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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

INSTITUTO DE HISTÓRIA

FÁBRICA BANGU: ENTRE TECIDOS E MEMÓRIAS

ALINE LEAL FERNANDES

RIO DE JANEIRO
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

INSTITUTO DE HISTÓRIA

FÁBRICA BANGU: ENTRE TECIDOS E MEMÓRIAS

Monografia submetido a banca de Graduação


Como requisito para obtenção do Diploma de
Bacharel em História

ALINE LEAL FERNANDES


Orientadora: Profa. Dra. Flávia Ribeiro Veras

RIO DE JANEIRO
2020

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E
CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTÓRIA

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus que me proporcionou todas as forças necessárias


para chegar até aqui. Sem Ele eu nada sou.
Em segundo lugar quero agradecer a minha filha Alice, que apesar de não entender
ainda as lutas da vida e as ausências necessárias que machucam nosso coração, sempre
me recebeu com o maior sorriso depois de um dia exaustivo de trabalho e estudo e que
sem dúvida é meu maior incentivo para continuar.
Quero agradecer também ao meu esposo Paulo pela paciência e dedicação com a
nossa família, sempre me incentivando e compartilhando comigo as responsabilidades
da incrível jornada da paternidade.
Não posso esquecer-me da minha mãe e da minha sogra que são para mim
exemplos de força, resistência e sonoridade, sempre me incentivando e cuidando da
minha filha para que eu pudesse trabalhar e estudar. Confesso que sem essa rede de
ajuda, seria impossível chegar onde cheguei.
E por fim, agradeço também a minha professora orientadora, Drª Flávia Veras pela
paciência, persistência e por ter acreditado em mim. Seus ensinamentos ficarão
marcados em minha vida.
Serei eternamente grata.

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RESUMO

Fábrica Bangu: entre tecidos e memórias

Este trabalho reflete sobre a memória da popularmente conhecida Fábrica de Tecidos


Bangu considerando ex-funcionárias, moradores e memorialistas. Para a execução dessa
tarefa foi elaborado estudo sobre a história da fundação do bairro, resgatando
historicamente a criação da Fábrica Bangu, tal como considerando a influência da
Fábrica Bangu na construção do espaço e das relações sociais durante seu período de
funcionamento. Nesse sentido, foi de fundamental importância a reflexão sobre os
trabalhadores e trabalhadoras da fábrica, tal como as formas de entretenimento
existentes no bairro. Foram utilizados documentos privados do Grêmio Literário José
Mauro de Vasconcelos, livros de memórias do bairro e da Fábrica Bangu e depoimentos
de ex-funcionários e antigos moradores do bairro.

Palavras-Chaves: Memória; fábrica; Bangu

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO______________________________________________________07

CAPÍTULO I - O BAIRRO DE BANGU TECENDO A SUA HISTÓRIA________12


1.1 – A fabricação de um bairro __________________________________________12
1.2 - O fazer-se da classe operária banguense________________________________18

CAPÍTULO II – UM LUGAR PARA TRABALHAR E VIVER________________22


2.1 – Música e futebol __________________________________________________23
2.2 - Cinema, Clube e Carnaval em Bangu_________________________________ 27
2.3 - Desfiles de moda – Miss elegância____________________________________ 30

CAPÍTULO III - FIOS DE MEMÓRIAS: ENTRE O PRESENTE E O PASSADO_34


3.1 – Um museu que guarda a história de Bangu______________________________34
3.2 - Tecendo memórias femininas_________________________________________37

CONSIDERAÇÕES FINAIS___________________________________________ 43

REFERÊNCIAS______________________________________________________ 45

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INTRODUÇÃO

Bangu cidade do progresso


Orgulho na moda nacional
O samba já tem o seu ingresso
Teu nome hoje é universal
É prá lá qu’eu vou
Adeus Grajaú
Vou sambar lá em Bangú

No velho esporte
Tua fama não desliza
Teve um Domingos da Guia
Sem falar no mestre Ziza

É prá lá que eu vou


Adeus Grajaú
Vou sambar
Lá em Bangu.

Esta música se chama Samba de Bangu e foi gravada por Ataulfo Alves durante
a década de 1950, ela nos traz três elementos importantes que compões a cultura
operária banguense: a indústria, o samba e o futebol. Nesse período o bairro carregava a
vitalidade da fábrica de tecidos que abrigava, enquanto ondas migratórias criavam uma
reconhecida cultura operária que até os dias atuais prevalece na memória dos cariocas e,
sobretudo, dos banguenses. Contudo, em 5 de fevereiro de 2004 a Fábrica de Tecidos
Bangu encerrou suas atividades definitivamente. Mesmo depois de anos lutando contra
sucessivas crises, a indústria chamada oficialmente Companhia de Progresso Industrial
do Brasil, não conseguiu evitar o fim de suas atividades.
O estudo que apresento problematiza traços marcantes na memória dos
moradores do bairro, assim, os temas aqui traçados satisfazem as questões
frequentemente comentada pelos grupos sociais que se expressam no carnaval, no
samba e nos registros memorialistas perpassando aspectos do período imperial até o
auge de produção da Fábrica de Tecidos Bangu. Dessa maneira não tive a preocupação
de estabelecer um recorte temporal específico, mas sim de trazer para o texto os
assuntos que animam aqueles que pretendem manter viva a memória e o orgulho
banguense.
O objetivo geral desse trabalho é refletir sobre a memória da popularmente
conhecida Fábrica de Tecidos Bangu considerando ex-funcionárias, moradores e
memorialistas. Constam ainda como fontes desse trabalho fotos coletadas
principalmente no acervo do Arquivo Nacional, periódicos e produções audiovisuais.

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Será empregado também fontes orais. Duas entrevistas foram feitas: com uma ex-
operária, cujo nome é Vera Lucia Morad de Melo e a outra com Irani Nascimento, a
filha de uma ex-operária, Leonor Ferreira do Nascimento, da Companhia Progresso
Industrial do Brasil e com Maria Odete Batista de Melo, antiga moradora do bairro.
Contamos ainda com o livro de memórias sobre Bangu que destaca a fábrica e suas
implicações na composição do bairro (SILVA, 1989).
Em 2000, antes mesmo do encerramento total de suas atividades, a Fábrica de
Tecidos Bangu foi tombada, e recebia cada vez mais turistas e estudantes interessados
em sua história e sua arquitetura. Ela fora a razão para o deslocamento de muitas
pessoas até o bairro a partir do século XIX passando a ser um elemento fundamental da
identidade banguense. A fábrica atuava a como um agente importante para a
transformação do espaço local, construindo casas, oferecendo cursos, esportes
recreativos, creches e outras atividades que marcaram a sociabilidade local e a
qualidade de vida de seus moradores.
A preservação física do prédio da fábrica, dado ao tombamento, ofereceu um
novo elemento para a modelagem da memoria/identidade local, ainda que como o
Bangu Shopping. Sua atividade que definiu do setor industrial para o comércio. Bauman
(2013,106 - 113) considera que espaços como Shopping Centers e aeroportos seriam
não-lugares, dado seu caráter de passagem e a falta de criação de laços entre as muitas
pessoas que circulam diariamente no espaço. A natureza desses não-lugares difere em
muito da ideia da fábrica como um espaço agregador de sujeitos que ali criam redes de
sociabilidade e poder. Contudo, nesse prédio contém, além das lojas, um museu -
convidando os transeuntes a acessar à memória de seus antepassados e de seu passado
recente.
O presente estudo se justifica pela importância social e acadêmica de discutir os
efeitos na memória das pessoas que passaram por fortes transformações em seus
planejamentos de vida dado à desindustrialização. É possível conceitualizar
desindustrialização como um processo do capitalismo global que tende a manter
escritórios em seus lugares de atuação, enquanto a linha de montagem se localiza em
locais com baixo custo de mão de obra e baixos encargos, migrando com facilidade em
busca dessas condições (CASTELLS: 2000, 209 - 259).
Essa forma organizacional produz alto número de desemprego e um consequente
aumento das ocupações no setor de serviços e da informalidade. Tal avaliação é
pertinente para o caso da Fábrica de Tecidos Bangu, pois os empregos fabris foram

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substituídos por vagas temporárias no comércio. Dada essas consequências da
desindustrialização e a nova forma organizacional do sistema econômico global, no
mundo ocidental Antunes (2000) sugere que estaríamos vivendo “o fim do trabalho”.
Existem muitas formas de criticar tal afirmação. Podemos apontar que o
mercado global conecta os espaços em uma divisão internacional do trabalho, de forma
que se os países asiáticos têm recebido indústrias e, por isso aumentado, em muito, o
número de sua classe trabalhadora, não poderíamos viver o “fim do trabalho. Ou mesmo
argumentando que o trabalho no setor de serviços ou na informalidade apresenta
peculiaridades, mas não pode ser desconsiderada no contexto dos mundos do trabalho,
como problematizado no livro organizado por Santana e Ramalho (2003). Com relação
a produção brasileira, muitos trabalhos em história vêm demonstrando que não existia,
mesmo no período do auge do fordismo, uma forma homogênea para entender as
questões e as demandas da classe trabalhadora.
Não se pode negar, contudo, que existe uma profunda transformação na
organização e nas perspectivas de vida da classe trabalhadora. Essas mudanças são
intermediadas pela insegurança e pela precarização. Sobre esse último conceito nos
inspiramos nos escritos de Judith Butler (2006: 25 - 78). A autora defende que, frente às
políticas neoliberais, as camadas subalternas perderam a possibilidade de se colocarem
como sujeitos de sua existência. A falência das leis do trabalho, juntamente com a
insegurança e a necessidade de se empregar-se no mercado informal tornou a vida
economicamente incerta.
Em Bangu, com o fechamento da fábrica, muitas pessoas se voltaram para o
chamado empreendedorismo. Essa palavra tão positivada por alguns grupos sociais
esconde facetas cruéis da precarização da vida e do trabalho (SENNET, 1999). Se por
um lado a construção do Bangu Shopping trouxe alguma esperança para os
desempregados, por outro a quantidade de vagas oferecidos por ele, não chegava perto
da quantidade contratada pela Fábrica de Tecidos Bangu em seus melhores anos.
Em seu trabalho de conclusão de curso “Bangu a identidade perdida? –
memórias, heranças, valores e mudanças”, Carla Cristine Vidal de Sá (2014) afirma que
em 1956 a Companhia Progresso Industrial do Brasil tinha 6228 operários, enquanto no
Artigo de Monique de Andrade Dantas(2015)a quantidade de empregos oferecidos pelo
novo empreendimento seria de 1000 vagas entre efetivos e temporários. Mesmo que o
comércio ao redor do Shopping constituído de lojas e camelôs estivesse em crescimento,
não é suficiente para resolver o problema do desemprego. Vale ressaltar que a crise que

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assolou a Fábrica e consequentemente o bairro de Bangu, não foi algo que aconteceu às
vésperas do fechamento da Fábrica. Desde 1990 a Companhia vinha sofrendo
dificuldades financeiras. No artigo de Dantas (2015) afirmou-se que:
o fator para a crise da antiga fábrica foi a decisão do Fernando Collor,
presidente do Brasil na década de 1990, em abrir importação à indústria de tecidos
asiática, além da concorrência de preços desses produtos. A causa da decadência da
fábrica foi Fernando Collor, quando abriu importação na década de 1990 para a
indústria asiática. Três metros de tecido eram vendidos, se for comparado aos dias de
hoje, a dez reais. Aqui no Brasil a matéria-prima era o algodão, mais caro que os
tecidos asiáticos, que tinham 35% de algodão. Quando a Fábrica de Tecidos
completou 100 anos, houve o falecimento do presidente Guilherme da Silveira Filho,
provocando a venda da fábrica em 1990.

