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1 NATUREZA E CULTURA:

A CULTURA EM SI

por Luís Fernando de Souza Alves


O homem não
pode encontrar-se,
não pode ter
consciência de
sua
individualidade,
senão por
intermédio da vida
social. Para ele,
contudo, esse
meio significa
mais que uma
força externa
determinante. Ernst Cassirer
(1874 – 1945)
Como os animais, o homem se submete às regras da
sociedade, mas, além disso, participa ativamente da
produção e da mudança das formas da vida social [...]
Em todas as atividades humanas encontramos uma
polaridade fundamental que pode ser descrita de várias
formas. Podemos falar de uma tensão entre a
estabilização e a evolução, entre uma tendência que leva
a formas fixas e estáveis de vida e a outra para romper
esse plano rígido.
O homem é dilacerado entre as duas, uma das quais
procura preservar as velhas formas, ao passo que a
outra forceja (empenha-se) por produzir novas. Há uma
luta que não cessa entre a tradição e a inovação, entre
as forças reprodutoras e criadoras.
Sistema matrilinear nas
Ilhas Trobriand
Simone de Beauvoir
(1908 – 1986)

“Ninguém nasce mulher,


torna-se mulher [...]”
[...] Não basta que dois
sujeitos conscientes tenham
os mesmos órgãos e o
mesmo sistema nervoso
para que em ambos as
mesmas emoções se
representem pelos mesmos
signos.

