser entendido a partir da
oralidade. Uma vez que essa não conhece a racionalização do conceito eurocêntrico
de rítmica, as colocações musicais típicas do samba não são acentos “fora” do
pulso, e sim, apoios próprios da natureza do ritmo.
Nesses, enquanto criações coletivas arquetípicas, de ontologia perdida nos
primórdios da humanidade, na há dúvida de que o fenômeno se dá da percepção
para a escrita. E essa transferência de ponto de apoio não é, com já dito, um recurso
ocasional, nem mesmo sistemático. É uma característica dos ritmos afro-americanos
em geral, e do samba em particular.
E, na didática da oralidade, se é que se pode utilizar tal terminologia, não
existe uma progressão no ensino da rítmica onde se aprenda primeiro as figuras
mais cométricas, até que se atinja as mais contramétricas. O vocabulário sincopado
é, pelo contrário, repetido desde a idade mais tenra, quando dentro dos parâmetros
que caracterizam essa forma musical.
Quanto à última semicolcheia, pode-se separá-la em dois tipos: quando ela se
dá no primeiro tempo do compasso, e quando ocorre no segundo. O primeiro caso
denota a presença de mais uma nota num ponto inusitado, essa capacidade sem par
do samba de estar sempre atacando notas que contrariam a pulsação. Além do
último quarto do primeiro tempo do samba antigo (exemplo 15), o aparecimento de
notas que aí ocorrem se dá, de maneira bastante constante no choro.

Exemplo 15

57
Adote-se a abreviatura asq (acento no segundo quarto de tempo).
98

A seguir, dois exemplos de acompanhamento de choro, sendo que muitos


músicos chamam o segundo de samba-choro. Vale lembrar que não esta, nesse
momento, se considerando a linha grave.

Exemplo 16

Exemplo 17

Nessas figurações ligadas ao choro, é menos usual e presença de ligaduras


entre compassos.
No segundo tipo de síncopa de último quarto de tempo, ocorre com
freqüência é a ligadura com o próximo tempo. Mais característico ainda, no caso do
samba, é quando essa acontece no segundo tempo, ligada ao próximo compasso.
Essa transferência do ponto de apoio tem efeito pungente. Como já visto,
literalmente adianta-se em um quarto de tempo a cabeça do próximo compasso.
Isso ocorre não só em nível rítmico, como também melódico e harmônico, já
que se adianta o acorde do acompanhamento. Aliás, a analise harmônico/melódica
considera o fenômeno um adiantamento em um quarto de tempo da estrutura como
um todo.
Assim que esse último quarto de tempo, quando atacado, pode aparecer ou
não ligado. Quando aparece, ocorre a transferência do ponto de apoio. Essa tem
99

efeito mais marcante quando aparece no segundo e último tempo do compasso, já


que se adianta toda a estrutura.
Faz-se apenas uma ressalva pontual, porém fundamental, em relação ao uso
da estrutura melódica, em especial quando cantada, como ferramenta de análise: a
divisão é por demais flexível, já que a melodia é criada e transmitida, na maioria dos
casos, oralmente58. Assim, a análise tem caráter ilustrativo, e a transcrição é uma
aproximação da execução. Por outro lado, essa técnica é de grande valia dado que
a melodia é composta nos moldes rítmicos do ritmo sobre o qual ela é concebida.
Insistência necessária ao objetivo desta pesquisa: não é possível
compreender aspectos fundamentais do samba via escrita. A execução real é fugidia
a notação, brinca com ela, da mesma forma em que trapaceia59 com o tempo,
sincopa-o! Não se deixa apreender em amarras da “rítmica”. Tudo acontece no
universo do “ritmo”.

Exemplo17

Legenda:

asq: acento no segundo quarto de tempo. Obs: também é uma transferência do ponto
de apoio.

58
Essa melodia foi transcrita por mim, baseada na interpretação do próprio autor.
59
No sentido que De Certeau aplica ao conceito de trampolinagem.
100

ssl: síncopa sem ligadura no último quarto de tempo

tpa: forte transferência do ponto de apoio (quando ligado e no último quarto do


segundo tempo).