Esse depoimento corrobora a análise de Oreiro & Feijo (2004) sobre as causas e
os efeitos da desindustrialização no Brasil. O pesquisador apontou os efeitos do
neoliberalismo na economia brasileira mostrando que a forma na qual se desenhou entre
as décadas de 1980 e 1990 resultou em inúmeros problemas. Seja de ordem econômica
ou de ordem social devido às implicações na organização do mundo do trabalho. Essa
situação gerou nos moradores de Bangu um sentimento de perda e insegurança, que
puderam resignificar positivamente a memória sobre os tempos de atividade da fábrica.
Segundo Pierre Nora (1993: 9) “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no
gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga a continuidades temporais, às
evoluções, e às relações das coisas. A memória é o absoluto e a história o relativo”.
Nesse sentido podemos perceber que a fábrica em questão se estrutura como um “lugar
de memória”, ou seja, sua história quando lembrada pelos antigos funcionários e suas
famílias ajuda a modelar a história do bairro, como um emaranhado de passado e
presente que, a partir das memórias individuais e coletivas, passarão para as próximas
gerações e para a opinião pública. Vale lembrar que a presença da fábrica era tão forte
do ponto de vista econômico e social que os elementos simbólicos que remetem a
Bangu têm a ver com a antiga fábrica: o trem, o futebol e mesmo o ídolo futebolístico
Zizinho citado na música de Ataulfo Alves.
Ao buscar analisar a memória social sobre a fábrica após seu fechamento
daremos ênfase aos grupos subalternos, constituídos de trabalhadores e trabalhadoras.
Assim, um historiador importante para esse trabalho do ponto de vista teórico é
Hobsbawm (2010: 216 - 231). Ele advoga pelo que chama de “história das pessoas
comuns” com o um campo especial de estudo considerando o cotidiano e as lutas
coletivas e individuais tendo como eixo as questões do trabalho e da reprodução da

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vida. Burke (1992: 53-54), questionou se “a história vista de baixo constitui uma
abordagem da história ou um tipo distinto de história?” em resposta, o autor aponta que:
como abordagem, a história vista de baixo preenche comprovadamente duas funções
importantes. A primeira seria servir como um corretivo à história da elite e a segunda
oferecer abordagem alternativa, pois, segundo ele, a história vista de baixo “abre a
possibilidade de uma síntese mais rica da com preensão histórica, de uma fusão da história da
experiência do cotidiano das pessoas com a temática dos tipos mais tradicionais de história.
(Burke, 1992:53,54).

No entanto, ao pensar “inversamente, poderia ser argumentado que a temática da


história vista de baixo, os problemas de sua documentação e, possivelmente, a
orientação política de muitos de seus profissionais criam um tipo distinto de história”
(Burke, 1992:54). Sendo assim, a história vista de baixo pressupõe recuperar da
memória das classes subalternas, pois de acordo com (Nora, 1993: 9):
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela
está em permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e do
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas
revitalizações. [...] A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na
imagem, no objeto. [...] A memória é um absoluto e a história só conhece o
relativo.

Dessa maneira, a memória social sobre a fábrica é fruto da sua história, mas
também resultado de um sentimento de perda, de frustração e de abandono que marca o
tempo pós fordista. Assim tanto a memória local, quanto a forma de contar a história da
fábrica e do bairro serão interseccionadas por esses sentimentos que produziram um
certo tipo de narrativa, que será o alvo do presente estudo. Ele se divide em três partes,
na primeira resgatamos historicamente a criação da do bairro de Bangu, considerando os
trabalhos memorialistas e celebrativos feitos sobre Bangu e sua fábrica de tecidos.
Nesse capítulo discutiremos também as transformações físicas do espaço. No segundo
capítulo trataremos da vida social que aflorava das conexões com a fábrica, tais como a
música, os esportes, o cinema e os desfiles de moda. Assim, será considerada a
influência da Companhia Progresso Industrial do Brasil na construção do espaço e das
relações sociais durante seu período de funcionamento. Por fim, estudaremos a memória
da experiência vivida pelos que estiveram como trabalhadores na Fábrica de Tecidos
Bangu. O resgate dessa memória será feito através do Grêmio Literário José Mauro de
Vasconcelos, que hoje abriga o museu que funciona no interior do Bangu Shopping, e
do depoimento de duas ex-operárias na Fábrica de Tecidos entre os anos 1940 e 1960
prestados à autora para a elaboração deste trabalho.

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CAPÍTULO I

O BAIRRO DE BANGU TECENDO A SUA HISTÓRIA

Bangu deriva da palavra indígena “útang-û”, que significa anteparo


escuro ou barreira negra, numa alusão à montanha ou à serra.1.

1.1 – A fabricação de um bairro

O bairro de Bangu surgiu a partir do desmembramento das terras da paróquia de


Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande. A abundância de recursos naturais e
valores baixos nos preços das terras, chamou a atenção de vários investidores, sendo
Manuel de Barcelos Domingues, o primeiro proprietário e fundador da então Fazenda
Bangu no ano de 1673.
Assim que se instalou em suas terras, Domingues construiu uma Capela e o
Engenho da Serra onde passou a produzir açúcar, álcool, cachaça e rapadura. Com a
utilização da força de trabalho de 65 escravos nas plantações de cana-de-açúcar, a
fazenda tornou-se uma das principais produtoras da região que aos poucos começou a
distribuir seus produtos nacionalmente e, logo depois, a exportar produtos para Europa,
utilizando o Porto de Guaratiba.Com o sucesso da produção de cana-de-açúcar, a
Fazenda Bangu começou a despertar conflitos entre os produtores mais próximos, que
via seus produtos estocados por longos tempos sem a possibilidade de escoarem.
Contudo, o nome Bangu, só veio a aparecer formalmente em documentos oficiais sob a
posse de D. Ana Francisca de Castro Morais e Miranda, a oitava dona da Fazenda.
Assim descreve Gracilda de Azevedo da Silva (1989) no livro Bangu 100 anos: a
Fábrica e o Bairro.
Esse livro foi produzido por conta da comemoração de 100 anos da fábrica de
Tecidos Bangu. Mas porque a autora voltou ao século XVI para tratar sobre a fábrica?
Nossa hipótese é que a história da fábrica foi tão intrínseca ao próprio bairro que ao
falar dela, seus memorialistas acreditam que estão falando do próprio bairro. Inclusive
a autora não se refere à fábrica pelo seu nome oficial, Companhia Progresso Industrial
do Brasil, mas como Fábrica Bangu, atestando a nossa hipótese.

1 Biblioteca Nacional. “Rio 450 anos – Bairros do Rio Bangu”. 23/05/2015. Disponível em :
https://www.bn.gov.br/acontece/noticias/2015/05/rio-450-anos-bairros-rio-bangu último acesso
14/12/2019 às 19h.

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Os aspectos da geografia, riquezas naturais e paisagem rural foi resgatado pelo
documentário “Bairros do Rio – Bangu” (2016) da Rio TV Câmara. Mostrando a região
como era rica em mananciais e belas vegetações. O que estava por trás dessa descrição
era a Fazenda Bangu. No final do século XVII esse espaço conservava suas riquezas
naturais e, por ser distante do Centro, era vista como um refúgio que oferecia estadia
para alguns dias de descanso ou uma rápida parada para viajantes fadigados antes de
chegarem ao seu destino. O documentário revela ainda que Dom João VI e sua família
levavam até dois dias de viagem utilizando transportes de tração animal para chegar a
Fazenda Bangu, onde descansavam. Esse espaço de arrabalde no século XIX se tornou a
Companhia Progresso Industrial do Brasil, também conhecida como Fábrica Bangu.
Assim, a representação de Bangu como um espaço elitizado antes da instalação
da fábrica, tal como os conflitos decorrentes da migração interna de sujeitos subalternos
é pouco problematizado no livro de memórias. Mesmo no documentário, o anúncio das
riquezas naturais e das presenças ilustres na fazendo servem como ponto de inflexão
para algo que viria depois – a fábrica de tecidos.
Outro documentário, “Os campeões da elegância” produzido por Jean Mazon em
1955 apresenta a fábrica como promotora do desenvolvimento, do progresso e da
tecnologia para o Rio de Janeiro, ou até mesmo para o Brasil. Tanto que o material
começa exibindo uma partida do Bangu no Estádio do Maracanã, recortando um gol do
craque Zizinho. Partindo dessa cena o documentário se volta para apresentar o trabalho
dos operários e operárias, a operação do maquinário de ponta “importado da Inglaterra”
e os inúmeros benefícios que a fábrica oferecia aos operários. Essas políticas não eram
implementadas por manipulação ou simples beneficência, mas devido à missão da
empresa que era promover o desenvolvimento e o progresso.
Isso aponta que a memória da Companhia Progresso Industrial do Brasil, a
Fábrica Bangu, é bastante idealizada. As lembranças e esquecimentos de seus
memorialistas se constituem como matéria do tempo no qual estão imersos, mas
também como fruto de uma narrativa repetida diversas vezes. O livro de memória de
Silva (1989) foi publicado no momento que muitos trabalhadores e trabalhadoras
estavam sendo demitidos e os rumores sobre o fechamento da fábrica começavam a
surgir. Com essa problemática a autora se debruçou para escrever sobre o passado da
fábrica, o que resultou em uma história linear e positivada da ação dos gestores da
fábrica para a classe trabalhadora. Os documentários e o livro de memórias, quando