Maurice Merleau-
Ponty
(1908 – 1961)
O que importa é a maneira pela qual eles fazem uso de
seu corpo [...] O uso que um homem fará de seu corpo é
transcendente em relação a esse corpo enquanto ser
simplesmente biológico. Gritar na cólera ou abraçar no
amor não é mais natural ou menos convencional do que
chamar uma mesa de mesa.
Os sentimentos e as condutas passionais são
inventados, assim como as palavras. Mesmo aqueles
sentimentos que, como a paternidade, parecem inscritos
no corpo humano, são, na realidade, instituições. É
impossível sobrepor, no homem, uma primeira camada
de comportamentos que chamaríamos de ‘naturais’ e um
mundo cultural ou espiritual fabricado. No homem, tudo
[...] é natural e tudo é fabricado, como se quiser, no
sentido em que não há uma só conduta que não deva
algo ao ser simplesmente biológico – e que ao mesmo
tempo não se furte à simplicidade da vida animal [...]
Crianças do arquipélago
Trobriand, em Papua-
Nova Guiné. Foto de
2014. Para alguns povos
dessas ilhas, a
ascendência materna
determina o modo como a
sociedade se organiza.
1.1 O mundo humano dos símbolos
1.1.1 Para saber mais
Surgimento da
antropologia
científica, etnologia e
etologia: a partir do
fim do século XIX
1.1.2 Linguagem, a
porta de entrada
para o humano
Próximo a 1920:
meninas indianas
que cresceram
entre lobos
Helen Keller
(1880 – 1968)
[...] A minha professora colocou minha mão sob o jorro. À
medida que o fluxo gelado escorria em minha mão, ela
soletrou na outra a palavra água, primeiro devagarzinho
e depois mais depressa. Fiquei quieta; toda a minha
atenção concentrava-se no movimento de seus dedos.
De repente senti uma nebulosa consciência de algo
como que esquecido – uma impressão de retorno do
pensamento; e de alguma forma o mistério da linguagem
me foi revelado. Soube então que água significava a
maravilhosa coisa fria que deslizava pela minha mão [...]
Saí do poço ansiosa por aprender. Tudo tinha um nome,
e cada nome dava origem a um novo pensamento.
A linguagem é o elemento que
caracteriza fundamentalmente
a cultura humana e distingue o
ser humano do animal? Os
animais utilizam certo tipo de
linguagem?
1.1.3 A linguagem dos animais
Cachorros pensam?
Se pensam, em que o
pensamento deles é
diferente do
pensamento humano?
Linguagem rudimentar e reação instintiva
Beatrice e Robert Gardner
A capacidade humana de elaboração
simbólica
Ato humano como voluntário e
consciente de finalidade
A linguagem, usando a
representação simbólica
e abstrata, possibilita a
pessoa agir sobre o
mundo e transformá-lo.
Max Horkheimer (1895 – 1973) e
Theodor Adorno (1903 – 1969)
O mundo do animal é um mundo sem conceito. Nele,
nenhuma palavra existe para fixar o idêntico no fluxo dos
fenômenos, a mesma espécie na variação dos
exemplos, a mesma coisa na diversidade das situações.
Mesmo que a recognição [reconhecimento de uma coisa
ou pessoa] seja possível, a identificação está limitada ao
que foi predeterminado de maneira vital. No fluxo, nada
se acha que se possa determinar como permanente, e,
no entanto, tudo permanece idêntico porque não há
nenhum saber sólido acerca do passado e nenhum olhar
claro mirando o futuro.
O animal responde ao nome e não tem um eu, está
fechado em si mesmo e, no entanto, abandonado; a
cada momento surge uma nova compulsão [tendência
irresistível de realizar certo ato], nenhuma ideia a
transcende [...] Na alma do animal já estão plantados os
diferentes sentimentos e necessidades do homem e,
inclusive, os elementos do espírito, sem o apoio que só a
razão organizadora confere.
Ativistas protestam
1.1.3.1 Para refletir contra as touradas em
Medellín. na Colômbia.
Foto de 2015. O país sul-
americano herdou essa
prática dos colonizadores
espanhóis, mas há um
amplo movimento
contrário a ela. Em 2012,
o prefeito de Bogotá
proibiu a realização de
touradas na capital
colombiana.
Os animais têm
direitos? Não
uns em relação
aos outros (o
André Comte- leão não viola
Spomville os direitos da
(1952 – ) gazela que ele
devora, nem o
pardal os da
minhoca).
Mas nós, sim, temos deveres para com eles: o dever de
não os fazer sofrer inutilmente, de não os exterminar, de
não os humilhar, de não os martirizar [...] O sofrimento
comanda, é isso que a compaixão significa. Os animais são
capazes de compaixão? Ao que parece, não. O que não
nos dispensa de ser humanos com eles, que não o são.
Os animais têm
direitos?
1.2 A cultura como construção
humana
O que é cultura?
Culturas são múltiplas por conta da
infinidade de símbolos humanos
Uma característica humana: a capacidade de
produzir história e de ser sujeito dos próprios
atos
1.2.1 Tradição e ruptura
Há codificação que ocorre antes do
nascimento do indivíduo
As diferenças existentes no
comportamento modelado
em sociedade resultam da
organização das relações
entre os indivíduos
Como fica a questão da
individualidade diante do
peso da herança social?
Haveria sempre o risco de
perda da liberdade e da
autenticidade?
Martin Heidegger
(1889 – 1976) e o
mundo do se
Sistemas de controle da
sociedade que
aprisionam o indivíduo
numa rede sem saída?
A massificação e homogeneização de
comportamentos impostos pelo grupo
O processo de humanização ocorre por
meio das relações interpessoais
Herança social e individualidade
1.2.1.1 Para refletir
Cena do filme estadunidense Na
natureza selvagem (2007), 1.2.1.2 Para refletir
dirigido por Sean Penn. Ele
retrata a vida do jovem
Christopher McCandless, que
abandona uma rotina
confortável decidido a se isolar
no Alasca. A recusa dos valores
da sociedade e a subsistência
dessa sociedade rejeitada,
apesar das tentativas de afastá-
la, são uma constante no filme.
Um ermitão pode se
considerar solitário?
1.3 Diversidade cultural
Como reagir diante da
diversidade cultural
desvendada pelo
mundo globalizado?
1.3.1 Etimologia
1.4 Uma nova sociedade?
1.4.1 A sociedade da informação
Computadores: janelas para o mundo
Fim de 1960 até
meados de 1970:
criação da
sociedade em rede
Pierre Lévy
(1956 – )
Por trás das técnicas agem e reagem ideias, projetos
sociais, utopias, interesses econômicos, estratégias de
poder, toda a gama dos jogos dos homens em sociedade.
Portanto, qualquer atribuição de um sentido único à
técnica só pode ser dúbia. A ambivalência ou a
multiplicidade das significações e dos projetos que
envolvem as técnicas são particularmente evidentes no
caso digital. O desenvolvimento das cibertecnologias é
encorajado por Estados que perseguem a potência, em
geral, e a supremacia militar em particular.
É também uma das grandes questões da competição
econômica mundial entre as firmas gigantes da
eletrônica e do software, entre os grandes conjuntos
geopolíticos. Mas também responde aos propósitos de
desenvolvedores e usuários que procuram aumentar a
autonomia dos indivíduos e multiplicar suas faculdades
cognitivas. Encarna, por fim, o ideal de cientistas, de
artistas, de gerentes ou de ativistas da rede [...]
1.4.1.1 Para refletir
Mineração de dados (2013),
charge de Tom Toles.
1.5 Revisão
1) Em que sentido a inteligência humana
é distinta da inteligência animal?