No segundo compasso, aparece no segundo tempo a figuração de sincopa.


Só aí já existem duas transferências do ponto de apoio. O acento no segundo quarto
de tempo (asq), e o acento do último quarto, sendo que este último, como já visto
(exemplo 11), adianta todas as funções em relação ao próximo compasso (tpa).
Já os compassos 5 e 6 devem ser entendidos como uma frase de dois
compassos. Omitindo-se a ligadura entre os dois compassos, o motivo rítmico é
idêntico:

Exemplo 18

e os pontos de apoio são o acento do segundo quarto dos primeiros tempos,


bem como os últimos quartos dos segundos tempos.

Exemplo 19

Nos compassos 9, 10 e 11, respectivamente, não há nota no primeiro tempo


do compasso. A presença de um grupo semicolcheias (tempo 2, compasso 9) é
usual, e muita vezes justificada por motivos de prosódia, da quantidade de sílabas
do texto. O que acontece, ao se ligar a ultima semicolcheia ao próximo compasso é
uma acentuação que subentende a síncopa.
Ocorre então o início de uma serie de 5 transferências do ponto de apoio. O
que se resulta numa série de síncopas ligadas que dão uma sensação de polirritmia.
101

Isso por que são como que colcheias, deslocadas uma semicolcheia em relação à
pulsação.
Em suma, a análise quer mostrar uma serie de fatores já vistos, e que podem
ser enumerados conjuntamente:
Primeiro: a síncopa é a célula básica, o impulso motriz60, a figura mínima
aonde ainda se pode distinguir aspectos da natureza do samba.
Segundo: o alto grau de contrametricidade, dada a recorrência de acentos
fora da pulsação, chamados então “transferências dos pontos de apoio”.
Terceiro: tudo deve ser considerado com uma concepção sui generis de
tempos fortes de compasso. Como já visto, o tempo forte característico é o segundo.
Quarto: impossível de ser detectado via escrita, por inúmeros fatores já
colocados aqui, a “ginga” característica é uma qualidade intrínseca desse tipo de
universo ritmo. Pode-se considerar uma forma de detectar a ginga a distância entre
a escrita e a execução. Com a partitura em mãos (anexo IV, p. 140), e a gravação do
próprio autor (anexo V, faixa 7), observa-se à forma com a qual o autor interpreta o
samba.
O fator ciclicidade, e sua concepção “não linear”, não pode ser observado,
pois o que se vê aqui é uma análise de características do samba através da
estrutura rítmica da melodia. Como já visto, uma vez dentro de uma quadratura
estrófica, das amarras de uma canção, não se pode notar esse aspecto peculiar,
apreciável apenas quando o ritmo está em seu formato “batucada”.

3.4. O atravessamento pelo Partido Alto

A abordagem do Partido Alto pode se dar em diferentes contextos. Às vezes,


o enfoque se refere à maneira de se lidar com o texto, em outras ainda a questão é
abordada de maneira mais sócio-antropológica. Por exemplo, quando indagado
sobre a Casa da Tia Ciata, João da Baiana atribui o gênero aos fundos da casa ou
seja, nem terreiro, nem sala de visitas.
Como sempre há aqui uma preocupação com a inter-relação entre questões
culturais e seus desdobramentos rítmicos, quer-se traçar um paralelo entre a idéia
de samba antigo, partido alto e samba moderno.

60
Motivo, moto, movimento.
102

Num paralelo entre texto61 e ritmo, parte-se do que Mario de Andrade


detectou para o samba rural. O canto era improvisado, num processo que ele
chamava de “consulta coletiva”.

Interessantíssima também, nessas improvisações longas, a evolução da


linha melódica, que principiava sempre com decidido sabor eclesiástico, às
vezes diretamente inspirado no cantochão. Ia se modificando, até adquirir
um caráter mais negro, mais brasileiro e então o samba principiava (1991, p.
123).