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analisados criticamente, mostram a contradição na construção da memória do bairro
antes e depois da fábrica.
De uma forma geral as análises sobre a Bangu consideram a tal fazenda como
uma das mais bem sucedidas de sua época, o que é controverso. Acentua-se que o
espaço era conhecido por suas belas festas e banquetes oferecidos aos nobres da época
que por vezes, também passavam por ali antes de seguirem viagem para São Paulo ou
para o Sul do país.
Essa introdução na narrativa é feita como um antecedente para tratar da
instalação da Companhia Progresso Industrial do Brasil, o que oferece uma pista para
pensar a relação contraditória entre o passado e o presente da fábrica nas fontes
utilizadas. Dito de outra maneira, o espaço da fazenda Bangu, posteriormente
constituída a Fábrica de Tecidos Bangu é lugar de conflito de memória, nem sempre
exposto, entre uma elite escravocrata e a classe trabalhadora. A precarização, produto da
desindustrialização, consolidou a memória do bairro como operário, dada as lutas das
classes subalternas.
A fábrica iniciou sua atividade, ainda timidamente, em 6 de fevereiro de 1889, o
que promoveu mudanças substantivas na paisagem, com a estação férrea e ondas
migratórias, sobretudo no contexto das reformas urbanas do centro do Rio de Janeiro
nas primeiras décadas do século XX. À medida que a fábrica se desenvolvia, maior era
a necessidade de se contratar mão-de-obra especializada e adquirir máquinas que
dessem conta de produzir produtos de primeira qualidade e com a maior eficiência
possível, satisfazendo a demanda do mercado. Nesse sentido, foram contratados
técnicos ingleses especializados em têxteis para conduzir o funcionamento das
máquinas que chegaram a produzir quatro mil metros de tecidos por hora e ampliando a
produção para além do Rio de Janeiro (Silva, 1989:26)
A fábrica teve seu auge nos anos 1950, animada pelos incentivos do Plano de
Metas e da industrialização acelerada. Nos anos de 1960 foram criados os conjuntos
habitacionais da Vila Aliança e da Vila Kennedy como forma de novamente deslocar os
trabalhadores e trabalhadoras das áreas mais valorizadas da cidade (TOSTA, 2019: 28 –
38). Dessa maneira, em meados do século XX a fábrica contava com vasta mão de obra,
políticas governamentais que a favoreciam e grande influência na vida econômica e
social do bairro.
O espaço no qual a fábrica se instalou pertencia à Fazenda Bangu, um arrabalde
onde as elites buscavam um ambiente bucólico, longe da agitação e dos perigos do

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centro. A escolha de implantar a Fábrica de tecidos nessas terras fora em razão da
existência de mananciais de água nas fazendas e por contar com uma linha férrea que ia
até Santa Cruz o que facilitaria a chegada de matérias-primas e o escoamento da
produção. (SILVA,1989:78).

Imagem 1.1 - Projeto do traçado para a Estrada de Ferro de Santa Cruz (1874)

Fonte: Arquivo Nacional. Área de identificação: BR RJANRIO 4Q.0.MAP.870 - dossiê

Silva (1989:25) descreveu as características arquitetônicas do prédio que


abrigava a Fábrica: “O edifício possui linhas típicas inglesas, características do período
neoclássico, apresentando arcos romanos, frontões gregos e grandes platibandas, de
partido horizontal.” Possui também uma chaminé de tijolo aparente e uma torre de
menor altura onde se localiza o relógio de quatro espelhos. As fundações são de
concreto e servem de base para as paredes de tijolo aparente. Grande parte do material
da fábrica como tijolos, vigas de ferro, telhas, colunas vieram da Inglaterra e ainda hoje
fazem parte da construção que foi mantida pelo Shopping Bangu.
Ao longo dos anos o terreno a fábrica se expandiu e incorporou outras as
fazendas, além de promover muitas transformações ao seu redor para residência dos
funcionários, tal como meios de transporte que facilitassem o acesso de pessoas e a
circulação de produtos. Bangu em finais do século XIX estava passando por um
processo de urbanização devido a atuação da fábrica, e, consequentemente atraindo
muitas pessoas de diferentes culturas e hábitos. Não apenas os recém chegados, a
fábrica também, fez de muitos camponeses operários.
Em 1895 a Fábrica tinha 700 funcionários adultos e 800 crianças. Em 1913 o
número de funcionários saltou para 2700 funcionários (PIRES, 2018:250). Podemos
perceber um aumento significativo entre os anos que se seguiram, visto que o
empreendimento seguia a onda do crescimento e contratações eram necessárias. Bangu

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tornou-se um bairro operário especializado em tecidos e máquinas, contudo a atividade
agrícola não foi completamente abandonada.
As plantações de cana-de-açúcar existentes nas terras compradas pela
Companhia foram substituídas pelas de algodão, a fim de contribuir com as
necessidades básicas relativas à matéria-prima da Fábrica, sem que esta ficasse refém da
instabilidade do mercado. Entretanto a produção foi muito inferior ao esperado e o
plantio da cana-de-açúcar foi retomado. Produzia-se álcool, cachaça, melado e outros
produtos que serviam para o consumo dos moradores locais e eram vendidos para outras
localidades, aumentando a lucratividade da Companhia. Com um negócio bem sucedido
na área da agricultura, os arrendatários de terra da Fábrica começaram a diversificar
seus produtos, tornando-se um grande exportador de laranja e banana. Em 1936
enviaram cem mil caixas de laranjas-peras para Londres e em 1937 sua produção
aumentou para cento e cinquenta mil por safra do mesmo produto (SILVA, 1989: 52-
53) A integração da área rural com a fabril trouxe diversificação econômica o bairro de
Bangu. Mesmo com a redução da atividade rural familiar, devido à expansão da Fábrica
ao longo dos anos, ela não foi completamente abandonada. Ainda hoje muitos
moradores mantiveram em seus quintais pequenas plantações para consumo próprio ou
para vender de porta em porta.
Apesar desses números, quando olhamos para o mercado do bairro, houve uma
inegável retração da produção agrícola e desabastecimento. Oliveira (2006) tratou da
necessidade da Companhia investir no suprimento das necessidades comerciais locais.
Nesse sentido, no ano de 1900, a fábrica deu início às atividades da “Cooperativa do
Bangu”, ela “criaria [...] um mercado permanente numa área junto à fábrica, onde ela
concederia autorização para os sitiantes venderem seus produtos agrícolas, assim como
para outros comerciantes de fora.” Tal cooperativa eram constituídas pelos produtores
agrícolas do entorno que podiam colocar os seus produtos a venda, ao passo que os
operários poderiam fazer suas compras com desconto em na folha de pagamento.
Além da cooperativa, Pires (2018, p. 250-251) relata que a empresa estimulou a
fixação de sua força de trabalho em seus arredores, enfraquecendo o setor agrícola em
detrimento da liberação de suas terras para a construção de casas de alvenaria, ranchos e
sítios, mediante cobrança de aluguel. Essas medidas, acentuadas a partir de 1904 tinham
o objetivo de garantir a força de trabalho demandada pela fábrica e a liberação de terras
para serem utilizadas no plantio do algodão e construção de casas.

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Oliveira (2006) verificou o protagonismo da companhia na questão migratória
uma vez que mandara alguns emissários convidar famílias que residiam nas zonas rurais
do Rio de Janeiro para se mudarem para o bairro com a promessa de terras e trabalho na
indústria Pires (2018: 213) apontou a intenção da empresa em construir uma vila com
moradia para operários, pois muitos eram os problemas de habitação e saúde nos quais a
fábrica procurava intervir.
Assim, no vácuo do Estado na periferia, a fábrica assumia funções do poder
público, asfaltando e criando ruas, construindo vilas operárias, financiando atividades
recreativas como as ligadas ao Bangu Atlético Clube, canalizando os córregos que
vinham do Maciço da Pedra Branca, construindo e gerando escolas e posto de saúde.
Percebemos a aderência do fábrica na criação e perpetuação do bairro pelos
nomes de suas ruas que remetem a setores e funções exercidos na Fábrica, como: Rua
dos Estampadores, Rua dos Tintureiros, Rua dos açudes, Rua dos limadores, Rua da
Chita, Rua da Usina, entre outras. Assim, a Fábrica de Tecidos Bangu se fez como um
fator primordial para a organização da vida social e econômica do bairro. É difícil
encontrar alguém que não tenha algum familiar que não trabalhou na fábrica.

Imagem 1.2 – Mapa de Bangu (1939)

Fonte: Arquivo Nacional. Código de referência: BR RJANRIO 4T.0.MAP.27 - Dossiê

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O já referido livro de memórias, “Bangu 100 anos: o Bairro e a Fábrica”, foi
publicado por Silva (1989) como material historiográfico e comemorativo dos 100 anos
da fábrica. A obra revela detalhes o bairro, contando com grande suporte de
documentação primária, como plantas, contratos, fotos da fábrica e dos desfiles
realizados com os vestidos confeccionados com os tecidos da fábrica e fotos do time de
futebol.
Por ser feito por uma historiadora, o livro é elaborado a partir dos métodos e
técnicas necessários para o reconhecimento do trabalho como historiográfico. Contudo,
seu caráter comemorativo, frente a crise e ameaça de fechamento que a fábrica
enfrentava no momento de sua publicação, faz com que ele possa ser estudado também
como fonte primária, tal como faremos aqui. A autora, que é mestre em história social
pela UFRJ apontou os sérios problemas enfrentados pelos funcionários da época, não
apenas da Fábrica Bangu, mas em outros estabelecimentos fabris por todo o Brasil. Esse
aspecto generativo dos problemas se confronta com relatos positivados dos ex
funcionários.
Até que ponto a desindustrialização afetou a vida dos funcionários fazendo com
que estes alimentassem um grande saudosismo pela época em que trabalhavam na
Companhia, mesmo com toda a precariedade do trabalho e salários? Será que estamos
diante de um esquecimento histórico coletivo? Para Paul Ricouer o esquecimento está
ligado a ideia de fuga O esquecimento tem igualmente um polo ativo ligado ao processo
de rememoração, essa busca para reencontrar as memórias perdidas, que, embora
tornadas indisponíveis, não estão realmente desaparecidas.