A inteligência animal é concreta porque depende de uma


situação problemática específica. Já a inteligência
humana comporta o uso da linguagem simbólica, capaz
de abstração, o que transforma cada ato no resultado de
um pensamento que antecipou a ação.
2) Explique por que os dois polos sociedade
e indivíduo são indissociáveis e o que ocorre
quando um deles se sobrepõe ao outro.
Esses dois polos – o social e o pessoal – são
indissociáveis porque o social é uma abstração, constituído
pelos indivíduos que o compõem. Ao mesmo tempo, o
indivíduo nada é sem a sociedade: é dela que ele recebe a
língua, os costumes e as normas de conduta. Por outro
lado, a tradição supõe a possibilidade de ruptura, porque o
ser humano é um ser histórico capaz de construir outras
realidades a partir do que lhe foi dado.
3) Leia o poema abaixo e, em seguida,
responda às questões.

Se às vezes digo que as flores sorriem


E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios [...]
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos [...]
Não concordo comigo, mas absolvo-me,
Porque só sou essa coisa séria, um intérprete da natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.

Fernando Pessoa
a) Como o eu lírico encara a relação
entre cultura humana e natureza?

O eu lírico enxerga uma cisão entre a cultura humana e


a natureza, afirmando que o desenvolvimento de uma
linguagem humana toma incompreensíveis ao ser
humano as formas de existência e de manifestação do
natural. Faz-se necessário, portanto, descrever a
natureza, cantá-la através da linguagem para que o
homem consiga compreendê-la.
b) Partindo das discussões sobre natureza e
cultura, justifique por que você concorda ou
discorda do eu lírico.

A partir das discussões sobre o biológico e o cultural


desenvolvidas no capítulo, o aluno pode apontar que é
difícil separar completamente natureza de cultura –
conforme o enunciado de Merleau-Ponty, no homem
tudo é natural e tudo é fabricado – ao contrário da
afirmação do eu lírico, que insiste na separação dessas
esferas.
4) Leia a citação e responda às questões:

A cultura – palavra e conceito – é de origem romana. A


palavra cultura origina-se de colere – cultivar, habitar, tomar
conta, criar e preservar – e relaciona-se essencialmente com
o trato do homem com a natureza, no sentido [...]da
preservação da natureza até que ela se torne adequada à
habitação humana.

Hannah Arendt
a) Com base na etimologia da palavra
cultura, explique por que seu sentido é mais
abrangente do que o sentido de pessoa culta.

