Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PT
AFROSCREEN A LER MUKANDA
EN
FR PALCOS CIDADE JOGOS SEM FRONTEIRAS
RUY DUARTE DE CARVALHO CORPO
Pesquisar...
A urgência de uma política linguística africana contra colonial. Leitura de
“Descolonizar o Espírito” de Ngũgĩ Wa Thiong'o
por APOLO DE CARVALHO
Descolonizar o espírito1 é o título de uma das
grandes obras (publicada em 1986) do escritor Apolo de Carvalho.
queniano Ngũgĩ Wa Thiong’o.2 Dramaturgo e Estudante na grande universidade da palavra
ensaísta, auto-declarado contador de histórias, ensinada à sombra dos Baóba. É nesta fórmula
autor de icónicas obras, entre as quais: Não emprestada ao maliano Amadou Hampâté Bâ, que
chores menino (1964), Um grão de trigo se define Apolo Carvalho. Membro da Afrolis e do
(1967), Pétalas de sangue (1977) Ngũgĩ Wa projeto Djidiu, é investigador no projeto AFRO-
Thiong’o é um intelectual engajado na causa PORT. A sua formação académica atravessa
panafricanista, um dos contemporâneos Bordéus e Coimbra e os seus interesses orbitam
arquitetos do Renascimento Africano, em torno das relações internacionais, mormente
preconizado pelo senegalês Cheikh Anta Diop. geopolítica e geoestratégia, política externa dos
pequenos Estados, segurança internacional,
Ngugi wa Thiong'o
Através de uma escrita militante, e pese embora Panafricanismo e Afrocentricidade,
a censura política, o exílio e atentados vários História da África e da sua Diáspora, poesia e
contra a sua vida e dignidade3, Wa Thiong’o literatura negro-afrodiaspórica entre outros.
sintetiza e interliga, magistralmente, nutrientes
essenciais ao espírito daqueles que resistem e
sonham com uma África liberta do
“miasma” escravocrato-colonial. Artigos relacionados
Segundo Wa Thiong’o, o tanzaniano Saaban Robert, considerado o maior poeta da África ocidental
da época, escrevia em Kisawhili, assim como o escritor nigeriano Chief Faguna que escrevia em
Yoruba, foram os grandes ausentes desta conferência.
Isto nos mostra que as línguas coloniais (inglês, francês e português) atingiram um tal estágio de
naturalização que não constituíam sequer um tema de discussão. Eram antes um dado adquirido e
vivia-se uma situação de plena conformidade em relação a essas línguas.
Joseph Ki-Zerbo
Amílcar Cabral
Centrar-se numa educação endógena, na qual se faça uso e se valorize os métodos locais e culturais
de transmissão do conhecimento, como é o caso da oralidade, é uma das grandes propostas do autor
para quem o ensino de uma literatura oral completaria de forma útil e simbiótica, o ensino de uma
literatura africana moderna sem que esta perca as suas raízes.
Debate de Nairobi, 1968
Estas questões viriam a ser abordadas com entusiasmo, no grande Debate de Nairobi de 1968, sobre
o ensino da literatura nas escolas e nas universidades que o autor narra. Este debate, reunindo uma
série de personalidades quenianas, criticou o papel hegemónico do departamento de inglês no ensino
da literatura, fazendo emergir no seio das universidades um movimento em prol do ensino das
línguas africanas.
Em 1974 e, tendo em conta as lacunas da primeira, uma outra conferência seria organizada sob o
mote “O ensino da literatura africana nas escolas quenianas” com a presença de 200 pessoas, entre
académicos e técnicos governamentais, editores e delegados dos departamentos de literatura da
Tanzânia e do Malawi no Quénia. O espírito da conferência está patente nas conclusões do comité de
redação que, para o autor, se afirma com força, impulsionado por uma consciência panafricana “Os
autores do relatório consideram África um todo e recusam a divisão entre África do Norte, e África
Subsariana. Eles sonham um continente religado ao resto do mundo”. (2011:148-149)
“Os programas atuais de língua e de literatura já não são pertinentes nem adaptados às
necessidades do país. Não se tolera que uma criança queniana aprenda a olhar-se através de um
prisma importado de Londres ou Nova Iorque” (idem p.148), escrevem.