1.2 - O fazer-se da classe operária banguense

Guimarães (1996) nos conta que por iniciativa do engenheiro brasileiro


Henrique Morgan Snell foi inaugurada a Companhia Progresso Industrial do Brasil. A
ata da Seção foi celebrada em seis de fevereiro de 1889 no salão do Banco Rural e
Hipotecário na rua da Quitanda, número 105. Consta que o capital social foi de três mil
conto de réis. Quase todo material empregado na construção da Fábrica e das vilas
operárias eram originários da Inglaterra , assim como a maquinaria que foi mandada
pela firma Platt Brothers andCo. Pires (2018) nos trás novos nomes: o comendador
Estevam José da Silva, o correspondente do Banco Rural e Hipotecário, Manoel

18
Antônio da Costa Pereira, representante do Banco Internacional do Brasil além do já
citado Conde de Figueiredo.
Ela nos explica que o surgimento da fábrica Bangu, assim como a Confiança
Industrial, que são as duas primeiras grandes indústrias têxteis fundadas no Rio de
Janeiro, foram criadas como sociedade anônima, estando relacionadas com a expansão
da indústria nacional durante o século XIX. Além dessas duas podemos citar ainda a
Fiação e Tecidos Carioca (1886), a Fiação e Tecidos Corcovado (1889), a Fábrica São
Cristóvão (1889), a Fábrica Cruzeiro (1891) e a Fábrica Bonfim (1891).
A Fábrica de Tecidos Bangu foi criada como um empreendimento capitalista
moderno para a época, com uma acentuada divisão social do trabalho e empregando
técnicas avançadas e equipamentos modernos. De acordo com Severino (2015:30a), a
fábrica Bangu iniciou suas atividades com dois mil postos de trabalho, os quais foram
preenchidos gradualmente. Pela quantidade de teares (1.221) importados é possível ter a
dimensão do tamanho e a capacidade da fábrica. Ao passo que para abrigar toda essa
força de trabalho e os meios de produção eram necessários grandes espaços, sendo
assim, o edifício principal da fábrica (com 174,9m x 106,6m).
Severino (2015b: 2), apresenta que havia alto índice de contratação de menores
para trabalhar na fábrica, mesmo antes de sua abertura oficial como fábrica de tecidos.
Ele defende que o trabalho infantil deve ser visto com a ótica da época, pois essa prática
era entendida como uma espécie de proteção, na qual a fábrica atuaria ajudando esses
meninos pobres ao colocá-los no mundo do trabalho. Em 1892, havia 94 crianças
trabalhando, todas mal vestidas, com o semblante magro e sofridas, além de não
possuírem calçados. Apesar da Fábrica ter sido fundada em 1889, só abriu a suas portas
no dia 8 de março de 1893, com 700 proletários, dentre eles, crianças de nove anos até
idosos de sessenta anos de idade, que produziam 9.500 metros de pano por dia, em 497
teares (SEVERINO, 2015b).
Consoante a Severino (2015b, p.94), no ano de 1896, o número de operários
passou de 745 para 1.083. Ao passo que de acordo com Pires (2018), após oito anos, em
1903, a fábrica contava com 1.212 trabalhadores (as), destes 80% de origem brasileira,
os outros 20% divididos entre Italianos e portugueses. No período pós-abolição, a
fábrica Bangu passou a empregar ex-escravos e negros (as) livres, assim como,
imigrantes recém-chegados, ou seja, um número grande de pessoas encontrou ali local
para vender a sua força de trabalho.

19
A fábrica Bangu no ano de 1910 era considerada como uma “cidade-fábrica2”
que vai se impor, gerando uma maior demanda por terra urbana. Neste período, o
número de operários da fábrica mais do que duplicou, passando de 1.286 em 1904 para
2.754 em 1912. Isto, de certo modo, explica o aumento verificado na renda de imóveis,
pois eram os próprios operários que estavam edificando as suas casas e pagando aluguel
pelo uso do terreno. Por sua vez, o crescimento do número de operários também geraria,
indiretamente, uma procura maior de terras para as atividades rurais, em função do
aumento da demanda local de produtos agrícolas (OLIVEIRA, 2006).
Em 1913 a Fábrica de Tecidos Bangu atingiu a marca de 2.700 proletários(as),
oferecia para eles vários benefícios sociais, contributivos de 3% dos seus salários, a
saber: assistência médica, assistência farmacêutica, ambulância, funeral, pagamento de
aluguéis considerados módicos, alguns operários e operárias tinham acesso a casas
iluminadas a luz elétrica e abastecidas com água potável, as ruas centrais também eram
iluminadas com eletricidade, escola gratuita, incluindo as creches para os filhos dos
funcionários, cursos profissionalizantes para capacitação de futuros funcionários. Os
concluintes da escola eram recompensados com oportunidades de trabalho na
fábrica.(PIRES, 2018: 251). Esses benefícios, no entanto, coexistiam com péssimas
condições de trabalho, os salários baixos e outros desvios da lei de proteção ao
trabalhador.
Pires (2018) aponta a importância do trabalho feminino e infantil nas fábricas
devido à sensibilidade exigida pela função, mas ao mesmo tempo nos explica o
pensamento que pairava na época sobre o trabalho da mulher operária. Militantes
argumentavam que a inclusão das mulheres no mercado de trabalho, contribuía para a
desvalorização dos salários, já que estas ganhavam muito menos que os homens, por
considerarem que seus salários eram meros complementos na renda familiar.
Segundo Boris Fausto (1976) a justificativa para o pagamento de salários
inferiores às mulheres se deve ao “excesso de mão de obra; incapacidade física e mental
da mulher; desinteresse de se manter no trabalho, pois seu objetivo seria o casamento;
falta de assiduidade”. Fraccarro (2019) desmonta esse argumento mostrando que as
mulheres eram maioria nas fabricas de tecidos, inclusive sendo elas que, muitas vezes,

2 O resultado da materialização das transformações ocorridas a partir de 1904, como a ampliação da


estação férrea e a chegada da luz elétrica é o surgimento de um novo arranjo espacial – o da “cidade-
fábrica”. Tal fato pode ser notado através da forma de tratamento à Bangu nos documentos da
Companhia. Até 1908 a forma mais comum de se referir à Bangu é a de “Arraial”. A partir desta data o
tratamento passa a ser de Villa “Bangú”.

20
iniciavam as manifestações contra duras condições de trabalho, por melhores salários e,
sobretudo, contra o assédio de cunho sexual de seus superiores.
Esse debate concernente à história social do trabalho é muito importante como
ferramentas para pensar a agência das trabalhadoras e trabalhadores que vivenciaram a
ascensão e fechamento da Fábrica de Tecidos Bangu. Nos capítulos que seguem iremos
transbordar a análise para o estudo específico do cotidiano dos banguenses,
considerando que a vivência na fábrica e no bairro foram partes constitutivas de sua
identidade coletiva. As festividades, os conflitos e as negociações giravam em torno da
presença da fábrica como mediadora das relações sociais e hierárquicas da comunidade.
A gestão da fábrica funcionava como poder local, dinamizando a produção, fornecendo
equipamentos públicos e promovendo a interlocução com políticos e representantes do
nível federal.

21
CAPÍTULO II
UM LUGAR PARA TRABALHAR E PARA VIVER

“Abalou Bangu!” Essa expressão é muito conhecida pelos cariocas esteve nos
palcos como peça de teatro e na novela “Suave Veneno” na voz da divertida
personagem Edilberto, em 1999. Devido a essas interferências foi atribuída à frase um
caráter cômico que não tinha em sua origem, que remonta o ano de 1958, como a grande
explosão de um paiol em Deodoro que teria sido sentida até em Bangu. A transformação
da tragédia em piada ajudou a construir no imaginário popular de um bairro
descontraído e alegre, o que rivaliza com o estigma dado ao grande complexo
penitenciário que abriga desde meados dos anos 1950 e por ser o lugar onde se registra
as temperaturas mais altas da cidade. Como vimos no capítulo anterior, a Fábrica de
Tecidos Bangu foi fundamental para construção desse bairro, nos interessa agora pensar
como seus habitantes viveram e construíram o complexo cultural que animou esse
bairro “quente”.
Nesse sentido, Chalhoub (2008) em “Lar, trabalho e botequim” mostrou que é
importante que os historiadores do trabalho saiam do chão da fábrica para entender
como os trabalhadores e trabalhadoras organizam seu cotidiano e suas lutas. O momento
do lazer pode ser definido, em linhas gerais como não trabalho, mas não deve ser
considerado isso apenas. O momento de lazer da classe trabalhadora tem a ver com as
alianças, com as formas de cooperação e demarcações hierárquicas entre ela no seu
tempo. Em Bangu não seria diferente, e o mais interessante para esse trabalho é
entender como atividades alheias a fábrica na memória local foi aproximada, enquanto
outras se descolaram.
A marca Companhia Progresso Industrial tinha muito prestígio nos eventos que
participava. Apesar de ser conhecida pelos tecidos que fabricava, ela não se limitava
somente na área têxtil, surpreendentemente dentro da fábrica se produzia vassouras,
escovas, e tinha um setor de azeitonas, conforme o depoimento da ex-funcionária Vera
Morad e Odete Maria. Mas além dos tecidos e outros produtos, a Fábrica produzia
também arte e entretenimento: a banda da fábrica que participava de vários concursos e
por vezes foram vitoriosos; o futebol que alcançou todo o país com sua popularidade e
técnica e por fim, os desfiles com os mais belos tecidos da Fábrica Bangu.

22
2.1 – Música e Futebol
Segundo a escritora Silva (1989), a primeira organização de caráter recreativo
foi a Sociedade Musical Progresso de Bangu, fundada em 24 de janeiro de 1892
composta por 36 operários da Fábrica. A princípio a banda fazia apresentações
informais em bailes e eventos oferecidos pela Companhia, posteriormente passou a
assumir o título de Banda da Fábrica Bangu. Oficialmente incorporada ao setor
recreativo da fábrica, seus integrantes receberam uniformes exclusivos da banda e
outros incentivos, como o maestro profissional José Pedro de Andrade e Anacleto de
Medeiros. Ambos eram artistas e operários, dividindo seu tempo entre a fábrica e a
renda que a boemia lhes revertia. Contudo, ao tornarem-se parte da banda da companhia
passaram a ter que selecionar os eventos nos quais participavam dado o caráter moral
que precisavam conservar. A banda participou de festivais como o Centenário da
Abertura dos Portos Brasileiros em 1908.