Já no caso do samba “moderno”, sabe-se que existe uma forte relação entre a
consagração dessa figuração (exemplo 2, p. 84) como sendo o samba geralmente
aceito com tal, e a fixação da idéia de autoria. Os dois acontecimentos têm uma
explicação comum: o início da era do rádio e das gravações.
É um processo praticamente simultâneo, pois, se o alcance do rádio gera a
homogeneização da idéia do que é o “verdadeiro samba”, os interesses econômicos
desse novo veículo de comunicação implementaram a necessidade de fixação da
autoria.
Isso por que enquanto não havia formas de registro em áudio e tampouco sua
conseguinte difusão, o processo de autoria se dava via edição de partituras, portanto
pela música que se escreve. Mas agora, a possibilidade de gravar significava que se
podia registrar qualquer evento sonoro. E alguém tinha de ganhar com isso. Um
samba que fosse supostamente criado coletivamente, podia então ser gravado e ter
sua autoria atribuída a quem a pleiteasse62.
Entre esses dois extremos, domínio público e autor determinado, como se
encaixa o Partido Alto? Segundo sambistas “tradicionais”, este se caracteriza por
ser uma espécie de jogo, onde há uma parte fixa da letra, e outra improvisada. Uma
espécie de desafio, onde um solista propõe e o coro improvisa.
Esse tipo de traço pode ser atribuído não só a outros tipos de samba, mas até
mesmo a música africana, responsorial63 por excelência. Se no procedimento em
relação à letra, o Partido Alto está à meio caminho entre o samba “antigo” e o
“novo”, é isso o que acontece em termos de estruturas rítmicas.

61
Texto, no sentido de como as “letras”, as palavras, eram dispostas nos diferentes tipos de samba detectados
tratados aqui.
62
É famosa a frase atribuída a Sinhô “Samba é que nem passarinho, é de quem pegar”.
63
“O solista canta, canta no geral bastante incerto, improvisando. O seu canto, na maioria das vezes é uma
quadra ou dístico. O coro responde. O solista canta de novo. O coro torna a responder” (Andrade, 1991, p.116)
103

Se a característica mais marcante do samba “antigo” é a presença das duas


colcheias no segundo tempo, e do samba moderno a ligadura da última
semicolcheia de um compasso a outro, o partido alto é a exata síntese entre tais
características. O exemplo abaixo deve ser considerado a “time line” do Partido Alto.

Exemplo 20a

A mesma figuração com a tradicional variação de alturas da cuíca. A ligadura


do compasso par para o ímpar deve estar sempre subentendida.
Exemplo 20b

Segundo as ferramentas propostas, a análise dessa “time line” seria:

Exemplo 21

No segundo tempo dos compassos 1 e 3 (portanto os impares) acrescentou-


se uma nova legenda, “sbant” (samba antigo), denotando a presença de colcheias
no segundo tempo, característica do samba rural, ou ao que Sandroni chama
“samba antigo”.
104

Já no segundo tempo dos compassos pares, 2 e 4, a presença da síncopa


sem a nota menos importante, a cabeça de tempo. Então as duas transferências de
pontos de apoio: o acento no segundo quarto de tempo, e o adiantado de
semicolcheia, típico da ”time line” do samba moderno. Entretanto invertida na
métrica dos compassos, pois aqui acontece do compasso par para o impar, e no
samba moderno (exemplo 2, p. 84), acontece do compasso impar ao par. Pode-se
notar também os acentos gerais principais, que coincidem com a linha aguda da
cuíca:

Exemplo 22

Para facilitar a comparação e visualização, seguem abaixo as três “time lines”


vistas até aqui, sempre com quatro compassos.