É comum as pessoas entenderem a expressão pessoa


culta como uma definição a respeito de quem tem o
espírito cultivado, lê muitos livros e conhece obras da
cultura mais refinada. No entanto, também é válido o
sentido de pessoa que, mesmo não letrada, é capaz de
agir e transformar a realidade de maneira criativa.
b) Considerando a etimologia da palavra
cultura no sentido de tomar conta, discuta com
um colega sobre a importância da defesa da
ecologia no momento em que vivemos.
O desenvolvimento tecnológico e a intervenção desordenada
sobre a natureza têm despertado a consciência ecológica
daqueles que se preocupam com o equilíbrio do planeta e com a
qualidade de vida de gerações futuras. Diante do impacto das
diversas formas de poluição ambiental e dos prejuízos causados
às camadas mais pobres da população, já temos notícias de
atuações efetivas para reverter em parte esse quadro, partindo
tanto de iniciativas particulares como coletivas (públicas e
empresariais).
5) Marc Chagall (1887-1985), pintor
russo de nascimento, viveu em Paris,
onde sofreu influência do cubismo, do
fauvismo e do surrealismo. Nunca se
esqueceu da infância na aldeia em que
nasceu, como mostra a tela reproduzida
abaixo.
Observe que duas diagonais dividem o
quadro em partes antagônicas: à esquerda, o
animal; à direita, o homem; acima, o casal de
camponeses e suas casas; abaixo, a
natureza vegetal. Nas duas cenas opostas, a
presença humana entrelaça-se com a
natureza na expressão da cultura. Interprete
a tela usando conceitos de tradição e ruptura.
Eu e a aldeia (1911). Pintura
de Marc Chagall
Na tela de Chagall, há elementos de tradição e de ruptura:
o pintor está ligado afetivamente à sua aldeia, mas sua arte
é contemporânea. O trabalho humano não se desvincula do
mundo animal e da natureza vegetal: em ambas as
oposições, a presença humana entrelaça-se com a
natureza na expressão da cultura. O tema da pintura é
pessoal e, ao mesmo tempo, universal: o artista retrata seu
passado, mas a obra nos toca porque todos podemos nos
identificar com o fato de que nossas reminiscências fazem
parte do nosso presente. A cultura tem uma dimensão
histórica, em que a tradição exerce importante função de
construção da. nossa identidade, permitindo a reinvenção.
6) Em grupo, selecione ilustrações de
pessoas que pertençam a segmentos sociais
diferentes e a épocas distintas. Examine o
modo de sentar, de cumprimentar, de dançar,
de expressar alegria ou tristeza etc. Por fim,
o grupo deve escrever um texto relacionando
padrões culturais e educação.
Espera-se que os alunos identifiquem certa
homogeneidade de comportamentos em determinada
cultura, devido à educação, que mantém viva a memória
de um povo e dá condições para sua sobrevivência
material e espiritual. No entanto, em uma mesma cultura
pode-se perceber atitudes de rompimento de padrões,
sobretudo nas sociedades contemporâneas, mais abertas
ao pluralismo e à diversidade. Esta atividade pode ser
desenvolvida de modo interdisciplinar, com a colaboração
dos professores das áreas de arte e de língua portuguesa.
O professor da disciplina de língua portuguesa pode
auxiliar os alunos na pesquisa sobre as diferenças no
modo de falar e de se expressar, além de ajudá-los na
composição e revisão do texto final. O professor de arte
pode contribuir para a identificação de diferentes
expressões corporais, além de ajudar com a seleção de
imagens. Pode-se propor aos alunos que, ao fim da
atividade, componham um mural de imagens e textos
para ser exposto na sala de aula ou em outro local
conveniente da escola.
7) Elabore uma dissertação relacionando o
tema do capítulo e a citação do antropólogo
Claude Lévi-Strauss transcrita a seguir.

“O homem é um ser biológico ao mesmo tempo que um


indivíduo social. Entre as respostas que dá às excitações
exteriores ou interiores algumas dependem inteiramente
de sua natureza, outras de sua condição”
A citação de Lévi-Strauss pode provocar a retomada
temática do capítulo, levando à análise da influência de
elementos biológicos e culturais na estruturação do ser
humano. É importante que o aluno expresse como o fato de
construir cultura diferencia o ser humano de outros animais,
embora algumas características lhes sejam comuns.

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