IMAGEM 2.1: Exposição Nacional de 1908 em comemoração ao Centenário da Abertura dos Portos
Brasileiros

Disponívelhttp://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon858131/icon8581
31.pjgacesso: 13/12/2019 às 14h

A banda da Fábrica Bangu foi muito importante para a sociabilidade dos


trabalhadores, seja amenizando o fardo de longas horas de trabalho, construindo
sentimentos de pertencimentos, fortalecendo identidades, unindo casais ou promovendo

23
o nome do bairro e da própria Companhia. Quem viveu nesse período, relata com
nostalgia as histórias da época de ouro da banda e dos desfiles.
Na medida em que o bairro foi ganhando mais notoriedade e recebendo novos
moradores, outras formas de lazer mais incrementadas foram surgindo e a indústria do
entretenimento ganhou mais espaço. Foi com o Futebol que Bangu teve maior
visibilidade no país. O time do Bangu Atlético Clube foi fundado em 17 de abril de
1904, mas o esporte já era praticado pelos trabalhadores antes da fundação oficial do
clube.3Vigorando entre o Clube dos 13, grupo de elite do futebol brasileiro, o Bangu, tal
como o Internacional Futebol Clube, nasceu de time de fábrica. Contudo, a memória
social sobre ambos os clubes difere bastante. Fortes (2004) apresentou o Inter como um
agrupamento de trabalhadores, bastante vinculados às lutas sociais que montaram o time
de futebol como uma forma de sociabilidade e recreação, mas também com um viés
político, visto que remetia a Internacional Comunista.
Como o objetivo desse trabalho é estudar a memória, não me detive aos
meandros da formação do clube, como fez Fortes (2004). O cerne das questões com o
clube do Bangu foi refletir sobre como ele, que há muito tempo não participa de um
torneio na Serie A, construiu sua popularidade. Como os tempos áureos do Bangu no
futebol nacional datam da primeira metade do século XX o clube mantém sua memória
vinculada à fábrica. Incontestavelmente existem fortes laços entre a Fábrica de Tecidos
Bangu e o time do bairro. Inclusive, seu primeiro estádio, construído em 1906 e
reformado em 1937 após um incêndio era chamado de “cancha encantada da Rua
Ferrer” por Ary Barroso, foi financiado pelo Diretor-Gerente da Companhia e
Presidente Honorário do Bangu, João Ferrer. Apenas em 1947 foi construído o Estádio
Proletário Guilherme da Silveira Filho, popularmente conhecido como Estádio Moça
Bonita, assim chamado devido a uma história contada pelos moradores do bairro de que
existia uma moça muito formosa que residia nos arredores da hoje então Estação de
trem de Guilherme da Silveira, que chamava a atenção dos alunos da Escola de Cadetes
de Realengo.

IMAGEM 2.2 – A “cancha encantada da Rua Ferrer”, com fundos para o terreno da fábrica de tecidos .

3Ver site oficial do Bangu Atlético Clube. Disponível em https://www.bangu-ac.com.br/bangu/sua-


historia/ Último acesso 13/12/2019.

24
Fonte: Site oficial do Bangu Atlético Clube. Disponível em https://www.bangu-
ac.com.br/bangu/sua-historia/ Último acesso 13/12/2019

Existe uma história popularmente conhecida que Thomas Donohoe, teria sido
um dos funcionários contratados pela Fábrica que, vindo da Inglaterra, trouxera a
primeira bola dentro de suas bagagens, supostamente de forma ilegal para o Rio de
Janeiro. Sabemos através do trabalho de Pereira (2000) que a história do futebol, que
veio a se tornar uma “paixão nacional”, tem uma trajetória marcada pela elite e que foi
tomada pelas classes populares, fruto de um longo processo de capitalização dos meios
de diversão, do lazer e da imprensa. Contudo, do ponto de vista da memória, o mito em
torno de Thomas Donohoe aponta para uma narrativa que busca amarrar a trajetória do
bairro a origem da própria identidade nacional.

Imagem 2.3 – Time do Bangu em 1914 com seus apoiadores da Fábrica de Tecidos, entre eles o
Diretor João Ferrer.

Fonte:https://www.ludopedio.com.br/arquibancada/joao-ferrer/ Último acesso em 12/12/2019 à 16h.

25
Além do futebol, outro esporte praticado pelos operários da Fábrica Bangu foi o
críquete4, que também tinha suas origens na sociabilidade da elite, mas acabou sendo
incorporado à recreação dos operários. Quando o clube se fundou oficialmente não era
apenas de futebol, como muitos pensam, mas contava também das atividades de
críquete, tênis e outros jogos variados. Tanto o futebol como o críquete passaram a
utilizar o mesmo espaço físico, de modo que revezavam os dias da semana para a
utilização do campo. Melo (2018) descreve que em 1904 nas quartas, sextas e domingos
de manhã se jogava críquete, enquanto o futebol se praticava nas segundas, terças,
quintas, sábados e domingos à tarde.
Melo& Junior (2018) descreve que o críquete, antes de ser jogado pelos
operários, era disseminado em regiões mais ricas. O esporte exigia poder aquisitivo,
pois seus aparelhos eram considerados de alto custo, a ponto de constar no programa de
embelezamento da cidade promovido por Dom Pedro II, pelo qual criou vários novos
parques, inclusive o de Laranjeiras para a prática do esporte.
Dessa forma, tanto o futebol, quanto o críquete em finais do século XIX não
eram comumente praticados pelos membros das classes populares. A fábrica surgiu
como um fator de transformação, educação e progresso. Por mais que tenha enfrentado
resistência o apoio da direção, corporizado em Ferrer, para a prática de esportes aponta
para essa direção. Ainda assim as diferenças entre os trabalhadores eram muitas e ficava
impressas na forma como eles se relacionavam. Mesmo com a ação da fábrica, as
associações esportivas tinham um papel fundamental para os operários ingleses que
vinham trabalhar no Brasil. Era uma forma de se afirmarem como ingleses, ao mesmo
que marcavam a diferença com brasileiros e outros imigrantes. Percebemos isso pois o
time de futebol do Bangu era formado por brasileiros, anglófilos e seus descendentes,
enquanto o time que de críquete era formado exclusivamente por membros da colônia
britânica.
As associações representavam a outra parte da vida do funcionário, onde este
podia reivindicar seus direitos e expor suas preferências. Enquanto dentro das fábricas,
durante o expediente de trabalho, esses operários deviam adaptar seus corpos ao bom
desempenho da produção sem questionar; nas associações eles podiam fazer parte de
tomadas de decisões e até mesmo protestar contra injustiças ou por melhorias.

4Jogoque se disputa em um gramado, entre duas equipes de 11 jogadores, com pequena bola maciça e pás
de madeira para batê-la e rebatê-la entre as balizas de um lado e do outro.

26
Contudo essa ação tinha um limite. A diretoria da Fábrica controlava em certa
medida as ações da associações, pois ao ajudar financeiramente os times, na compra de
materiais, nas doações dos terrenos para construção de campos e na manutenção destes,
a companhia exigia a retribuição no que tange a palavra final das decisões tomadas,
como podemos ver de forma clara no Estatuto do Bangu Athletic Club: “que o
presidente honorário do clube será sempre o diretor gerente da Comp. Progresso
Industrial do Brasil, que será consultado em todas as resoluções tomadas pela diretoria
estranha a estes estatutos” (DIÁRIO OFICIALDO RIO DE JANEIRO: 1918, p. 2510)
Essa postura por parte da companhia denota uma explicita preocupação com as
ações das associações, pois, como se sabe, os esportes praticados dentro das
dependências das Fábricas serviam como uma espécie de cartão de visitas. A imagem de
uma empresa preocupada com o bem estar de seus funcionários e com a integração entre
eles, fazendo com que esses benefícios refletissem numa produção satisfatória, evitava
greves e contribuía com o ideal de progresso.
Esses benefícios lembrados pelos memorialistas, e até mesmo pelos ex-
funcionários, com exaltação esconde conflitos que vem à tona ao se instigar a memória
dos entrevistados. Apesar da memória confortável, o cotidiano da fábrica foi marcado
por manifestações e greves provocadas pelas más condições trabalho, salários
defasados, longas horas de trabalho e trabalho infantil.

2.2 - Cinemas, Clube e Carnaval em Bangu


A expansão da indústria cinematográfica para os subúrbios está inserida no
contexto do processo de modernização ocorrido no final do século XIX e início do
século XX na Cidade do Rio de Janeiro. Inicialmente os cinemas eram concentrados no
Centro do Rio de Janeiro, entretanto a construção da linha férrea possibilitou a
descentralização das atividades comerciais, e ao mesmo tempo permitiu que o público
tivesse mais opções de entretenimento. A dinâmica social foi estimulada pela
eletrificação da linha Central afirmando a importância dos trens para a população do
Rio de Janeiro (DUARTE: 2001).
Bangu seguiu o processo de modernização financiado pela Fábrica de Tecidos:
melhoria nas ruas, moradias, água encanada, pequenos comércios, energia elétrica,
escolas, creches, hospitais e uma linha férrea cortando a localidade. Com toda essa
estrutura, a indústria cinematográfica era o que faltava para compor o quadro do
progresso da região.

27
Bangu teve vários cinemas, Guimarães (1996,18) revelou que o primeiro
Cinema foi o Ítalo-Brasil, localizado no Marco Seis, que em 1914 passou a se chamar
Cine Recreio, ao mesmo tempo, o Cine Estrela funcionava na Rua Coronel Tamarindo.
Em 1920 foi fundado o Cine Bangu, localizado na Rua Ferrer entre a travessa da
Fábrica e a Estrada Rio-São Paulo. Logo depois surgiu o Cinema Moderno, tendo como
proprietários a família Ferreti, situado na estrada do Retiro, onde atualmente é a
Avenida Ministro Ary Franco.
O cinema Vitória (1928 a1981), era localizado na Avenida Santa Cruz, 231,
atual Avenida de Santa Cruz,1745 de frente para a estação férrea. Possuía em 1937, 837
lugares e tinha uma fachada muito pomposa. Recebia pessoas de todas as classes
sociais. Localizado muito próximo a Fábrica Bangu, recebia também os operários que
depois do expediente ou nos dias de folga, aproveitavam para curtir as horas vagas
assistindo filmes. Em 1981 o cinema é demolido para dar lugar a um edifício
comercial.5
Imagem 2.4 – Fachada do Cine Vitória

Fonte:https://cinefechadoparareforma.wordpress.com/2016/02/21/cine-vitoria-bangu-rj/último acesso em
14/02/2020 às 14h

Em 15 de março de 1963 foi inaugurado o cine Matilde, localizado onde é hoje a


Galeria Matilde na Rua Ministro Ary Franco, no Centro de Bangu. Este empreendimento
era equipado com tudo o que era de mais moderno na época, inclusive com um sistema de
ar condicionado que para ser instalado, necessitou de melhorias na rede elétrica da rua e
que por problemas burocráticos e legais para fazer as obras necessárias, precisou alterar o
nome de Estrada do retiro para Avenida Ministro Ary Franco. Os moradores de Bangu
falam até hoje com orgulho do Cine Matilde:

5Informações
fornecidas pelo vídeo “História do cinema Vitória em Bangu” fornecido pela página Eu
Moro em Bangu. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=cJBp44uowI8

28
O Cine Matilde comparado aos outros era bem maior e mais bonito. As poltronas
eram de madeira. O Cine Vitória era menor. Algum tempo depois o cinema Matilde
teve ar condicionado. Os outros tinham ventiladores mesmo. Mas naquela época, em
Bangu não fazia esse calor todo não. Tinha mais árvores e o chão era de terra batida.6

A chegada do Cinema em Bangu influenciou de modo significativo o dia-a-dia


dos banguenses, desde os cortes e estilos dos cabelos e na moda também com as meias
soquete, as calças compridas e até os shorts. Assim como os desfiles de miss Bangu
realizados pela própria Fábrica de Tecidos, o cinema representou mais um elemento que
possibilitou o contato com outras culturas e consequentemente um aquecimento na
indústria têxtil, já que esta fornecia os tecidos necessários para a confecção de roupas e
fantasias da moda. Deste modo, até os bailes de carnaval foram influenciados pela onda
cinematográfica.