Exemplo 23: Time line 1

Ex
exemplo 24: Time line 2

E
exemplo25: Time line 3
105

Na “time line” 3 existe uma alternância entre o que se determinou como os


traços que mais marcam, ou particularizam, a diferença dos pontos de partida desse
capítulo, os exemplo 23 e 24.
Mas será que isso não é conflitante? Exatamente aquilo que marca, na
opinião de Sandroni, a grande mudança de paradigma no conceito de samba,
convivendo simultaneamente no que todos os autores mencionam, o Partido Alto,
mas nenhum teve a curiosidade de transcrever?
No que tange a nossa tese principal, será que no samba batucada existe esta
forma? É resposta é sim. Verifica-se que essas figurações estão presentes no
samba só percussivo, numa canção de Paulinho da Viola (1978), num arranjo da
obra gravada de Tom Jobim (1987), e ainda numa gravação atual (1998) de música
instrumental, de um grupo atuante no cenário musical paulistano hoje, o Terra Brasil(
1998).
O samba, enquanto universo de figuras rítmicas, com seus arquétipos em
ritos funcionais africanos, chega ao Brasil. Aqui dialoga, sofre transformações, mas
preserva traços marcantes que o distingue da música européia. E através de
“táticas”, como coloca De Certeau, usa canções que possam lhe dar credibilidade.
Isso lhe permite cruzar os biombos, realizar atravessamentos, que não seriam
possíveis sem esse diálogo entre as estruturas consagradas no terreiro e as formas
europeizadas de organizar os sons.
Nesse sentido, a própria canção faz as vezes de mediador cultural. Numa
discussão se o ritmo é ou não um simples pano de fundo , ao se olhar essa
problemática através do ritmo, o que se percebe é exatamente o contrário: a letra, as
alturas e durações musicais, a melodia e harmonia tonais, a poesia, a forma, a
quadratura estrófica, enfim tudo que possa definir “canção”, é pano de fundo, ou
disfarce de frente, para o ritmo.
E hoje, ao supor que se esta ouvindo, por exemplo, a gravação de uma
música de Tom Jobim, com determinadas qualidades harmônicas e melódicas, se
esta a mercê das sensações geradas por essas figuras rítmicas ancestrais. Ainda
que modificadas, transformadas e adaptadas, preservam intactas algumas de suas
qualidades e características principais, capazes de imprimir até hoje efeitos
dinamogênicos e sinestésicos marcantes naqueles que as estão escutando.
A exatidão das figurações, enquanto atravessam diferentes matizes,
diferentes formas de se apresentar ou se combinar com outras organizações
106

sonoras, tem uma relevância parcial. O que se deve considerar primeiro é se tais
configuram mudanças que aviltam a natureza das figurações ou são apenas outras
possibilidades dentro de um determinado conjunto. Por exemplo, a ausência do
acento na cabeça do tempo não tem nenhuma conotação importante.
Também as características mais gerais como a ciclicidade, a
contrametricidade e a ginga, são mais marcantes do que a exata figuração. Claro
que isso aproximaria demais o samba de outros ritmos afro-americanos. Mas muito
do que foi pesquisado aqui se aplica também a eles, já que muito mais que as “time
lines” específicas, o que se tem é um tipo de construção musical oriunda de âmbitos
culturais similares.
Além disso, a questão dos atravessamentos fica mais clara: um ritmo pode
estar mais em evidência, outro pode ser considerado como o “verdadeiro”, mas, se
os interesses recaem em preocupações musicais, o fato principal é que muitas
dessas estruturas continuam ativas, vivas, e sendo cultivadas no universo sonoro
brasileiro.
O grau de sofisticação harmônico/melódico, bem como da poética
empregada, não tem relação com o uso da figura rítmica. Ou seja, pode-se variar o
primeiro enquanto se mantém a segunda.
A seguir, a transcrição de trechos rítmicos desses quatro momentos,
mostrando o uso das figurações rítmicas do Partido Alto, em contextos musicais
muito diferentes. Interessante também acompanhar as gravações no anexo V,
respectivamente faixas 6,7,8 e 9.