Para os conferencistas, era também importante passar às crianças a ideia de uma África ancorada às
suas diásporas e, neste sentido, fazer com que se familiarizassem com as literaturas afro-americana
e caribenha. A consciência histórica presente no relatório abraça assim os propósitos do
panafricanismo, declarando que, tal como a literatura do continente, as literaturas diásporicas
encarnam um combate pela identidade cultural, na medida em que vários africanos das diásporas
contribuíram incansavelmente para a emancipação cultural e política da África.
Achille Mbembe, numa recente entrevista ao jornal Público, deixa reflexões interessantes sobre
“herança comum” e a necessidade de usar sem complexos os recursos críticos exógenos9. Trata-se,
considero, de um elemento essencial para percebermos a própria conceção africana do mundo, a
importância da circulação das “coisas do espírito”, a confluência dos saberes e o resgate de muito do
que África deu e ajudou o mundo a criar mas que nunca foi/é reconhecido. No Discurso sobre o
Colonialismo (1950), Césaire faz uma referência magistral sobre esta questão10.
O papel desempenhado por Wa Thiong’o na luta pela descolonização dos espíritos, não só do Quénia
como de todas as Áfricas, é precioso. O seu nome tem sido uma constante entre os candidatos ao
Nobel da Literatura, mas o facto de ter escolhido escrever numa língua periférica para o Ocidente, o
Kikuyu, fez com que nunca fosse laureado. E isto é também importante para percebermos a as
dinâmicas da geopolítica da língua, a assimetria de poder entre os mundos Norte e Sul.
Na mesma linha, também as instituições e organizações civis e estatais africanas têm falhado em
reconhecer o trabalho deste espírito de tão grande escurividência. Os seus livros e toda a sua obra
deveria constar nos programas de educação a nível nacional por todo o continente, por serem
instrumentos de libertação e consequente desenvolvimento endógeno, na linha de Ki-Zerbo.
E porque nenhuma luta, nenhuma descolonização, nenhum processo de libertação, nenhuma catarse
será eficaz enquanto teorizarmos, produzirmos e arquivarmos conhecimentos e instrumentos de
combate preterindo as nossas línguas-mãe, temos que ler e reler Descolonizar o Espírito, ler Ngũgĩ
wa Thiong’o. Urge traduzir e dar a conhecer esta obra.
1. O título original é Decolonizing the mind (descolonizando as mentes), contudo a versão francesa das Edições La fabrique de
2011, escolheu como título Décoloniser l’esprit. Considerando que a noção de espírito é muito mais abrangente do que
“mentes” e tendo em conta a proposta do autor para uma verdadeira emancipação de África e dos africanos, considero que
a tradução do título a partir da tradução francesa, faz mais sentido. Todas as traduções usadas neste texto são minhas.
2. Sobre a concetualização do termo “contra-colonial, ver o trabalho de Santos, António Bispo dos (2015) Colonização,
quilombos: modos e significados.
3. A publicação do seu quarto romance Pétalas de Sangue em 1977, no qual denunciava não só o neocolonialismo e o
imperialismo como os “usurpadores dos frutos da independência”, (ou seja, as elites quenianas), deu início a várias
perseguições e intimidações que condicionaram a sua vida pessoal e académica. Tais perseguições conduziriam a sua
detenção seis meses após a publicação de Pétalas de Sangue. As razões da detenção nunca ficaram evidenciadas, mas
ocorreram logo após a censura da peça de teatro intitulada Ngaahika Ndeenda (Casar-me-ei quando eu quiser), escrita na
língua Kikuyu com a participação dos aldeões da comunidade Kamirithu, entre outubro e novembro de 1977. Após ser
libertado, passou a vida no exílio em Inglaterra. Em julho de 2004, passados exatamente 22 anos, decidiu regressar à sua
terra natal. No dia 11 de agosto, 4 homens armados invadem o quarto do hotel em que se encontrava hospedado junto com
a sua mulher Njeeri e o seu sobrinho Chege Kiragu. Durante uma hora, com 66 anos de idade, aquele que no poema” Kuri
Njeeri” dedicado à sua esposa, onde dizia que já tinham falado demasiado do exílio político e que quando regressassem à
sua terra natal falariam nas suas línguas maternas, assiste impotente à violação da sua mulher por parte dos 4 agressores.