Imagem 2.5- Carnaval na Rua Cônego de Vasconcelos, antiga Rua Ferrer, 1939

(Fonte:ArquivosPrivados do Museu de Bangu)

O Carnaval era socialmente ligado ao clube esportivo e aos cinemas em Bangu. Nos
dias de folia, o Bangu atlético Clube e os Cinemas realizavam em seus espaços, grandes
bailes de carnaval: na foto acima, uma grande faixa anunciando o baile de carnaval no
Cine Vitória. Os filmes que ficavam em cartaz ao longo do ano, viravam inspiração para
as fantasias:
E chegavam os piratas do filme “Os Piratas dos Sete Mares”, os legionários
de “A Legião Estrangeira”, os cowboys, e as índias e os índios saídos dos
faroestes e os mexicanos copiados de Carlos Ramires. Dos belos musicais

6 Depoimento cedido por Maria Odete Batista de Melo no dia 30/12/2019.

29
“Aí vem a Marinha”, “A Filha do Comandante”, “Duas Garotas e um
Marujo, escapuliam os marujos americanos para brilhar em nosso club.
(Guimarães, 1996:36)

Os três dias de folia eram planejados meses antes com muita animação e ao
mesmo tempo muita seriedade. Duas semanas antes do carnaval, a entrada do clube só
era permitida à diretoria e aos operários que se empenhavam na ornamentação do baile.
O empenho em se fazer uma linda festa de folia, era estimulada pela pretensão interna
de diversão e externa no propósito de usar o Carnaval como mais um item no cartão de
visitas do bairro.

2.3 - Desfiles de moda – Miss elegância

A moda brasileira foi alvo de muitas discussões principalmente nos anos 50.
Quando a fábrica Bangu fez o primeiro desfile de modas do Brasil. Houve um esforço
muito grande em criar um estilo brasileiro, porque a concepção de moda que se tinha era
a francesa. Apesar das grandes propagandas promovendo o algodão brasileiro, o
resultado era inspirado nas passarelas parisienses. Havia uma grande campanha em
torno do modelo desenvolvimentista e da identidade nacional, principalmente porque
estávamos nos reafirmando como uma nação com a criação de Brasília no governo de
JK, Bossa Nova e a moda era um elemento indispensável nesse contexto. A moda era
uma inspiração para mulheres de todas as classes e mesmo aquelas que não podiam
comprar um tecido sofisticado, queria imitar os estilos das passarelas(BRAGA;
PRADO:2011, 199 - 209). Esse assunto foi alvo de muitas críticas na mídia:
IMAGEM 2.6 – Entrevista da Coluna do Heron Domingues, do Jornal A Noite em 30/08/1955.

Fonte: Biblioteca Nacional. Disponível


em:http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=348970_05&pagfis=31848&url=http
://memoria.bn.br/docreader#

30
Apesar de a moda parisiense ter uma influência muito forte no cenário brasileiro,
os desfiles nacionais, principalmente os produzidos pela Fábrica Bangu, foram muito
importantes para a construção da moda brasileira, porque incentivaram a discursão
sobre o assunto e a criação de movimentos como a FENIT( Feira Nacional da Industria
Têxtil), que tinha como objetivo promover a industrial têxtil e os estilistas nacionais.
Com o objetivo de tornar a moda mais acessível às camadas menos favorecidas
da população, o estilista Alceu Pena, grande nome da moda Nacional, publicava
semanalmente na revista “ O cruzeiro” com a coluna “ As garotas do Alceu” modelos de
roupas que eram copiados pelas brasileiras. Nos anos cinquenta e sessenta, a máquina
de costura era um utensílio bem comum nos lares e as costureiras dos bairros também
(BIANCO & BORGES: 2004,240). Era comum que se comprassem tecidos para as
costureiras confeccionarem as roupas, como relata Maria Odete, antiga moradora do
Bairro de Bangu que diz: “Nós comprávamos o tecido nas lojas da Fábrica Bangu e
pedíamos às costureiras para fazer igual os das revistas. Naquela época não tinha muita
loja. Só lá para Zona Sul mesmo e era muito caro.” Nesse sentido não era incomum
encontrar pelas ruas mulheres ricas e pobres usando o mesmo modelo de vestido, sendo
a única diferença a qualidade dos tecidos.
Como patrocinadora de muitas iniciativas, a Fábrica de Tecidos também se
envolvia com projetos beneficentes. Foi em uma reunião dessa natureza que a Candinha
Silveira, esposa do dono da Fábrica, Joaquim Silveira, teve a ideia de promover desfiles
com os vestidos feitos com os tecidos da Fábrica para angariar fundos para a Pequena
Cruzada, uma das Instituições “apadrinhada” pela Companhia.
Segundo Silva (1989:135) inicialmente a ideia do concurso não tinha maiores
pretensões além do caráter beneficente, tanto que para a realização do desfile D.
Candinha contou apenas com a colaboração de umas amigas que a ajudou nos
preparativos e participando do desfile que aconteceu no salão do Copacabana Palace.
Entretanto com o grande sucesso do evento, a idealizadora do projeto e seu marido
viram uma grande oportunidade de ampliar o alcance da marca para todo Brasil e para o
exterior também.
Aproveitando o período de expansão da Fábrica e o seu investimento no futebol
formando uma excelente equipe no Bangu, Guilherme da Silveira Filho, decidiu inovar
utilizando o futebol e os desfiles como veículo de propaganda para a Companhia. Um
ano após o primeiro desfile, a Fábrica Bangu começou a desenvolver o projeto

31
profissionalmente lançando a nova estratégia de marketing com alcance internacional.
Dona Candinha contratou o costureiro francês Falth, grande nome no ramo da moda na
época e que colaborou com a apresentação do algodão brasileiro promovendo uma
grande festa em seu castelo em Paris. A festa contou com a presença de grandes nomes
no ramo da moda, da alta sociedade e um avião fretado pela Companhia transportando
grandes jornalistas, mulheres que participariam do desfile na festa de Fath e a orquestra
Tabajara da Companhia comandada por Severino Araújo, que tocou a festa inteira.

Imagem 2.7 -Foto de Carlos Moskovics/IMS. Participantes do concurso de moda Miss Bangu em estádio
de futebol. Rio de Janeiro, Brasil, década de 1950.

Disponível em z

Em 1952 Fath veio ao Brasil realizar desfiles em São Paulo, Rio de Janeiro e
Salvador. Nos anos seguintes começou, de fato, o concurso Miss Elegante Bangu. A
equipe de produção era formada pela própria Candinha da Silveira, a jornalista Gilda
Robichez, o desenhista José Ronaldo e o Radialista Ribeiro Martins, que se
desdobravam para realizar esse grande evento. Tudo começava com o Ribeiro Martins
entrando em contato com os clubes, porque cada modelo representava um time, e a
Candinha da Silveira e o estilista José Ronaldo escolhiam as moças que participariam
do desfile. Logo em seguida eram escolhidos os tecidos e imediatamente repassados às
costureiras para confeccionaram os vestidos dos desfiles, logo depois acontecia as
provas das vestimentas, dos sapatos e outros acessórios que as modelos usariam no
evento. O concurso ganhou uma projeção maior ainda quando começou a ser

32
transmitido pela Rádio Nacional, pelos Diários Associados através da figura ilustre do
proprietário Assis Chateaubriand e pelo jornal O Globo, onde o colunista Ibrahim Sued,
grande admirador dos tecidos da Fábrica Bangu, começou a ser conhecido na mídia e
entrou para grupo de divulgadores dos concursos (SILVA, 1989:142).
De acordo com Silva (1989:143) o prêmio do concurso para a modelo vencedora
era uma viagem à Europa com todas as despesas pagas pela Companhia Progresso
Industrial do Brasil. Mas quais a origens dessas moças que desejava tamanha exposição
e sucesso? Tanto se falava das participantes na época dos concursos, várias reportagens,
entrevistas e participações em grandes eventos. O que se sabe é que apesar do concurso
se chamar “Miss Elegante Bangu”, ele era aberto a candidatas de todos os estados
brasileiros. Mulheres de todo o país usavam o tecido fabricado pela Bangu e nada mais
justo abrir o concurso para todo o Brasil. No começo dos desfiles as próprias operárias
eram as modelos e frequentemente conseguiram iniciar uma carreira artística ainda que
meteóricas (BRAGA; PRADO: 2011, 199 – 209).

33
CAPÍTULO III

FIOS DE MEMÓRIAS – ENTRE O PRESENTE E O PASSADO

3.1 Um museu que guarda a história de Bangu


“A memória de Bangu está preservada neste local”, diz o grande letreiro situado
ao lado da porta de entrada do Museu de Bangu. Apesar do pequeno espaço, o
estabelecimento cultural, guarda mais de oito mil fotos, livros, documentos, postais e
selos. Este grande esforço tem como objetivo manter viva a história do bairro e reforçar
os laços sociais entre os moradores. Jacques Le Goff (2003, 467) argumentou que a
História Nova tem tratado a memória coletiva a partir dos “níveis em que o individual
se enraíza no social e no coletivo (linguística, demografia, economia, biologia, cultura)”
e do estudo dos
lugares da memória coletiva (...): Lugares topográficos, como os arquivos, as
bibliotecas e os museus; lugares monumentais como os cemitérios ou as
arquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os
aniversários ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais, as autobiografias
ou as associações.