3.4.1. Bateria Nota 1000

Transcrição de um trecho da faixa 15, desse CD que têm um encarte pobre,


sem nenhuma menção a quem são os músicos que tocam, sem data de fabricação.
O único crédito é dado aos mestres de bateria que comandam cada faixa. Segue-se
então a transcrição de alguns compassos da faixa denominada “Partido Alto”, e
atribuída ao “Mestre Marq. Gandaia”, faixa 6 do anexo V.
107

Exemplo 26

Como se pode notar, a clave do tamborim é exatamente a mesma da descrita


por Mukuna, porém invertida em relação à paridade de compassos. Isso porque no
Partido Alto o início se inverte em comparação com o samba moderno. Optou-se
também por escrever com anacruse para que as figuras façam sentido, pois pode-se
entender que a “time line” nesse caso começa no terceiro compasso.
Todas as ressalvas em relação às limitações da escrita feitas anteriormente
se aplicam aqui. Por exemplo, a linha do pandeiro, que na escrita aparecesse
apenas como uma seqüência de semicolcheias, é, como já visto, uma somatória
impressionante de sutilezas.
Alguns métodos e seus autores criam legendas sofisticadas na tentativa de
descrever o fenômeno sonoro. A opção aqui é notar a divisão óbvia, e anexar um CD
à pesquisa, para que se possa ouvir o que realmente acontece. Exatamente por que
essa aprendizagem se dá na esfera da oralidade, e sua apreciação no nível da
audição. A única exceção aqui feita em termos de legenda é a do tempo um dos
compassos nas linhas graves. Nesses, o símbolo significa que a pele do surdo é
abafada, e não ferida.

3.4.2. Paulinho da Viola

A caminho de atingir um maior número de ouvintes, o primeiro passo


inconsciente, porém coerente, do ritmo em a direção a “sala” (Tia Ciata), é se
incorporar ao samba num contexto canção.
108

Nesse caso, vai-se transcrever um trecho do tantas vezes citado samba


“Atravessou”, de Paulinho da Viola. Importante ressaltar que não necessariamente
está se escrevendo os quatro primeiros compassos, mas sim o primeiro trecho onde
o ritmo se encontra estabelecido.
Essa música encontra-se gravada na segunda faixa do álbum intitulado
“Paulinho da Viola” de 1978. A opção de se transcrever quatro linhas rítmicas em
todos os exemplos deve-se às considerações feitas anteriormente. Afinal, num
contexto polirrítmico, uma linha pode mudar a percepção de outra. Note a faixa 7 do
anexo V. Sua partitura se encontra no anexo IV (p. 140).

Exemplo 27

A comparação com o exemplo anterior deixa claro que os pontos que


interessam são absolutamente coincidentes. Destaque para as transferências de
pontos de apoio em 3 linhas.

3.4.3 Tom Jobim

O terceiro exemplo já se encontra inserido num contexto bem diferenciado.


Embora o trabalho de Paulinho da Viola seja reconhecidamente de qualidade, ainda
pode-se atribuí-lo a um contexto por demais relacionado às raízes do samba. Mas o
exemplo seguinte se refere a uma faixa do disco Passarim, de Tom Jobim, gravado
entre novembro de 1986 e março de1987.
109

A faixa é de autoria de Danilo Caymmi, mas o CD como um todo pertence à


discografia de Jobim, e os outros músicos aparecessem como “The New Band”. A
única menção de arranjo é a Jaques Morelenbaum, responsável pelas escrita das
cordas e sopros. Ouça a faixa 8 do anexo V.

Exemplo 28

Aqui o número de observações aumenta consideravelmente. O surdo é


substituído pelo bumbo da bateria moderna (drum set). A decisão da “cozinha”, ou
seja, dos músicos responsáveis pela seção rítmica do grupo foi por omitir totalmente
o tempo um.
Optou-se por escrever oito compassos devido à figura rítmica do violão, de
ciclo mais extenso, de quatro compasso. Entretanto somente no primeiro ciclo é que
se faz a primeira figura de síncopa copa na cabeça do primeiro tempo. Isso pode ser
considerado como um procedimento de músico letrado em relação ao ritmo. Na
110