4. A obra divide-se em quatro partes: I A literatura africana e a sua língua; II O teatro; III O romance; IV Em busca
de pertinência.
5. Presente nos cinco continentes, são só por causa da diáspora mas também graças ao ensino em várias universidades, o
Kiswahili é das línguas africanas mais conhecidas no exterior. Palavras e expressões várias foram vulgarizadas tanto no
cinema como na literatura. Ex. “Hakuna Matata” (não há problema) do Rei Leão, a palavra safari (viagem) etc.
6. Economista francês a quem se atribui a autoria do termo “Terceiro Mundo” que ficou marcado na frase que aqui uso “Car
enfin ce Tiers Monde ignoré, exploité, méprisé comme le tiers état, veut, lui aussi, être quelque chose”.
7. Chinua Achebe é dos mais conhecidos e referenciados pensadores africanos com uma obra vastíssima que aborda
questões da política interna Nigéria, o seu país de origem (exilado), o imaginário ocidental sobre África, assim como os
efeitos do contacto e da presença ocidental no continente. Quando tudo se desmorona (1958) é o livro mais conhecido.
Wole Soliyinka, também nigeriano, é dos raros Nobeis da Literatura do continente africano e a primeira e única pessoa negra
do continente a receber o prémio até agora (em 1986). Grande opositor da ditadura militar de Sani Abacha, foi preso, exilou-
se e recebeu uma condenação à morte in absentia, tendo regressado ao país em 1998. A sua vasta produção passa pela
dramaturgia, romances, poesia etc. Gabriel Okara, escritor e poeta nigeriano, autor de The Voice (1964) e obras poéticas
icónicas como Piano and drums e The Snowflakes Sail Gently Down, Okara foi um das grandes referências na preservação
da cultura africana. Christopher Okigbo foi poeta e editor que esteve fortemente envolvido na guerra do Biafra. Foi
igualmente um dos grandes críticos do movimento da Negritude tendo recusado primeiro prémio da poesia africana que lhe
fora atribuído no Festival Mundial de Artes Negras de 1966, em Dacar, declarado que não existe negro nem poeta negro.
8. Ver Cabral Amílcar (1972) O papel da cultura na luta pela independência e Ki-Zerbo, Joseph (2006) Para quando África?
9. “É preciso deixar de ser complexado em relação a uma herança que nos formou, mas para a qual nós contribuímos. Se
pretendemos que há uma dose de universalidade no pensamento europeu, somos nós que lhe concedemos essa hipótese
de sair das suas fronteiras e não deve haver nenhuma vergonha, do meu ponto de vista, em assumir isso. E também
nenhuma vergonha em ir aos recursos críticos internos da Europa” in jornal Publico “ACHILLE MBEMBE “África é a última
fronteira do capitalismo” 9/12/ 2018.
10. «La grande chance de l’Europe est d’avoir été un carrefour, et que, d’avoir été le lieu géométrique de toutes les idées, le
réceptacle de toutes les philosophies, le lieu d’accueil de tous les sentiments en a fait le meilleur redistributeur d’énergie.»
Césaire, Aimé (1950) Discours sur le Colonialisme.
11. A meu ver urge uma política linguística regional e quiçá continental. Um projeto panafricano pensado para o futuro. Embora
em alguns países como a Nigéria, Cabo Verde etc haja algum avanço quanto ao ensino da língua materna, a verdade é que
nas instituições do Estado, nos meios de comunicação, na literatura etc, as línguas coloniais continuam a hierarquizar os
acessos. O uso continua a ser meramente folclórico. Uma política linguística que valorize apenas o aspeto simbólico do seu
uso é incipiente.
12. Ver Santos, (2015) op.cit
13. Membro da OIF desde 2008.
14. O termo foi conceptualizado por Cheikh Anta Diop num dos ensaios publicados no seu livro Les fondements culturels,
techniques et industriels d’un futur État fédéral d’Afrique noire, em 1960, nas edições Présence Africaine.
sobre nós | ficha técnica | participar | subscrever | publicidade | ligações Publicado sob uma Licença Creative Commons