Com as mudanças sociais e sociedades cada vez mais diversificada, é


fundamental entender o processo de constantes empréstimos que formam as identidades
no interior dos grupos sociais. Nesse sentido a identidade está relacionada com a
memória na medida em que elas formam uma herança de significados, diretamente
relacionados a um discurso que legitime a ideia de pertencimento (SOUSA, 2008: 4,5).
Segundo Benevenuto Rovero Neto7a ideia de um Museu em Bangu surgiu de
uma conversa casual entre os amigos Murillo Guimarães, Benevenuto Rovere Neto e
Fernando Pita na Padaria Mercúrio, em 1994. Nascidos e criados na região, os amigos
resolveram criar um museu para reunir as histórias do bairro. Após várias reuniões, em
24 de maio de 1994 é fundado o Grêmio Literário José Mauro de Vasconcelos. Este
nome presta duas grandes homenagens: à Sociedade Congênere, inicialmente com o
nome Grêmio Philomático e depois grêmio Literário Rui Barbosa, que funcionou em
Bangu no período de 1907 a 1939, na vila operária e que foi o primeiro polo cultural de
Bangu. E ao renomado escritor José Mauro de Vasconcelos, que nasceu no bairro de

7 Jornal Extra. “Um Museu que guarda a história do bairro”, Domingo, 27/09/2009, 3º edição.

34
Bangu em 26 de fevereiro de 1920 e escreveu vários livros, dentre eles “O meu pé de
Laranja Lima”, que conta a história da infância do escritor vivida em Bangu.

Imagem 3.1 - Foto da fachada do Museu de Bangu

Fonte: Grêmio Literário José Mauro de Vasconcelos

Inicialmente o Grêmio Literário José Mauro de Vasconcelos funcionava numa


sala cedida pela Associação Comercial e Industrial da Região de Bangu, na Avenida
Santa Cruz, 4425. Em 1996 com ajuda do Administrador Regional de Bangu, Marcelino
D’Almeida, o Museu ganhou a concessão junto à Prefeitura do espaço que ocupa,
localizado na rua Silva Cardoso, 349 – A.

Imagem 3.2 -Museu literário fazendo a propaganda de evento realizado no Teatro.

Fonte: Museu de Bangu. Disponível em:


https://www.facebook.com/museudebangu/photos/a.102166174607785/109261933898209/?type=3&thea
ter

35
Em conversa informal com Benevenuto Rovere, Presidente do Museu, foi
colocado que o estabelecimento recebe em média setenta visitas por dia, entre
estudantes e moradores interessados na história do bairro. O Museu sobrevive com a
venda de livros, com serviços de cópias, e com as aulas de desenho, de pintura em tela,
artesanato e de pequenas doações feitas pelos visitantes.
O Museu mantém uma constante integração com o Bangu shopping, local onde
ficava a Fábrica Bangu. Seja divulgando eventos do cinema e do teatro que ficam
localizados dentro do Shopping, ou expondo as artes dos seus alunos dentro do próprio
Shopping. Essa integração social entre os estabelecimentos culturais de Bangu, é uma
forma de ampliar a promoção das atividades culturais do bairro e ao mesmo tempo
acompanhar os avanços tecnológicos que afastam cada vez mais os visitantes dos
Museus e teatros. Nesse sentido, o Museu Literário de Bangu tem a missão de
divulgar e incentivar realizações culturais, feiras de livros, palestras e seminários;
defender a livre manifestação de todas as formas de culturas, desenvolver eventos
culturais e educacionais e manter em exposição permanente um acervo com fotos,
documentos e objetos8.

Imagem 3.3 - Foto interna do Museu de Bangu

Fonte: Arquivos Privados do Museu Literário José Mauro de Vasconcelos

8 Arquivos privados do Museu Literário José Mauro de Vasconcelos

36
3.2 – Tecendo memórias femininas
Quando a fábrica começou a funcionar o bairro de Bangu passou a se
desenvolver como uma região industrial que perseguia um ideal de modernidade e
progresso. A região que antes era rural se tornou um típico bairro urbano, e as
transformações puderam ser percebidas na forma que os indivíduos vivenciaram seu
cotidiano. Ondas migratórias, novas redes de transportes, construções de vilas operarias
e favelização marcou a história do bairro que em muito teve na fábrica seu maior
alicerce. Entre os últimos anos do século XIX e as primeiras décadas de 1920 foram
construídas a Estação Ferroviária de Bangu (1890), o ramal ferroviário de Santa Cruz
(1892), a Paróquia de São Sebastião e Santa Cecília, (1908), entre outras obras que
mexeram com a estrutura física e social do bairro.
Além de ser fundamental para o processo de urbanização de Bangu, a fábrica de
tecidos marcou as vidas de muitas pessoas que lá trabalharam. Essa pesquisa tem como
parte das fontes os depoimentos prestados por Vera Lúcia Morad de Melo e Irani
Nascimento. A primeira foi operária da fábrica e a segunda é filha de uma ex-operária
chamada Leonor Ferreira do Nascimento9.
Esses dois depoimentos foram selecionados por questões metodológicas,
primeiramente, era de meu desejo trazer a experiência de mulheres para tratar sobre o
tema da história do trabalho, que apesar de esforços como os de Gláucia Fraccaro
(2018) há pouco tempo ainda era um tema marginal no campo. A segunda questão teve
a ver com pensar como gerações diferentes de mulheres lidam com o tema da memória
sobre a Fábrica de Tecidos Bangu. Para fins de transcrição dos depoimentos usaremos
V.L. para referência a Vera Lúcia e I.N. para referência a Irani Nascimento, conforme
especificado nas Normas da ABNT.
O primeiro questionamento girou em torno do primeiro contato que elas tiveram
com a Fábrica de Tecidos. Vera Lúcia fora admitida na Fábrica em maio de 1966. Já
Irani Nascimento prestou seu depoimento considerando as memorias que tem sobre o
que sua mãe lhe contou sobre o tempo que trabalhou na fábrica. Irani afirmou que sua
mãe se tornou funcionária em dezembro de 1942. Ambas tinham documentos que
provava a admissão na data assinalada.
V.L. - Comecei a trabalhar na Fábrica Bangu com 16 anos como Balconista, mas
depois fui para o setor que fazia vassouras e escovas. Naquela época, a gente
começava a trabalhar cedo, sabe?

9Foram seguidos todos os procedimentos éticos na colheita dos depoimentos, assim como fora assinado o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE por mim e pelas participantes.

37
I.N. - Não me lembro muito bem como ela conseguiu o serviço, acho que nunca
perguntei e ela nunca falou. Minha mãe faleceu com 100 anos. O que eu sei da
Fábrica Bangu, é o que minha mãe me contava. Eu não era nem nascida. Ela
trabalhou como fiandeira da Fábrica. Era uma mulher muito batalhadora.

O período em que as duas operárias entraram na fábrica marcou fortemente a


experiência e a memória sobre o estabelecimento. Vera Lucia começou a trabalhar já na
época da Ditadura Civil Militar, enquanto Leonor vivenciou, não apenas o Estado Novo
e sua retórica trabalhista, mas também a chamada “república sindicalista”, que marcou
os anos entre 1945 até o golpe em 1964, com forte discurso e mobilização sindical. Vale
a pena marcar também que Leonor era uma mulher negra e solteira, dessa maneira, o
relato de sua filha traz toma uma proporção ainda mais interessante, pois trata de um
grupo bastante invisibilizado nos estudos do movimento operário brasileiro – o das
mulheres negras provedoras do lar e de sua família. Vera Lucia e Leonor eram pessoas
comuns e suas experiências revelam o cotidiano e as expectativas que poderia ser de
outras mulheres pobres.
Sobre o trabalho e a atividade feminina em meios fabris, trazendo a experiência
de São Paulo, Weinstein (2000) nos fala das expectativas das mulheres trabalhadoras
inspiradas pela cultura de massa e os sonhos de uma casa equipada com
eletrodomésticos modernos nos anos 1950 e 1960. Essas mulheres sabiam sobre corte e
costura, através das associações de patrões recebiam cursos forjando certa ascensão
social por reproduzir, pelo menos nos sonhos e no comportamento, as expectativas da
elite e da classe média.
Esse ideário mostrado por Weinstein (2000) corresponde a missão de provedora
do progresso nacional que as grandes empresas incorporavam a sua retórica e que era
corroborado pelo Estado. Uma das ramificações dessa missão era promover a educação,
a cultura e a higienização dos funcionários. Dessa forma a Fábrica de Tecidos Bangu
oferecia condições melhores de trabalho quando comparado às outras possibilidades no
mercado. Podemos perceber a importância da fábrica no plano nacional através da visita
de Juscelino Kubistchek, por conta da inauguração de obras de melhoramento no bairro.
Em 1955 foi feita em sua homenagem um jantar de gala com a presença dos
funcionários. Destacamos essa imagem na qual ele se encontra cercado pelas operárias e
operários, todos em trajes finos.

Imagem 3.4 – JK na sede da Fábrica de Tecidos Bangu (1956)

38
Fonte: Arquivo Nacional. Área de Identificação: BR RJANRIO EH.0.FOT, PRP.6562

A tese que o trabalho na Fábrica Bangu não era a única possibilidade de


emprego no bairro, embora certamente fosse uma das melhores oportunidades aparece
nas entrevistas feitas por mim. Nos relatos é possível perceber que apesar da
incontestável centralidade da fábrica na vida comunitária, a inserção em suas fileiras
não era automática para todos os moradores, mas entendida como uma possibilidade de
ascensão pelas camadas subalternas da população. No depoimento de Leonor a
dimensão do racismo aparece como ênfase fora da fábrica, ao apontar que a negritude
dificultaria o trabalho como lavadeira, posto que a “desconfiança” teria a ver com a
possibilidade de roubo.

V.L.- Meu pai ganhava pouco e minha mãe era do lar e o dinheiro mal dava pra
sustentar a mim e aos meus irmãos. Um dia uma conhecida da minha mãe que
trabalhava na Fábrica, disse que estavam contratando pessoas e então eu fui fazer
minha inscrição e na semana seguinte fui chamada. Eu fiquei feliz, porque naquela
época as moças de famílias pobres, trabalhavam lavando roupas pra fora e
cozinhando e eu comecei trabalhando numa Fábrica, um trabalhinho um pouco
melhor, porque tinha carteira assinada e férias.

I.N. - Aos 12 anos minha mãe lavava roupas pra fora e carregava trouxas
pesadíssimas na cabeça. Passou muitos apertos e naquela época, mamãe dizia que
pra mulher pobre e de cor as coisas eram mais difíceis. Parece que era difícil
arrumar cliente porque as pessoas eram muito desconfiadas, sabe? Mamãe fez isso
por muitos anos, até que com vinte e poucos anos ela arrumou esse trabalho na
Fábrica.