oralidade tende-se a iniciar por uma anacruse64, pois nessa tende-se a ouvir o tempo
dois como primeiro, e ainda porque iniciar assim comporta a transferência do ponto
de apoio.
Essa consideração vale também para os tamborins, que são usados de forma
intermitente, um uso de “arranjador”, no sentido do que seria exatamente o mais
adequado a cada trecho da peça. Na oralidade, a tendência é que simplesmente se
mantenha a clave, a “time line”, do início ao fim da peça. Nesse arranjo, usa-se mais
o tamborim como timbre, com figurações rítmicas ligadas ao samba, mas dispostas
de forma linear65, com a intenção de se atingir pontos culminantes.

3.4.4 Terra Brasil


O processo de transmissão de figuras, ritmos e suas combinações, se dá por
atravessamentos notáveis. No quarto e último exemplo, vai se observar, num grupo
de música instrumental paulistano, hoje ativo, produzindo um trabalho de
composições próprias, as mesmas figuras de Partido Alto que se observaram até
agora . Observe a faixa 9 do anexo V. O trecho é de uma faixa CD intitulado
“Mestiço”, do grupo Terra Brasil, de 1998.

64
A definição escolástica de anacruse é: Notas ou notas que, no início da peça musical, se realizam no tempo
fraco e antecedem o primeiro tempo forte do compasso inicial. Mas deve-se apontar o fato de que na oralidade, o
próprio conceito de tempo forte esta em discussão.
65
No sentido discutido no capítulo 2.4.
111

Exemplo 29

A primeira observação é formal. Essa configuração rítmica não se estende a


toda a peça, acontece apenas na parte A da mesma. O violão aparece substituído
pela guitarra, e sua figuração é exatamente a mesma da cuíca do exemplo de
Paulinho da Viola ou do exemplo 20 (p.103).
Na linha grave, novamente opta-se por omitir os primeiros tempos do
compasso, como no caso do Jobim. E ainda incrementa-se o grau de
contrametricidade através da omissão da cabeça do segundo tempo.
Em todos os exemplos, o que se tem então é um ritmo de “Partido Alto”.
Desde sua versão mais percussiva, atravessando várias esferas de possibilidades
musicais, até uma situação absolutamente atual, lá estão, intactas, as estruturas
rítmicas.
Onde quer que esses diferentes matizes do samba, essas diferentes formas
de se apresentar em termos de combinações musicais estejam sendo executadas e
ouvidas, provavelmente em seguimentos sócio/culturais distintos, estão todos
profundamente ligados.
112

São todos variações de um mesmo tema. Têm um denominador comum,


tanto em sua versão batucada, quanto numa versão recente. Atingindo um alcance
surpreendente, lá esta ele: o samba em uma de suas possibilidades, dialogando
com outras formas musicais, atravessando biombos e atingindo o mundo.
113

Conclusão

O samba é um conjunto de manifestações artísticas que engloba, entre


outras, música, dança e canto. Ainda que o enfoque se restrinja a música, ele se
apresenta de várias maneiras. Em sua gama de matizes estão incluídas diferentes
combinações de sons com alturas “definidas”, as estruturas harmônicas e melódicas.
Nota-se também, nesse escopo de possibilidades, células rítmicas. A forma
de transmissão e preservação dessas é singular, dado que transitam na oralidade.
Imprecisa quando é necessário fixar no tempo certas denominações, ela se mostra
ao mesmo tempo meticulosa e eficaz no que se refere a tais estruturas.
Para que se possa compreender melhor sua importância cultural, é
necessário analisar essas figurações sonoras tão particulares através de
parâmetros que ainda estão por ser criados e estabelecidos.
Esse trabalho aponta algumas ferramentas de análise: ciclicidade,
simultaneidade, acentuação, contrametricidade e ginga.
Ao investigar essas estruturas rítmicas, aliando os parâmetros propostos aos
já consagrados, percebe-se que transpassam intactas as inúmeras formas musicais
em que o samba se apresenta.
114

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