39
Assim, as entrevistadas ao tratar das condições de trabalho ressaltam os pontos
positivos do trabalho na fábrica, marcando os benefícios oferecidos. Um dos assuntos
mais citados foi a presença de creche, que é uma demanda fundamental para a mulher
trabalhadora até hoje negligenciada pelo poder público. Também foram ressaltados
pontos que deveriam como a assinatura da carteira de trabalho, que garantia os direitos
trabalhistas estabelecidos por lei. Ou seja, dito de outra maneira, a fábrica era um bom
lugar para trabalhar porque oferecia condições mínimas que não eram oferecidas pelas
outras opções de trabalho disponíveis no mercado. No contexto social atual, marcado
pela acentuação do neoliberalismo, aumento crescente do desemprego e informalidade
essas memórias se positivam dado ao sentimento de perca e incerteza sobre o futuro dos
atuais moradores.

V.L-Eu gostava muito! Sem falar que era perto da minha casa, eu ia a pé pro
trabalho. Eu me dava bem com todos lá dentro. Trabalhávamos muito, mas era bom!
Tinha creche para as crianças, escola onde até funcionários da Fábrica estudavam.

I.N. ela (sua mãe) falava que gostava de trabalhar na fábrica. E na época, o único
lugar onde se empregava com carteira assinada, perto de casa era na Fábrica Bangu.
Não tinha outra empresa por aqui. Bangu estava começando a crescer e foi por causa
da fábrica. Fizeram muitas obras, construíram casas para os operários, a Igreja Santa
Cecília, depois veio a escola.

Padrões do que significava os valores da família operaria, na qual o marido


exercia a função de provedor financeiro e a mulher “reinava” no lar pode ser percebido
no relato de Vera Lúcia ao relembrar que após contrair matrimônio deixou o emprego
apesar dos benefícios. Fraccaro (2018) aponta que em algumas empresas do Brás apenas
admitiam mulheres solteiras por questão de moralidade, sendo elas demitidas ao casar-
se. Além da moralidade, a possibilidade da maternidade e a necessidade de afastamento
do trabalho mobilizavam os empregadores. A noção de pertencimento da mulher à
família e a ideia da renda feminina como complementaridade estava presente dentre as
trabalhadoras que tinham a possibilidade de vislumbrar essa realidade. Vera Lucia não
soube precisar com exatidão quanto tempo trabalhou como dona de casa, ao tentar
voltar ao mercado de trabalho, certamente devido problemas econômicos, encontrou
situação adversa.

V.L. - pedi demissão, porque casei e tive minha filha. Fiquei um tempo em casa e
depois ficou mais difícil voltar a trabalhar lá, porque ficaram um bom tempo sem
contratar, então fui trabalhar em outro lugar bem mais longe, numa fábrica de
vassouras.

40
O relato de Irani Nascimento é mais duro do que o de Vera Lucia, o que nos
mostra que Leonor encontrou dificuldades outras. A dimensão da cor aparece no
discurso de Irani lembrando que “mamãe dizia que pra mulher pobre e de cor as coisas
eram mais difíceis”. Irani explica essa frase alegando que acredita que a mãe falava
sobre as pessoas “serem desconfiadas”, ou seja por se tratar de uma mulher negra ela
poderia roubar.
Diferente de Vera Lucia que achava o trabalho na fábrica muito bom, segundo o
relato de Irani, Leonor “trabalhava muito e ganhava pouco”, e por isso, mesmo
trabalhando na fábrica precisava continuar lavando roupa para fora. Assim, Irani mostra
a mãe como uma mulher humilde, mas independente através da imagem do cachimbo e
do fumo de rolo, destacando que mesmo com todos os benefícios oferecidos pela fábrica
de tecido, o salário era incompatível com o trabalho exaustivo. Vale lembrar que Leonor
era a responsável pela sua família composta por ela e seus dois filhos.

I.N. Mamãe ganhava muito pouco. Mas nas horas vagas continuou a lavar roupas
pra fora. Mamãe fumava cachimbo desde cedo, pegou essa mania por causa do meu
avô, pai dela, que foi escravizado. Mas ela dizia que o pai dela fumava fumo de rolo.
Mamãe também começou com fumo de rolo, mas um senhor, colega dela que
também trabalhava na Fábrica Bangu, deu o primeiro cachimbo pra ela. Fumou
cachimbo até o dia de sua morte.

Apesar da importância para a vida econômica local e de mobilizar todas essas


questões com respeito ao trabalho feminino e a possibilidade de diferenciação de cunho
racial, em finais da década de 1970 a fábrica começou a dar sinais de crise. Logo
começaram as demissões e os rumores de fechamento da fábrica, que tomou vulto nos
anos 1990, mas se concretizou apenas em 2004 efetivamente. Após o fechamento da
Fábrica de tecido, as únicas opções que restaram para os moradores e ex-funcionários de
Bangu, fora se locomover para trabalhar no centro da cidade, ou em trabalhos informais.
Uns lavavam roupas para fora, cozinhavam, assumiram funções de empregadas
domésticas, outros viraram vendedores ambulantes, ou abriram pequenos comércios em
suas próprias casas. Outros tiveram que buscar sua fonte de renda em outros bairros,
principalmente no Centro do Rio de Janeiro, enfrentando para tanto, longas horas de
viagens, trabalhos precários e salários baixíssimos.

V.L.-Anos depois a Fábrica Bangu foi enfraquecendo até que fechou, né? Muita
gente desempregada, algumas pessoas se viraram como pode: ou abriu um negócio
próprio, ou foram arrumar emprego mais longe, lá pro Centro.

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I.N- Depois que saiu da fábrica, mamãe trabalhou em casa de família. Mas o que ela
sabia fazer e acho que até gostava, era de lavar roupas para os outros. Tanto que
lavou roupa para fora até os 75 anos.

A partir de 2007, após o término das atividades da fábrica, em seu prédio passou
a funcionar o Bangu Shopping. Ele manteve as características arquitetônicas originais
da Companhia Progresso Industrial do Brasil, fundada no século XIX. Contudo, não
comportou a mesma demanda de mão de obra da antiga fábrica. Dantas (2015) ressalta
que a entrevista de Wagner Ferreira, presidente da Associação Comercial e Empresarial
da Região de Bangu, que ao ser questionado sobre a idealização do Bangu Shopping, diz
que o projeto foi pensado na década de 1990 e a falência da Fábrica Bangu nos seus
estertores imobilizava uma área que era o coração do bairro.
Segundo ele algumas pesquisas indicavam que havia uma classe com grande
poder de compra, mas que não consumia no bairro, deslocando-se para a Barra, Campo
Grande e até mesmo a Zona Sul. O shopping teria a função de diminuir a evasão de
divisas do bairro. A dificuldade do setor de varejo empregar o grande volume de mão de
obra disponível no bairro fez com que as imediações do shopping se tornassem pontos de
camelôs. A alta rotatividade dos empregos formais em lojas e no próprio Shopping
Bangu é parte do trabalho inseguro e precário bastante disputado pela população local.

42
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em 5 de fevereiro de 2004 a Companhia Bangu fechou as suas portas e encerrou


de vez as suas atividades. Moradores e pesquisadores não possuem mais acesso à
Fábrica Bangu. Acabaram os ruídos das máquinas, o estridente apito que acordava os
funcionários às cinco horas da manhã, as multidões com seus passos apressados a fim
de começar mais um dia de jornada de trabalho às seis horas da manhã, enfim, uma
sensação de luto e nostalgia paira sobre os banguenses.
A faceta liberal e desindustrializante do capitalismo devorou as certezas, a
estabilidade, os processos imutáveis de trabalho e o estilo de vida, nem sempre pacato,
mas sem grandes transformações. Bangu agora deixa de ser um bairro industrial para
viver de comércio. A desindustrialização trouxe a informalidade, o deslocamento de
pessoas para outros bairros, a necessidade de se capacitar em outras atividades e uma
transformação social sem igual na vida das pessoas. Este trabalho propôs a retratar a
história da construção da Fábrica Bangu e consequentemente do bairro de Bangu, sob a
ótica dos antigos moradores e ex-funcionários da Fábrica Bangu.
Nos limitamos a falar sobre a criação da fábrica Bangu e a formação do bairro,
mas sabemos que há outros desafios a serem alcançados, como um estudo profundo
sobre a relação do Complexo de Presídio de Gericinó (que hoje faz parte do bairro de
Gericinó, mas que antes pertencia ao bairro de Bangu) com a vida dos moradores do
bairro e o impacto na imagem da fábrica de tecidos situada no mesmo bairro
inicialmente. Outro assunto bem pertinente e que deixou de ser tratado na presente
pesquisa seria sobre o aterro de Gericinó, atualmente desativado. Esses elementos
renegados pelo bairro de Bangu como presídios e o aterro sanitário, nos remete a uma
tentativa por parte de seus moradores de impedir que o bairro se transforme em um
lugar que recebe e reúne todas as “coisas” descartadas e marginalizadas pelo resto da
população. E esses elementos foram justamente contra o esforço da própria Fábrica
Bangu em seu projeto de melhorias do bairro posto em prática desde a sua fundação.
Sem falar na desvalorização dos imóveis que perduram até hoje e que sofreram uma
pequena melhora com a fundação da Fábrica Bangu, que trouxe mais investimentos para
o bairro.
Por ser um trabalho criado através de memórias, a dificuldade da escrita se deu
em tentar lidar com o esquecimento dos fatos ao longo do tempo pelos personagens e ao

43
mesmo tempo criar uma conexão mais próxima possível da realidade com o auxílio de
reportagens de jornais, livros de memórias e recursos áudio visuais.
Produzir um trabalho sobre memória aparenta ser algo simples, entretanto ao nos
depararmos com as transformações das características sociais ao longo do tempo, nos
damos conta das dificuldades no que tange a ausência de elementos que não fazem mais
parte da nossa história atual. Sabemos que a estrutura da Fábrica Bangu resistiu através
do shopping, tanto como o Cassino Bangu, o campo de futebol Moça Bonita e vários
outros elementos que fizeram parte da história do bairro. Mas com as mudanças
ocorridas, eles funcionam numa nova época, numa nova sociedade. Nesse sentido,
somos remetidos a vários questionamentos como: as memórias mesmo com suas
lacunas, darão conta de deixar um legado histórico capaz de manter a identidade do
bairro? Quais serão as referências usadas pelas futuras gerações para propagar a história
do bairro, já que muitos elementos foram transformados ou não existem mais? As
instituições de ensino do bairro estão cumprindo o seu papel enquanto ferramenta de
disseminação da história do bairro e estimulam a pesquisa sobre ele?
As constantes transformações na sociedade nos obrigam a criar meios para que
possamos manter os registros do passado. Construir uma pesquisa sobre identidade e
memória é fundamental para que possamos nos conscientizar sobre a importância da
história oral, mas sem negligenciar a busca por documentos e fontes escritas. Os
registros e representações de cada fase da história do bairro são fundamentais para a
formação da identidade. Espero que essa pesquisa possa contribuir com outras que estão
por vir.

44
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47

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